Justiça de Gênero e Igrejas

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Justiça de Gênero e Igrejas

Denunciando violĂŞncias e proclamando direitos

Dezembro de 2016


Publicação da Diaconia Organização Gleizy Gueiros Joselito Costa Waneska Bonfim

Projeto Gráfico Caique Rago - Mangue Tecnologia

Impressão Gráfica WDT

Tiragem 1000

Apoio – Igreja da Suécia

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de suas autoras.


Sumário 04 06

Desigualdade de Gênero: uma história antiga e contemporânea Maria Risolene Lima Bezerra & Risoneide Lima Bezerra

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Gleizy Gueiros

Kezzia Cristina Silva

Mulheres evangélicas: fé e política resignificando o feminismo nas Vozes Marias Vanessa Maria Gomes Barboza

Igreja: potencial instrumento para promoção de Justiça de Gênero Giselle Gomes Souza

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Justiça de Gênero e Igrejas: a importância de novos referenciais

Teologia feminista e a experiência de libertação das mulheres

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Diaconia e Justiça de Gênero: mobilizando igrejas, encorajando mulheres

Superando a violência contra mulher: avanços nas políticas públicas Maria das Graças Siqueira Lima Silva

O papel da juventude cristã na proclamação da Justiça de Gênero Taynara Mirelle do N de Araújo

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Cartas para uma amiga...


Diaconia e Justiça de Gênero mobilizando igrejas, encorajando mulheres


Proclamar um Reino de Justiça e Paz. Assim coloca-se a base do serviço proposto por Diaconia, uma organização composta por 11 igrejas evangélicas, que está no Brasil, desde a década de 60, motivada pela atuação ao lado das pessoas mais necessitadas, injustiçadas.

O convite ao conhecimento sobre o tema foi respondido por diferentes denominações de igrejas, com mulheres e lideranças religiosas participando e estimulando a abordagem sobre as diversas violências cometidas contra mulheres.

No início da sua trajetória, deu luz aos mais pobres, famintos, sem roupas... Nas grandes cidades, direcionou a sua atuação para as periferias, onde residem as pessoas desempregadas e sem moradia, com crianças e jovens fora da escola e sem condições dignas de saúde. Observou e voltou-se também para a população sertaneja, que vive com pouca água e com dificuldades para produção de alimentos e permanência no campo. Com o tempo, reforçou a reflexão de que no nosso país existem minorias oprimidas e a desigualdade social grita alarmante denunciando inúmeras violações de direitos.

Este tema foi facilitador para a inserção de uma abordagem mais ampla e complexa que favorece a reflexão sobre as desigualdades sociais, políticas e econômicas entre homens e mulheres. Justiça de Gênero foi o tema inserido no último Plano Decenal de Diaconia (2010-2019) e reforçado nos últimos três anos (2014-2016) com o projeto “Justiça de Gênero: mulheres e homens unidos na promoção da equidade, dignidade e inclusividade”, desenvolvido por Diaconia a partir da parceria estabelecida com a Ajuda da Igreja da Suécia.

A inspiração cristã impulsiona a atuação da Diaconia com igrejas evangélicas, facilitando o diálogo sobre temas que pareciam distantes e ainda desconhecidos. Como envolver as comunidades de fé na defesa de direitos? O convite à reflexão e a observação sobre a realidade favorece leituras contextualizadas da Bíblia e a identificação no nosso cotidiano de onde está e o que devemos fazer para colaborar com o Reino de Justiça e Paz.

As mulheres não passaram despercebidas nesta caminhada, sendo mais um segmento com direitos violados, vítima de injustiças e a quem Diaconia propõe uma atuação específica. Onde elas estavam? Em casa, nas ruas, nas escolas e, também, nas igrejas. Inicialmente, a identificação das diversas violências sofridas pelas mulheres pressionou a definição de estratégias que pudessem contribuir efetivamente para denunciar a situação de injustiça e defender direitos. Essa proposta precisava ser trabalhada com mulheres e homens de igrejas. Na prática, um dos propósitos é facilitar o reconhecimento das igrejas quanto às violações de direitos humanos de mulheres, compreendendo que como comunidades religiosas também podem cometer violências de gênero, seja por omissão, por práticas discriminatórias ou por hermenêuticas descontextualizadas. Ao mesmo tempo, as igrejas (homens e mulheres) se apresentam com grande potencial mobilizador, formador de opinião e disseminação de informação que podem contribuir efetivamente para promoção da justiça de gênero na sociedade.

Desta experiência resultaram frutos importantíssimos de estímulo ao trabalho com igrejas para a defesa de direitos de mulheres, impulsionando a atuação com Justiça de Gênero, revelando diferentes abordagens e perspectivas metodológicas que facilitam o diálogo e o envolvimento na denúncia das violências e proclamação da Justiça de Gênero. Esta publicação reúne conteúdos e aspectos históricos, políticos e teológicos sobre Justiça de Gênero, trazendo a concepção e interpretação de diferentes mulheres que ao longo da execução deste projeto puderam participar e contribuir com a construção coletiva dos saberes e a disseminação de informações sobre violação de direitos e Justiça de Gênero. Também nela estão testemunhos de mulheres de igrejas sobre as influências e significados da vivência no projeto em suas vidas. Estes testemunhos foram registrados em cartas escritas durante o Encontro de Intercâmbio Interterritorial, a partir da metodologia de autorreflexão, troca de saberes e experiências de vida. O roteiro proposto inicia com a construção histórica da desigualdade de gênero; insere uma reflexão sobre Justiça de Gênero e Igrejas; toca na Teologia Feminista e apresenta a prática de um grupo de mulheres chamado Vozes Marias. Em seguida, uma referência à igreja como potencial para proclamação da Justiça de Gênero. A violência contra a mulher também foi um tema abordado, assim como a vivência da juventude cristã e a relação com a Justiça de Gênero. Por fim, estão as cartas com testemunhos de transformação na vida das mulheres. Agradecemos a colaboração das autoras que, a partir do compromisso cristão, da militância política, do trabalho técnico e/ou da prática acadêmica colocaram em comum suas análises, reflexões e elaborações textuais para a proclamação da Justiça de Gênero. Boa leitura! 5


01 Desigualdade de Gênero Maria Risolene Lima Bezerra1 Risoneide Lima Bezerra2

uma história antiga e contemporânea

1  Maria Risolene Lima Bezerra é estudante de Psicologia e Diretora de Políticas Públicas para as Mulheres do Município de Afogados da Ingazeira. 2  Risoneide Lima Bezerra é assessora político-pedagógica de Diaconia e integrante do Movimento de Mulheres de Pernambuco.


Mulheres na Luta A posição do papel da mulher no sentido inferior e imaginário vem desde a construção das primeiras sociedades, o que firmou uma dominância patriarcal muito forte, que perpassa no comportamento machista da atual sociedade de forma bem mais acentuada, trazida da hereditariedade da dominação masculina sobre o feminino na construção da história. Para falar do patriarcado, algumas compreensões se fazem necessárias acerca de seu conceito, tratando-se de um “sistema de dominação em que o homem é o centro da sociedade, e as relações sociais são determinadas pela opressão e subordinação das mulheres, mediante o controle de sua aptidão reprodutiva, de sua sexualidade, sua capacidade de trabalho e da interdição de seu acesso à ciência e ao poder” (Cristina Buarque, 2004) Essa dominação patriarcal se instituiu no Brasil desde a colonização de Portugal, com ligação direta com a escravatura, onde a construção de paradigmas de posição hierárquica do sexo justificava o destino das mulheres por elas não traçado e construindo assim um sistema ideológico que vai justificar a predominância do poder masculino nas relações entre os sexos a partir do comportamento machista. Trazemos então o conceito a partir da ótica de Mary Pimentel Drumont - 1980, a qual define o machismo enquanto, “um sistema de representações-dominação que utiliza o argumento do sexo, mistificando assim as relações entre os homens e as mulheres, reduzindo-os a sexos hierarquizados, divididos em pólo dominante e pólo dominado que se confirmam mutuamente numa situação de objetos”. As Mulheres passaram décadas e mais décadas surfando pelas conquistas de direitos que sempre lhes foram negados, nos primeiros momentos da história do feminismo, movimento criado pelas mulheres em contraponto ao machismo e ao patriarcado. Em sua primeira onda, o feminismo foi marcado pela luta em acessar o estudo e o voto feminino, onde se inicia o sufrágio de militantes, que levantavam a bandeira por igualdade entre os sexos, construindo uma luta contra a dominação e exploração das mulheres, implicando em um processo de autonomia.

Direito a ter direitos A conquista pelo voto feminino foi alcançada no ano de 1932, mas por várias décadas o não reconhecimento do papel das mulheres nas decisões para o bem comum, as fizeram ir além nas reflexões quanto ao Direito a ter Direitos.

A situação política vivida pelo Brasil na década de 1960 impulsionou as mulheres a lutarem pelo rompimento do sistema estabelecido ameaçando a democratização e negando ainda mais quaisquer direitos para as mulheres, determinando o seu papel enquanto indivíduo social que era de ocupar espaços privados com papéis não definidos por elas, mas estabelecidos pela sociedade, como por exemplo de ser mãe, dona de casa, e não de seres sociais políticos. A partir de então, a definição do papel da mulher sai do espaço privado que tem como base a lógica do “servir” para o espaço público que as dá o direito de serem atuantes enquanto seres políticos. Nos diversos setores a presença do feminino passaria a definir situações ainda não visualizadas, a abertura da participação da mulher na política proporcionou uma reflexão da condição da mulher também no espaço privado. Foi então que o movimento feminista se estabeleceu no Brasil expondo reflexões quanto a ocupação da mulher nos espaços públicos, principalmente na política e nos espaços de poder e decisão. A luta do direito a ter direito trazia para o contexto questões plurisociais sem perder de vista o ser mulher e a igualdade entre elas, nos apresentando uma segunda onda do feminismo.

