DC 19/08/2004

Page 1

Arte sobre quadro de Jules Martin e foto de Paulo Whitaker/Corbis


2 Caderno Especial

D IÁRIO

Diretor-presidente

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Túneis da outra via Anchieta

Guilherme Afif Domingos Diretor-responsável

João de Scantimburgo Diretor-executivo

Moisés Rabinovici

UM TÚNEL CRUZA OS 113 ANOS QUE SEPARAM A BUCÓLICA AVENIDA PAULISTA DA ATUAL, NA CAPA DO 6º CADERNO DA SÉRIE DE ANCHIETA AOS NOVOS TEMPOS. NO FINAL DO TÚNEL, O PONTO DE PARTIDA: A SÃO PAULO DE 450 ANOS.

CADERNOS

Projeto Gráfico

De Anchieta Aos Novos Tempos

Michaella Pivetti

Gerente de Operações

VOLUME VI:

Direção de Arte

José Gonçalves de Faria Filho

Ao Sul, pelo túnel do tempo

Gerson Mora

Edição

José Guilherme Rodrigues Ferreira Luciana Fleury Lygia Ribeiro Textos

Armando Serra Negra Elizabeth Maggio Simone Biehler Mateos

Produção Direção de Arte

Dina de Oliveira

Gerson Mora Helena Jacob (colaboração)

Tratamento de Imagens

Capa

Moisés Rabinovici (criação) Roberto Alvarenga (arte)

Antônio Donizeti Junqueira Lair Saurim Marim Joaquim Carlos Negreiros Ronaldo Santanielli

Em oito meses, de janeiro a agosto, nossos repórteres e fotógrafos garimparam a leste, oeste, norte e sul do Pátio do Colégio, extraindo preciosidades históricas e ouro puro jornalístico. Ao retrato inédito de SP revelado, a Associação Comercial de São Paulo, que publica o Diário do Comércio, acrescentou a coleção de textos do primeiro repórter da Vila de Piratininga, padre José de Anchieta, trazida dos arquivos do Vaticano, exposta onde foi escrita e publicada em livro esgotado rapidamente, agora em 2ª edição. A viagem pelo túnel aberto no tempo pelo DC ainda vai desembocar num 7º e último caderno, devotado aos “novos Anchietas”, os jovens empreendedores. É outra via Anchieta. Quando partia para o planalto de Piratininga, padre Anchieta ouviu de padre Manoel da Nóbrega: - Esta terra é a nossa empresa! O 1º empreendedor paulistano criou a empresa São Paulo. E deixou aberta a via do empreendedorismo. MOISÉS RABINOVICI


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 3

A V I A A N C H I E TA Reprodução (Pissis/1839)

Na aquarela do começo do século XIX, a cidade de São Paulo vista por quem trilhava a estrada que levava ao litoral, hoje chamada de Via Anchieta

Texto de Armando Serra Negra


4 Caderno Especial

D IÁRIO

S ÃO PAU L O ,

DO COMÉRCIO

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Onde São Paulo se encontra com o mar Oslaim Brito/Digna Imagem

ERAM DOIS OS CAMINHOS QUE LEVAVAM ÀS REGIÕES SUL E SUDESTE DA VILA DE SÃO PAULO DE PIRATININGA A PARTIR DO SÉCULO XVI. E AS EVENTUAIS MUDANÇAS NOMINATIVAS QUE HOUVE AO LONGO DELES DURANTE ESSE TEMPO NÃO FORAM CAPAZES DE ALTERAR SUAS ROTAS, TRILHADAS ATÉ HOJE.

A partir de cada um, também é possível atingir o litoral paulista, tanto pela Rodovia dos Imigrantes, quanto pela Padre José de Anchieta. Esses caminhos ancestrais começam na Praça João Mendes, no Centro, um local conhecido por muitas gerações como o Largo de São Gonçalo. A pequena e bonita igreja que lhe emprestou o nome – Igreja de São Gonçalo – foi erigida em 1761, e continua intacta na esquina da Rua Rodrigo Silva, em bom estado de conservação. O nome desse altiplano mudou para o atual no anod de 1898, em homenagem a um antigo vizinho da capela, um ilustre jornalista, fundador de dois importantes periódicos Sentinela (1869) e Opinião Conservadora (1873). Nessa época, à sua esquerda funcionavam a Câmara Municipal e a cadeia e os escravos eram açoitados no pelourinho, fincado no Largo Sete de Setembro, no quarteirão das ruas Senador Feijó, Riachuelo, Quintino Bocaiúva e Largo de São Francisco. CAMINHO DO CARRO

Saindo da igreja, à direita, está a Avenida da Liberdade, antigo Caminho do Carro de Boi, que ia para a aldeia do cacique Caiubi em Santo Amaro. Mas antes ela passava pelo Jabaquara (do tupi, o lugar dos fujões), um local histórico no alto da serra entre Santos e São Paulo. Lá era um antigo quilombo de escravos fugidos, como revelaram os poemas de Vicente de Carvalho. O nome 'liberdade' da avenida aparece em alusão à abolição da pena máxima no País, com a derrubada da forca, localizada desde 1612 no largo desse mesmo nome, hoje Praça da Liberdade. É interessante o paradoxo: os logradouros em que se localizavam a forca e o pelourinho foram batizados posteriormente como Liberdade e Sete de Setembro. No Caminho do Carro, o Largo da Forca era também conhecido como Bairro da Pólvora. A Casa da Pólvora – substância importante para a defesa da vila – ficava perto, um pouco mais adiante, em outro largo assim Oslaim Brito/Digna Imagem

A Praça João Mendes – onde ainda fica a centenária Igreja de São Gonçalo – é o ponto de partida para a região sul e para o litoral

OS TERRENOS, ESTR ATEGICAMENTE LOCALIZ ADOS, FAVORECERAM A CONCENTRAÇÃO DE HABITANTES E A EXPANSÃO DE SÍTIOS E FAZENDAS, VIABILIZADAS PELO INTENSO COMÉRCIO COM VIAJANTES


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 5

Fotos: Oslaim Brito/Digna Imagem

chamado – Largo da Pólvora – desde 1874, na esquina da Rua Thomaz Gonzaga. O local acabou se tornando uma importante via de ligação da cidade com os núcleos mais distantes do sul. Tanto que, em março de 1886, foi inaugurada uma linha férrea de 15 quilômetros de extensão, partindo da Rua da Liberdade, esquina com a Rua São Joaquim, que seguia pela Estrada do Vergueiro. Contava com uma estação na Rua Domingos de Morais e outra na Avenida Jabaquara, onde está a Igreja de São Judas Tadeu, para reabastecimento de lenha e água da locomotiva. Depois, a linha seguia até Santo Amaro, concluindo um percurso de uma hora e meia. Seu traçado final permitiu a incorporação de bairros como Aeroporto, Brooklin e Chácara Flora, do mesmo modo que as vilas Clementino e Mariana surgiram dos desdobramentos iniciais da Estrada do Vergueiro. O caminho de ferro foi desativado em 1913. CAMINHO DO MAR Sob a sombra de uma imponente figueira no Ipiranga, as famílias se despediam dos viajantes que seguiam para o litoral. Eis a famosa Árvore das Lágrimas (acima), que está lá até hoje, atrás de uma placa comemorativa que explica a origem do seu apelido

Rua Tabatingüera, alagada, em 1918. Com a argila branca da região, foram construídas, no século XVI, as primeiras edificações da Vila de Piratininga Fotos: Reprodução

Também saindo do Largo de São Gonçalo – ou, se preferir, da Praça João Mendes –, do lado oposto à antiga cadeia está a Rua Tabatingüera (do tupi, barreiro branco). A importância dessa ladeira que desce até a Várzea do Carmo –atual Parque D. Pedro II – remonta à época da fundação da Vila de São Paulo, pois de sua argila branca - conseqüência das freqüentes inundações do terreno pelas cheias do Rio Tamanduateí –, foram construídas as primeiras edificações: o Colégio dos Jesuítas, a cadeia, torres, casas térreas e sobrados. Visitando São Paulo em 1585, o Padre Fernão Cardim descreve que o colégio dos padres portugueses era "uma casa bem acomodada, com um corredor e oito cubículos de taipa, guarnecida de certo barro branco (tabatinga)". Ela também abrigava o Convento das Carmelitas – nome de uma de suas travessas– e inúmeras chácaras floridas que tornavam o lugar um dos mais aprazíveis da cidade. Sobre o rio caudaloso estendia-se a ponte de acesso ao Caminho do Ipiranga (do tupi, água vermelha), prolongamento do Caminho do Mar. Os terrenos, estrategicamente localizados, favoreceram a concentração de habitantes e a expansão de sítios e fazendas, viabilizadas pelo intenso comércio com os viajantes. Modernamente, muitos nomes de logradouros do Ipiranga remetem à Independência do Brasil, proclamada por D. Pedro I à beira do riacho "vermelho", em 7 de setembro de 1822. A partir do Parque D. Pedro II, alcança-se (pela Avenida do Estado) a Avenida D. Pedro I, que cruza a Rua da Independência, até chegar ao Museu do Ipiranga. Esses nomes, porém, são apenas subdivisões do antigo Caminho do Mar, construído em 1560 sob a inspiração do Padre Anchieta, obedecendo ordens do Governador da capitania de São Vicente, Mem de Sá. O caminho que havia antes, passando pela Serra de Paranapiacaba (do tupi, lugar de onde se vê o mar) era chamado "dos Guaianases", ou "dos Tupiniquins". Muito íngreme, escorregadio e perigoso, atravessava as terras dos índios Tamoios, canibais que devoravam os inimigos, inclusive os portugueses. Os viajantes que iam ao litoral, partindo de São Paulo, eram acompanhados por suas esposas e filhos até um local do Ipiranga onde ainda floresce uma grande e centenária figueira. E como dali se despediam chorosos sob sua frondosa copa, com o tempo a árvore passou a ser chamada de Árvore das Lágrimas e esse trecho do Caminho do Mar, a conhecida Estrada das Lágrimas. Ali pertinho passa a Rodovia Padre José de Anchieta...


6 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

Fotos: Reprodução

Três registros do Largo de São Gonçalo – atual Praça João Mendes – onde funcionavam a antiga cadeia e a Câmara Municipal de São Paulo. Acima, aquarela de 1847 e abaixo o mesmo cenário registrado em duas fotos de 1860

19

DE AG O S TO DE

2004


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 7

IPIRANGA

Reprodução

O clássico quadro 'Independência ou Morte' (1888), de Pedro Américo, fica exposto no Museu Paulista, construído no mesmo lugar onde D. Pedro I deu 'O Grito do Ipiranga'

Texto de Simone Biehler Mateos


8 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Arquivo

Projetado para ser o memorial da Independência, o Museu Paulista – também conhecido como Museu do Ipiranga – levou mais de meio século para ser construído. Na sua inauguração, em 1895, abriu suas portas inacabado

243 anos de solidão até a glória: ' Ouviram do Ipiranga'... MUITO ANTES DA CHEGADA DOS PORTUGUESES, IPIRANGA JÁ ERA O NOME DA REGIÃO QUE CORRESPONDE APROXIMADAMENTE AO ATUAL BAIRRO DE MESMO NOME: UMA ÁREA ENTRECORTADA POR RIOS E CÓRREGOS, DE ONDE PARTIA A ÚNICA ESTRADA NATURAL QUE LEVAVA DO PLANALTO PAULISTA AO LITORAL, SERPENTEANDO A SERRA DO MAR. PERCORRIDA A PÉ PELOS ÍNDIOS, A CAVALO PELOS COLONIZADORES E LOGO POR CARROS, A ESTRADA PERMANECERIA, DURANTE SÉCULOS, A PRINCIPAL VIA DE COMUNICAÇÃO ENTRE A COSTA E O INTERIOR. MUITO USADA PELO PADRE ANCHIETA A PARTIR DE 1553, A TRILHA ERA CHAMADA DE “CAMINHO DO PADRE JOSÉ" PELOS PRIMEIROS DESBRAVADORES PORTUGUESES, MAS FOI COM O APELIDO DE “C AMINHO DO M AR ” QU E AT R AV E S S O U OS SÉCULOS, ATÉ TRANSFORMAR-SE NA VIA ANCHIETA, EM 1947.

A palavra tupi Ipiranga – que significa “terra roxa” ou “leito desigual e empinado”, dependendo do estudioso – aparece pela primeira vez documentada em 1579, numa carta na qual o padre Anchieta conta de uma missa celebrada na Igreja de Nossa Senhora da Luz no Ipiranga, construída por Domingo Luiz, um dos primeiros moradores da Vila de Piratininga. Nas atas oficiais da Vila de São Paulo, a primeira menção aos "caminhos do Irei-

ripiranga", é de 27 de setembro de 1584, data do aniversário do bairro. Pouco férteis e palco de inundações freqüentes, as terras do Ipiranga eram pouco habitadas por colonizadores e foram, por décadas, apenas uma região de passagem. Ali viviam os índios guaianases. Suas malocas ficavam entre a margem direita do Ribeirão de Guapituva e a aldeia do cacique Tibiriçá, próxima ao Pátio do Colégio. Os índios driblavam as águas usando canoas, mas os cavalos dos colonos podiam ficar dias parados esperando as águas baixarem. O bairro conviveu com enchentes até menos de duas décadas atrás, quando obras restringiram o problema a poucas áreas. Expulsos para outras terras já no início da colonização, os guaianases ficaram tempo suficiente, porém, para que praticamente todos os colonos da região falassem tupi até o início do século XVII, tendo muitos deles se miscigenado com os nativos. Estes primeiros ipiranguistas forneceram até personagens da literatura, como é o caso de Antonio de Marins, pai de Ceci e amigo de Peri de O Guarani, de José de Alencar. A ocupação manteve-se lenta e esparsa até bem entrado o século XX. No final do século XVI, o Ipiranga tinha cerca de 1.600 habitantes. Mais de 300 anos depois, em 1920, o censo registrou apenas 12.064. Por isso, invariavelmente, todos os relatos de moradores e viajantes associam a região à sensação de desoladora solidão. Em 1869, o relato de um viajante descreve a


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

região como “um lugar estéril, abandonado e ermo, onde apenas crescem algumas ervas rasteiras e arbustos enfezados, por entre os quais serpenteia um triste arroio, e onde imperam a solidão e o silêncio”. Apesar da baixa fertilidade da região ser sempre mencionada, os Proença – uma das primeiras famílias a ocupar o Ipiranga, no século XVI –, fizeram fortuna criando gado e cultivando trigo, o que levou alguns historiadores a aventar que o uso predatório daquelas terras pelos colonizadores possa ser o primeiro exemplo brasileiro de desastre ecológico. INDEPENDÊNCIA

A ocupação do Ipiranga só começou a se acelerar a partir da proclamação da Independência do Brasil por D.Pedro I, às margens do Riacho do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. A emancipação, somada à pujança da economia cafeeira, atraiu imigrantes. Em 1867, o bairro foi atravessado pela estrada de ferro São Paulo Railway, depois denominada Santos-Jundiaí. Muitos dos que não conseguiram trabalho nas fazendas do interior, comeram atividades próprias no Ipiranga, sobretudo a partir de 1875 e, mais acentuadamente, a partir de 1883, quando foi iniciada a construção do Monumento à Independência (o edifício que hoje é o Museu Paulista, mais conhecido como Museu do Ipiranga). Os italianos foram os primeiros a chegar, seguidos de portugueses, espanhóis e árabes. Em 1889, o bairro ganhou o primeiro transporte coletivo: o bonde a burro. A primeira indústria a impulsionar a ocupação do Ipiranga foi a de argila, matéria-prima para os tijolos e telhas que alimentavam o crescimento de São Paulo e a construção do monumento. Em 1894, o garibaldino Giuseppe

