Regressa ao País da Gramática
Sentenças simples e complexas; Critérios: formas de ligação, graus de coesão e tipologia.
Texto desenvolvido pelas professoras Adriana Gibbon, Cibele da Costa, Priscila do Amaral e Trícia do Amaral para ser utilizado na disciplina de Língua Portuguesa IV, no curso de Letras Espanhol oferecido pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
regressa do País da Gramática Monteiro Lobato sabia bem o que fazia... Faz um tempo, levou Quindim, Visconde, Narizinho, Pedrinho e Emília para o País da Gramática, onde reina a Dona Norma. Lá eles conheceram tudo sobre essa senhora que teima em organizar os habitantes desse local de maneira fixa – cada um no seu bairro, na sua casa. Cá entre nós, meio mandona essa Dona Norma. Determina até quem casa com quem. Porém, como minha vó dizia e o dia a dia comprova, tudo o que é proibido é mais gostoso. Assim, as palavras, casadas ou solteiras, saiam pro mundo e aprendiam que a Dona Norma tem lá suas razões, mas a vida fora do País da Gramática também tem as suas... Conheceram um tal de Uso que causou a maior confusão. Ele mostrou que a língua, na boca das pessoas, ganha outras possibilidades de casório, afinal, vivemos em um mundo bem moderno e dinâmico, onde os relacionamentos são abertos, constituindo diferentes famílias, que podem mudar de bairro, de casa, de configuração... Ninguém é tão amarrado assim, né? E é justamente aí que esta nova história começa. Ao voltarem do País da Gramática, Quindim, Visconde e as crianças encontraram o Burro Falante, sábio conselheiro. Contaram da sua aventura e, no mesmo instante, o Conselheiro avisou: - Vocês precisam visitar outras bandas... Conhecer o País da Gramática e a Dona Norma é importante, fundamental eu diria. Mas preciso lhes apresentar um cara chamado Uso. Quem entende de Gramática sabe bem quem ele é! As crianças aceitaram mais que imediatamente. A danada da boneca sequer titubeou. Visconde ficou encantado com a possibilidade de uma nova viagem. Quindim, por sua vez, não achou a menor graça:
- Ah, mas agora? Eu estou querendo é comer os bolinhos da Tia Nastácia. - Tinha que ser o Quindim... Seu comilão! – disse Emília. Neste instante chega Dona Benta, louca de saudades de todos: - Mal chegaram e já estão brigando? E onde pensam que já vão? - Conhecer um tal de Uso! – disseram Pedrinho e a menina. - Ah, mas eu conheço esse moço. Ele é amigo da cultura e gosta de fazer parte da vida de toda gente. Até eu gostaria de viajar com vocês, não fossem minhas pernas cansadas. - Mas antes, bolinhos! – grita Quindim. Foram todos aos bolinhos. Tia Nastácia esperava na cozinha com a mesa arrumada e um café fresquinho e fumegante.
Em busca do Uso Depois do lanche preparado pela Tia Nastácia, saíram todos, com a benção de Dona Benta e orientados pelo Burro Falante, rumo às bandas de onde costuma estar o Uso. - A viagem é muito longa? – perguntou Quindim cheio de canseira no corpo e de bolinhos na pança. - Não posso responder com certeza. – disse o Burro. - Mas que diabos de conselheiro é esse que nem sabe quanto tempo levamos pra chegar num lugar que ele mesmo nos convidou pra ir? – contesta a boneca irritadiça. - Ocorre Emília, sua boneca faladeira, que o Uso é um andarilho. Ele está em toda parte, lá e aqui. - Lá e aqui??? – falam todos em coro. – Como assim? - O Uso vive entre o povo. Não importa se as pessoas são pobres ou ricas; se vão à escola ou não; se são crianças, jovens ou adultos. Por isso, ele pode estar em qualquer lugar... Numa praça, no mercado, na escola, na feira. Talvez possa