Das lutas às leis O movimento de mulheres foi ganhando força com sua luta constante, os marcos legais no acesso aos direitos femininos foram incorporados à legislação, muito embora que as convenções internacionais foram relevantes para tal. A constituição de 1988 no Brasil, chamada de Constituição Cidadã, legitima a igualdade tanto almejada pelas mulheres. A discussão da micropolítica vem à tona, reagindo a subjetivação dominante e as especificidades das mulheres passam a ser apontadas enquanto processo de reparação da desigualdade existente entre elas e a distância do direito comparado aos homens. A aprovação de direitos constitucionais vislumbrava a implementação de políticas públicas para as mulheres. No entanto, o contexto da desigualdade se perpetuava de tal forma que nem todas as mulheres se beneficiaram por igual das conquistas coletivas. A realidade social e econômica posta trazia uma disparidade entre homens e mulheres, a discriminação sexista estava sendo refletida na vida dessas mulheres, principalmente no quesito classe e cor e a luta por igualdade de gênero perpassava por várias outras áreas, assegurando na legislação a justiça de gênero, não apenas pelo fim da desigualdade, mas pela reparação das tensões causadas por ela, reconhecendo que todas estavam na luta pelas mulheres, mas estas são diferentes, com necessidades diferentes, de acordo com a realidade por elas vividas. Estava se iniciando uma terceira onda do movimento feminista. 7


Ainda dentro do contexto político e social de ser mulher, mas ser diferente, lembramos também do feminismo negro, que hora andou junto com o movimento feminista, hora andou com as próprias pernas, buscando destacar as mulheres negras enquanto guardiãs de valores civilizatórios. Embora não se tenha dado o devido reconhecimento, estão inseridas na luta pela democracia, enquanto agentes da história dos movimentos feministas, enfatizando a luta das mulheres negras para acesso às políticas afirmativas não só enquanto público, mas enquanto movimentos diferentes e desiguais. Para melhor compreenderem a falta de visibilidade das mulheres negras, olhemos para ótica de um país racista, que oculta tal comportamento, “o racismo é sistema de poder que cria para justificar e legitimar a dominação e opressão das pessoas brancas sobre as negras e que para se manter, renova-se, continuamente, ordenando todas as dimensões da vida em sociedade e vai expandindo por todo o corpo social, econômico, jurídico, cultural e religioso” (Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB, 2011).

Da mesma forma, o processo histórico tem negado os direitos das mulheres e tentado introduzir uma falsa inclusão política e partilha de espaços de poder e ainda divulga uma democracia que não se apresenta nas práticas sociais, caracterizando um processo discriminatório com danos para a vida das mulheres negras. Quando “a prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia”, Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia, p. 36., a promoção dessa democracia se torna apenas falácia, sem o reconhecimento da contribuição das mulheres negras na luta e nos marcos legais do acesso aos direitos das mulheres. Enumeramos alguns marcos legais com participação direta ou não das mulheres negras na conquista dos direitos femininos no Brasil: •

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Após a conquista do voto feminino, a legislação também assegura cota de participação de mulheres nas candidaturas, aumentando o número de mulheres nos cargos elegíveis, ainda que de forma tímida comparada a participação dos homens; Fundação do centro da Mulher Brasileira, acompanhada posteriormente de organismos nacionais, estaduais e municipais de mulheres, sendo expandido organismos de mulheres em todo Brasil, a partir do ano de 2002;

Em 1985, ocorre a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher;

Foram sancionadas leis trabalhistas que beneficiaram a mulher, a exemplo da licença maternidade, 13º salário e férias remuneradas, bandeira que trouxe tragédias mundiais na luta pelo direito das mulheres, assinatura de carteira para empregadas domésticas, entre outras;

Foi sancionada uma Lei que tipifica e pune criminalmente a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha;

Alguns marcos legais quanto aos direitos reprodutivos da mulher também são apontados enquanto conquistas, proporcionando a decisão sobre seus corpos e suas vidas.

Diante de todo processo de lutas e conquistas de direitos, ainda há desafios a serem enfrentados. Está surgindo uma quarta onda, embora as mulheres não se deram conta, com ameaças dos direitos conquistados em pleno século XXI, no ano de 2016. O impeachment da Presidenta Dilma Rousseff neste ano reflete a grande ameaça e sonegação dos direitos já conquistados, posteriormente à extinção da Secretaria Nacional de Políticas Públicas paras as Mulheres e de outras políticas afins, tem desconsiderado a possibilidade de argumentação e defesa dos movimentos de mulheres organizados de seguirem uma luta que historicamente tem sido traçado um caminho de violação de direitos apenas por sermos mulheres. O machismo está sendo legitimado nos espaços de decisão e poder para justificar os problemas sociais, políticos e econômicos que estão postos no país. A indução ao comportamento pacífico da mulher pelo sistema patriarcal vem acompanhado do discurso de que os problemas existentes se dão em razão de a mulher sair do espaço privado para o espaço público, implantando uma falsa ideologia de gênero, negando a contribuição direta da mulher para o crescimento do país, inclusive nas taxas de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), que não aumentariam se vários setores dos direitos básicos não caminhassem positivamente, isso graças a participação das mulheres na execução de políticas compensatórias para minorias, que se encontra na verdade na maioria da população brasileira. O que apresentamos é que essas conquistas aqui citadas e outras que não vos apresentamos estão sendo ameaçadas. Há um protesto fundamentalista contra os direitos conquistados pelas mulheres. É assustador como as pessoas se separam e se matam no mundo pela sua religião. No Brasil algumas religiões perseguem umas às outras, nas suas divergências de crenças, mas quando se trata do direito das mulheres, que tira


a mulher do papel de submissa e dominada para ser sujeito de sua vida, as pessoas se unem pelas suas religiões para derrubarem os direitos das mulheres em nome de Deus e em nome da Família. Atualmente o cenário brasileiro se apresenta para as mulheres de modo mais que desafiador. Pouco se percebe, mas com os retrocessos de ameaças de direitos, essa história contemporânea das mulheres vai voltar no tempo, elas continuam sufragistas, para não permitir o boicote do sistema patriarcal, para continuar nos espaços de poder e de fato implementar políticas reparadoras, para equiparar a desigualdade ainda existente. Está surgindo uma quarta onda na história do feminismo, a luta agora é de poder manter o que já foi conquistado, e não buscar novos direitos. Contudo, onde está essa igualdade? Se mulheres morrem por ser mulher, se são negligenciadas na saúde, se há disparidade da remuneração salarial, se direitos previdenciários estão sendo ameaçados… Onde está essa igualdade? Onde nós mulheres iremos parar?

Referências Bibliográficas ARTICULAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS. Articulando a luta das mulheres nas políticas públicas. III Conferência de Políticas Públicas para as Mulheres. ONU Mulheres, 2011. BUARQUE, C. Mulheres na Política. Caderno da candidata. Associação Municipalista de Pernambuco AMUPE/ Secretaria da Mulher de Pernambuco. 2016. DRUMONT, M. P. Elementos para uma análise do machismo. Perspectivas. São Paulo, 1980. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. GUEDES, Mª Eunice Figueiredo - Gênero, o que é isso? Psicol. cienc. prof. vol.15 nº1-3 Brasília 1995 9


02 Justiça de Gênero e Igrejas Gleizy Gueiros1

a importância de novos referenciais

1  Gleizy Gueiros é psicopedagoga e assessora políticopedagógica de Diaconia.

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Neste artigo, vamos nos deter a partilhar análises do trabalho da Diaconia, a partir do conjunto de atividades que foram desenvolvidas em diferentes processos de formação de adultos e jovens, homens e mulheres de igrejas evangélicas nos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte e no Ceará, visando a promoção da equidade de gênero.

Essa experiência incentivou mulheres e homens a discutir e refletir sobre os papéis sociais que tradicionalmente desempenham, indo além das tarefas tradicionais culturalmente atribuídas na vida da igreja e da sociedade; sensibilizou lideranças das Igrejas, que passaram a refletir sobre as interpretações dos textos sagrados, a fim de lançarem uma luz diferente sobre o sentido da condição da mulher em diferentes sociedades; permitiu a contextualização do cenário brasileiro relativo às políticas de promoção e proteção de mulheres; e possibilitou, a líderes das Igrejas, a oportunidade de trabalhar com ativistas e na incidência política, visando a igualdade de gênero. Ao falarmos de justiça de gênero, é essencial o entendimento conceitual do que ela significa. Justiça de Gênero implica em proteção e promoção da dignidade de mulheres e homens que, criados à imagem e semelhança de Deus, são corresponsáveis no cuidado da criação. “Justiça de Gênero se expressa através de relações de poder equilibradas entre homens e mulheres e da eliminação de sistemas de privilégio e opressão interpessoais, institucionais e culturais que sustentam a discriminação”. (Política de Justiça de Gênero, Federação Luterana de Diaconia, 2014, p.19). Leis, hábitos, ideais, atitudes e políticas podem, todas, ser pecaminosas se causam dano a qualquer parte da criação de Deus. Por conseguinte, o pecado não é apenas pessoal, mas também estrutural e institucional. As relações de gênero são perpassadas pela injustiça humana, e pela vontade de Deus de que elas sejam justas. A vivência