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 9

Dante instalou-se no Ipiranga, onde trabalhou como comerciante, carvoeiro, fabricante de vassouras e fornecedor de areia extraída dos rios para a construção do monumento. A primeira cerâmica do bairro foi a dos irmãos Falchi (que também fabricavam tecidos, sabão e graxa para calçados), seguida, em 1905, pela Cerâmica Vila Prudente e a que seria a maior e mais importante, a cerâmica dos irmãos Saccoman (1910), imigrantes franceses que dariam nome ao bairro que integra hoje o Distrito Ipiranga. Logo viriam as indústrias têxteis. Em 1905, o Ipiranga já tem 18 fábricas empregando 6.296 pessoas; em 1913 já são 49, com 16.317 operários. O bonde elétrico chega em 1904 para trazer os operários de toda a cidade para as serrarias, tecelagens e laminações. Entre as fábricas de tecido, destacamse a Cia. Fabril Paulistana e a Cia. Ipiranga Tecelagem e Estamparia. Esta última, fundada em 1906 pelos irmãos Jafet, imigrantes sírio-libaneses, seria a primeira indústria de grande porte do bairro. Uma das primeiras linhas de bonde fazia ponto final na fábrica. Em 1907, surge a fábrica de Linhas Corrente, única empresa importante do ciclo industrial do bairro que subsiste até hoje ali. A fábrica de linhas, as indústrias têxteis da família Jafet, a fábrica de ferro esmaltado Silex e a cerâmica Saccoman (depois comprada por Américo Samarone) são os quatro pilares básicos da formação econômica e social do Ipiranga. No auge do ciclo, só as fábricas dos Jafet e a cerâmica geraram mais de 10 mil empregos. O bairro também foi berço da indústria automobilística no Brasil, antes que as principais fábricas migrassem para a região do ABC. Em 1925, a General Motors instalava ali, em uns galões industriais arrendados, uma das primeiras montadoras de veículos a operar no Brasil com peças importadas – a

Clóvis Ferreira/Digna Imagem

O projeto do museu foi baseado no estilo dos palacetes renascentistas. Fachada imponente e impecáveis jardins, várias vezes redesenhados, fazem parte do projeto original


10 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Arquivo

Em 1867, o bairro foi atravessado pelos trilhos da estrada de ferro São Paulo Railway, depois chamada de Santos-Jundiaí. Na imagem, as obras para a instalação dos trilhos com o Museu Paulista ao fundo

primeira foi a Ford que se instalou no Centro alguns anos antes. Mais de 50 mil carros foram feitos ali até 1929, quando a fábrica foi transferida para São Caetano do Sul. Na década de 50, o bairro ganhava a Vemag, primeira montadora de capital nacional, fabricante dos famosos Vemagetti e DKV. E, em março de 1953, a Volkswagen instalava-se no Ipiranga para montar ali a Kombi e o Volks Sedan. A industrialização impulsionou a ocupação do bairro: em 1934 a população era de 40.825 pessoas (mais do triplo da de 1920) e, em 1938, já chegava a mais de 170 mil. No fim da década de 20 e 30, o crescimento é tanto que falta mão-de-obra e a indústria oferece várias facilidades para atrair operários. Muitos vêm do interior do Estado. Hoje, segundo o último censo, o bairro tem 640 mil habitantes em seus 37,5 km² mas, das antigas fábricas, só restam os galpões e onde era feita a cerâmica, imóveis comerciais.

são governamental beirava o criminoso, segundo os historiadores Máximo Barro e Roney Bacelli. O apogeu foram os anos 40, com a construção da Via Anchieta, na época considerada uma das mais modernas estradas do mundo. Na década de 50, novas indústrias instalam-se nas áreas inundáveis. Na década de 60, o caos urbano, com a poluição do ar e dos rios, leva autoridades a proibir novas indústrias no bairro. Começam-se a exigir filtros. Com a retração da indústria, consolida-se o comércio. Ao lado dos grandes industriais, outro personagem que marcou a história do Ipiranga, imprimindo à redondeza características que subsistem até hoje, foi o conde José Vicente de Azevedo. Nascido em 1859, numa família humilde de Lorena, desde que perdeu o pai, aos dez anos, ele foi obrigado a trabalhar vendendo nas ruas os doces que a mãe fazia. Chegou a ser advogado, jornalista, professor, deputado e senador por São Paulo, mas a grande obra de sua vida foi a assistência às crianças carentes. Aos 31 anos, comprou

O PASSADO NAS FÁBRICAS

Não há, porém, um só morador antigo que não conheça alguém que tenha trabalhado numa dessas quatro empresas. Muitos casais se conheceram nessas fábricas, onde depois trabalharam também seus filhos. A prosperidade das indústrias e de seus proprietários marcou a ocupação desordenada do bairro, criando áreas onde vilas operárias e casas humildes coexistem, a poucos metros, com sofisticadas mansões e palacetes construídos sobretudo pelos sírios, donos das tecelagens bem sucedidas. Nas décadas de 30 e 40, a indústria se instala de forma desregrada: laminações, serrarias, cotonifícios, com suas fornalhas e chaminés poluidoras, ao lado de fábricas de produtos alimentícios e farmacêuticos. A omis-

A OCUPAÇÃO MANTEVE-SE LENTA E ESPARSA ATÉ BEM ENTRADO O SÉCULO X X. NO FINAL DO SÉCULO X VI, O IPIRANGA TINHA CERCA DE 1.600 HABITANTES. MAIS DE 300 ANOS DEPOIS, EM 1920, O CENSO REGISTROU APENAS 12.064


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 11

Arquivo

Dois momentos da esquina das ruas Auriverde e Brasipina, onde a família Pratali abriu um bar: uma foto tirada na metade década de 50 (acima) e o mesmo local nos dias atuais

Newton Santos/Digna Imagem

46 hectares no Ipiranga – onde a terra era barata – e começou a construir várias instituições de assistência social. A primeira foi o orfanato de meninos Instituto Cristóvão Colombo, inaugurado em 1891. Cinco anos depois, viria o Asilo de Meninas Órfãs de Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga, um complexo de 110 mil m². Em 1895, construiu o Instituto Sagrada Família, ponto de encontro, asilo e amparo de ex-escravos e parentes. Posteriormente, o edifício passou a abrigar madre Paulina, que se tornaria a primeira santa brasileira, e sua congregação. No final do século passado, parte considerável do bairro pertencia a Azevedo, a quem é atribuída a configuração geométrica de toda a região central do Ipiranga. Além dos institutos que criou, doou boa parte de suas terras e alguns imóveis para entidades religiosas e assistenciais. Daí, a Avenida Nazaré e algumas ruas adjacentes caracterizarem-se pela abundância desse tipo de instituições. Foram fruto dessas doações as instalações do Instituto Maria Imaculada, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), o antigo Grupo Escolar São José (hoje sede da Universidade São Marcos), a Clínica Infantil do Ipiranga e o Hospital Dom Antonio de Alvarenga, entre outros. Azevedo está na origem do caráter cultural que, progressivamente, o Ipiranga foi adquirindo. Com a renda dos cerca de 50 imóveis deixados por Azevedo, que só podem ser alugados para fins educacionais ou assistenciais, a entidade atualmente mantém três unidades assistenciais que atendem a mais de duas mil crianças e adolescentes carentes, de 3 a 18 anos, oferecendo serviço de creche, pré-escola e orfanato, além de cursos profissionalizantes. O Instituto Padre Chico, pioneiro no Brasil no ensino de braile, na educação de cegos e reeducação de novos cegos, permanece como uma referência na área até hoje, no mesmo edifício. Em 1935, como homenagem pelas obras assistenciais que mantinha – que estima-se tenham auxiliado 10 mil jovens só no internato –, Azevedo foi nomeado conde romano pelo papa Pio XI. Morreu nove anos depois, deixando 90% de sua fortuna para a Fundação Nossa Senhora Auxiliadora. FAZENDO PESQUISA E CULTURA

A INDUSTRIALIZAÇÃO IMPULSIONOU A OCUPAÇÃO DO BAIRRO: EM 1934 A POPULAÇÃO ERA DE 40.825 PESSOAS (MAIS DO TRIPLO DA DE 1920) E, EM 1938, JÁ CHEGAVA A MAIS DE 170 MIL

Outro elemento que contribuiu de forma essencial para o caráter de bairro cultural que o Ipiranga ostenta hoje é o Museu Paulista, construído como Memorial da Independência. A idéia de um monumento surgiu já em 1823, quando a Câmara Municipal autorizou uma subscrição pública para angariar recursos. Sua concretização, porém, levaria mais de meio século. Quando D.Pedro II fez uma viagem pelo País, em 1846, o monumento resumia-se a uma torre de madeira corroída pela intempérie. O projeto do que temos hoje só decola a partir de 1881, quando o governo cria as Loterias do Ipiranga especialmete para financiá-lo. O arquiteto italiano Thomaz Gaudêncio Bezzi é o responsável pelo projeto negociado com o governo por três anos: um edifício que lembra um palácio renascentista, em estilo eclético. A construção estende-se de 1885 até 1890. Até 1894, o edifício fica fechado, sem que o governo decida que uso dar-lhe. Nesse ano, são levadas para lá as coleções do único museu privado que a cidade possuía, as peças do Coronel Joaquim Sertório, caçador e colecionador de material etnográfico e de animais taxidermizados. A essa coleção, somaram-se as peças longamente acumuladas pela Comissão Geológica e Geográfica do Estado de São Paulo, um grupo de cientistas que, contratados pelas autoridades, passaram uma década (de 1880 a 1890) percorrendo a província para fazer um


12 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Arquivo

A paisagem do Ipiranga na década de 30, revelada na foto, é muito diferente do cenário atual. Seus moradores eram os trabalhadores das fábricas, abundantes no passado. Hoje, é bairro de prédios de alto padrão

levantamento científico (botânico, zoológico, topográfico, geológico, etnológico, arqueológico, histórico...) que servisse de base para a elaboração de um modelo de desenvolvimento. O museu é inaugurado dia 7 de setembro de 1895 e, à despeito de muitas janelas e portas ainda faltarem ao prédio, no mesmo ano, a instituição começava a publicar sua revista, que abrangia botânica, zoologia, antropologia e história. A maquete do projeto original deixa claro que duas alas laterais, que dariam ao edifício forma de E, jamais foram construídas. O primeiro diretor do museu foi o zoólogo alemão Hermann von Ihering, que ficou até 1916. A partir de 1917, assume o historiador Affonso de Escragnolle Taunay que permaneceria no cargo até 1945, transformando o que era um museu totalmente eclético, incluindo peças e documentos de todas as áreas, em um museu eminentemente de história, centrado na trajetória da cidade e da independência. Taunay restituiu também o caráter de memorial do edifício, construindo para o I Centenário da Independência uma alegoria histórica que incluiu esculturas, pinturas e objetos relacionados ao fato, expostos no saguão da escadaria do museu. A concentração temática do museu implicou na transferência de boa parte de seu acervo. Ele deu origem a outros museus e algumas das mais importantes instituições de pesquisa do Estado. Assim, em 1927, a seção de Botânica passou para o Instituto Biológico; em 1939, a coleção zoológica passou à Secretaria de Agricultura, dando origem depois ao Museu de Zoologia da USP. O desmembramento continuaria após a aposentadoria de Taunay, com a doação de coleções ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em 89. "Graças a Taunay, o Museu Paulista originou boa parte das instituições de pesquisa do Estado de São Paulo", diz Carlos Roberto Brandão, atual diretor do Museu de Zoologia.

BAIRRO DE ALTO PADRÃO

O caráter de bairro cultural vai se acentuando gradativamente. Em 1953, o Ipiranga ganha uma biblioteca e, em 1958, surge a Gazeta do Ipiranga, o primeiro de três importantes jornais do bairro. Mais recentemente, a região ganhou um centro cultural do Sesc, além do Centro Cultural Chico Science. Fazem parte do Ipiranga o Jardim Zoológico, o Jardim Botânico e o Instituto Astronômico e Geofísico (IAG), da USP. Na última década, o bairro ganhou também quatro instituições de ensino superior concentradas na Avenida Nazaré, que, ao lado das 50 escolas de nível básico e médio perfazem um total de 44 mil estudantes. A expansão e modernização da região aceleraram-se nas últimas décadas, com a construção de inúmeros edifícios residenciais. Os empreendimentos vêm sendo dirigidos a camadas cada vez mais altas da classe média, que chegam atraídas pela qualidade de vida. Para se ter uma idéia, o bairro está entre os três com maior índice de área verde por habitante na cidade de São Paulo. A verticalização começou no fim da década de 60, mas foi intensificada nos anos 80 e 90. Entre 1985 e 1995, o número de prédios triplica, passando de 16 para 46. Também muda o padrão: em 1985, 80% dos apartamentos eram de dois dormitórios. Nos últimos empreendimentos, boa parte era de três e 20%, quatro dormitórios. A região do Parque da Independência foi protegida da verticalização pelo tombamento pelo Patrimônio Histórico Nacional, mas vários casarões da família Jafet, da Rua Bom Pastor, foram demolidos. Inclusive nas imediações do parque iniciou-se há alguns anos a construção de três torres. A construtora desmatou uma vasta área e demoliu uma igreja e um convento antigos, mas a obra acabou interditada a pedido da Distrital Ipiranga da Associação Comercial encontrando-se hoje sob judice.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 13 Fotos: Oslaim Brito/Digna Imagem

UMA INDEPENDÊNCIA POLÊMICA. NA ARTE Qualquer paulistano conhece o Monumento à Independência, que fica no parque, diante do Museu do Ipiranga. Alguns podem até já ter se perguntado o que fazem figuras gregas e romanas, esfinges e leões alados numa obra comemorativa da conquista da autodeterminação nacional. Poucos, porém, sabem que sua construção foi objeto de uma enxurrada de críticas e denúncias protagonizadas nos principais jornais do País, na época, por intelectuais do quilate de Monteiro Lobato e Mário de Andrade. A polêmica teve início quando, em 1920, foram expostas, no Palácio das Indústrias, as maquetes dos 22 projetos em disputa, mas acirrou-se mesmo meses depois, quando o italiano Ettore Ximenes foi anunciado vencedor. Mário de Andrade escreve “(...) o ilustre sr. Ximenes, que de longe veio, infiltrará a colina do Ipiranga com o seu colossal centro-de-mesa de porcelana de Sèvres. (...) Uma das razões que circulavam na época para explicar o triunfo de Ximenez foi de que o escultor italiano fizera o monumento ao czar da Rússia, porém, com a revolução bolchevista, seu trabalho ficou inaproveitado. Assim, pois, seu enorme esforço no projeto da biga romana e os dois cavalos encontrou aplicação aqui em São Paulo, no Monumento à Independência.”