estar num museu, ou numa biblioteca. - E por onde vamos começar, então? – pergunta Pedrinho. – São tantos lugares que fico perdido. - Que tal começarmos pela praça? – Sugere Narizinho. - Ótima ideia! Da última vez que o avistei, ele estava num banco de praça, entre a conversa de dois senhores que jogavam xadrez. – Completou o Burro. Chegando na praça, a turma avistou um casal de namorados tomando sorvete. Narizinho supôs que, se o Uso gosta de estar entre a conversa das pessoas, havia uma grande chance dele ter passado por ali. O Burro Falante, como que lendo o pensamento da menina, vai até o casal e pergunta: - Olá! Por um acaso vocês conhecem um rapaz chamado Uso? - Sim! Ele esteve aqui há pouco. Até nos ajudou em um assunto. – responde a moça. - Que assunto? – perguntou a boneca intrometida. O rapaz respondeu: - Minha namorada queria um sorvete, quando disse: “Me dá um sorvete?”. Foi aí que lembrei de uma senhora que conheci na escola, a Dona Sintaxe, amiga da Dona Norma, que dizia que o correto é “Dá-me um sorvete”. Na hora brinquei com ela, dizendo que eu daria o sorvete se ela pedisse direito. Foi nesse instante que apareceu um rapaz de estatura mediana, magro, muito falante e curioso, mais pra palpiteiro. Se apresentou
como Uso e falou que essa forma de dizer que aprendi com a Dona Sintaxe não combinava muito com a nossa conversa informal, típica de dois apaixonados. Quindim, neste momento, pensou que sabia de quem estavam falando, afinal. Deuse conta que o Uso de quem o Burro Falante se referia, era o mesmo Uso que ele conhecia. Lembrou-se que na ocasião da visita ao País da Gramática, quando falavam dos acentos em excesso na Língua Portuguesa, ele havia dito que “a língua é uma criação popular na qual ninguém manda. Quem orienta é o uso e só ele”. Só que o Uso ainda não era tão reconhecido, era coisa de linguista, não de gramático. Sequer o Uso tinha nome próprio. Quindim, um paquiderme de fato gramático, mas não retrógrado, ficou feliz em saber que o Uso tinha ganhado o mundo e podia dar cabo das inutilidades da língua ou, pelo menos, torná-la mais dinâmica. Ao mesmo tempo em que Quindim refletia, Pedrinho tratou de perguntar ao rapaz: - Como assim? O que o Uso quis dizer com isso? - Ele quis dizer – explicou o Burro – que diferentes situações de comunicação pedem distintas formas de comunicar. Nem sempre falar de acordo com as regras da Dona Norma é a melhor forma de dizer algo a alguém. - É isso mesmo, falou o rinoceronte. Por isso o Uso ganhou o mundo, ganhou a língua. - Mas o que esse paquiderme gramático sabe do Uso? Agora não entendi. – Falou Emília, lembrando que visitaram o País da Gramática graças ao Quindim. Logo, como ele saberia deste outro moço? Visconde, que até então só observava, acabou lembrando a história dos acentos: - Emília, o Quindim já havia falado no Uso na ocasião em que falamos dos acentos, lá no País da Gramática. - Ah! Verdade! Pois agora me lembro. Mas ele não tinha dito que o Uso era um moço que andava por aí. – Replicou a boneca. - De fato, Quindim! Não sabia que conhecias o Uso. – Disse o Burro - Pois conheço. Mas não sabia que ele estava tão importante. Sou um conhecedor da gramática, mas nunca deixei de considerar o Uso. Que maravilha saber que ele finalmente foi reconhecido. O Burro, vendo que ainda tinham muito que caminhar, agradeceu o casal de namorados pela informação e convidou a todos para seguirem o caminho. Narizinho, muito esperta, sugeriu novamente o próximo destino: - Vamos à cafeteria! - Vamos! Responderam todos em coro. E lá se foram.