da igualdade é fruto de bondade. Igualdade deve levar à justiça. Justiça é vocação cristã: somos chamados a viver a justiça, justamente onde ela não existe. Há de se considerar critérios para promover a justiça de gênero e um dos principais questionamentos deve ser: o que as pessoas que vivem processos opressivos de gênero necessitam? Estratégias devem ser pensadas que considerem a: escuta de homens, mulheres, meninas e meninos, para discernir e identificar diferentes contextos e influências que envolvem a questão; que reconheçam que a maior parte das injustiças de gênero no mundo é cometida contra mulheres; que enfatizem a necessidade do empoderamento de mulheres em parceria com os homens para se alcançar a justiça; que examinem as relações de poder através da análise de gênero. O resultado que se visa com uma análise de gênero é transformar relações de poder desiguais em relações justas entre mulheres/meninas e homens/meninos. Ao falarmos em análise de gênero, estamos nos referindo a: uma ferramenta para entender as disparidades entre as realidades das mulheres e dos homens, um instrumental de exame das diferenças que levam a desigualdades e injustiças sociais, econômicas, políticas e religiosas. Uma ferramenta para identificar a divisão de trabalho baseada em gênero e as definições de mulheres e homens, levando em conta as diferenças relativas a status social, necessidades biológicas, situações econômicas e identidades raciais. O chamado para uma vida de justiça está expresso nos escritos bíblicos que convocam o povo cristão para a vivência da palavra, desafiando-o à contextualização da leitura para a transformação e a prática de relações justas. “Empoderado pelo Espírito Santo, o corpo de Cristo é uma comunidade nova e justa de irmãs e irmãos. Essa comunidade, a igreja, é o corpo de Cristo hoje”. (1Co 12.2627). A justiça de gênero e a justiça de Deus se revelam em textos bíblicos como LC 8.1-3, Atos 9.32-42 e 16.11-15. Podemos considerar que a exclusão de qualquer gênero, especialmente a desconsideração do papel das mulheres, não é coerente com a tradição bíblica. Relata-se a presença de mulheres de Deus tanto na época do Antigo quanto do Novo Testamento. Havia a profetisa Miriã (Êx 15.20), que trabalhava com Arão e Moisés. Débora, que era uma líder religiosa e política ao mesmo tempo (Jz 4.4). A profetisa Ana que confirmou a messianidade de Jesus e o abençoou quando ele foi consagrado no templo (Lc 2.36). 11


Jesus tinha muitos discípulos e discípulas. Muitas das discípulas tomavam conta das necessidades econômicas de Jesus, como relatos dos evangelhos de Lucas e Marcos: [...]Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, Suzana e muitas outras, as quais lhe prestavam assistência com os seus bens (Lc 8.2-3 e Mc 15.41). Muitas dessas mulheres foram as primeiras testemunhas da ressurreição (Lc 24.22; Jo 20.11-18). Em Romanos 16, mulheres são mencionadas em diferentes funções e ministérios, incluindo a de colaboradoras de Paulo, como Prisca (Rm 16.3), e apóstolas, como Júnia (Rm 16.7). Essas mulheres assumiram papéis de liderança nas comunidades cristãs dos primeiros séculos. É possível encontrar na religião inspiração e forças para enfrentar nossos medos, fraquezas e dúvidas. Nossa grande responsabilidade aqui é a de nunca esquecer o contexto em que vivemos e o que foi construído durante décadas de luta das mulheres, dentro e fora do mundo religioso. Reconhecer a violência de gênero como algo a ser superado e não suportado é tarefa pendente dentro de várias religiões. É preciso questionar, denunciar, levantar-se contra a legitimação religiosa da violência de gênero. As diferentes experiências que temos vivenciado na relação com as igrejas e os aspectos relacionados a promoção da justiça de gênero têm ratificado a importância dos processos educativos que promovam uma ampla reflexão dialógica, entre a vivência da fé cristã e as posturas opressivas presentes muitas vezes no universo eclesial. No diálogo com diferentes lideranças cristãs, (homens e mulheres), é persistente a marcação de falas que trazem limites e contradições na análise dos contextos relativos à justiça de gênero. Podemos apontar como limites: insuficiente abertura para conhecer, estudar, debater e refletir sobre o tema; o não reconhecimento da liderança ordenada das mulheres em várias igrejas evangélicas; o não reconhecimento de posturas e atitudes machistas, bem como, insuficiente conhecimento dos direitos das mulheres no ordenamento jurídico atual. Esses limites se associam ou dialogam com contradições e posturas que se revelam na: culpabilização de vítimas de estupros, 12

assédios e violência doméstica; não reconhecimento da luta histórica das mulheres e marginalização do movimento feminista no enfrentamento às desigualdades de gênero, e em posicionamentos públicos e educativos dentro das igrejas, externados muitas vezes com base no senso comum e não em apurado estudo e reflexão. É fato consensual que as igrejas desempenham um papel muito importante enquanto influência nos comportamentos e atitudes das pessoas. Ao olhar para igreja, facilmente detectamos e reconhecemos o potencial mobilizador, formador e transformador latente em nossas comunidades de fé.

A participação ativa de lideranças religiosas, desde que se apropriem do tema, propicia o reconhecimento das injustiças de gênero como violação de direito de mulheres. Essas lideranças passam a compreender que, como comunidades religiosas, cometem violência de gênero, tanto por omissão quanto por práticas discriminatórias de gênero, legitimadas por hermenêuticas descontextualizadas, desembocando na percepção clara da necessidade de assumir o compromisso de promover ações efetivas e contínuas para transformação dessas realidades. Entendemos que as comunidades de fé e os diferentes Institutos Teológicos têm a responsabilidade de desconstruir, desmistificar os ensinamentos de textos bíblicos que são interpretados equivocadamente sobre as mulheres e as meninas e sobre as violências. Cabe às comunidades de fé a responsabilidade de pensar profundamente sobre seu papel profético, sociopolítico, pedagógico e cultural na prevenção e no enfrentamento das violências de gênero. Além disso, acreditamos que é possível uma espiritualidade cristã libertária, que permita às mulheres terem voz e identificarem-se nos textos sagrados, com suas vítimas e heroínas, e principalmente, com as referências para a luta pela equidade de gênero.


Acreditamos, enquanto organização cristã, que ao enxergarmos os textos em seus contextos socioculturais e os aplicarmos ao nosso cotidiano, podemos encontrar o sentido religioso para a nossa luta por justiça de gênero.

Que a religião, no seu discurso doutrinário, não seja instrumento para reproduzir e legitimar a opressão e a violência contra a mulher, mas sim um discurso para nos fazer questionar, denunciar e transformar nossa história, sem perdermos a espiritualidade que escolhemos.

Referências Bibliográficas FACULDADES EST. Política de justiça de gênero. Coisas do Gênero, vol. 1, n. 1, p. 114-124, 2015 FÁVERO, M. H. Psicologia do Gênero: psicobiografia, sociocultural e transformações. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. NEUENFELDT, Elaine G. Hermenêutica feminista e de gênero. Série A Palavra na Vida, n. 155/156. São Leopoldo: CEBI, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000. FEDERAÇÃO LUTERANA DE DIACONIA. Política de Justiça de Gênero. Porto Alegre, 2014. FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL. Política de Justiça de Gênero. Genebra, Suíça. 2014. 13


03 Teologia feminista Kezzia Cristina Silva1

e a experiência de libertação das mulheres

1  Kezzia Cristina Silva é pedagoga, teóloga e assessora político-pedagógica de Diaconia.

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“Querer-se livre é também querer livres todas as pessoas” (Simone de Beauvoir) Fazer teologia feminista é se propor a re-fazer uma dinâmica de vida que questiona os valores predominantemente masculinos e celebra a participação das mulheres no tecer da história propondo uma teologia onde os evangelhos têm mais a oferecer para a construção de uma sociedade onde todas as pessoas possam desfrutar de vida plena e abundante. No entanto, ainda hoje, com todas as conquistas históricas da condição feminina, muitas mulheres não podem questionar as estruturas sociais de relações humanas e sequer decidir sobre sua vida. A bíblia, livro de fé para a maioria das pessoas, é usada por lideranças totalitaristas de modo convencional ao sustento de uma cultura de opressão machista. Inseridas em uma sociedade marcada pelo patriarcado, onde todo o poder é centrado no masculino, mulheres vivem condicionadas a uma existência humana drasticamente desigual de subalternidade. A teologia feminista nasce desse contexto, marcado pela luta do feminismo em meados do sec. XX, questionando as estruturas simbólicas de poder exercido pelas igrejas e também inclui temas como direitos reprodutivos, trabalho e igualdade salarial e violência religiosa contra as mulheres. Diante dessa realidade social e religiosa, Diaconia assume o trabalho nas comunidades e igrejas com projetos pautando a temática de gênero como categoria de análise e com contribuições da Teologia Feminista. Acreditase que não há justiça se não houver justiça de gênero e que não há justiça de gênero sem a conscientização de mulheres e homens de todas as idades. No entanto, considera-se a necessidade de focar grupos de mulheres para o empoderamento sobre seus diretos à uma vida cidadã plena. Assumir a temática de gênero como categoria de análise implica em ver e rever como se dão as relações humanas sociais, políticas, religiosas e culturais que determinam papéis sociais normativos para mulheres e homens – relação de poder regida pela supremacia masculina. Os estudos das relações de gênero permitem identificar essas desigualdades existentes entre homens e mulheres e abrem possibilidades para que a mulher possa romper com essa e outras violências que há séculos vem sofrendo. Ao levar a reflexão sobre relações de gênero e violência contra mulher para os grupos de mulheres dentro das igrejas, surge inevitavelmente a necessidade de aprofundar estudos bíblicos numa ótica que não mais reproduza a prática de leitura excludente e opressora. As mulheres passam então a fazer uma leitura que retoma elementos libertadores e afirmadores de dignidade existentes na raiz do cristianismo. Dessa maneira:

uma crítica feminista reconhece que a desigualdade entre homens e mulheres é causada por estruturas sociais, justificadas através de diferenças biológicas e mandatos divinos. A teologia feminista assume a tarefa de criticar os valores predominantemente masculinos e excludentes que se tornaram norma e formular perspectivas que fomentem uma visão de mundo, da sociedade, teologia que seja inclusiva daquelas e daqueles que até agora estiveram na periferia da formulação teórica e teológica. (DEILFELT, Wanda. Ano, pg. 173) Os grupos de mulheres de igrejas ao fazer teologia feminista passam a ter uma nova relação com os textos das sagradas escrituras, no exercício de uma hermenêutica feminista interpretando e reinterpretando a partir das suas experiências de fé e de luta. A hermenêutica feminista abre portas que permitem questionar, criticar as estruturas opressoras bem como construir novos olhares que acompanham as experiências de histórias das mulheres. A teóloga Ivone Gebara apresenta a hermenêutica feminista como uma maneira de ser, de relacionar-se e de compreender, como um processo de contextualização e recontextualização dos textos. A teologia feminista é apresentada como uma nova maneira de compreender Deus e os símbolos cristãos a partir de uma valorização do elemento humano, numa perspectiva histórica e igualitária. Ao fazer esse exercício hermenêutico dos textos bíblicos e da vida, é possível identificar nas histórias das mulheres, marcas em comum como a falta de oportunidades, participação política, silenciamento, discriminação, também as singularidades como questões das subjetividades, desejos, gostos e sonhos. As experiências se encontram entre elas e encontram-se com as mulheres nos textos bíblicos: “Ou qual a mulher que possuindo dez moedas e, perdendo uma delas, não ascende uma candeia, varre a casa e procura atentamente até encontrála? E quando encontra reúne suas amigas e vizinhas e diz: ‘Alegrem-se comigo, pois encontrei minha moeda perdida’. Eu lhes digo que da mesma forma, há alegria na presença de Deus por um pecador que se arrepende” – Ev. Lucas 15.08-10. Na parábola citada, as mulheres são convidadas por uma outra mulher que é Deus, a fazerem a hermenêutica da varredura dos textos bíblicos a fim de reencontrar verdadeiros tesouros de vida e dignidade que por séculos estiveram escondidos pelas poeiras da leitura patriarcal. A teologia feminista reafirma que mulheres e homens foram criadas e criados à imagem e semelhança de Deus, um Deus que não tem sexo e nem gênero e que se fez gente para apresentar um modelo de ser humano justo, baseado na entrega e no amor ao próximo. Um Deus que quando gente entrega a vida por amor a todas as pessoas, e essas pessoas aos se batizarem nesse amor, rompe 15


com toda ordem de desigualdade, tornando-se iguais em amor. Ao reencontrar tesouros sagrados como esses, essas mulheres chamam outras mulheres para celebrar entrando também nessa dança de libertação. Quando uma e duas mulheres são empoderadas de suas capacidades e potencialidades, elas têm suas vidas transformadas e estendem ‘a boa nova’ para sua comunidade, como fez aquela mulher que se encontrou com Jesus na beira do poço. Quem bebe da água viva, ganha e compartilha vida. Assim tem sido a vida de muitas mulheres jovens, adultas e idosas que ao longo dos últimos três anos vêm experimentando no coletivo de mulheres cristãs com a Diaconia oportunidades de uma espiritualidade libertadora e uma religião saudável a partir da consciência de justiça de gênero fortalecida pela teologia feminista, conforme alguns depoimentos:

Desde que comecei a participar dos processos formativos em Justiça de Gênero com a Diaconia, eu me reaproximei de Jesus. Dei um salto de conhecimento e crescimento espiritual, intelectual e, principalmente, social. Assim, me reencontrei no cristianismo. Nessa caminhada tenho experimentado que é possível um cristianismo que não oprime as minorias, que repensa dogmas e a fé, que apresenta uma leitura mais leve e significativa da bíblia.” Jeane Almeida Campos, 29

Após meu primeiro contato com as temáticas Gênero e Religião e leitura feminista da bíblia, minha relação com a igreja, com a família e com o trabalho mudou. Em casa, discuto relações de gênero com meu esposo e na minha igreja que é a Assembleia de Deus, não aceito mais os sermões que discriminam e oprimem mulheres, tenho procurado oportunidade para discutir sobre isso com outras mulheres de minha igreja. Sou assistente social e trabalho atualmente na Casa de Acolhimento Margarida Alves, onde recebo diariamente mulheres vítimas de violências, das quais a maioria delas oriunda de igrejas evangélicas onde a violência é pautada na leitura patriarcal e tendenciosa da bíblia. Ali tenho a oportunidade de apresentar para essas mulheres um outro caminho, um caminho de libertação a partir da teologia feminista. As mulheres saem dos momentos de atendimento com alivio na alma e livres dos sentimentos de culpa colocados pelas religiões opressoras.” Angélica Gonçalves, 32

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Minha maior alegria hoje é saber que não sou pecadora porque sou feminista e luto por direitos humanos. Encontrar grupo de mulheres que estudam a bíblia numa perspectiva libertadora foi para mim um verdadeiro alento. Poder desfrutar desses processos na companhia da minha mãe, experimentando juntas justiça de gênero e vêla se libertando das correntes do machismo e se empoderando é o maior ganho. Meu coração é muito grato e contente em assumir minha espiritualidade militante e feminista.” Talita Araújo do Nascimento, 22

Depoimentos como esses mostram que a teologia feminista oportuniza alcance sem dimensões na vida das mulheres. No entanto não nos iludamos pensando que já temos conquistado tudo. Vivemos momentos de ideologias confusas e em uma sociedade ainda marcada pelo patriarcado e suas injustiças. A retomada da tendência de dominação das mulheres e de seus corpos não é uma ação nova e não surpreende. Porém, no exercício de uma teologia saudável proposta pela teologia feminista, as mulheres se renovam, se fortalecem na esperança esperançosa. Como diz a velha e bela canção Juízo Final:


“O sol há brilhar mais uma vez A luz há de chegar aos corações O mal será queimada a semente O amor será eterno novamente” Música e Letra: Nelson Cavaquinho

Referências Bibliográficas DEIFELT, Wanda. Temas e metodologias da teologia feminista. In: SOTER (Org). Gênero e Teologia. Interpelações e perspectivas. São Paulo: SOTER/ Paulinas/Loyola, 2003.pg. 173 GEBARA, Ivone. Teologia em Ritmo de Mulher. São Paulo, Paulinas. 1994, 27-39; Bíblia NVI. Evangelismo em Ação: compilada por Ray Confort; tradução Ermison Justino e Marcelo Siqueira Gonçalves. – São Paulo, Editora Vida, 2005

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04 Mulheres evangélicas Vanessa Maria Gomes Barboza1

1  Vanessa Maria Gomes Barboza é assistente social, cofundadora e integrante do Coletivo Vozes Marias.

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fé e política resignificando o feminismo nas Vozes Marias


Este trabalho apresenta parte das reflexões fomentadas pela militância do Coletivo Vozes Marias contra as desigualdades de gênero, a violência contra a mulher e o machismo arraigado no âmago das instituições e/ou grupos independentes que professam a fé da religião protestante. Objetivamos compartilhar nossa experiência no combate a tais desigualdades, compreendendo que essa experiência não é essencialmente pessoal, ela é um evento linguístico, nas palavras de Joan Scott (1999) envolta por um contexto social, historicamente variável e construída coletivamente. De antemão, avisamos que este texto são considerações iniciais e inconclusas sobre uma vontade de saber e de transformar que nos move, encanta e traz sentido. É sobre essa vontade de recontar a história e mudar o “destino”, rompendo com a reprodução de sistemas de opressão-privilégios que subalternizam as mulheres, que falaremos aqui. Ainda não sabemos o que o futuro nos reserva, mas, por enquanto, estamos aqui, construindo o Coletivo Vozes Marias e sendo construídas em conjunto. Estamos no caminho e em processo. Portanto, este texto trata sobre a nossa militância até chegarmos ao cenário presente. Amanhã, talvez, sejamos outras. Nesse contexto, outro adendo faz-se importante. Ao contrário de como geralmente os textos acadêmicos são construídos (resultados de pesquisas, discussões teóricas, etc.), nós falamos de um lugar de militância, escrevemos como militantes, partindo do marco de que nossa escrita e nossa voz são atos políticos. Esse lugar (o da escrita acadêmica) é uma conquista e um desafio. É uma conquista porque não é uma produção intelectual que fala por, escreve sobre, e sim que produz mecanismos de fala e visibilidade de mulheres em ação, que se encontram em um movimento contra hegemônico de pensarem e escreverem sobre si e o que fazem. Assim sendo, acreditamos responder positivamente a pergunta que Gaytri Spivak (2010) faz em seu livro Pode o subalterno falar? Podemos! O desafio encontra-se em estranhar o que nos é tão familiar. O que precisamos melhorar? Nossas ações são eficazes, incidem positivamente na realidade? A autocrítica nem sempre é fácil, mas necessária ao amadurecimento, ao menos, reconhecer que necessitamos é um avanço para as nossas lutas cotidianas. Sobre este debate, do lugar de onde se fala, o pensamento de Donna Haraway (1995) nos é pertinente. Haraway (1995), em sua crítica à neutralidade e separação entre sujeito e objeto na objetividade científica, apresenta-nos uma objetividade feminista que acredita na produção do conhecimento como uma conversa situada, não inocente, estabelecida através de nossas próteses e tecnologias de visualização (como vemos?). Desta forma, iniciamos este artigo relatando quem somos e onde esta conversa

situa-se. Em seguida, discorreremos sobre as nossas tecnologias de visualização, as abordagens teóricas que têm nos inspirado. Por fim, exporemos o que temos feito até aqui – com enfoque especial nas ações em combate à violência contra a mulher – e o que estamos tramando para o futuro, para que nossas filhas escutem histórias de liberdade e as filhas de suas filhas também.