A revista The Sphere e o Daily Grafi c, de Londres, e a Domenica Corriere, de 18 de junho de 1920, estampam fotografias dando conta de um monumento que seria colocado na Bélgica feito por Ximenez que é idêntico ao proposto para marcar a nossa IndeO monumento para o Centenário da Independência foi inaugurado inacabado pendência. Monteiro Lobato afirma no jornal O Parafuso que o vencedor do como Etzel-Contratti, Brizzollara e Nicola Rolconcurso lhe fora apontado na rua um ano an- lo – e critica que o governo tenha nomeado um tes, por um amigo. “É o escultor Ximenes, o tal júri não de técnicos e críticos de arte, mas de que vai fazer o monumento da Independência”. “empreiteiros, vereadores, engenheiros, fun-Vai fazer como? Não está encerrado o concur- cionários públicos” e afirma que, ante o anúnso, não se conhecem os projetos, não houve jul- cio do vencedor, a “impressão da cidade foi de gamento: como já pode haver um vencedor? - estupor (...) e revolta”. Ingênuo! (...) Julgais, acaso, que um certame arDo projeto escolhido diz: “presepe de gesso, tístico possa ser regido por um critério moral di- vazio de idéia(...), inçado de elementos inconferente do que rege os casos políticos e concur- gruos. Enfeitam-no duas esfinges aladas (...), sos para empregos públicos? Concorra quem leões com asas, mais dois sem asas. Um carro do concorrer, o vencedor há de ser este Ximenes”. triunfo tirado por dos cavalicoques e guiado por O escritor elogia obras de outros artistas – uma mulher grega. Em redor dela, a pé, caminham figuras gregas ou romanas. Na rabada do troly, um índio. (...)Nas esquinas, quatro fruteiras de ornamentos, lembrando esses vasos de louça do Porto que os antigos mestres de obras punham na platibanda das casas”.(...) Há ainda uma frisa onde se plagia, com o mais deslavado topete, o quadro célebre de Pedro Américo -estragando-o, porém, com uma variante de interpretação grotesca, (na qual) a comitiva imperial corcoveia, sacode espadas, dá pinotes, berra.” Em fevereivo de 1922, Ximenez pede ao governo do Estado suplementação de verbas para concluir o monumento. A polêmica volta aos jornais. A Gazeta defende, o Correio e O Estado de S.Paulo atacam Ximenez. O pedido é indeferido e, no Centenário da Independência, inaugura-se o monumento inacabado. Em setembro de 1925, uma lei estadual autoriza o pagamento de uma gratificação ao escultor para que conclua a obra, o que ocorre no ano seguinte, meses antes da sua morte. A escultura de Ettore Ximenes foi criticada por intelectuais da época, como Monteiro Lobato e Mário de Andrade


14 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

A LINHA QUE COSTURA GERAÇÕES Arquivo

De gerações diferentes, Mário Alvez Rodrigues e Alessandro Pratali são bons exemplos de típicos ipiranguistas, cuja história se confunde com a do bairro e com a de uma de suas mais importantes empresas, a fábrica de Linhas Corrente, hoje Coats. Ambos nasceram, estudaram, fizeram a primeira comunhão, casaram e ainda hoje vivem e trabalham na região, que não pensam deixar por nada no mundo. Rodrigues, de 49 anos, é funcionário da fábrica há 25. Pratali, de 29 anos, tem 15 anos de empresa. Seus pais se conheceram trabalhando na fábrica, que também empregou nove de seus irmãos. Sua mãe fez carreira ali durante 29 anos. “Era muito comum. Os empregos eram estáveis e a fábrica gostava de contratar parentes pois a família ajudava a cobrar desempenho no trabalho. Por décadas, todo mundo no Ipiranga trabalhava ou conhecia alguém da Coats ou das fábricas dos Jafet”, conta Pratali. Rodrigues lembra que como havia 80% de mulheres entre os seus quase dois mil funcionários da fábrica, a Coats sempre manteve creche interna e chegou a ter conLuiz Prado/Ag. Luz curso de beleza. “No fim do expediente, tinha sempre uma multidão de homens na porta esperando a namorada ou tentando arrumar uma”. Filho de portugueses, ele nasceu em casa, um ano depois da família ter chegado ao Brasil, em 1953. Cresceu com o bairro. Na parte do Ipiranga conhecida como Vila Carioca, seus pais construíram, junto à casa, um bar que servia refeições para os caminhoneiros que traziam combustível de Cubatão para o entreposto da Shell. A infância foi marcada por bolinhas de gude, pipas e o jogo de taco trazido pelos vizinhos italianos, pelas caças de rãs nos

A antiga Linhas Corrente, hoje Coats, empregou grande parte das famílias que moravam no bairro na época em que foi inaugurada. De lá para cá, várias gerações já passaram por suas instalações

brejos das redondezas, pelas malhações de judas, mas, sobretudo, pelo futebol de várzea e pelas enchentes, que, 20 anos depois, seriam os elementos centrais da infância de Pratali. Como qualquer morador do bairro, Rodrigues lembra claramente da água que saía pelos bueiros e ralos logo que o rio começava a subir. “Era muito freqüente, a gente punha os mantimentos em cima da mesa e íamos brincar na água. O rio ainda não tinha mau cheiro”. Quando Pratalli era criança, embora o rio já estivesse mais poluído, as enchentes eram as mesmas: “Lembro da diversão de dormir com a avó e tias no forro da casa porque estava tudo inundado”, lembra ele. No dia seguinte sempre vinha o mutirão solidário para a limpeza das casas e das ruas. O futebol no Ipiranga também atravessou gerações como elemento de confraternização e dissolução das barreiras entre classes sociais. O esporte também marcou a infância de Rodrigues e Pratali. “Cada rua tinha seu time de pelada que reunia todo mundo, não tinha segregação de classe social. Os times mais organizados tinham mais de dez campos de futebol na área onde hoje fica a Favela de Heliópolis”, conta Rodrigues, que recorda um clima sempre muito solidário: “Quando meus pais compraram tevê, todas as crianças vinham assistir o Rin-Tim-Tim lá em casa, juntava uns vinte na sala”. Talvez dessa época venham as motivações que fizeram de Rodrigues, como tantos outros ipiranguistas, um ativista de uma entidade que cuida de crianças carentes no bairro. Ele sempre leva alguma das que não têm família para passar o Natal na sua casa e, às vezes, organiza eventos com os funcionários da Coats para angariar doações.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

Caderno Especial 15

DO COMÉRCIO

NAS MARGENS PLÁCIDAS: EMPREENDEDORES E A ACSP Evandro Monteiro/Digna Imagem

Um conjunto de fatores faz do Ipiranga um bairro mais solidário e com maior nível de organização social que a média. Um fator de peso é a marca dos empreendedores do bairro. A forte presença, desde o século XIX, da Igreja e de escolas e entidades assistenciais certamente contribuiu para isso. Mas também influencia o histórico de bairro operário e o perfil das fábricas que impulsionaram seu desenvolvimento: indústrias familiares de imigrantes que sentaram raízes ali, investindo em atividades sociais e esportivas, na construção de praças, clubes, e erguendo suas mansões bem ao lado das vilas e casas operárias. Criou-se uma população de gente que vive, estuda e trabalha na região geração após geração, gente que conhece os vizinhos e seus problemas, como raramente ocorre em São Paulo. O futebol também teve seu peso, com dezenas de times de várzea onde se misturavam praticamente todas as classes sociais. Nesse contexto, as iniciativas de solidariedade ou de união na busca de soluções para problemas comuns se desenvolveram espontaneamente. Foi assim com as enchentes, que sempre motivaram grandes mutirões; com a forma como o bairro lidou com o surgimento da maior favela da cidade na sua região, com a luta por trazer benfeitorias e serviços públicos e com a mobilização pela revitalização de espaços públicos – como o Parque da Independência e seu monumento –, encabeçada pelo Movimento Cívico. Surgido no seio da Distrital Ipiranga da Associação Comercial de São Paulo, o movimento, que reúne inúmeras entidades do bairro, logrou reverter a situação de total abandono em que se encontrava o parque há cerca de uma década: conseguiu sua restauração, policiamento e limpeza regulares, promovendo, a cada quatro meses, a troca da bandeira nacional. “Os empreendedores aqui sempre foram muito vinculados com as necessidades do bairro e a distrital cresceu sincronizada com isso, integrando o trabalho das várias entidades”, diz Reinaldo Bittar, superintendente da Distrital Ipiranga. A maioria dos membros da ACSP do bairro atua em mais de uma entidade. A distrital foi uma das primeiras que a ACSP ganhou, em 1952, e, nesse meio século teve papel essencial na luta por pavimentação, policia-

A loja do libanês Chalita Saad é uma das poucas dos anos 60 que ainda sobrevivem à concorrência de shoppings Ricardo Lui/Pool7

OS EMPREENDEDORES AQUI SEMPRE FORAM MUITO VINCULADOS COM AS NECESSIDADES DO BAIRRO E A DISTRITAL CRESCEU SINCRONIZADA COM ISSO, INTEGRANDO O TRABALHO DAS VÁRIAS E N T I D A D E S” REINALDO BITTAR, SUPERINTENDENTE DA DISTRITAL IPIRANGA


16 Caderno Especial

mento, iluminação pública e até iniciativas de deter a especulação imobiliária no bairro, como foi o caso do processo aberto, há oito anos, que impediu a construção de três torres bem próximas ao Museu Paulista. A distrital também deu origem à Comissão dos Festejos, que há dois anos organiza, junto com diversas entidades, as comemorações do aniversário do bairro, que inclui a Feira Comunitária. O evento reúne mais de uma centena de entidades e profissionais liberais do bairro em atividades voluntárias, que vão de atendimento médico, nutricional, fonoaudiológico e odontológico, até assistência jurídica e divulgação do trabalho de entidades que prestam apoio psicológico a famílias. Além de atividades culturais, artísticas e pedagógicas. Só no ano passado, 30 mil pessoas visitaram a feira. IMIGRANTES NA DISTRITAL

Todas as correntes imigratórias que marcaram a história do Ipiranga estão representadas nos associados mais antigos da distrital. É o caso do libanês Chalita Saad, da Chalita Magazine; dos filhos de espanhóis Joaquim e Nelson Morote, da sapataria Colossal; e do neto de italiano Valter Mansini, da loja de roupas Tio Mansini. Funcionários com 20 ou 30 anos de casa e clientes de terceira geração e atendimento personalizado são alguns dos elementos que têm em comum esses comerciantes, raros sobreviventes de outra época. A sapataria Colossal foi fundada em 1957, por Joaquim e Nelson Morote, dois ipiranguistas filhos de um imigrante espanhol que, como centenas de outros, trabalhou a vida toda como mecânico na fábrica de Linhas Corrente. A loja começou com 12 m² na Rua Vergueiro e foi crescendo, apostando em promoções e qualidade no atendimento. “Na década de 60, meu pai inventou promoções que fizeram um sucesso

TODAS AS CO R R E N T E S IMIGRATÓRIAS QUE MARCARAM A HISTÓRIA DO IPIRANGA ESTÃO REPRESENTADAS NOS ASSOCIADOS MAIS ANTIGOS DA DISTRITAL

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

incrível, como a que dava um quilo de queijo ou de lingüiça para quem comprasse um sapato”, lembra Vagner, filho e sócio de Joaquim. Hoje, a loja tem 1.500 m² e a família abriu outras duas. Juntas, as três lojas têm mais de 80 funcionários. Segundo Vagner, a receita para se adaptar aos novos tempos foi simples: “Oferecemos estacionamento, segurança na rua e fizemos a loja mais aconchegante. O resto é o que o meu pai sempre ofereceu: bons produtos, preço bom e muita amizade, que aqui no Ipiranga ainda é artigo muito valorizado”, diz. Chalita concorda com ele. Este imigrante libanês que chegou ao Brasil com 18 anos, em 1957, para trabalhar na loja do cunhado, considera-se também ipiranguista de coração. Em 1962, abria seu próprio negócio, na Rua Silva Bueno. Ele garante não ter medo de shopping center: “Nossos clientes sabem que aqui encontram, além de produtos e preços bons, amizade. Tem gente que vem aqui há mais de 30 anos. Atendo filhos e netos dos primeiros clientes. Não saio deste bairro por nada deste mundo”. A mesma receita tem feito a loja Tio Mansini manter clientes das mais diversas classes sociais há três décadas. Hoje cerca de 40% deles é de moradores da favela, mas uns 5% são de classe média alta. “Temos um amplo espectro de produtos, marcas e preços, tratamos todo mun-

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

do muito bem, nunca julgamos ninguém pela roupa, mas damos atenção especial para os clientes antigos”, diz Mansini, que já fez fornecedores lhe mandarem produtos por Sedex para atender à urgência de cliente. Para ajudar uma família que comprava há anos com cheques prédatados e ficou sem talonário, Mansini fez especialmente umas promissórias. “Nunca ficaram sem pagar, se vão atrasar, me avisam, Nunca me deram calote, há uma relação de confiança”.

TEMOS UM AMPLO ESPECTRO DE PRODUTOS, MARCAS E PREÇOS, TRATAMOS TODO MUNDO BEM E NUNCA JULGAMOS NINGUÉM PELA ROUPA, MAS DAMOS ATENÇÃO ESPECIAL PARA OS CLIENTES ANTIGOS" VALTER MANSINI, DONO DA LOJA DE ROUPAS TIO MANSINI, SOBRE A RECEITA PARA ATRAIR E MANTER OS CLIENTES DO BAIRRO

Paulo Pampolin/Digna Imagem


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

R s: to Fo

RUA BOM PASTOR, 798. O ENDEREÇO DO LÍBANO

Caderno Especial 17

ob n so na

r Fe nd je AE s/

Das quase três dezenas de mansões construídas no Ipiranga no início do século passado pelos poderosos industriais que prosperaram no bairro, talvez as mais espetaculares sejam as duas erguidas pela família Jafet nos números 798 e 730 da Rua Bom Pastor. Benjamin e Basílio, dois dos pioneiros da imigração libanesa para o Brasil, foram os primeiros da família a chegar, em 1888 e 1889. Logo viriam os outros irmãos: Nami, João, Miguel e Halla. Os dois primeiros começaram como mascates, mas, em 1906, inauguravam sua indústria, a Estamparia Ipiranga Jafet, que durante décadas seria o principal motor de desenvolvimento da região e uma das maiores indústrias têxteis do País. A família mudou a fisionomia do Ipiranga: trouxe a linha do bonde do Centro até a porta de sua fábrica e foi responsável pela construção de parques e jardins públicos, igrejas, hospitais e clubes, além de uma vila operária e mansões. A chegada da energia e o saneamento básico também deve muito à família. Inaugurado em 1923, o casarão do número 798 abrigou a família de Basílio Jafet até 1957. Construída por Heribaldo Siliciano, a mansão mistura elementos orientais, clássicos e barrocos. Uma escadaria de mármore de Carrara leva à porta principal. No hall, colunas, capitéis e arcos entre guirlandas, brasões e anjos barrocos são iluminados com luz natural por dois vitrais art nouveau. São quase 50 cômodos distribuídos em quatro andares cheios de pinturas e esculturas. Tudo cercado por um jardim de cedros, típicos da região do Líbano de onde procede a família. O jardim dá nome à mansão: Palácio dos Cedros, cenário por onde desfilaram inúmeras au to ri dades nas quase t r ê s d écadas de festas e r e c e pções. Entre os mais ilustres visitantes, o

presidente do Líbano, Camille Chamoun, em 1954. Em 1928, Basílio registrou em cartório seu desejo de que a casa fosse residência perpétua da família e, após a morte de suas filhas, fosse doada ao governo do Estado de São Paulo para a instalação de um “museu de antigüidades”. Apesar disso, após sua morte, em 1947, a casa foi alugada, tendo abrigado desde um centro de saúde até um templo Hari Krishna. No início dos anos 90, foi vendida numa transação que até hoje está sob judice. Já outro palacete, construído na Rua Bom Pastor pelo irmão de Basílio, Nami, num terreno que ocupava um quarteirão, não resistiu a especulação imobiliária: foi demolido na década de 80 para dar lugar a um conjunto de prédios. ELEGANTES CASARÕES

Ao lado e em frente da mansão de Basílio foram construídas duas outras para suas filhas Violeta e Ângela. A mais antiga, de 1932, foi construída por Eduardo Jafet, sobrinho de Basílio, cumprindo condição para casar-se com a prima. A segunda, de 1934, foi feita para abrigar o casal Violeta e Chedid Jafet. O casarão, que recebeu autoridades como os presidentes Arthur Bernardes, Juscelino Kubitschek e os governadores Adhemar de Barros e Benedito Valadares, inspira-se no castelo de Victor Hugo, na França, mas mistura fragmentos de outras obras. A sala de estar dourada é cópia da Sala dos Espelhos de Versalhes. A de jantar reproduz uma das salas do Palais de SansSouci, na Alemanha. “A porta de ferro com todos os símbolos do zodíaco reproduz fielmente a obra que foi prêmio de arquitetura do Salão de Paris de 1932”, conta o construtor Ênio

No interior das casa elegantes, réplicas de salas de palácios europeus

Monte, que comprou o casarão de Violeta no fim da década de 80, tendo sido responsável pela restauração dessa casa e da de Basílio. O trabalho teve forte apelo emocional para ele porque sua história pessoal se entrelaça com a dos Jafet. Filho de imigrantes espanhóis, Monte teve o avô, o pai e a mãe empregados nas indústrias Jafet. “Meu pai trabalhou lá 48 anos, fez carreira na empresa e falava bem da família e do bom gosto da casa deles. Foi uma alegria poder comprá-la para preservá-la”, lembra, lamentando ter sido obrigado a vendê-la. Embora a maioria não saiba disso, as imagens da casa de Violeta já freqüentaram quase todos os lares brasileiros. O imóvel é campeão de locações para anúncios, filmes, minisséries e novelas. Foram filmadas lá cenas de do filme Amor estranho amor, das minissérie Os ossos do barão e Avenida Paulista, para citar alguns exemplos. Mas talvez a história mais cinematográfica da casa, depois da de seus idealizadores, seja a de Ênio, o filho de operário empregado de um dos homens mais ricos do País, primeiro da família com curso superior, que sobe na vida construindo mais de uma centena de cinemas pelo País a fora até conseguir comprar a mansão dos patrões do pai.