Um café e um reencontro; um torrão de açúcar e um encontro. Ao chegarem na cafeteria, a boneca fuxiqueira avistou, mais que depressa, alguém já conhecido daquela turma aventureira. De um modo nada educado e muito espevitado, Emília grita: - Dona Sintaxeeeeeee! A senhora por aqui!? Visconde, Quindim, Narizinho, Pedrinho e o Burro, que até então estavam procurando uma mesa vaga, dirigem o olhar para uma senhora alta, magra, usando um lornhão[1] com cabo de madrepérola e sobressaltada com o grito da boneca. Inconfundível! Só podia ser a Dona Sintaxe, que haviam conhecido no País da Gramática. - Emília! Crianças! Visconde e Quindim! Que alegria revê-los. Sentem-se aqui e me apresentem este distinto cavalheiro – Disse a Dona Sintaxe, apontando para as cadeiras que sobravam em sua mesa e dirigindo seu último olhar ao Burro Falante. Quindim puxa a comitiva e trata de apresentar o Burro à Dona Sintaxe. Com todos devidamente apresentados e acomodados, a senhora então pergunta: - O que estão fazendo por aqui? - Estamos procurando o Uso – responde Narizinho. - O Uso? Mas o que querem com este bagunceiro mudador de regras? - Queremos justamente conhecer outro lado da língua que não tomamos conhecimento quando visitamos seu país – fala Visconde. - Ele é bagunceiro, Dona Sintaxe? Já gostei dele! – replica Emília. - Como pode simpatizar com este falastrão, Emília? Imagine que esses dias ele esteve no meu bairro e resolveu colocar todos os componentes das sentenças em polvorosa. Disse que eles podiam trocar de lugar e que alguns estavam até mesmo dispensados de seu trabalho. Ora essa, quem este fulaninho pensa que é? Todos arregalaram os olhos e viram que Dona Sintaxe não gostava mesmo do Uso. Pensaram ser melhor desviar o assunto para não irritá-la mais. No entanto, a boneca intrometida, que adora dar alfinetadas em todo mundo, não estava no mesmo compasso. Foi quando indagou:
[1] Segundo o Dicionário Houaiss, lornhão é s.m. Instrumento de óptica constituído de duas lentes engastadas em uma armação que se apoia ao nariz sustentando-o por uma haste, ou diretamente por meio de mola.
- Só por isso a senhora não gosta dele? Ora, tudo muda ou se transforma com o tempo. Por que com a língua tem que ser diferente? Gosto dessa ideia do Uso de trocar as coisas de lugar. Nem tudo precisa ser “escreveu, não leu, o pau comeu”! - Mas que ditado popular mais impróprio, Emília. Péssima maneira de empregar um período. – Disse Dona Sintaxe com ares de indignação, mexendo sua cabeça austera em um movimento negativo. Todos, exceto Quindim, se enchem de dúvida e falam ao mesmo tempo: - Período? - Sim, uma unidade sintática composta por mais de um verbo! – Lembra o paquiderme gramático. - Certíssimo, Quindim! – Exclama Dona Sintaxe, impressionada com a memória do rinoceronte. Neste instante, já estava no Café, sentado de costas para a mesa da Dona Sintaxe, um rapaz muito franzino e com ares bem descolados: tinha dreads castanhos e compridos, semipresos por dois deles que se destacavam por terem a cor do sol; em um nariz anguloso, repousava um óculos de grau fechado nas laterais, parecido com aqueles usados pelos aviadores na Segunda Guerra. Ele havia escutado toda a conversa até então e resolveu se pronunciar, virando-se e dirigindo-se à Dona Sintaxe com ironia: - Boa tarde, Dona Sintaxe! É um prazer revê-la e ter ouvido tantos elogios da senhora à minha pessoa. - Uso! Só podia ser você, rapazinho sorrateiro e intrometido. – Fala Dona Sintaxe, um tanto incomodada por saber que estava sendo ouvida por ele até então. - Uso! – Gritam todos em coro, seguidos do Burro Falante: - Uso! Que bom vê-lo, meu amigo. Estávamos mesmo te procurando quando encontramos Dona Sintaxe aqui neste Café. - Mas que coincidência, Burro! Já que me procuravam, penso que posso entrar nesta conversa. Queria dizer, antes de mais nada, que não tenho como missão irritar a Dona Norma, a Dona Sintaxe, ou quem quer que seja do País da Gramática. Respeito a todos. Só penso que, como disse a Emília, nem tudo precisa ser “escreveu, não leu, o pau comeu”. Belíssimo período, ou, como diria meu amigo Ataliba de Castilho, belíssima sentença complexa por justaposição. - Ora essa! Você quis dizer período coordenado assindético, seu rapazinho insolente que mais parece a Medusa. – Replica Dona Sintaxe. - Não, eu quis dizer sentença complexa por justaposição, ou seja, sentença que possui mais de um verbo e é ligada por vírgulas, as quais estabelecem uma relação entre os termos que a compõem. Na verdade, a Gramática Tradicional chama esse acontecimento de período coordenado