Sobre as Marias que ergueram a voz Somos mulheres, a grande maioria jovens de até 30 anos de idade, vinculadas à igrejas protestantes de diferentes denominações (tradicionais e pentecostais), de classes populares, todas com acesso à universidade (algumas formadas, outras em processo de formação), residentes na cidade de Recife e Região Metropolitana, no estado de Pernambuco. Nordestinas de cores diferentes, corpos diferentes, igrejas diferentes, mas com uma única voz: liberdade para as mulheres. Mulheres “Falantes”, em Recife Enquanto mulheres, vivenciamos as angústias de uma realidade violenta na cidade de Recife, mas, nos debruçamos investigativamente sobre os casos de violência contra as mulheres, e nos deparamos com um medonho resultado. Pernambuco ocupa o 10º lugar no ranking nacional de homicídios de mulheres. Recife é o 6º lugar no ranking nacional, sendo a 4ª capital mais violenta para as mulheres no Nordeste. O Brasil está em 7º no ranking mundial de homicídios contra as mulheres, estando uma concentração maior das vítimas entre a faixa dos 15 aos 29 anos de idade, com destaque para o intervalo de 20 a 29 anos – intervalo que mais obteve crescimento na década analisada (2000 a 2010) – ou seja, mulheres jovens, em idade produtiva e reprodutiva. Os locais de maior ocorrência da violência são a residência (71%), a via pública (15%) e a escola (Waiselfisz, 2012). No ano de 2013 a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito do Senado apresentou um relatório que aponta as fragilidades do poder público no atendimento às vítimas de violência doméstica, e recomenda várias providências governamentais para a superação do quadro de insuficiência nesse atendimento. Considerando esses dados, podemos dizer que vivemos sob um risco iminente de morte por violência doméstica. Entre as produções técnico-científicas sobre a questão da violência em contexto religioso, a escassez de material é evidente, muito embora encontremos pesquisas sendo desenvolvidas na área da sociologia, antropologia e ciências da religião. Dentre estas, podemos citar o livro “Até Quando?” - O cuidado pastoral em contexto de violência contra a mulher praticado por parceiro íntimo” (CAROLL, 2010), pois registra essa realidade de violência 19


na vida de mulheres religiosas protestantes, a partir de uma pesquisa realizada junto a 82 líderes religiosos e com 50 mulheres que frequentavam igrejas evangélicas na Região Metropolitana do Recife. Os livros “Uma igreja sem Voz”, de Valéria Vilhena (2012), e o “Os Direitos Humanos das mulheres nas religiões no século XX”, de Maria do Rosado Nunes (2010), também constam como pontos de partida para a contextualização do problema junto ao grupo.

Compreendemos que o cenário vivenciado em Recife não pode ser compreendido isoladamente, ou desconexo de uma teia de relações políticas, econômicas e culturais vividas pelas demais cidades brasileiras ou pelos demais países da América Latina. A cultura de feroz violações e opressões compõe a gama de características reservadas aos países que foram colonizados e explorados pelos países centrais, e que na atualidade enfrentam verdadeiros embargos ao seu desenvolvimento como afirma Marcela Lagarde (2005) em “El cativeiro de las mujeres” sobre a situação das mulheres e em que elas diferem, enquanto as suas situações de vida, e os agravos e níveis da opressão, (p. 79) compreendida como “...un conjunto articulado de características enmarcadas en la situación de subordinación, dependencia vital y discriminación de las mujeres en sus rclacio· nes con los hombres, en r.l conjunto de la sociedad y en el Estado. La cpresión de las mujeres se sintetiza en su inferiorización frente al hombre consiituido en paradigma social y cultural dala humanidnd.” (Lagarde, p. 97, 2005) Por meio dessa definição, a opressão das mulheres se manifesta e se realiza na discriminação de que são objetos, vivenciando desprezos e maus-tratos por serem subordinadas e dependentes, por serem consideradas inferiores. Observamos uma clara tendência a essa percepção sobre as mulheres ao analisarmos os elevados índices de feminicídio registrados em todo o Brasil e no estado de Pernambuco, em particular. 20

Diante desse terrível cenário social de opressão e morte que ilustra a realidade das mulheres na cidade em que moramos e atuamos, nossas vozes surgem como agudos sonoros e “irritantes” ante ao poderio eclesiástico que sustenta uma ideologia apoiada na subordinação feminina.

As percepções metodológicas: teologia, epistemologia e teoria feminista e a educação popular Eleger uma perspectiva investigativa que orientasse nossas leituras e intervenções era algo necessário e urgente. Contudo, dentro do clichê da tradição teológica hegemônica, na qual estávamos inseridas e na qual testemunhávamos as opressões vividas por nós, mulheres cristãs, devíamos buscar referências teóricas em nossa própria experiência profissional e desbravar as alternativas de produção teológicas existentes. Aqui, realçamos a importância da nossa formação acadêmica ao iniciarmos o grupo, todas formadas (ou em formação) em ciências humanas, simpatizantes das abordagens críticas sobre a realidade. Obviamente que, ao delimitarmos um cronograma de estudos, esse lugar almejado de fala, e que não era o corriqueiro no meio religioso, surgiu com as possibilidades oferecidas pela epistemologia feminista, teologia feminista e educação popular. Como fruto de esforços contra-hegemônicos dentro das ciências, a epistemologia feminista surge para propor uma nova maneira para “o pensar” e “o fazer cientifico”, ao reivindicar a participação e contribuição das mulheres na trajetória da ciência moderna, uma nova maneira de relacionar sujeito-objeto, ou seja, um projeto feminista de ciência em que está articulado com a construção de uma nova linguagem em busca da formulação de um contradiscurso (RAGO, 1998). A adoção dessa perspectiva à nossa leitura de mundo acentuou nosso entendimento pessoal e coletivo de detentoras e produtoras de conhecimento, um protagonismo pouco experimentado entre as mulheres cristãs, mesmo as com acesso ao ensino superior. Revelando-nos, uma nova alternativa diante da severa e excludente tradição imposta pela ciência teológica dominante.


Considerada marginal pelos conservadores da tradição teológica vigente, a teologia feminista nos ofereceu uma nova leitura do mundo religioso a partir da perspectiva das mulheres. Uma teologia feita de, e para, as mulheres, e que busca o resgate da dignidade e autonomia feminina (GEBARA, 2007). Sendo esse, um enfoque ainda pouco conhecido entre as evangélicas, e duramente criticado pelos “Papas” da igreja cristã. Afinal, essa perspectiva nos conduz em uma caminhada de reencontro com a espiritualidade não pecadora das mulheres e a construção de uma nova relação com a deidade, fora dos padrões androcêntricos e falocêntricos secularmente disseminados pela igreja cristã (AQUINO y TÁMEZ, 1998). Para o Vozes Marias, adotar esse olhar sobre Deus e o mundo também se constituiu (e ainda se constitui) como um desafio, pois o movimento de desconstrução necessário agitou as relações íntimas de cada participante, e entre o grupo como um todo, além das atitudes de resistência enfrentadas fora do grupo, junto à comunidade evangélica. Por conseguinte, desde nossas conversas informais, nos preocupávamos com as experiências de violações das mulheres populares e como tal situação era conduzida pelas lideranças eclesiásticas. Como já nos revelou algumas pesquisas, a maioria das mulheres evangélicas está nas igrejas pentecostais e neopentecostais, tendo renda de até dois salários mínimos e escolaridade até o ensino médio.

Não se sabe o quanto de acesso à teologia formal essas mulheres desfrutaram ao longo de sua vida religiosa, tampouco a intensidade da influência da mídia sobre elas.

Aproximar esse perfil de mulheres ao conteúdo que nos propomos a estudar, requeria de nós uma metodologia capaz de dialogar com sua compreensão teórica e que permitisse uma reflexão a partir da vida concreta. Por isso adotamos a educação popular como meio privilegiado de estabelecermos conexões dialógicas entre nós mesmas e entre as nossas irmãs. A educação popular desenvolvida pelo educador Paulo Freire ao longo da década de 1960 e 1970, no Brasil, é um método que privilegia a realidade como ponto de partida para o processo de aprendizagem e reflexão crítica, com fins de promoção de mudanças sociais, oriundas de um processo de construção coletiva, e dialogada entre saberes e conhecimentos localizados que, juntos em interação, originam novas estratégias de ser e agir no mundo.

Conclusão O árduo caminho do campo dos direitos das mulheres vislumbra os consideráveis esforços que o Coletivo Vozes Marias deve desprender para uma intervenção social significativa à altura da trajetória histórica do movimento feminista. Ao reconhecer e apoiar o caráter reivindicatório dos movimentos sociais de defesa dos direitos das mulheres, o grupo assume a sua adesão e responsabilidade de construir um caminho de libertação e emancipação para as mulheres. Na verdade, somos parte dos frutos de lutas em vários lugares do mundo, onde há mulheres oprimidas e mulheres lutando contra as injustiças. Somos parte de um movimento que é local e global, que é universal e

particular. Os desafios para a superação das desigualdades e desigualdades de gênero são áridos e históricos. Acreditamos que a organização de mulheres em torno de um novo projeto societário de justiça, equidade e fraternidade é a maneira mais viável de superar discursos conservadores e opressores que ainda desvalorizam e violam seus corpos e suas narrativas históricas. Acreditamos, também, que no interior do discurso cristão há possibilidades de releituras que resgatem dignidade e integridade do ser humano, livre de concepções egoístas e corruptas; e que a igreja pode, enquanto poder local e associativo, ser um agente promotor de mudanças e transformações sociais no campo dos direitos das mulheres. 21