18 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

MAESTRO BACARELLI: O CONSERTO E O CONCERTO DA FAVELA Fotos: Evandro Monteiro/Digna Imagem

Maria não tinha completado nove anos e já ajudava o pai a traficar, vendia maconha, crack e até cocaína. Era briguenta, andava armada e mais de uma vez encerrou suas discussões com tiros. De família violenta, teve um dedo do pé esmagado por um tio numa discussão. Escola, para ela, era para farrear e arranjar confusão. Nunca levava desaforo para casa. Isso há mais de uma década. Hoje, na mesma favela de Heliópolis onde sempre morou, Maria desfila orgulhosa com seu violino, ao qual dedica várias horas diárias de estudo. Seus professores, escolhidos entre os melhores músicos da Orquestra Sinfônica de São Paulo, dizem que ela tem muito talento. Nunca Maestro Sílvio Bacarelli: idealizador da orquestra sinfônica formada por moradores da Favela Heliópolis mais tocou numa arma: não combina com música. Embora inverossímil, a história é verdadei- linha. Três meses depois, a orquestra fazia sua ra, exceto pelo nome fictício. O que parece mi- primeira apresentação. “A diretora da escola lagre foi resultado de um projeto ousado, empre- me procurou depois do concerto e chorou conendido com toda a energia pelo maestro Sílvio fessando que tinha me enviado os mais probleBacarelli. Tudo começou com o incêndio que de- máticos e que eu os tinha transformado totalPARECE MILAGRE, vastou parte da favela de Heliópolis, em 1996. O mente”, lembra o maestro. “Parece milagre, MAS NÃO É. A maestro, ex-morador do Ipiranga, viu as ima- mas não é. A música desenvolve disciplina, senMÚSIC A gens na tevê e naquele momento decidiu que fa- sibilidade, espírito de colaboração com o grupo D E S E N VO LV E ria algo por aquelas crianças. Procurou uma es- e até lógica matemática”, explica. DISCIPLINA, SENSIBILIDADE, cola de Heliópolis e pediu que selecionassem 36 A maioria dos alunos melhorou seu desempe- ESPÍRITO DE COLABORAÇÃO alunos para formar uma orquestra sinfônica. A nho na escola, sua relação com os colegas e con- COM O GRUPO E ATÉ LÓGICA diretora pensou que aquele senhor de cabelos sigo mesmo. “A música mexe com os sentimen- MATEMÁTIC A" brancos não sabia com quem estava se metendo tos, deixa a gente mais tolerante, mais sensível, M A E S T R O S I L V I O B A C A R E L L I , S O B R E mas, diante da insistência, indicou dois de cada mais disposto a entender os outros”, diz Alex A M U D A N Ç A D E C O M P O R T A M E N T O classe, escolhidos entre os mais indisciplina- Soares Sanders, de 23 anos. Ele começou com a Q U E S E U S A L U N O S A P R E S E N T A R A M dos. Quem sabe, assim, o maestro ganharia al- primeira turma, há sete anos, e hoje já faz algu- D E P O I S D E S U A S A U L A S gum senso de realidade. mas apresentações profissionais em festas. No início, todos tinham aula juntos, três hoNem todas as crianças atendidas pelo projeras, três vezes por semana. Bacarelli pagava o to viraram músicos profissionais ou estão a caônibus fretado para trazer e levar para a favela o minho disso. A música, porém, mudou a vida de lanche e os dois professores, todos de primeira todos, inclusive dos que já não tocam. “Eles me-


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 19

No total, o projeto atende a 235 alunos. Eles têm aulas teóricas de música e práticas do instrumento escolhido, sempre com professores de primeira linha – muitos são integrantes da Orquestra Sinfônica de São Paulo

lhoraram na escola, arrumaram empregos, viraram pessoas responsáveis”, diz o maestro. Dos 36 pioneiros, onze continuam na orquestra. Graziela de Oliveira Teixeira é um exemplo extremo, embora não tanto como sua colega Maria. “Eu era briguenta, desbocada e não ligava para nada, mas a música, aos poucos, me transformou”. Ela também começou com a primeira turma do projeto, aos 12 anos. “Quando convidaram na escola, achei que ia estudar pandeiro ou cavaquinho e fiquei surpresa quando vi aqueles ‘violinos’ de tudo quanto era tamanho”, conta rindo, ao lembrar da primeira vez em que viu violas, violoncelos e contrabaixos. Hoje, com 19 anos, a violonista tem talento reconhecido por músicos profissionais . A maior transformação deu-se de três anos para cá, quando o projeto passou a incluir aulas particulares com professores de primeira linha, alguns da Orquestra Sinfônica de São Paulo. “Minha professora toca tão bem e me coloca

para cima de um jeito, que acabei começando a acreditar em mim”, lembra. “A gente vinha zoando no ônibus; agora, se alguém jogar um papelzinho pela janela, os próprios colegas dão uma dura porque, afinal, somos músicos”. OS PATROCINADORES

Até dezembro de 1997, Bacarelli arcou sozinho com os custos do projeto. Nesses primeiros 15 meses, a orquestra realizou mais de dez concertos, tendo encerrado as atividades do Teatro Municipal de São Paulo naquele ano. Começaram, então, a aparecer patrocinadores e o projeto cresceu. Hoje, os candidatos selecionados iniciam sua musicalização no Coral Bacarelli. Depois de um ano podem começar a estudar algum instrumento. A orquestra multiplicou-se em duas (Jovem e Didática) e seus membros têm hoje também aulas particulares do instrumento e aulas teóricas de música. Os melhores recebem bolsa para evi-

tar que abandonem os estudos para trabalhar, como aconteceu com vários no início. No total, o projeto hoje atende a 235 alunos. Este, porém, é apenas um dos projetos sociais desenvolvidos na Favela de Heliópolis, sobretudo por moradores do Ipiranga. Praticamente todos os mais de 100 mil habitantes de Heliópolis são beneficiados por alguma das atividades assistenciais desenvolvidas pelas cerca de 40 entidades que atuam ali. Só a Ação Social, da Igreja Jerusalém, atende mais de três mil pessoas: uma escolinha de futebol para 700 crianças e 23 times para adultos, além de cursos profissionalizantes, de alfabetização, reforço escolar, entre outros. Oferece ainda assistência de médicos, dentistas e advogados voluntários. Outras buscam organizar os moradores para que lutem por seus direitos. Com isso, nos últimos quatro anos, a favela conquistou luz, água, esgoto, asfalto e telefones comunitários, além de policiamento. E tem até rádio e lavanderia comunitárias.


20 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: J. F. Diório/AE

A pequena capela, esquecida no Ipiranga, guarda obras de grandes artistas, como três painéis de Alfredo Volpi e esculturas de Moussia Pinto

A CAPELA DE CRISTO, VOLPI, BURLE MARX E DO ESQUECIMENTO Obras de alguns dos grandes nomes do modernismo brasileiro se deterioram no Ipiranga, tão esquecidas pelos paulistanos como a modesta capela que as abriga e a fascinante história que a envolve. Na Capela do Cristo Operário, três grandes painéis de Alfredo Volpi – possivelmente os únicos que ele fez – e quatro vitrais seus co-habitam com obras de outros grandes artistas: murais de Yolanda Mohalyi, esculturas de Moussia Pinto e o que resta dos jardins desenhados pelo paisagista Roberto Burle Marx. Construída pelo frei dominicano João Batista, a capela integra um projeto que incluia até uma fábrica de móveis – a Unilabor. A fábrica funcionou autogerida por seus operários entre os anos de 1954 até 1967 e chegou a empregar quase cem operários que, além de dividir os lucros, participavam ativamente da elaboração dos projetos das peças criadas. “A proposta era organizar o trabalho de uma forma não alienada”, explica o arquiteto Mauro Claro, autor de um trabalho de mestrado sobre o projeto da Unilabor e a capela. A experiência, que pode parecer de inspira-

ção comunista ou anarquista, na verdade baseava-se num movimento cristão, conhecido como Economia e Humanismo (EH), que aglutinava intelectuais, padres e leigos, na discussão dos problemas da sociedade industrial capitalista e possíveis soluções alternativas. MOVIMENTO FRANCÊS

Surgido na França durante a Segunda Guerra, o movimento já estava enraizado no Brasil em 1949, quando havia até uma empresa do grupo que se dedicava a fazer trabalhos de planejamento urbano para governos municipais e estaduais. Depois de muitos anos na França, onde

sofreu uma profunda influência do grupo EH, o frei João Batista voltou ao Brasil decidido a implantar aqui uma comunidade de trabalho similar à que havia visto naquele país. Em São Paulo, convenceu os dominicanos do interesse do projeto e conseguiu que lhe comprassem no Ipiranga um galpão para levá-lo adiante. Antes da fábrica, porém, veio a capela. A comunidade já estava arrecadando fundos para a construção de uma luxuosa igreja em honra a Santo Antônio. Com a chegada do frei, a igreja virou a modesta capela do Cristo Operário, improvisada num antigo armazém onde os operários costumavam reunir-se, enriquecido pela construção de uma pequena torre. Quando os modernistas simpatizantes do mundo operário ficaram sabendo do projeto, logo quiseram participar e toda a decoração foi feita pelo trabalho voluntário desses artistas, já famosos naquela época. A história de todo o projeto que frei João Batista desenvolveu no bairro do Ipiranga está no livro Unilabor, arte moderna e autogestão operária, de Mauro Monte.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

UM IMPERADOR DO IPIRANGA PEDE PASSAGEM Fartos das enchentes, os moradores do Ipiranga resolveram rir da própria desgraça, fazendo um protesto bem-humorado. Ninguém desconfiava, então, que dali sairia uma escola de samba que em quatro anos estaria no primeiro grupo: a Imperador do Ipiranga. A idéia foi de Laerte Toporkov, ipiranguista da gema – nasceu, estudou e sempre trabalhou no bairro, além de atuar em várias das suas entidades. Seu raciocínio foi simples: como chovia e dava enchente quase todo carnaval, em vez de carro alegórico, fariam desfile de barco alegórico! “Publiquei o que pretendia fazer na Gazeta do Ipiranga e logo o Tião Soares, um sambista carioca egresso da Mangueira, preto velho bonachão que tinha vindo do Rio para trabalhar no mercado, me procurou para dizer que só carro alegórico não dava, que carnaval precisava de bateria, escola de samba... Topei”, lembra Toporkov. O problema é que a essa altura estavam há menos de três meses do carnaval e Toporkov, segundo ele mesmo, não entendia absolutamente nada de samba. A solução foi sair à caça de sambistas pelos bares da Vila Ema e Vila Carioca - as áreas mais populares do Ipiranga. Logo tinham uma dezena de músicos dispostos a ensinar os outros. “Apareceu o Rivelino, que era ótimo na caixa, e o Zico, que desfilava no cordão da Vai-Vai, aceitou ser o improvisado diretor de bateria da nova escola. O Brás se dispôs a fazer o samba enredo homenageando a recém-nascida escola”, diz. Um veio com pandeiro, outro com violão, chocalho era feito com tampinha amassada. Isso e muita frigideira completaram a bateria da escola. “Só os instrumentos maiores, como surdo e contra-surdo, é que compramos, em nome de um comerciante amigo meu, que foi para po-

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 21

Fotos: Arquivo

der pagar com prazo”. A fantasia foi feita com um pano que Toporkov recebeu como pagamento por seus honorários de advogado. “Era pouco, só deu um coletinho para cada um e ainda por cima desbotou e manchou a camisa de todo mundo”. “Um motorista da Prefeitura, sem nenhuma experiência na passarela, depois de muita insistência acabou me convencendo a deixá-lo ser o mestre-sala. Ele deu um show na avenida e impressionou os juízes”, conta. Mais de 150 pessoas participaram do desfile, incluindo crianças da Fantasias da escola de samba contam a história do bairro favela. Como não choveu o jeito foi colocar os barcos e outras alegoHistória menos gloriosa, porém mais fiel ao rias em caminhões emprestados por comercian- seu tema de origem é a do bloco Unidos das Entes do bairro até porque, naqueles dois meses, a chentes, da Vila Carioca, que durante quase toescola tinha ficado ambiciosa e foi desfilar no da a década de 80, desfilou no bairro religiosaCentro para concorrer com as outras. Tirou o mente todo carnaval repetindo as mesmas aleterceiro lugar do terceiro grupo. Dois anos de- gorias: rodo, mangueira, balde.. “Era uma forpois, foi campeã neste grupo. No ano seguinte, ma alegre de protesto. O bloco saia da vila e ia campeã do segundo grupo e, em 1973, chegou a incorporando pessoas pelo caminho até chegar quinta colocada do primeiro grupo. Desde en- na Silva Bueno, onde era o desfile oficial do Ipitão, a escola consolidou-se como alternativa de ranga. Ali, a gente a gente invadia a avenida palazer para centenas de crianças carentes e, em ra desfilar com os baldes. Quando chovia, na 2004, resolveu homenagear o bairro em seu volta para casa muitas vezes a gente encontrava samba-enredo. tudo inundado”, lembra Alessandro Pratali.

Da esq. para dir.: os trens da companhia inglesa, o museu de zoologia, a árvore das lágrimas, o Clube Atlético Ypiranga, a produção de cerâmicas e as fábricas da família Jafet


22 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

Fotos: Arquivo

EM CAMPO, A SELEÇÃO DO YPIRANGA Grande reduto do futebol de várzea da Capital, o Ipiranga foi berço de craques de projeção nacional durante a primeira metade do século passado. O mais antigo deles é Friedenreich, artilheiro do Campeonato Paulista de 1914-1915, que muitos dos amantes mais antigos do esporte chegam a comparar a Pelé. Ele, Formiga, Teppet, Osse, entre outros, foram ipiranguistas que chegaram à seleção paulista e brasileira. Outros craques de projeção nacional que começaram jogando no Ipiranga foram Peixe e o filho Peixinho – que fez o primeiro gol no Morumbi, em 1947 –, Silas, Bibe, Nenê, Liminha, Rubrens, Mário Travaglini, Rubens Minelli, Valdemar Carabina, Geraldo Scoto e, sobretudo, o lendário Moacir Barbosa, goleiro da seleção na Copa de 50, tristemente lembrado por estar na célebre final na qual o Brasil perdeu para o Uruguai na inauguração do Maracanã. O auge do futebol do bairro foi em 19481950, quando a totalidade dos jogadores da seleção paulista procedia de suas filas. Todos estes craques começaram no Clube Atlético Ypiranga (CAY), o mais antigo e importante clube de futebol do Ipiranga. Fundado em 1906, o clube curiosamente nasceu fora do bairro, embora já com este nome: foi criado por um grupo de funcionários da antiga Casa Lebre, na esquina da Rua Direita com a Rua 15 de novembro. Nos primeiros anos, o CAY realizava seus jogos na Várzea do Carmo para onde os jogadores tinham de carregar as traves a cada partida. Apesar da improvisação, porém, em 1909, o time já disputava a Liga Paulista de Futebol e, em 1910, já tinha seu campo, na Água Funda. Só em 1930, depois de algumas fusões, o CAY chega ao Ipiranga para estabelecer-se num terreno cedido pela família Jafet. Em 1949, as necessidades de expansão das indústrias Jafet fazem o CAY perder seu campo. O clube muda-se, então, para um terreno cedido pela família Samaroni, na área do Ipiranga conhecida como Sacomã. Ali, se transforma em clube poliesportivo. As instalações incluem um campo de futebol, construído pelo antigo Clube da Light, que foi o primeiro do mundo a ter iluminação artificial. Em 1953, o CAY é despejado, ficando reduzido a duas salas cedidas pelo clube Desportivo e Recreativo São José.