assindético, como a senhora quer tratá-lo. É a mesma coisa, só que num enfoque diferente. Mais importante que a terminologia, é entender como as coisas funcionam na língua. Enquanto Dona Sintaxe resistia à explicação do Uso e os demais, principalmente a boneca, queriam ver o circo pegar fogo, Quindim pergunta para o rapaz: - Pode explicar melhor o que seria esse enfoque diferente? A propósito, é um prazer reencontrá-lo! Como você cresceu! - Posso sim, Quindim! O prazer é todo meu! De fato, cresci um pouco. Agora tenho até nome próprio! Mas, voltando à sua pergunta, bem, ocorre que os linguistas estudam a língua não a partir das regras da Gramática Tradicional, mas a partir da própria dinâmica da língua. Ou seja, não são as regras que determinam a língua, mas a língua que determina as regras. Isso faz com que a gente reflita por uma ótica mais lógica. Todos sabem que a
Gramática Tradicional, por vezes, mistura critérios para estabelecer divisões, mas não deixa isso claro. E aí complica. Eu, como partidário da linguística, entendo que no caso das sentenças complexas, os tipos de relação estabelecidas entre as sentenças que as integram devem ser verificados. Assim, três quesitos devem ser observados: formas de ligação, graus de coesão e tipologia. - E a justaposição seria uma forma de ligação dessas sentenças, correto? – Pergunta o Burro Falante ao seu amigo Uso, ao mesmo tempo em que lhe dá um abraço apertado. - Correto, meu grande amigo! Podemos entender que a pausa estabelecida na fala da Emília, refletida na escrita pelo uso de vírgulas, é uma forma de ligar sentenças complexas. Mas veja bem: o fato de não usarmos conjunções não significa que não possamos estabelecer uma relação. Quem pode me dizer a relação que Emília quis estabelecer quando mencionou “aquele ditado popular mais impróprio”? – Diz o uso, tratando de ironizar as rabugices da Dona Sintaxe. - Essa eu sei responder! – Exclama Pedrinho. – Por meio do ditado, a Emília quis ilustrar uma condição. - Logicamente. – Completa Dona Sintaxe. É como dizer, usando a conjunção condicional “se” que, “se escrever e não ler, o pau vai comer”. Deus! Com ou sem conjunções, não gosto desses ditados populares. - Só falta querer prender os ditados populares numa jaula, igualzinho a senhora faz com os vícios de linguagem. – Provoca Emília. Dona Sintaxe responde imediatamente: - Olha, boneca, eu bem que gostaria. Vendo que a discussão pendia pro lado da infinitude, Narizinho cutuca o Uso, pedindo ao pé do ouvido que ele acabasse com aquela prosa. O rapaz, que não é bobo nem nada, diz: - Bom, pessoal, acho que começamos a nos conhecer de uma forma bem legal. Já entendemos que a Dona Sintaxe não precisa ser tão radical, afinal, mesmo que ela pense que não gosto das regras, de qualquer maneira elas aparecem na língua. Isso não significa que precisamos guardar tudo nas caixinhas. Temos que ver a língua como um sistema aberto, onde tudo vai se combinando de acordo com o que queremos expressar. - Eu entendi bem o que você quis dizer, rapaz. Mas, em se tratando dessas sentenças complexas, você não teria um manual que nos exemplificasse os outros critérios dos quais nos falou? Afinal, até agora só tratamos de entender que a justaposição é uma forma de ligação e que, por sua vez, as formas de ligação são apenas um dos quesitos que devem ser observados quando tratamos das relações entre sentenças. – Coloca com preocupação, o Visconde. O Uso acrescenta: - Boa ideia, senhor...? - Visconde de Sabugosa. Muito gosto em conhecê-lo. - Todo meu! Vamos até a Lan House aqui ao lado, onde poderei acessar um link com essas explicações que o senhor quer. Ficará mais fácil ainda de entender e todos irão gostar. Aposto que até a senhora, Dona Sintaxe, que adora um manual! - Ora, veja. Bons manuais não vêm em links, seja lá o que isso quer dizer, mas em belas folhas amareladas de papel. – Retruca Dona Sintaxe. Todos balançam as cabeças sabendo que daquele mato era difícil sair coelho. Ao mesmo tempo, pagam a conta e dirigem-se à Lan House. Inclusive Dona Sintaxe, que queria pagar pra ver estes tais exemplos.
Referências: CASTILHO, Ataliba T. de. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014. LOBATO, Monteiro. Emília no País da Gramática. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Agora que vocês já começaram a conhecer essa nova história do mundo da sintaxe, que tal irem até uma Lan House, acompanhados da turma do Sítio, e acessar o material “Trocando em Miúdos”?! Nesse material vocês irão encontrar mais conteúdo, em especial, sobre graus de coesão e tipologia. Boa leitura!!