Referências Bibliográficas AQUINO, Maria Pilar. y TÁMEZ, Elsa. Teologia Feminista Latino Americana. Serie Pluriminor. Editora Abya Yala – Quito, Equador. 1998. CAROLL, Aillen Silva. Até Quando?; O cuidado pastoral em contexto de violência contra a mulher praticado por parceiro íntimo / Aillen Silva Caroll e Sérgio Andrade. Viçosa, MG :Ultimato, 2010. GEBARA, Ivone. O que é teologia feminista. Coleção Primeiros Passos. Editora Brasiliense, São Paulo. 2007. GURGEL, Telma. “O feminismo como sujeito coletivo total: a mediação da diversidade” In Cadernos de Critica Feminista. Ano V, n.4-dez.2011 HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: Cadernos Pagu, Campinas, Unicamp, n.5, p. 07-41, 1995. LOS RÍOS, Marcela Lagarde de. Los Cautiveros de las mujeres (Madesposa, monjas, putas, presas y locas). Cidade do México. Universidad Nacional Autónoma De México POSGRADO. 2005. LOURO, Guacira.L. Práticas educativas feministas. In: LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação. p. 110 – 141. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. MIRLA, Cisne. “Feminismo e consciência militante feminista no Brasil” In Cadernos de Critica Feminista. Ano VI, n.6 -dez.2013. NUNES, Maria do Rosado. Os direitos Humanos das Mulheres nas religiões do século XXI (I Curso de Outono da Escola de Teologia Feminista – 19, 20 e 21 de novembro de 1999). Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2005. RAGO, Margareth In PEDRO, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)- MASCULINO, FEMININO, PLURAL. Florianópolis: Ed.Mulheres,1998. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-22, jul/dez., 1990. SCOTT, Joan. Experiência. In: SILVA, Alcione Leite et. al (org) Falas de gênero. Ilha de Santa Catarina: Ed Mulheres, p. 21-55, 1999. SANDENBERG, Cecília M. B. Considerações introdutórias às Pedagogias Feministas. NEIM/UFBA. Bahia, 2004. TISDEL, Elizabeth. (1998). “Postrutural feminist pédagogies: The póssibities and limitations of a feminist emancipatory adult learning theory and practice.” Adult Education Quarterly, 48(3), 139-156. VILHENA, Valéria Cristina. Uma igreja sem voz – análise de gênero da violência doméstico entre mulheres evangélicas / Valeria Cristina Vilhena: São Paulo: São Paulo: Fonte Editorial, 2011. Pernambuco, Secretaria da Mulher. Mulheres Construindo a Igualdade: Caderno Etnicorracial/Secretaria da Mulher; Organização e Texto: Celma Tavares, Cristina Maria Buarque, Fernanda Meira, Lady Selma, Rosangela Souza e Rosario Silva. – Recife: A Secretaria, 2011.

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05 Igreja: potencial instrumento para promoção de Justiça de Gênero Dialogando com os

Severinos e Severinas de Maria

Revda. Giselle Gomes Souza1

1  Giselle Gomes Souza é teóloga, mestranda em Extensão Rural e Desenvolvimento Local da UFRPE e Reverenda da Igreja Anglicana da Santíssima Trindade.

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Este artigo tenta analisar o papel que pode desempenhar a Justiça de Gênero dentro das Igrejas cristãs e na construção de vidas dos irmãos “Severinos e Severinas de Maria iguais em tudo na vida” como diria o nosso saudoso poeta João Cabral de Melo Neto em seu poema Morte e Vida Severina, que relata a construção de uma caminhada retirante, lutadora que indica dois caminhos dentro da temática de Justiça de Gênero no contexto eclesiástico: a educativa-religiosa e a social. Neste artigo, focado no que diz respeito a Justiça de Gênero, fazendo o recorte nas mulheres e homens cristãos, atuantes nas igrejas evangélicas da Região Metropolitana do Recife- PE, destacamos o que aborda Bosi: Os velhos, as mulheres, os negros, os trabalhadores manuais, camadas da população excluídas da história ensinada na escola, tomam a palavra. A história, que se apoia unicamente em documentos oficiais, não pode dar conta das paixões individuais que se escondem atrás dos episódios. (BOSI, 2004, p.15). Como nos indica Woortmann (2010), é preciso estar atento ao risco de cair na armadilha de trabalhar com as “lentes masculinas”, por isso a importância de analisar as condições das mulheres cristãs e sua relação com a Igreja, para pensar os conceitos que envolvem os estudos de Justiça de Gênero com lentes de equidade.

Identidades. Severino. Severina. “Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra,no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.” Somos pobres. Somos iguais em tudo na vida, inclusive nas contradições tão próprias do ser humano que busca produzir sentido para as relações sociais. Temos os mesmos estereótipos porque fazemos parte da camada popular da grande maioria das Igrejas cristãs do Nordeste brasileiro. Até porque os ricos não conseguem aprofundar sua relação a Jesus, vivem na superficialidade religiosa e não existe Justiça de Gênero superficial. A justiça de Gênero requer a radicalidade do Evangelho. É preciso definir quem somos enquanto cristãos e cristãs nessa caminhada de retirante. 24

Desenvolver ações no campo da justiça de Gênero que contribua na formação da identidade do grupo de homens cristãos e mulheres cristãs. Severinos. Severinas. Reforçar os Severinos. Dar força e valorizar as masculinidades. Construir na valorização de suas histórias de lutas e conquistas das Severinas. Mulheres de coragem, respeitando suas diferenças, mas ressaltando as dimensões comuns. Parece-me que as identidades devem ser preservadas, mas o alvo é o discipulado de iguais, o mesmo anunciado e vivido por Jesus em seu ministério pastoral.

Educar Severinos e Severinas e... nós pastoras e pastores? “E se somos Severinos, Iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, Mesma morte Severina” Educar para entender suas necessidades e potencialidades, através do diálogo com outras organizações da sociedade (ONG´s, sindicatos, associações de moradores) e que possam juntos construir um processo mais amplo no sentido de visualizar o papel de cada um e de cada uma, na construção de uma Justiça de Gênero possível. Discute-se a utilização das diversas instâncias educativas e metodológicas como reafirmação ou não de uma justiça de Gênero. A conquista dos ambientes litúrgicos implica em novos padrões e exigências importantes para a igreja da pós-modernidade, como por exemplo, a ordenação feminina (que vale ressaltar foi resultado de muita luta das mulheres principalmente do Movimento Ecumênico), a hermenêutica bíblica feminista que ressalta a relação de Jesus com as mulheres e todas as consequências desses encontros para a vida da igreja, e, finalmente, a linguagem inclusiva nas leituras dos textos bíblicos e na vida cotidiana das pessoas que apontam para uma educação como ato político. Uma educação para Severinos e Severinas que produza conhecimento. O poema nos diz que “morremos de morte igual”. Que maravilha compreender que pastoras e pastores morrem de morte igual, ou melhor ainda, não são imortais. Muito menos seres espirituais. São “iguais em tudo na vida”. É urgente uma educação para os líderes religiosos que reconheçam o seu papel relevante na construção de um processo estratégico e diferencial que faça o contraponto com a intolerância, a injustiça e a violência tão presentes na relação de Gênero, principalmente dentro das igrejas.


Afinal A proposta central deste artigo foi apresentar a importância da temática da Justiça de Gênero dentro das igrejas cristãs e os desafios existentes para avançarmos nas discussões. Portanto, é preciso um processo educativo que deve contribuir no apoio a construção coletiva de Justiça de Gênero dentro das igrejas e fora dela, isso exige novos Severinos e novas Severinas para que possamos construir uma Igreja mais justa e que viva a Justiça de Gênero.

Referências bibliográficas BOSI.E. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social, 2.ed. São Paulo: Ateliê editorial, 2004. NETO, J.C.M. Morte e Vida Severina. Rio de Janeiro. Ed. Objetiva, 2007. WOORTMANN,E. IN: SCOTT, P.; CORDEIRO,R. e MENEZES,M. (Orgs.). Gênero e geração em contextos rurais. Ilha de Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2010. 25


06 Superando a violência contra mulher avanços nas políticas Maria das Graças Siqueira Lima Silva

1

públicas

1  Maria das Graças Siqueira Lima Silva é assistente social, integrante da Rede de Mulheres Cristãs e Missionaria da Igreja Deus é Amor.

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A violência representa uma das principais causas de morbidade e mortalidade entre a população jovem. Enquanto os homicídios ocorrem em espaços públicos atingindo principalmente o sexo masculino, a violência sexual afeta o sexo feminino dentro do espaço doméstico. Mulheres em situação de violência sexual experimentam sequelas físicas e psicológicas, tornando-se mais vulneráveis a diversos problemas de saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). A violência está incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) sob a denominação “Causas Externas”. É um fenômeno universal, no qual não há restrição de sexo, idade, etnia ou classe social, que ocorreu no passado e ainda ocorre, em diferentes contextos ao longo da história da humanidade. Embora atinja homens e mulheres, estas são as principais vítimas, em qualquer período de suas vidas, no entanto, as mulheres jovens e adolescentes apresentam risco mais elevado de sofrer esse tipo de agressão (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008; BLACK MC, et all. 2011; BASILE KC, SMITH SG, 2011).