Atletas do Atlético Ypiranga: o craque do CAY Theofilo Osses (ao lado), que ficou conhecido no fim dos anos 20 e os jogadores do time de basquete do clube, antes de uma partida especial no Estádio do Pacaembu, em 1952 X

DE AG O S TO DE

2004


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

Caderno Especial 23

DO COMÉRCIO

Fotos: Arquivo

Roberto Nappi, presidente do CAY, ao lado de Filpo Nuñes, técnico argentino que recebeu o apoio do clube. Abaixo, o time de futebol em 1921 X

Intensamente vinculado ao bairro, o clube renasce das cinzas graças ao esforço abnegado de 118 sócios e a ajuda da família Jafet que, em 1956, compra um terreno e constrói um ginásio para o CAY, sendo ressarcida a prazo, com recursos provenientes da venda de títulos. São os 25 mil metros quadrados que o clube possui, hoje com 12 mil m² de área construída. Fundador da Federação Paulista de Futebol, o CAY manteve jogadores profissionais da década de 30 até 1957. Os altos custos disso, porém, foram uma das causas da crise econômica da entidade, que abandonou o esporte profissional. Apesar da opção pelo esporte amador, as escolas de futebol, tênis, basquete e vôlei do CAY continuaram celeiro de jogadores profissionais importantes. Diego Souza, do Palmeiras, começou na escola de futebol do CAY e Alexandre Simonei, considerado o quarto maior tenista brasileiro, iniciou-se como atleta na escola de futebol de salão do clube. AJUDA A EX-ATLETAS

O clube também inseriu o espírito solidário do bairro. Pelo menos dois grandes atletas acabaram, no final de suas vidas, amparados pelo CAY. Um deles foi o técnico argentino Filpo Nuñes, que brilhou no Palmeiras nas décadas de 60 e 70 e, depois de acumular fortuna, arruinou-se. “Soubemos em 2000 que Nunes estava passando dificuldade, morando num hotel de quinta e

fomos procurá-lo”, conta Roberto Nappi, atual presidente do CAY. Nunes foi convidado pelo clube para trabalhar no Projeto Nova Jerusalém, que desenvolve atividades na Favela de Heliópolis, e passou os últimos três anos de sua vida morando e trabalhando lá, dando aula de futebol para as meninas da favela. “Não se tratava de caridade, e sim de reconhecer e aproveitar um talento. Ele montou um timaço de primeira com as meninas”, diz Nappi. Outro atleta que havia feito fortuna com o seu talento, mas havia caído no esquecimento antes

de ser resgatado pelo CAY foi Moacir Barbosa, goleiro da seleção de 1950 que havia começado sua carreira no próprio clube. Ele deixou de jogar no início dos anos 60 e desde então foi perdendo bens. “Ficamos sabendo que ele estava com problemas e organizamos uma grande festa em sua homenagem em 1999, para angariar fundos para comprar-lhe um apartamento. Agnaldo Timóteo e vários jogadores profissionais participaram. Conseguimos uma boa arrecadação, pena que ele morreu antes de conseguirmos comprar o imóvel”, conta Nappi. Newton Santos/Digna Imagem

Com 11 8 sócios e 25 mil m², o CAY continua a ser celeiro de jogadores profissionais importantes em várias modalidades, apesar de ter optado por oferecer escolas de esportes de caráter amador depois de 1957


24 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: César Diniz/Digna Imagem

O MUSEU DE UM COLECIONADOR APAIXONADO POR AUTOMÓVEIS Pouca gente sabe que no Ipiranga pode-se visitar o autêntico veículo que o Cardeal Arcoverde usou para levar o presidente Washington Luis para o exílio: um luxuoso e belíssimo carro presidencial da Mercedes-Benz fabricado na Alemanha em 1911, impecavelmente restaurado. Ao seu lado, figuram modelos simples e luxuosos da Ford, Volkswagens, Mercedes, Chevrolet, Daimler-Chrysler, entre outras, de todas as décadas do século XX (até os anos 60) e alguns até do século XIX, além de uma respeitável mostra de motos antigas. No total, são cerca de 80 acervos, entre veículos, carruagens e motos, que integram a coleção flutuante do Museu do Automóvel, uma preciosidade original e pouco conhecida do bairro, resultado da paixão de um empreendedor nada convencional.

Nascido em 1945, na Mooca, Romeu Siciliano foi morar no Ipiranga ainda menino, mais ou menos na época em que se apaixonou por carros antigos. “Tinha um vizinho caminhoneiro que, sempre que estava em casa, fazia manutenção no seu Ford 1931. Eu era moleque e largava até futebol para ficar vendo”. Aos 18 anos, para brincar o carnaval, comprou e restaurou seu primeiro carro: um Chevrolet 1929. Logo fez amizade com dois argentinos donos de uma oficina mecânica no bairro e associou-se com eles. Mais tarde comprou a parte deles e especializou a oficina na restauração de carros fabricados até 1930. Pouco a pouco, o foco do negócio foi se concentrando: Siciliano deixou de reformar carros alheios para dedicar-se apenas aos carros an-

Muitos dos carros à mostra no museu de Romeu Siciliano – exemplares do século XIX e de várias décadas do XX totalmente restaurados – são usados em casamentos, novelas, filmes e desfiles oficiais

tigos que compra para depois vender. O museu foi um subproduto do negócio, uma idéia nascida do Plano Collor. “Com a falta total de dinheiro, minha filha sugeriu que a gente cobrasse entrada para o pessoal ver os carros. Não aceitei, preferi botar a família para vender laranja na rua, mas a idéia ficou e fizemos o museu”. RELÍQUIAS EM DESFILES

Siciliano também foi o primeiro empresário de São Paulo a alugar veículos para casamentos, novelas, filmes e eventos. Hoje há muitos no negócio, mas nenhum com o charme do seu catálogo: “No desfile dos 450 anos da cidade, a prefeita Marta Suplicy usou um Plymouth 1934, da Chysler, aqui do nosso museu”, diz orgulhoso. Entre os xodós do colecionador, alguns veículos cuja história se entrelaça com a do bairro e da família Siciliano. É o caso da perua Vemag, de 1960. Fabricada no Ipiranga pela primeira montadora de capital nacional, a perua era de uso diário de Siciliano até os anos 70. Entre os novos projetos está o de criar cursos para mecânico, funileiro, eletricista e carpinteiro especializados na restauração de carros antigos, além de um de historiador de automóveis. Apesar de ter nascido na Mooca, Siciliano considera-se ipiranguista de coração: adora o bairro onde casou, criou os cinco filhos e mantém há 40 anos, no mesmo lugar, sua oficina de restauração. O museu fica na Rua 1.822, nº 1.472 (tel. 6168-1900) e está aberto nos fins de semana ou durante a semana, com hora marcada.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 25

JA BAQ UA R A Reprodução

O local onde hoje é o Jabaquara já foi rota de escravos fugitivos. Daí a forte presença afro-brasileira na região – alusão feita na gravura do início do século XIX

Texto de Elizabeth Maggio


26 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Um 'refúgio dos fujões': Jabaquara SOMENTE

E M 1 9 6 4 O JA BAQ UA R A T O R N O U - S E U M D I S T R I T O I N D E P E N D E N T E . A N T E S D I S S O , O B A I R RO D I V I D I A - S E E N T R E O S S U B D I S T R I TO S DA S A Ú D E E I NDIANÓPOLIS E O DO I BIRAPUERA . P ORÉM , SE A CRIAÇÃO DO DI STR ITO DO JA BAQUA RA É ALG O R ELATI VAM EN TE RECENTE , O LOCAL ONDE O BA I R RO SE S I T UA , UMA ÁREA DE 1.410 QU I L Ô M E T RO S QUA D R A D O S E N C R AVA DA NA REGIÃO SUDOESTE DE S ÃO PAU L O , NA DIVISA COM S ÃO B E R NA R D O E D IADEMA , TEM UMA HISTÓRIA QU E PODE SER T R A Ç A DA DESDE A ÉPOCA DE A N C H I E TA .

roca Zona Sul e o Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro. No século XVII, a região começou a ser procurada por fazendeiros e sitiantes, que fundaram estabelecimentos agrícolas e comerciais. Mas a área ainda ostentaria por mais dois séculos a pecha de "lugar ermo": sua popularização só teve início com a instalação, em fins do século XIX, de um logradouro público destinado a passeios e piqueniques, o Parque do Jabaquara. Em 1906, a Light and Power Corporation inaugurou uma linha de bondes elétricos que ia de Vila Mariana a Santo Amaro e, depois, foi inaugurada a linha Jabaquara. Mas isso não bastou para tirar o bairro do isolamento em que se encontrava. Só em 1928, com a abertura de uma pequena auto-estrada que ligava Vila Mariana a loteamentos situados às margens da Represa Billings, teve início a ocupação urbana do bairro do Jabaquara.

No século XVI, no afã de converter novos fiéis para a Igreja Católica, a Companhia de Jesus autorizou o padre Anchieta a criar novos núcleos de catequização. Um deles foi instalado em uma das sesmarias do padre próxima ao caminho para Santos. A área era chamada de Yab-a-quar-a pelos tupis-guaranis, nome que pode ser traduzido como "rocha e buraco", ou, ainda, "lugar ermo". Devido AEROPORTO E PARÓQUIA a sua localização, o novo núcleo acabou servindo de pousada para A instalação do Aeroporto de Congonhas, em 1936, também aqueles que empreendiam a longa e cansativa jornada para Santos, contribuiu para o desenvolvimento do bairro. Porém, o grande salo que levou os jesuítas a construir um loto de crescimento ocorreu com a construAlexandre Nóbrega/Digna Imagem cal para abrigar viajantes. É essa a origem ção da Paróquia São Judas Tadeu, atual da casa que servia de sede ao Sítio da ResSantuário São Judas Tadeu, em 1940. A saca, um belo exemplo da arquitetura rupartir dessa década, o bairro passou por ral setecentista que hoje é parte do Consucessivas transformações que culminajunto das Casas Históricas de São Paulo. ram com a construção da estação JabaquaMas não eram apenas viajantes e misra da linha norte-sul do Metrô, em 1975 (a primeira linha entregue à capital paulista) sionários jesuítas que passavam pela ree com a instalação, alguns anos depois, do gião. O local também era rota de escravos terminal rodoviário nas imediações da esfugitivos a caminho do litoral. Documentação. As desapropriações de antigas retos históricos registram várias escaramusidências, o alargamento de algumas vias, ças entre negros em fuga e forças policiais como a Avenida Jabaquara e a Armando da época. Muitos desses escravos acabaArruda Pereira, e a facilidade de acesso ram buscando abrigo nas matas densas e proporcionada pelo metrô mudaram a fiermas do Jabaquara, fundando assim seus sionomia do bairro. próprios quilombos – há quem afirme que Grandes edifícios e condomínios resiuma das possíveis traduções de Yab-adenciais elevaram bastante o valor dos quar-a é "refúgio de fujões", em alusão imóveis na região e acabaram modificanaos quilombos (versão mencionada no lido o perfil de seus habitantes – hoje, são vro Bairros Paulistanos de A a Z, de Lemais de 218 mil moradores. O comércio vino Ponciano, Ed. Senac, 2001). cresceu e tornou-se o ponto forte da reO fato é que esse aspecto deu ao Jabagião, que conta com mais de 1.200 micro e quara uma característica marcante: a forpequenas empresas, com destaque para a te presença da cultura afro-brasileira. O prestação de serviços e lojas do setor de bairro abriga desde um terreiro de canvestuário e alimentação. domblé tombado pelo Conselho de DefeContudo, o Jabaquara é uma região de sa do Patrimônio Histórico, Arqueológigrandes contrastes. Se as áreas ao redor co, Artístico e Turístico do Estado de São do metrô e do Santuário São Judas Tadeu Paulo (Condephaat) até o samba da BarSantuário: ícone e ponto de visitação do bairro


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 27

Arquivo

Com a construção da Paróquia São Judas Tadeu nos anos 40, a região passou por várias transformações: ganhou uma estação de metrô e terminais rodoviários Evandro Monteiro/Digna Imagem

NO SÉCULO X VII, A REGIÃO COMEÇOU A SER PROCURADA POR FAZENDEIROS E SITIANTES, QUE FUNDARAM E S TA B E L E C I M E N TO S AGRÍCOLAS E COMERCIAIS. MAS A ÁREA AINDA OSTENTARIA POR MAIS DOIS SÉCULOS A PECHA DE 'LUGAR ERMO': SUA POPULARIZAÇÃO SÓ TEVE INÍCIO COM A INSTALAÇÃO, NOS FINS DO SÉCULO XIX, DO PARQUE DO JABAQUARA O Centro Cultural Jabaquara abriga uma biblioteca e promove atividades culturais


28 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Mabel Feres/AE

tiveram um desenvolvimento acelerado e atraíram uma população predominantemente de classe média, em outros locais surgiram diversas favelas, que sofrem com a falta de saneamento básico e outras dificuldades. Reduzir esses problemas e diminuir esse contraste é o grande desafio do bairro. SÍTIO DA RESSACA

Em meio a um gramado, cercado por grades de ferro, uma pequena casa de paredes brancas situada perto da estação Jabaquara do Metrô resiste há quase 300 anos a todas as transformações pelas quais passou a cidade a seu redor. Construída por volta de 1719 para abrigar viajantes que se dirigiam a Santo Amaro, Borda do Campo e Santos, a casa já pertenceu a jesuítas, fazendeiros e sitiantes, ocultou escravos fugitivos, sobreviveu ao bonde elétrico e ao metrô, à especulação imobiliária, à turma barra-pesada que se embrenhava no matagal à sua volta e a um incêndio, sendo tombada pelo Condephaat em 1972. Construída em taipa de pilão, técnica árabe introduzida no Brasil pelos portugueses, a casa diferencia-se da maioria da época por possuir uma planta não simétrica, com alpendre em uma extremidade da fachada e telhados com duas águas e uma única inclinação. Sede do Sítio da Ressaca (que recebeu esse nome por causa da proximidade do Córrego do Barreiro, também conhecido como Córrego da Ressaca), a casa ergue-se num local reconhecido por documentos históricos desde as últimas décadas do século XVI como pouso construído pelos jesuítas para abrigar viajantes. A área foi utilizada como sítio até 1969, quando foi parcialmente loteada. O terreno ainda viria a sofrer desapropriações para se tornar pátio de Evandro Monteiro/Digna Imagem

Milhares de fiéis em frente ao Santuário de São Judas, destaque no bairro. Ao lado, a pequena casa de taipa de pilão que resistiu a 300 anos de desenvolvimento do Jabaquara e transformou-se em espaço cultural, com exposições temáticas e visitas monitoradas


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

Caderno Especial 29

DO COMÉRCIO

Paulo Pampolin/Digna Imagem

A instalação do Aeroporto de Congonhas, em1936, foi um dos principais propulsores para o rápido crescimento do bairro, que hoje conta com mais de 1.200 micro e pequenas empresas e 218 mil habitantes

manobras do metrô e para a construção de ruas, resumindo-se hoje a uma pequena área que nada preserva do ambiente original. CENTRO CULTURAL JABAQUARA

Embora cerca de 250 anos os separem, o Centro Cultural Jacob Salvador Zveibil – Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro, ou, simplesmente, Centro Cultural Jabaquara e a casa do Sítio da Ressaca estão intimamente ligados. Para a conservação da casa setecentista, a Secretaria Municipal de Cultura propôs a criação de um centro cultural que abrigasse bibliotecas e um espaço para promoção de atividades culturais. Assim, a casa sede do Sítio da Ressaca foi restaurada e a seu lado foi erguido o Centro Cultural. Em 1979, a casa passou a funcionar como o "Museu da Ressaca", sendo utilizada como ateliê de produtores culturais da comunidade, que lá desenvolviam trabalhos de artes plásticas e cênicas. Mas um incêndio parcial ocorrido em 1986 fez com que fosse fechada e passasse por nova restauração, concluída em 2003. Atualmente, sob supervisão do Centro Cultural, a casa está aberta ao público e oferece exposições temáticas e visitas monitoradas. A relação histórica do bairro com a cultura afro-brasileira levou a criação do Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro, que funciona no Centro Cultural como um espaço da Secretaria Municipal de Cultura voltado para a criação e a divulgação de práticas

artísticas e culturais, bem como a preservação e valorização da história dos afro-descendentes de São Paulo. "Somos o único espaço da Secretaria da Cultura voltado para a temática racial", diz José Pedro da Silva Neto, coordenador do Centro Cultural. O levantamento histórico e documental do acervo está a cargo da historiadora Glauciana de Souza. "Estamos recuperando a história do Sítio da Ressaca", explica ela. Os resultados da pesquisa deverão dar origem a um livro. Enquanto o acervo propriamente dito ainda está em processo de montagem, o Centro Cultural procura incluir em suas atividades oficinas ligadas às tradições dos africanos e de seus descendentes. "Aqui no Jabaquara temos três escolas de samba, o grupo de break mais antigo da cidade e um forte movimento voltado para o hip hop e o rock", diz José Pedro.