Nos últimos anos a violência sexual tem sido relacionada como um caso de saúde pública, pois exerce importante impacto sobre a vida das pessoas e, nas últimas décadas, tem acumulado indicadores confiáveis nesse sentido. Investigações têm constatado que a violência contra a mulher se encontra entre as principais causas de anos de vida saudáveis perdidos por incapacidade. A violência presente nas relações de gênero é um sério problema para mulheres em todo mundo. Os reflexos desse problema são percebidos no âmbito dos serviços de saúde, seja pelos custos que representam, seja pela complexidade do atendimento que demandam. Essa violência – em particular o estupro – atinge, sobretudo, meninas, adolescentes e mulheres jovens no Brasil e no mundo (ALEMPIJEVIC D., et all., 2006), mostrando a fragilidade desse sexo diante desse tipo de violência. O abuso ou violência sexual não se caracteriza apenas por violência física, inclui também: carícias, exploração sexual, linguagem obscena, exibicionismo, masturbação, entre outros. Estudos sobre o tema indicam que a maior parte da violência sexual é praticada por parentes, pessoas próximas ou conhecidas, com quem existe um vínculo sentimental ou hierárquico, ocorre em ambientes familia-

res, tornando o crime mais difícil de ser denunciado. O medo de vingança, a sensação de culpa, o desconhecimento dos direitos legais e o descrédito na Justiça são fatores que também contribuem para a não denúncia. O Código Penal Brasileiro define como estupro o constrangimento de pessoas do sexo feminino ao coito vaginal, mediante violência ou grave ameaça. Entendese por “violência” o emprego de força física capaz de sobrepujar a força da vítima; e por “grave ameaça” a promessa de efetuar tamanho mal, suficiente para impedir sua resistência. O atentado violento ao pudor é caracterizado pelo constrangimento de pessoas de ambos os sexos, mediante violência e/ou grave ameaça à pratica de atos libidinosos diferentes do coito vaginal (OLIVEIRA J., 1987).

Violência de gênero Segundo Casique, Furegato (2006) dentre as diferentes formas de violência de gênero citam-se a violência intrafamiliar ou violência doméstica e a violência no trabalho, que se manifestam através de agressões físicas, psicológicas e sociais. Na violência intrafamiliar, contra as mulheres e/ou as meninas incluem o maltrato físico, assim como o abuso sexual, psicológico e econômico. Ainda segundo os referidos autores para melhor entendimento da condição geradora desse agravo é necessário evidenciar a condição de relação entre gêneros onde ocorre e assim a definem. A violência de gênero é aquela exercida pelos homens contra as mulheres, em que o gênero do agressor e o da vítima estão intimamente unidos à explicação desta violência. Dessa forma, afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo, ou seja, é a violência perpetrada pelos homens mantendo o controle e o domínio sobre as mulheres. No Brasil a Lei No 10.778, de 24 de novembro de 2003 estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados. Essa lei é complementada pela Lei Maria da Penha como mais um mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, com medidas mais efetivas (penais) para o seu controle além do dimensionamento do fenômeno. O interesse pelo tema surgiu através das dúvidas com relação ao alto índice de violência contra a mulher que vem surgindo a cada dia. Atualmente a violência contra a mulher vem se explicitando a cada dia em nossa sociedade, problema este que afeta milhares de famílias em todo Brasil, afeta a integridade física da pessoa, causa danos psicológicos e sociais, não se destina a um determinado fator como cor, raça, etnia ou classe social. 27


A violência contra a mulher é uma temática bastante discutida na sociedade contemporânea, pois levanta vários questionamentos como o porquê da mulher se submeter a tanta violência calada, além dos registros crescentes em milhares de lares a cada ano no Brasil e no mundo, não distinguindo as classes sociais, presente em famílias pobres e ricas.

Violência Sexual De acordo com a OMS, violência sexual é “qualquer ato sexual ou tentativa de obter ato sexual, investidas ou comentários sexuais indesejáveis, ou tráfico ou qualquer outra forma, contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção”. Pode ser praticada, segundo o organismo, por qualquer pessoa, independentemente da relação com a vítima, e em qualquer cenário, incluindo a casa e o trabalho. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam para uma situação mais sombria se for levado em consideração o número de mulheres vítimas de violência em geral. Cerca de 70% das mulheres do mundo sofrem algum tipo de violência no decorrer de sua vida, diz a organização. Em todo o mundo, uma em cada cinco mulheres será vítima de estupro ou tentativa de estupro, calcula a ONU.

No Brasil, a situação também é alarmante. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgada em 2013 estima que o Brasil registrou entre 2009 e 2011 quase 17 mil mortes de mulheres por conflito de gênero, o chamado feminicídio, que acontece pelo fato de ser mulher. Ou seja, 5.664 mulheres são assassinadas de forma violenta por ano ou uma a cada 90 minutos. Porém, a violência sexual contra a mulher no Brasil vem acontecendo muito antes dos estudos realizados pela ONU, pois há relatos desde a época da escravatura. O entendimento das relações entre senhores e escravos perpassa, necessariamente, pela análise do contato forçado na intimidade doméstica e na sexualidade. A historiadora norte americana Sandra Lauderdale Graham, em interessante obra sobre histórias de mulheres na sociedade escravocrata brasileira (IN CAETANA; 2005), traz o questionamento relativo ao papel da sexualidade das escravas na trajetória de aprendizado de papéis sexuais em um contexto tão fortemente marcado por relações violentas. 28

A violência sexual tem efeitos devastadores nas esferas física e mental, em curto e longo prazo (BLACK MC, et all. 2011). Entre as consequências físicas imediatas estão a gravidez, infecções do trato reprodutivo e doenças sexualmente transmissíveis (DST) (OLIVEIRA EM, et al; 2005; BLACK MC, et all. 2011). Em longo prazo, essas mulheres podem desenvolver distúrbios ginecológicos e na esfera da sexualidade (BASILE KC, SMITH SG, 2011).

Identificação de avanços Neste cenário de violências cometidas contra as mulheres, algumas conquistas já podem ser identificadas e relacionadas como políticas públicas para as mulheres, asseguradas como legislações praticadas em níveis nacional, estaduais e municipais. Estas conquistas são resultantes da organização e luta dos movimentos de mulheres que começaram a identificar respostas às suas reivindicações no início dos anos 2000. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, que estabelece políticas públicas para a melhoria de vida da mulher brasileira, foi criada em 2003 (BRASIL, 2011). Em 2004 a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher promove a melhoria das condições de vida e saúde das mulheres brasileiras (BRASIL, 2011). Em 2006 é sancionada a Lei Maria da Penha: Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, idade e religião; goza de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as oportunidades para viver sem violência, preservar sua saúde física, mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social (BRASIL, Lei nº. 11.340, 2006). O Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência Contra a Mulher, acordado em 2007, cobre a prevenção e combate à violência e a garantia dos direitos das mulheres nos âmbitos sociais, familiares, da educação, do trabalho, da saúde e segurança pública (BRASIL, 2011). Em 2011, foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito da Violência Contra a Mulher, que forneceu o Panorama Nacional de Enfrentamento da Violência Contra a Mulher, revelando as estatísticas da violência contra a mulher no Brasil (BRASIL, 2013). E em primeiro de agosto de 2013, foi sancionada a Lei que prevê atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual em todos os serviços de urgência e emergência do SUS. Prevê ainda, a mesma lei, que poderá o médico coletar e preservar vestígios de provas que serão utilizados nos processos judiciais (BRASIL, Lei nº 12.845, 2013).


Outros avanços no enfrentamento à violência contra a mulher valem ser registrados: a criação dos organismos municipais de políticas públicas paras as mulheres, casas abrigos, ônibus lilás (atendimento direto a mulher do campo que não consegue se deslocar por falta de encorajamento ou locomoção), capacitação sobre a aplicabilidade de Lei Maria da Penha para operadores de justiça, campanhas de conscientização e preservação, garantia de medidas protetivas, Disque 180, 190 e Patrulha Maria da Penha. Por fim, mais recentemente, em 2016, foi Sancionada a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104) que tem contribuído não só para contabilizar a mortalidade das mulheres, mas para enfrentar a violência de desmontar a cultura machista que mata e viola mulheres pelo simples fato de serem mulheres.

Referências Bibliográficas Alempijevic D, Savic S, Kesic V, Baralic I, Ibic G. Physical examination of sexual assault victms in Belgrade area. Srp Arh Celok 2006; 134(9-10):408-13. Basile KC, Smith SG. Sexual violence victimization of women: prevalence, characteristics, and the role of public health and prevention. Am J Lifestyle Med 2011; 5:407-17. Black MC, Basile KC, Breiding MJ, Smith SG, Walters ML, Merrick MT, et al. The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS): 2010 summary report. Atlanta: National Center for Injury Prevention and Control, Centers for Disease Control and Prevention; 2011. Brasil. Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Acessado em 12 de Maio de 2016. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm Brasil. Lei nº 12.845 de 01 de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Acessado em 10 de abril de 2016. Available from: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12845.htm BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Brasília: Ministério Público, 2011. 68 p. Brasil. Senado Federal. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito: Relatório Final. Situação do enfrentamento à violência contra mulheres nos estados: panorama do Estado de Goiás. Brasília: Presidência da República, 2013.

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07 O papel da juventude cristã

na proclamação da Justiça de Gênero

Taynara Mirelle do N. de Araújo1

1  Taynara Mirelle do N. de Araújo é bacharel em História e integrante do Movimento Fé e Política.

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Gênero pode ser entendido como a construção social dos papéis de homens e mulheres. Segundo Saffioti, “se interpreta gênero também como um conjunto de normas modeladoras dos seres humanos em homens e em mulheres, normas estas expressas nas relações destas duas categorias sociais”. (SAFFIOTI, 2015, p. 74). As identidades femininas e masculinas são construídas a partir de interesses culturais, religiosos, políticos e econômicos de cada sociedade, sendo que a construção dessas identidades nas sociedades patriarcais resultou em relações injustas e desiguais entre mulheres e homens, onde um mantém seus privilégios na subjugação do outro. Então, quando falamos da necessidade de promoção de justiça de gênero, entendemos por isso a luta pela equidade de gênero, que é mulheres e homens terem os mesmos direitos e deveres na sociedade. E porque entendemos que é papel também da Igreja lutar pela justiça de gênero? Porque o revolucionário Cristo, quando veio ao mundo, veio proclamar um Reino de amor, justiça e paz. Porque Ele veio ao mundo quebrar os padrões de desigualdade, violência e busca pelo poder. Ele enxergou os conflitos sociais em que a sociedade estava mergulhada e nos entregou a filosofia da partilha: a partilha do pão, a partilha do amor, a partilha da justiça. Nos entregou a missão de proclamar justiça nessa sociedade que tem por base a exclusão, a opressão e a exploração do Outro, nos deixando muitos escritos pela igualdade, como em Gálatas (3.28): “Não existe mais diferença entre judeus e não-judeus, entre escravos e pessoas livres, entre homens e mulheres” e em Genesis (1.27): “Assim Deus criou os seres humanos; Ele os criou parecidos com Deus. Ele os criou homem e mulher os criou” (Bíblia Sagrada: NTLH, 2000). A Bíblia inspira e encoraja a juventude a ser proclamadora do Reino de Deus, como na Primeira Carta de João (2:14B): “Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus está em vós...” Portanto, a juventude cristã tem a missão de contestar os padrões vigentes, inclusive teológicos, para a proclamação do Reino de igualdade, justiça e paz na Terra. Sendo um desses padrões injustos vigente, a desigualdade de gênero que se funda nesse sistema Patriarcal, que é uma estrutura de poder baseada na ideologia e na violência, onde o pai/homem é o centro de poder na família e na sociedade, colocando a mulher, que só no Brasil corresponde a mais de 50% da população, como necessariamente submissa às ordens e desejos desse homem “chefe de família-líder espiritual-governantedono da empresa”. Como afirma Pierre Bourdieu, o corpo feminino é domado dentro de uma violência simbólica,

que impõe à mulher uma moral diferenciada do homem”. É uma moral que oprime, que imobiliza, que enclausura, que prende a princesa no castelo a espera de um príncipe. Entendemos, portanto, que a luta contra o machismo é uma luta cristã, já que este se baseia no ideal opressor de que homens são superiores as mulheres, o que vai de encontro a mensagem igualitária de Deus, como afirma Nevenfeldt (2013, p. 17):

“No âmbito da fé, o ser humano é moldado como imagem de Deus e foi criado para experimentar a comunhão inclusiva, a justiça e o amor entre si e com toda a criação. Portanto, não experimentar essa comunhão entre iguais e viver na desigualdade, é não responder ao chamado ou mandato de ser imagem e semelhança de Deus. A hierarquização, o poder centralizado e androcêntrico, patriarcal e produtor de opressão e de desigualdades, são a quebra da imagem e semelhança”. Portanto, a partir desse compromisso com a justiça, a juventude cristã em todo o Brasil tem agido de diferentes formas e em diferentes espaços para a proclamação da justiça de gênero. Uma dessas iniciativas acontece no Nordeste, mais especificamente em Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte através de mobilizações e formações da juventude cristã, como parte das ações do projeto “Justiça de Gênero: mulheres e homens unidos na promoção da equidade, dignidade e inclusividade”, desenvolvido pela Diaconia em parceria com a Igreja da Suécia. Essas juventudes estão atuando nessas diferentes regiões para promover a equidade de gênero, através de diferentes atividades de formação, inserção política e ação social, como por exemplo a participação em audiências públicas para discutir a violência contra as mulheres no Ceará. Uma grande questão de reflexão e ação das juventudes tem sido o combate à violência contra a mulher, através de protestos de rua, de assembleias públicas, de panfletagem e campanhas, como a campanha mundial “Laço Branco – Homens pelo Fim da Violência Contra a Mulher`` e a campanha “Sou uma Mulher de Coragem” que mobilizam a sociedade através de publicidade, rodas de conversa, seminários, panfletagem e material informativo. 31


Em parceria com o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos) e diferentes igrejas evangélicas, aconteceram formações para a juventude sobre Teologia Feminista, uma leitura não-sexista da Bíblia, entendendo que, como a teóloga Silvana Venâncio nos chama a atenção: “a teologia precisa aprofundar sua reflexão e ação feministas, questionando e rompendo com os parâmetros patriarcais e androcêntricos das ciências sociais e teológico-pastorais. Pois neles a mulher, além de ser desqualificada na sua humanidade e capacidade, também é desapropriada de sua dignidade e silenciada em sua experiência e resistência. O sistema patriarcal- e, portanto, as ciências que trabalham com paradigmas patriarcais - é dualista, sexista e hierárquico, no qual o homem poderoso/branco é o princípio organizativo e normativo de todas as coisas”. Essas formações acontecem em eventos, em intercâmbios, em seminários, como, por exemplo, no interterritorial de juventudes “Jovens Proclamando Justiça de Gênero: Juventude qual é a sua?” em que se teve um workshop da teóloga e assessora do CEBI, Ana Selma Costa, Justiça de Gênero e Leitura Popular da Bíblia. E foi em um dos intercâmbios com jovens evangélicos/as e lideranças eclesiásticas, reunindo 18 igrejas de 12 denominações, dos estados do Ceará, Pernambuco, Rio Grande do Norte e São Paulo, que foi elaborada em 2014 a “Carta Aberta a Juventude Evangélica do Nordeste”. Nela estão expressos os principais desafios e os compromissos dos jovens cristãos e das jovens cristãs para a proclamação da Justiça de Gênero.

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“... avaliamos que os principais desafios estão relacionados a: fazer da igreja um espaço de promoção de justiça; compreender que a religiosidade é permeada de conceitos e valores que atravessam transformações culturais; reconhecer o evangelho como contracultura ao atual modelo de sociedade instituído e com base nele levantar a bandeira da justiça de gênero; estabelecer caminhos que favoreçam o diálogo entre comunidades religiosas para promoção da justiça. Diante deste cenário, nós jovens evangélicos/as avançamos na reflexão sobre questões que envolvem juventude, gênero e religião. Renovamos nosso pensar, construímos novos conceitos, elaboramos diretrizes e firmamos compromissos pessoais como jovens cristãos e cristãs na proclamação da justiça de gênero em nossas comunidades de fé e na sociedade. Acreditamos que a religião compõe nossa cultura e que ela é um espaço de construção de novos caminhos de promoção de dignidade; Defendemos que o/a jovem é sujeito da sua religiosidade, capaz de estabelecer diálogos entre o discurso religioso e os diversos conceitos sobre igualdade, equidade e justiça de gênero; Concebemos o/a jovem como um/a agente de transformação e promoção de justiça; Reconhecemos a importância de aprofundarmos o estudo e pesquisarmos sobre relações de gênero, bem como, multiplicarmos essas informações; Cremos no mandamento “Amar o próximo como a nós mesmos”, devemos sentir a dor do outro e romper o silêncio.” (CARTA ABERTA A JUVENTUDE EVANGÉLICA DO NORDESTE, Ilha de Itamaracá, 2014)


As juventudes participantes dos diferentes processos de mobilização e formação política desenvolvidos ao longo do projeto encontram-se empoderadas e assumindo o seu papel profético na luta pela Justiça de Gênero. As juventudes têm rompido com as paredes dos templos e tem ido às ruas lutar por direitos das mulheres. Na prática, essa atuação se concretiza no envolvimento das juventudes em coletivos de mulheres, em movimentos sociais, como por exemplo na caminhada do Dia Internacional da Mulher que teve como foco o combate à violência contra as mulheres negras e a marcha em novembro de 2016 contra o feminicídio, ambas envolvendo a Marcha Mundial das Mulheres, o INEGRA - Instituto Negras do Ceará, entres outros coletivos. Como exemplo de articulação com outros movimentos nas formações da juventude, temos a mesa “Coletivo de Mulheres e a Luta por Políticas Públicas para as Mulheres” que ocorreu no interterritorial de juventudes de 2016 com o Centro de Referência da Mulher, do município de Fortaleza, o INEGRA, o Fórum Cearense de Mulheres e a Igreja Presbiteriana Independente, demonstrando a pluralidade de pensamento, articulação e atuação da organização. Já a atuação nas Igrejas centra na questão da efetiva participação da mulher nas decisões da Igreja, nos ideais da Teologia Feminista e nas reflexões e ações a respeito da violência contra a mulher, que ainda são temas tabus dentro do meio cristão.

O grande impacto de toda essa caminhada de formações e práticas constantes ocorre não só na vida dessa jovem, mas dentro do seu lar, da sua comunidade de fé, da sua vizinhança, do seu círculo de amizades. Esse impacto reflete-se na tomada de consciência em relação aos problemas sociais, e a necessidade de ação para combater essa lógica de vida centrada no consumo, na exploração e na opressão dos seres humanos. Ocorrem saídas de situação de violência, procura de ajuda em casos de opressão, através dessas reflexões e ações, entre essa própria juventude e quem está mais próximo. Portanto, através dessa breve reflexão sobre a sociedade patriarcal em que vivemos, onde os direitos das mulheres são violados por conta de ideais machistas extremamente arraigados, da luta feminista por justiça de gênero, podemos compreender o importante papel da juventude cristã na luta por uma sociedade mais justa e igualitária, onde a equidade de gênero e os direitos sejam garantidos a todas e todos.

Referências Bibliográficas Bíblia Sagrada: Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH). Barueri/SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000. MUNDIAL, Federação Luterana. Rede de Mulheres e Justiça de Gênero de Igrejas da FLM. Acesso em: http:// redemulheresluteranas.blogspot.no/p/politica-e-justicade-genero.html NEUENFELDT, Elaine. Justiça de Gênero. Estudos sobre Gênero. Porto Alegre: IECLB, 2013. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bonjiovani. Gênero Patriarcado Violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015. VENÂNCIO, Silvana. Uma abordagem antropológica da hermenêutica feminista na América Latina. Acesso em: http://www.pucrio.br/pibic/relatorio_resumo2008/ relatorios/ctch/teo/teo_silvana.pdf

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08 Cartas para uma amiga...

Testemunhos de mulheres de igrejas sobre as influências e significados da vivência no projeto Justiça de Gênero

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