SE AS ÁREAS AO REDOR DO METRÔ E DO SANTUÁRIO ATRAÍRAM UMA POPULAÇÃO DE CLASSE MÉDIA, EM OUTROS LOCAIS SURGIRAM DIVERSAS FAVELAS


30 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Paulo Pampolin/Digna Imagem

Um sem-fim de embarques e desembarques: desde sua fundação, em 1936, Congonhas sempre foi movimentado. Na década de 50 já era o terceiro aeroporto mais freqüentado do mundo. Hoje, é o que registra o maior número de pousos e decolagens do País

AQUI SÃO PAULO APERTA O CINTO. E DECOLA Mais do que um marco da região do Jabaquara, o Aeroporto de Congonhas é marco da cidade de São Paulo. Desde sua inauguração, em 1936, passou por períodos de apogeu e decadência até se tornar o aeroporto brasileiro que registra o maior número de pousos e decolagens – foram 220 mil apenas em 2003. De acordo com a Infraero (Empresa de Infra-Estrutura Aeroportuária), que o administra desde 1981, diariamente passam por Congonhas 60 mil pessoas, das quais 26 mil são passageiros embarcando e desembarcando. A história de Congonhas começa nos anos 30, quando a população de São Paulo saltou dos menos de 65 mil habitantes que registrava em fins do século XIX para mais de um milhão. O transporte ferroviário já não era suficiente para atender o crescente fluxo de pessoas que iam e vinham para a capital. Os aviões pareciam ser a solução, mas havia um problema: a cidade contava com um único aeroporto, o Campo de Marte, inaugurado no bairro de Santana em 1920. Contudo, uma grande enchente ocorrida nove anos após sua inauguração e a interdição decretada em 1934 pelo governo de Getúlio Vargas tornaram necessária a construção de um novo aeroporto na cidade. A escolha do local recaiu sobre a região onde

Arquivo

ficavam as terras de Vicente de Paulo Monteiro de Barros, bisneto do visconde de Congonhas – daí a origem do nome com o qual 'novo aeroporto foi batizado. Em 1949, os arquitetos Hernani do Val Penteado e Raymond Alberto Jehlen projetaram o atual edifício do aeroporto. E no ano seguinte, o número de passageiros já superava a casa dos 850 mil anuais. A área original foi am-

pliada para atender a demanda e, no final dos anos 50, Congonhas era o terceiro aeroporto mais movimentado do mundo, perdendo apenas para Nova York e Chicago. Na década de 1960, com a chegada dos aviões a jato, como o Caravelle, Congonhas foi o primeiro aeroporto da América Latina a utilizar a tecnologia do radar. Seus freqüentadores


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

Caderno Especial 31

DO COMÉRCIO

Sérgio Castro/AE

Em sua última reforma, que durou 16 meses, o aeroporto ganhou nova área de embarque, mais ampla e confortável. A principal mudança foi a instalação de oito passarelas de embarque, que permitem a entrada direta no avião, dispensando os traslados de ônibus até o avião

Paulo Pampolin/Digna Imagem

também mudaram. Além de passageiros e funcionários, o local passou a atrair tipos diferentes de visitantes: de famílias que iam assistir aos pousos e decolagens a boêmios em busca dos bares que permaneciam abertos a noite toda. Duas décadas depois, porém, Congonhas sofreu um duro golpe: como já havia atingido sua capacidade máxima, os vôos internacionais e domésticos foram transferidos para o Aeroporto Internacional de São Paulo/Guarulhos. A desativação parecia iminente. Chegou-se até a ser cogitada sua utilização como pavilhão de feiras e exposições. Em 1986, Congonhas celebrou seu cinqüentenário em pleno declínio, operando apenas com a ponte aérea São PauloRio. A ponte aérea gerava um movimento de 1,5 milhão de passageiros por ano, mas isso não passava de um pálido reflexo da antiga fase áurea do aeroporto. Mais tarde, Congonhas obteve autorização para operar novas linhas, inclusive uma para Brasília, o que atraiu um grande número de parlamentares executivos, e os vôos internacionais foram reativados. Foi assim que, no início dos anos 90, Congonhas renasceu das cinzas. Tornou-se o aeroporto mais movimentado do País, registrando hoje uma média diária de 600 pousos e decolagens. E decidiu investir na área social. Por meio do programa Hangar do Aprendiz, a administração de Congonhas oferece cursos de informática e palestras sobre cidadania, saúde e preservação ambiental para jovens das comunidades de baixa renda da vizinhanças do aeroporto.

POR MEIO DO PR OGRAMA 'HANGAR DO APRENDIZ', A ADMINISTRAÇÃO DE CONGONHAS OFERECE CURSOS DE INFORMÁTICA E PALESTRAS SOBRE CIDADANIA, SAÚDE E PRESERVAÇÃO AMBIENTAL PARA JOVENS DAS COMUNIDADES DE BAIXA RENDA DAS VIZINHANÇAS DO AEROPORTO


32 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: Alexandre Nóbrega/Digna Imagem

ELES SÃO RUA, PRAÇA E CARAS DO BAIRRO Em 1924, Domenico Palma deixou seu país natal, a Itália, que ainda sofria os efeitos devastadores da Primeira Guerra Mundial, em busca de uma vida melhor do outro lado do oceano. Dotado de espírito empreendedor, viu uma boa oportunidade de negócio numa região um tanto isolada da cidade de São Paulo, repleta de sítios e olarias. E logo instalou-se por lá, abrindo um armazém para abastecer os funcionários das olarias. Com isso, Palma e seus descendentes inscreveram seus nomes na história do Jabaquara como empreendedores pioneiros da região. Hoje, a rua na qual se localiza o terreno onde se erguia o antigo armazém dos Palma, e onde ainda se situam as residências da família, leva o nome de Domenico Palma. Mais adiante está a Praça Luigi Palma, em homenagem a um dos filhos do imigrante italiano. Nascido em 1931, no Jabaquara, Aniello Palma relembra o tempo em que ele e os irmãos brincavam nos arredores do armazém do pai. Em suas memórias, um Jabaquara muito diferente ressurge. "Nós costumávamos caçar rãs nas poças d’água que se formavam nos lugares em que as olarias extraíam o barro para os tijolos", conta ele. E suas lembranças vagueiam por tempos distantes, quando o local, onde hoje se situa o Aeroporto de Congonhas, era uma vasta plantação de chá e as crianças nadavam em lagos que não mais existem. "Para estudar eu tinha que ir até o Brooklin, a pé", diz ele. "Eram seis quilômetros e meio para ir e outros seis quilômetros e meio para voltar." A diversão em família também exigia uma certa disposição física. "Íamos a pé e descalços para Santo Amaro, onde acontecia a festa do Divino Espírito Santo", conta. Com uma história de vida que se confunde com a do bairro, ele acompanhou a construção do Aeroporto de Congonhas e as primeiras perfurações do metrô. "Jamais sairia daqui. Me orgulho muito de ser paulistano nascido no Jabaquara", afirma. A idade e a aposentaria não arrefeceram o espírito empreendedor que herdou do pai. Aos 73 anos, dedica-se à comercialização da cachaça que produz em seu próprio alambique e é representante de uma marca de café. "Moro no mesmo terreno que meu pai comprou e pretendo morrer aqui. Para mim não existe lugar melhor."

x

Cláudio Henrique Thies, dono da Papelaria Magistral, é um dos tantos comerciantes que mudaram seu negócio para o Jabaquara atraídos pelo grande crescimento da região

TERRENOS LOTEADOS

Em 1946, o general Eurico Gaspar Dutra era o presidente do País, a Assembléia Constituinte reunia-se para elaborar uma nova constituição e o jovem Osvaldo Gonçalves Xavier, na época com 17 anos, e sua família, mudavam-se da Vila Clementino para uma região remota de São Paulo, onde não havia casas nem comércio e a principal via de acesso era uma estrada de terra que mais tarde daria origem a uma das principais avenidas do Jabaquara, a Armando de Arruda Pereira. A família Xavier foi uma das primeiras a se instalar nos terrenos que começavam a ser loteados no bairro. "Cada família comprava um lote e construía um barraco. Moramos durante muitos anos no barracão de zinco que meu pai construiu", relembra Osvaldo. Eram tempos difíceis, nos quais não havia nem luz nem asfalto. "Mas também não havia

bandidos", faz questão de acrescentar, com uma ponta de nostalgia. Para chegar a Americanópolis, na região do Jabaquara, a única opção era o ônibus que partia da Praça da Árvore. "Mas o último saia às oito. Quem perdesse o ônibus tinha que passar a noite por lá", relembra. Foi no Jabaquara que Osvaldo conheceu Leonina, com quem é casado há 50 anos, e foi lá que o casal criou seus onze filhos. Hoje, ele é um funcionário público aposentado. Mas faz questão de dar sua contribuição à comunidade em que vive: há oito anos atua no Conselho Municipal do Idoso como representante do Jabaquara. É também secretário do Clube Recreativo Nova Aurora, instituição sem fins lucrativos voltada para a terceira idade. "Luto pela saúde e pela educação dos idosos", diz, empolgando-se ao mencionar o curso de alfabetização para idosos que o Clube Nova Aurora acaba de instituir.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

A motivação é suficiente para fazê-lo trabalhar sem remuneração e a percorrer a pé , todos os dias, um percurso de três quilômetros até a estação Jabaquara do Metrô. JORNAL DA COMUNIDADE

Rosa Maria Gomes de Oliveira, a Rosa do jornal Jabaquara Em Notícias, é uma referência do bairro. Quem quer informações sobre a história da região, sobre seus moradores ou sobre as lutas da comunidade, basta falar com ela. Buracos na rua, poda de árvores, enfim, reivindicações das mais diversas são diariamente levadas à redação do Jabaquara Em Notícias, fundado há 13 anos por essa ex-publicitária que virou jornalista. "Muita gente vai ao jornal em vez de ir à subprefeitura. Tentamos solucionar os problemas dos leitores", diz. Nascida e criada no Jabaquara, Rosa des-

D IÁRIO

Caderno Especial 33

DO COMÉRCIO

cende de uma família que está entre as pioneiras da região. "Meu pai mora aqui há 58 anos. Ele veio para construir as casas da Cidade Vargas", conta ela. Nas lembranças de sua infância e juventude, transcorridas entre os anos 50 e 70, emerge um Jabaquara diferente. "Naquela época havia liberdade de ser criança, de brincar na rua com carrinho de rolimã e soltar pipas", recorda, evocando cenas inimagináveis nos dias de hoje: "Minha mãe lavava roupas na nascente de um córrego, que ficava onde hoje está a Imigrantes. Eu e as outras crianças costumávamos nos balançar nos cipós sobre o córrego". Para Rosa, o crescimento do bairro foi desordenado. "Temos áreas nobres, como o Jardim Aeroporto e a Vila Mascote, mas somos vizinhos de comunidades carentes. Temos um número muito grande de favelas", diz. A atuação junto à comunidade é o principal objetivo do jornal que

ela fundou. "Há córregos que são verdadeiros esgotos a céu aberto e que geram problemas de saúde. Já fomos o bairro mais infectado pela dengue. Mas graças às campanhas de conscientização e à mobilização da comunidade, essa situação mudou". O crescimento do bairro atraiu para o Jabaquara comerciantes que antes atuavam em outra região. É o caso de Cláudio Henrique Thies, proprietário da Papelaria Magistral. Fundada por seu pai, um descendente de alemães que instalou seu comércio no Centro da cidade há 34 anos, a papelaria transferiu-se para o Jabaquara, onde já está há 20 anos. "O bairro vem crescendo nos últimos anos. No início, o varejo ainda era fraco, mas depois a região melhorou", comenta ele. E a papelaria, que começou como um serviço de entrega de material de escritório, hoje está entre as mais tradicionais do bairro.

Fotos: Alexandre Nóbrega/Digna Imagem

MORO NO MESMO TERRENO QUE MEU PAI COMPROU E PRETENDO MORRER AQUI. PARA MIM NÃO EXISTE LUGAR MELHOR" ANIELLO PALMA, FILHO DE UM DOS PRIMEIROS COMERCIANTES DO BAIRRO, O ITALIANO DOMENICO PALMA, QUE ABRIU UM ARMAZÉM NA DÉCADA DE 20 NO JABAQUARA

x

Osvaldo Gonçalves Xavier vem de uma das primeiras famílias da região. Morador do bairro a vida toda, é presidente do Clube Recreativo Nova Aurora (ao lado), instituição voltada a atividades para a terceira idade


34 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

A CAÇULA DA ACSP, ENTRE O COMÉRCIO E O PODER Com 880 associados, a Distrital Jabaquara é a mais nova das distritais da Associação Comercial de São Paulo. Criada há sete anos, começou como um desmembramento das distritais Sudeste e Santo Amaro. Sua diretora superintendente é Victoria Ayroza Saracchi, proprietária da Prima Escola Montessori de São Paulo e reeleita para seu segundo mandato no comando da ACSP. "Somos o elo de comunicação entre o comerciante e os poderes públicos", resume Victoria. A cada 15 dias, a distrital promove palestras para seus associados. "Nossas palestras dividem-se em duas categorias: as que visam o desenvolvimento pessoal e as que visam o desenvolvimento profissional. Tentamos dar ao empresário ferramentas para que ele consiga sobreviver", explica a diretora. Por ser a caçula da ACSP, o grande desafio da distrital Jabaquara consiste em implantar sólidas raízes na região e conquistar a confiança da comunidade. "Estamos sempre dispostos a participar de tudo o que acontece com a comunidade. A Associação Comercial não serve apenas para consultas de cheques. Somos os represen-

tantes do pequeno e do micro empresário em todas as suas lutas", enfatiza. Um exemplo dessas lutas foi a batalha pelo imposto simples, que estabelece, em vez do INSS, PIS e Cofins, uma taxação única para estabelecimentos que faturem até R$ 1.2 milhão por ano. "Mas o valor já está defasado. Não é possível conciliar esse teto com o crescimento do negócio. Precisamos batalhar para que o limite seja expandido", diz a superintendente. Outra preocupação da Distrital Jabaquara são os altos custos dos cartões de crédito. "Queremos estabelecer parcerias com as administradoras para que os cartões de crédito possam oferecer algum tipo de vantagem aos pequenos e micro empresários". Sempre atenta às necessidades e anseios de seus associados, a distrital também se prontifica a atuar junto à comunidade. Em parceria com a paróquia São José, a ACSP participara da Feira de Saúde do bairro. "É uma oportunidade para que a população carente local possa fazer exames de saúde e cortes de cabelo gratuitos", explica Victoria.

ESTAMOS SEMPRE DISPOSTOS A PARTICIPAR DE TUDO O QUE ACONTECE COM A COMUNIDADE. A ASSOCIAÇÃO COMERCIAL NÃO SERVE APENAS PARA CONSULTAS DE CHEQUES" VICTORIA AYROZA SARACCHI, SUPERINTENDENTE DA DISTRITAL JABAQUARA

Newton Santos/Digna Imagem

2004


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 35

SANTUÁRIO PARA JUDAS, O PRIMO DE JESUS Alexandre Nóbrega/Digna Imagem

Um habitante da Palestina que foi discípulo de Cristo e morreu trucidado ao pregar o Evangelho na Mesopotâmia tornou-se, quase dois milênios depois, o segundo santo mais popular do Brasil, perdendo apenas para a padroeira Nossa Senhora Aparecida. Essa preferência popular, que consta em pesquisa feita pelo IBGE, é apontada pelo padre Juarez de Castro, do Santuário São Judas Tadeu, como um dos motivos pelos quais a festa do santo, celebrada dia 28 de outubro, é capaz de atrair uma multidão de meio milhão de pessoas à igreja a ele dedicada. Mas por que o santo é tão popular no Brasil? "São Judas era primo de Jesus. As pessoas acreditam que o fato de ser da família de Cristo o torna um intercessor mais poderoso", aventura-se a explicar o padre. O fato é que os números envolvendo o santuário localizado na Avenida Jabaquara impressionam. No dia 28 de cada mês, passam por lá algo em torno de 80 mil pessoas. Em 28 de outubro, o número sobe para cerca de 500 mil, os fiéis aguardam uma média de seis horas na fila que chega a dar oito voltas no quarteirão e o trânsito na avenida é paralisado. NuMabel Feres/AE

A pequena paróquia, fundada em 1940 e confiada aos cuidados dos Sacerdotes do Coração de Jesus, transformou-se num dos santuários mais visitados do Brasil

Reprodução


36 Caderno Especial

D IÁRIO

S ÃO PAU L O ,

DO COMÉRCIO

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: Alexandre Nóbrega/Digna Imagem

Arquivo/AE

A devoção a São Judas Tadeu é tanta que para celebrar o dia do segundo santo mais popular do País, em 28 de outubro, quase meio milhão de pessoas visitam a igreja dedicada a ele. 'As pessoas acreditam que o fato de ser da família de Cristo o torna um intercessor mais poderoso', explica o padre Juarez de Castro

ma verdadeira maratona da fé, as multidões são atendidas por mil voluntários e 20 padres, que realizam missas de hora em hora, bênçãos a cada 15 minutos e escutam confissões o dia todo. Números dessa dimensão elevaram a igreja à condição de santuário. "O nome santuário só é dado se a igreja tiver um grande fluxo de pessoas, além de realizar todos os serviços básicos da igreja. Somos o segundo maior santuário do Brasil. Perdemos apenas para a Basílica de Aparecida", diz o padre Juarez. Dificilmente o então arcebispo de São Paulo, Dom José Gaspar de Afonso e Silva, poderia ter imaginado tudo isso quando, em janeiro de 1940, expediu um decreto que autorizava a criação da Paróquia de São Judas Tadeu Apóstolo. Um modesto salão foi alugado e transformado em capela. O sino que chamava os fiéis para as missas ficava pendurado nos galhos de uma árvore próxima. O precário templo no Jabaquara

foi confiado aos cuidados dos Sacerdotes do Coração de Jesus, congregação fundada na França, em 1878, pelo padre João Leão Dehon (razão pela qual seus membros também são conhecidos como dehonianos). FOLHETOS DO SANTO

O primeiro pároco da nova paróquia, padre João Buescher, não se abateu ante as dificuldades: mandou imprimir folhetos com a imagem e a história do santo, na época praticamente desconhecido no Brasil, e pôs-se a distribui-los pessoalmente pelas ruas, ao mesmo tempo em que pedia doações para a construção de uma igreja. Em pouco tempo, seus esforços deram resultados. Uma nova igreja foi construída e o santo ganhou um número cada vez maior de devotos. Como o afluxo de fiéis não parava de crescer, em 1963 foi necessário construir uma igreja maior ao lado da antiga – que existe até hoje.

O santuário abriga uma curiosa relíquia. Trata-se de um fragmento de osso que seria do próprio santo. A relíquia, autenticada pelo Vaticano, chegou à igreja poucos anos após sua construção, por intermédio de um padre que o trouxe da Itália, onde serviu como capelão militar durante a Segunda Guerra Mundial. "Houve um surto de falsas relíquias durante a Idade Média, e há muita gente que contesta isso", explica o padre Juarez. "De qualquer forma, não fazemos muito alarde da relíquia porque a Igreja Católica é cristocêntrica, isto é, nosso foco principal é Cristo". Desde sua fundação, o santuário destaca-se por sua forte atuação junto à comunidade. As diversas obras sociais mantidas pelos sacerdotes dehonianos incluem, além de creches, atividades para a terceira idade e distribuição de cestas básicas, atendimento psicológico e massagens a preços populares.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 37 Fotos: César Diniz/Digna Imagem

A bênção, mãe de Oxalá e do Jabaquara Ao andar pelas ruas do Jabaquara, essa senhora de olhar penetrante e fisionomia afável é constantemente interpelada por pessoas que mal conhece. Algumas a cumprimentam, outras lhe pedem bênção e muitas a agradecem por coisas que ela nem mais se lembra de ter feito, mas que afetaram de forma decisiva suas vidas. "Uma vez um rapaz me parou na rua e me agradeceu por tê-lo ajudado a sair da marginalidade. Eu nem sabia quem ele era", conta. O rapaz fora, na infância, um dos meninos que costumavam bater carteiras nos arredores da estação Jabaquara , e que recuperou-se graças a um programa criado para tirar esses menores das ruas. A mulher, criadora desse e de inúmeros outros projetos sociais, é Sylvia Egydio, uma paulistana nascida em 1938 que, sob o nome de Mãe Sylvia de Oxalá, tornaria-se conhecida muito além dos limites do bairro do Jabaquara, onde, desde 1985, dirige o Axé Ilê Oba – o maior terreiro de candomblé da América Latina e único no Estado que foi tombado pelo Condephaat. A trajetória de Mãe Sylvia contradiz todos os preconceitos e estereótipos que ainda persistem em relação ao milenar culto dos orixás, que chegou ao Brasil com os escravos. Ex-enfermeira capaz de fazer acuradas previsões no jogo de búzios, também é formada em administração de empresas e ostenta um título de doutorado em comércio exterior e relações internacionais. Líder espiritual de um terreiro de quatro mil metros quadrados, pelo qual passam mensalmente mais de 20 mil pessoas, é coordenadora do primeiro Seminário Teológico de Candomblé, que conta com cerca de 1.530 sacerdotes espalhados pelo Brasil e pelo exterior. Integrante ativa de uma ONG voltada para questões ambientais e aguerrida defensora dos direitos da população afro-brasileira, tem trânsito livre

Mãe Sylvia de Oxalá: líder espiritual do maior terreiro de candomblé da América Latina

nos mais altos escalões do poder e já chegou até a discursar no Senado sobre esses temas. Os diversos projetos sociais que coordena fizeram com que o Axé Ilê Obá fosse oficialmente reconhecido como uma instituição de utilidade pública e renderam à Mãe Sylvia uma coleção de homenagens e títulos, concedidos por países que vão da Rússia à Nigéria. Nada disso perturba a afetuosa disposição com que recebe todos que a procuram no terreiro, seus "filhos e filhas", conforme os chama. Mas Sylvia percorreu um longo caminho até reencontrar suas raízes e tornar-se a "mãe" espiritual de tantos "filhos". Como seu avô materno rejeitava o candomblé por medo de ser marginalizado pela população católica, a pequena Sylvia foi batizada e passou a freqüentar igrejas. Mais tarde, traumatizada com a morte da mãe, Sylvia, mal saída da casa dos 30, sofreu um

derrame e ficou paralisada. Só voltou a andar novamente graças à intervenção do tio, Caio Egydio de Souza Aranha, o babalorixá Caio Oba Inam. Conhecido como Pai Caio, foi ele quem fundou o Axé Ilê Obá em meados dos anos cinqüenta, oficializando-o em 1975. No terreiro, em meio a belas imagens dos orixás, um crucifixo católico e estátuas de um preto velho e de um índio lembram um tempo não muito distante, em que o ancestral culto africano era impedido de ser livremente praticado, forçando seus adeptos a recorrer a estratagemas para que pudessem expressar sua fé. "O candomblé era visto como bruxaria e meu tio chegou até a ser preso por isso. Então lhe disseram para colocar um crucifixo no terreiro, para tentar pôr fim à perseguição", conta Sylvia. A mesma explicação vale para o preto velho e o índio, elementos da umbanda, mais facilmente aceitos. Com a morte de Caio, Sylvia assumiu a direção do terreiro, do qual é a yalorixá, a sacerdotisa maior. Como se não lhe bastassem todas as atividades a que se dedica, Mãe Sylvia de Oxalá está empenhada em um ambicioso projeto, a criação do Instituto Cultural Baobá, que tem como objetivo promover um amplo resgate da história, da cultura e dos valores africanos. "Nossa meta é reconstruir a identidade perdida, bem como a história não revelada", resume.


38 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: Paulo Pampolin/Digna Imagem

REVOLUÇÃO CULTURAL NA PIOR FEBEM Quem passa pelo Centro de Cultura, Esporte e Lazer situado no Km 11,5 da Rodovia dos Imigrantes, no bairro do Jabaquara, e vê crianças e adolescentes praticando skate ou natação, ou tendo aulas de teatro ou artes plásticas, custa a crer que se trata do mesmo lugar onde, há poucos anos, garotos amotinados provocaram cenas de grotesca violência, que culminaram com o fechamento da unidade da Febem instalada na Imigrantes por ordem do então governador Mário Covas. Os internos foram transferidos, o pavilhão no qual eram mantidos em reclusão foi demolido e o local ganhou uma nova cara: instalações foram restauradas e construídas piscina, quadras e pistas esportivas. Sai de cena a unidade da Febem de triste memória e surge em seu lugar o Centro de Esporte, Cultura e Lazer (CECL), iniciativa conjunta de diversas secretarias estaduais que visa oferecer à população local opções de lazer e educação. Remover o estigma que marca essa região não é tarefa das mais fáceis. Como se não bastassem as traumáticas imagens de violência registradas pela televisão durante as inúmeras rebeliões na antiga Febem – que incluíram até cenas de assassinato e mutilação –, a área situa-se junto ao Parque Estadual das Fontes do Ipiranga. Mais conhecido como Parque do Estado, trata-se de uma grande reserva de Mata Atlântica inserida no espaço urbano. Contudo, ao se mencionar seu nome, não é essa a lembrança que vem à mente da população, mas outra, muito

A antiga unidade da Febem deu lugar ao Centro de Cultura, Esporte e Lazer que oferece cursos e espaços lúdicos

mais sinistra. Foi nas densas matas do parque que, em meados dos anos 90, um assassino serial conhecido pela alcunha de Maníaco do Parque matou suas vítimas. "No entorno do parque vivem 935 mil pessoas. Mais de 20 mil vivem em focos de exclusão social, em favelas", diz Mauro Di Domênico Leite, coordenador de projetos do CECL. Apenas no Jabaquara existem 15 grandes favelas, com elevado índice populacional. "Criamos um espaço onde a população tem oportunidade de praticar esportes, expressar-se através da cultura e praticar a cidadania. Com certeza a criminalidade e a violência na região vão diminuir", aposta Leite. Semanalmente, cerca de 2.800 pessoas, entre

crianças, adolescentes, adultos e idosos, passam pelas instalações do CECL, cuja área social, cultural e esportiva é administrada por uma instituição conveniada, a Associação Evangélica Beneficente (AEB). Além de diversas atividades sócio-educativas, o público tem à disposição cursos de música, dança, teatro e artes plásticas, brinquedoteca e oficinas profissionalizantes. "A população passou a dar mais valor ao espaço", afirma Leite. Inaugurado em 2001, o CECL ainda está em fase de implantação. "A primeira etapa, que foi a construção da quadra de futebol, da pista de skate e da piscina, já está pronta. Mas ainda vamos crescer mais", avisa animado o coordenador de projetos.

X

Mauro Leite, coordenador do centro: quase 3 mil pessoas passam por lá toda semana

X

Na primeira fase do projeto foram construídas pista de skate e quadra de futebol


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 39

SUDESTE Reprodução

Famoso por suas telas com bandeirinhas, Alfredo Volpi retratou, neste quadro de 1920 batizado de 'Feira de Cambuci', o bairro em que morou desde que chegou da Itália

Textos de Elizabeth Maggio


40 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

A Vila de Maria, Ana e Mariana Vidal Cavalcante/AE

O Matadouro Municipal de São Paulo, inaugurado em 1881, deu lugar à Cinemateca Brasileira – que abriga a maior coleção de filmes da América Latina

D E SDE 1600

J Á EX IS TIA M RE GIS TROS D E MO RA DOR ES E S PA R S O S N A Á R E A H O J E C O N H E C I D A C O M O V I L A M AR IA NA . E M 1782, O G OV ER NA DO R F RA NC IS CO DA C U N H A M E N E S E S C O N C E D E U A L Á Z A RO R O D R I G U E S P IQU E S U M A S E S MA R IA QU E IA D O R I AC H O DO I PI R A NG A AT É A E ST RA DA D O C URS IN O . D ESD E E NTÃ O , A AN TI GA SESMARIA GANHOU DIVERSOS NOMES , ALGUNS CURIOSOS COMO M EIO C AMINHO DE C A R RO ( POR E S TA R NA M E TA D E DA E ST RA DA QU E IA DA L I BE RDAD E AO JA BAQUAR A ) O U T RO S UM TA N TO LÚGUBRES - COMO C RU Z DA S A LMAS , R EF ER ÊN C IA À C RU Z QU E M AR CAVA O L OC AL O ND E D OI S T RO P E I RO S FORAM A S S A S S I NA D O S POR LADRÕES .

Há controvérsias quanto a origem do nome Vila Mariana. Algumas fontes o atribuem ao vereador e tenente-coronel da Guarda Nacional Carlos Petit. Fixando-se na região em 1855, Petit abriu a primeira escola do bairro e o teria batizado ao reunir os nomes de sua mulher, Maria, e de sua mãe, Ana. Outras fontes afirmam que o nome é uma homenagem que o engenheiro Alberto Kuhlman prestou à sua mulher, Mariana. Kuhlman era proprietário da Companhia Carris de Ferro, responsável pela construção, entre os anos de 1883 e 1886, de uma estrada de ferro que ia da Liberdade a Santo Amaro, em substituição ao antigo Caminho do Carro. A construção de várias igrejas e escolas ajudou a fixar novos moradores. Em 1887, foi inaugurado o Matadouro Municipal de São


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

Paulo, que funcionou até 1927. Tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), o prédio abriga desde 1988 a Cinemateca Brasileira, que possui a maior coleção de filmes da América Latina, além do acervo da extinta TV Tupi. Outro importante referencial do bairro é a casa modernista, primeira do gênero construída na cidade. Projetada pelo arquiteto russo Gregori Warchavchik, a residência situada na Rua Santa Cruz foi erguida em 1927. Suas linhas arrojadas destacavam-se no panorama arquitetônico paulistano, levando a população da época a apelida-la de "caixa d'água". A chegada do metrô, no final dos anos 70, alterou o perfil da região. O comércio proliferou-se, assim como os edifícios residenciais. Hoje, seus habitantes são predominantemente de classe média e classe média alta. A região é servida por várias escolas e hospitais, entre eles o Hospital São Paulo, da Universidade Federal de São Paulo (antiga Escola Paulista de Medicina, fundada em 1936) e o Hospital dos Defeitos da Face, inaugurado em 1966, que atende cerca de 30 mil pessoas por ano. INSTITUTO BIOLÓGICO

Não se pode falar em Vila Mariana sem mencionar o Instituto Biológico. E não se pode mencionar o Instituto Biológico sem se

Caderno Especial 41

DO COMÉRCIO

falar da broca do café, praga que assolou os cafezais paulistas na década de 20. Em 1924, para lidar com o problema que ameaçava o principal produto de exportação do País, foi criada a Comissão de Estudo e Debelação da Praga Cafeeira pelo então secretário da Agricultura, Gabriel Ribeiro dos Santos. A mobilização em torno da erradicação da broca incentivou a aprovação do projeto de criação do Instituto de Biologia e Defesa Agrícola e Animal, fundado em 1927 para estudar e controlar pragas em plantações. "O trabalho do Instituto permanece mais atual do que nunca", diz seu diretor, o engenheiro agrônomo Antonio Batista Filho. E, de fato, boa parte dos alimentos consumidos pelos paulistas tem alguma relação com o instituto – há quase nove décadas instalado no bairro de Vila Mariana. É lá que são pesquisados métodos de controle biológico de pragas, e é ali também que amostras dos vegetais que vão para a mesa da população são testadas para avaliar se o nível de pesticida que elas contêm estão dentro dos padrões exigidos por lei. A prevenção e controles de doenças dos animais são outras atribuições da instituição científica, que treina veterinários, além de produzir antígenos – testes para detecção de enfermidades nos rebanhos do Estado. Essenciais para a saúde da população, essas atividades também são importantes para o desempenho econômico do País. Basta ver um exemplo citado por Antonio Batista Filho. "O custo de se tratar

Arquivo

ANA ROSA

Engana-se quem pensa que Ana Rosa é um bairro. Na verdade, essa é a denominação do largo no qual se situa a estação de metrô homônima. O nome é uma homenagem a Ana Rosa de Araújo Galvão, rica herdeira que, ao morrer, em 1872, estipulou em seu testamento que sua fortuna deveria ser empregada na criação de uma instituição que cuidasse de crianças abandonadas. Assim foi fundada a Sociedade Protetora da Infância Desvalida, conhecida inicialmente como Instituto Dona Ana Rosa, tinha sede onde hoje funciona o metrô.

A bela casa onde funcionava o Instituto Dona Ana Rosa hoje dá lugar à estação do metrô


42 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Reprodução

um canavial com inseticidas é, em média, R$ 160 por hectare. Com o método de controle biológico desenvolvido pelo instituto, o custo cai para R$ 40 por hectare". Outro aspecto de grande relevância econômica é a exportação. "Para exportar alimentos é necessário apresentar certificados de sanidade, atestando que o que você exporta está livre de pragas e doenças. Problemas nessa área representam prejuízos para o País", explica Batista Filho. Além de fornecer os certificados, o instituto atua junto a agricultores e criadores, orientado-os não apenas em relação aos cuidados com plantações e rebanhos, mas também quanto a medidas que visam o equilíbrio ecológico e a proteção ambiental. Vinculado à Secretária de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, o Instituto Biológico conta atualmente com 150 projetos em d e s e nvo l v i m e n t o . A SUÍÇA FICA LOGO ALI, EM MOEMA

E se Vila Mariana é o bairro de cinemas e institutos de pesquisa, e moradores de classe média, Moema é a região dos condomínios de luxo e da vida noturna agitada. Enfim, o vizinho elegante do Sudeste.

CAMBUCI

Há duas versões para a origem do nome Cambuci, bairro no qual o pintor Alfredo Volpi morou desde que chegou da Itália, no ano de 1897, com pouco mais de um ano de idade, até sua morte, ocorrida em 1988. Segundo uma das versões, cambuci vem do tupi-guarani e significa pote (o local já foi chamado de Largo do Pote). De acordo com outra versão, cambuci é o nome de uma árvore que era muito comum na região (um exemplar da espécie ainda pode ser vista no atual Largo do Cambuci). É nesse bairro que se situa uma das ruas mais famosas da São Paulo antiga, a Lavapés. Caminho para Santos, a rua virava um verdadeiro lamaçal em época de chuvas, obrigando os viajantes a pararem junto a um pequeno córrego para lavar os pés antes de entrarem na igreja local – daí o nome da rua.

Dos anos 50, tela de Volpi – pintor italiano que veio pequeno ao Brasil e viveu a vida toda no Cambuci


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 43 Ana do Val/AE

ulo

Pa AE

rt/

be

Lie

"Suíça brasileira" e "bairro com a melhor qualidade de vida de São Paulo" são expressões com freqüência usadas para definir Moema. Não é para menos. Juntamente com os Jardins, Moema é o bairro que apresenta a maior concentração de moradores pertencentes à classe A e também os de maior nível de escolaridade. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o potencial de consumo dos habitantes da região supera o de cidades inteiras, como Jundiaí e Bauru, ou até mesmo de Estados, como Acre, Amapá e Tocantins – uma região com renda per capita 130% maior do que a média registrada em todo o estado de São Paulo. Assim, morar nesse bairro de vida noturna agitada, terrenos altamente valorizados, luxuosos edifícios residenciais e ampla rede de serviços tornou-se uma espécie de sonho de consumo de boa parte dos paulistanos de classe média. Com certeza nada disso passava pela cabeça de Joaquim Pedro Celestino, que no século XIX era o proprietário da região onde hoje se ergue o bairro. O desenvolvimento da área teve início entre os anos de 1883 e 1886, com a construção dos trilhos do bonde que unia São Paulo a Santo Amaro – resquícios desses trilhos ainda podem ser encontrados em alguns cruzamentos da Avenida Ibirapuera. Uma das paradas do bonde chamava-se Moema, corruptela da expressão tupi-guarani mo-em. Há divergências quanto ao seu significado. Para alguns autores, o termo pode ser traduzido como aurora. Mas em seu livro Bairros Paulistanos de A a Z, Levino Ponciano diz que a tradução literal seria mentira ou falsidade. Seja como for, graças ao frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), o nome adquiriu conotações mais poéticas. Em seu épico Ca ra m ur u , Moema é o nome da bela índia que se afoga ao nadar atrás do navio no qual partia seu amado, Diogo Álvares Correia. Em 1913, o engenheiro Fernando Arens Júnior comprou uma porção de terra de 182 alqueires na região, conhecida como Sítio da Traição, situado entre os córregos Uberaba e Traição. Dois anos após a aquisição, a Companhia Territorial Paulista, pertencente a Arens, começou a demarcação e o loteamento do terreno. Co-

A construção, em 1933, da primeira igreja na região, a de Nossa Senhora da Aparecida, trouxe desenvolvimento para o bairro

mo havia estudado durante muitos anos nos Estados Unidos, o engenheiro decidiu homenagear o país dando à região o nome de uma de suas cidades, Indianápolis. Mas seus moradores não se acostumavam e usavam o nome da parada de bonde, Moema, para se referirem ao local. LEVAS DE IMIGRANTES

Como sempre acontecia naqueles tempos, foi a construção da primeira igreja, em 1933, a Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, que impulsionou o desenvolvimento do bairro. Na mesma época chegaram novas levas de imigrantes italianos e alemães para trabalhar nas fábricas têxteis recém-instaladas na região. Muitos abriram pizzarias e restaurantes, al-


44 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: Arquivo

"Naquele tempo, Moema não era um bairro nobre. Era um bairro fabril, um arrabalde", diz ela, acrescentando: "Mas sempre gostei de morar aqui". Lygia acompanhou de perto a metamorfose de Moema, de arrabalde fabril para endereço sofisticado da classe média. "As mudanças começaram de mansinho, entre 68 e 69. As construtoras descobriram Moema porque aqui era uma área plana, com terrenos grandes e baratos", lembra. COMÉRCIO E SHOPPING

A chegada do Shopping Ibirapuera alavancou o comércio local e mudou o perfil da região

guns dos quais sobrevivem até hoje. É o caso da choperia inaugurada em 1937 pelo austríaco Joan Sehn, tida como a mais antiga da cidade. O bairro só começou a ser asfaltado na década de 1950, na mesma época em que uma de suas mais tradicionais moradoras mudou-se para lá. Em 1954, Lygia Horta deixou a casa de sua família na Aclimação e foi morar com o marido em Moema. "Viemos para cá porque tínhamos acabado de nos casar, e aqui era mais barato", lembra Lygia. Suas recordações daquelas épocas trazem à tona um bairro muito diferente da atual "Suíça brasileira". "A iluminação era precária e não havia água encanada. As casas tinham poços, mas como Moema é uma área de brejo, a água dos poços era salobra. Eu tinha que lavar roupa fora do bairro, senão ficava tudo amarelo", recorda.

E os comerciantes também descobriram Moema. No ano de 1976, a inauguração do Shopping Ibirapuera contribuiu para mudar drasticamente o perfil da região. Tantas mudanças assim levaram os moradores mais antigos a se organizarem para zelar pela qualidade de vida no seu bairro, fundando a Associação dos Moradores e Amigos de Moema (Amam), há dez anos presidida pela moradora Lygia Horta. A primeira reivindicação da Amam foi conquistada em 1987, ano de sua fundação: o nome Moema foi oficializado pelo prefeito Jânio Quadros. O bairro, que na época era limitado pelas avenidas Afonso Brás, Santo Amaro, Bandeirantes, Moreira Guimarães, Indianápolis e República do Líbano, foi expandido, em 1991, pela então prefeita Luiza Erundina, passando a abranger também o Parque do Ibirapuera, entre outras áreas. "Moema é uma cidade completa dentro da megalópole que é São Paulo. Aqui tem tudo, não falta nada", orgulha-se Lygia. Bem, quase tudo. Uma das principais reivindicações da Amam frente à Prefeitura é a criação de uma creche no bairro. "Dizem que Moema é lugar de rico, que não precisa de creche. Mas não é verdade. Imagine a quantidade de empregadas domésticas e funcionários de lojas que vêm trabalhar aqui e não têm onde deixar os filhos", observa. A desenfreada especulação imobiliária e a intensa agitação noturna também estão na mira da combativa Amam. O imóvel em que Lygia mora é uma das poucas casas da região que não foram transformadas em restaurantes ou derrubadas para dar lugar a edifícios de alto padrão. Resiste bravamente, cercada por prédios que lhe roubaram a luz e a privacidade. A Amam está sempre atenta às alterações na lei de zoneamento, mas é uma batalha sem tréguas. Quase que diariamente, novos bares, lojas e restaurantes surgem em trechos que antes eram estritamente residenciais. E a convivência com a nova vizinhança nem sempre é pacífica. "Hoje, um bar pode funcionar 24 horas por dia. Antes, era até uma hora da manhã. Estamos reivindicando que a lei volte a ser como era", diz. Morar na "Suíça brasileira" tem seu preço. Seus moradores, porém, continuam fiéis ao bairro. "Minha vida é aqui. Só saio de Moema para fazer visitas", conclui Lygia.


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 45 Fotos: Arquivo e Newton Santos/Digna Imagem

ACSP ENTRE ESCOLAS, HOSPITAIS E COMÉRCIO Um comércio variado e uma ampla rede de escolas e hospitais caracterizam a região formada pelos bairros de Vila Mariana, Moema, Paraíso e adjacências. Portanto, a história dos empreendedores locais não poderia excluir instituições como o Hospital Santa Cruz, o Colégio Arquidiocesano e a entidade que apóia todos esses empreendimentos: a Distrital Ipiranga da Associação Comercial de São Paulo (ACSP). A Sociedade Brasileira e Japonesa de Beneficência Santa Cruz, ou, simplesmente, Hospital Santa Cruz é uma das iniciativas pioneiras. “O terreno foi adquirido em 1926, e a pedra fundamental foi colocada em 1933”, conta o presidente do hospital, o professor de economia Paulo Yokota. “O hospital não é só para a colônia japonesa, sempre atendeu a todos”. No entanto, foram membros da colônia japonesa que, no início, angariaram recursos para a construção do hospital. “Até o imperador Hiroito enviou uma doação”, diz Yokota. Quando o Santa Cruz abriu as portas, o bairro contava com alguns raros prédios e algumas casas esparsas. “Uma vez, na década de 40, quando eu tinha 5 ou 6 anos, cortei a testa e meu pai me levou ao Santa Cruz. Mas não foi fácil”, lembra ele. Hoje, o Santa Cruz é um hospital geral, com destaque para a área oftalmológica. “Somos o maior hospital oftalmológico da América Latina. Também somos especialistas em procedimentos de alta complexidade, como transplantes renais e de medula”. Fundado em 1858, o Colégio Arquidiocesano chamava-se, na época, Diocesano, ficava na Avenida Tiradentes e era administrado por freis capuchinhos. Tradicional escola paulistana, de suas salas de aula saíram dois presidentes da República: Wenceslau Brás e Jânio Quadros. Em 1908, o colégio passou para as mãos dos irmãos maristas e, em 1935, transferiu-se para um prédio recém-construído na Vila Mariana, endereço que ocupa até hoje. Ao longo desses anos, o Arquidiocesano participou ativamente da história de São Paulo. No início do século XX, como não havia hospitais suficientes para atender todas as vítimas da epidemia de gripe espanhola, as aulas foram suspensas e o colégio transformou-se em hospital, sob o comando do médico Emílio Ribas. Du-

Localizado no mesmo prédio na Vila Mariana desde 1935, o Colégio Arquidiocesano é uma tradicional instituição de ensino. De seu quadro de alunos já saíram dois presidentes da República. 'Procuramos abrir ao máximo o leque de informação, aprendizagem e incentivo à cultura', diz o diretor Paulo Alvez Ferraz (abaixo)

rante a Revolução Paulista de 24, a escola serviu de quartel-general para as tropas revoltosas, comandadas pelo general Isidoro Dias Lopes. DO COLÉGIO PARA A FACULDADE

Hoje, o Arquidiocesano conta com 3.500 alunos. “Os pais são muito fiéis. Nossos alunos só saem daqui para a faculdade”, diz o diretor administrativo, professor Paulo Alves Ferraz. O objetivo do “Arqui”, como é apelidado por professores e alunos, é resumido por Ferraz: “Queremos oferecer a educação mais integral possível. Não basta apenas aprender bem português e matemática. Procuramos abrir ao máximo o leque de informação, aprendizagem e incentivo à

cultura. Pelo retorno que obtemos dos ex-alunos, acredito que estamos conseguindo”. Outra escola tradicional de Vila Mariana é o Colégio Nossa Senhora do Rosário, fundado em 1943 por cinco irmãs dominicanas da ordem de Nossa Senhora do Santíssimo Rosário de Montelis. No início dos anos 40, as madres Maria Teresa e Maria Margarida e as irmãs Maria Catarina, Maria Júlia e Maria Dolores chegaram a São Paulo vindas de Uberaba, Minas Gerais. Seu objetivo era abrir em terras paulistas uma escola para crianças e jovens. Começaram com 49 alunas. Seis décadas depois, o colégio que elas inauguraram possui mais de 1.300 alunos, uma biblioteca com cerca de 13 mil volumes e


46 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Fotos: Newton Santos/Digna Imagem

cinco anos após a fundação, registrávamos a maior venda de moda masculina por metro quadrado da cidade de São Paulo”, afirma Eduardo. “Naquela época, antes do surgimento dos shoppings, aqui era o principal ponto comercial de São Paulo depois do Centro da cidade e da região da Rua Augusta”. Com o tempo, a Square cresceu, espalhou-se e conta hoje com sete lojas, algumas i n c l u s i v e d e n t ro d e shoppings. Mas Eduardo ainda aposta no potencial da região em que viu nascer sua primeira loja. “De uns anos para cá, o ponto está recupeHistória de sucesso de Eduardo Mussa Assaly: nos primeiros cinco anos após rando seu antigo potena inauguração, sua loja Square Modas registrava um dos maiores índices de venda de São Paulo. Hoje, são sete lojas espalhadas pela cidade cial. Talvez por causa do movimento das pessoas que trabalham nos inúmeros prédios coanfiteatros, ginásios e piscinas. Além das escolas e hospitais, a história da re- merciais que foram construídos por aqui”, argião também pode ser contada por seus comer- risca o comerciante. ciantes e suas lojas, como a casa de ferragens Costa Lion. Fundada em 1933, no Brás, foi com- REIVINDICAÇÕES E INICIATIVAS Com 2.037 associados, a Distrital Sudeste prada de seus fundadores por Luís Mancusi três anos depois. Instalada desde fins dos anos 80 na tem como principal bandeira fortalecer cada Avenida Ricardo Jafé, é administrada por José vez mais o comércio, atraindo mais investimenRoberto Mancusi, que há 47 anos começou a tos para a região. “Seguimos a mesma filosofia trabalhar com seu tio, Luís, e por seu sócio, Pau- de nosso presidente, Guilherme Afif Domingos: lo Sérgio Zanocco. “Aqui é um ótimo ponto. É pleiteamos mais empregos, principalmente pauma região muito forte para o comércio”, res- ra os jovens, e mais escolas profissionalizantes para os jovens de baixa renda”, afirma Alfredo salta Zanocco. A mesma opinião é partilhada por Eduardo Bruzzese, superintendente da Distrital Sudeste Mussa Assaly, proprietário da rede de lojas de da Associação Comercial de São Paulo. Desde 1987, Bruzzese já passou por todos os artigos de vestuário masculino Square Modas. Há 60 anos, seu pai, o libanês Mussa Salim As- cargos da distrital, até se tornar superintendensaly, que foi um dos fundadores do Serviço de te em dezembro de 2003. Proprietário de uma fáProteção ao Crédito, inaugurava, na Rua Ber- brica de camas instalada há 22 anos no Cambuci, Bruzzese é um ferrenho defensor e admirador nardino de Campos, a Casa Minerva. Depois de trabalhar com o pai, Eduardo da região. “Temos o privilégio de estar em uma comprou, nos anos 70, o ponto localizado na es- área que atende a todas as necessidades. Conquina da Praça Osvaldo Cruz com Rua Dr. Ra- tamos com sete faculdades, 57 escolas, inúmefael de Barros e abriu a loja que viria a se tornar ros hospitais, a Assembléia Legislativa está insa matriz da rede Square Modas. “Nos primeiros talada aqui... Dentro do distrito há espaços que

contam a verdadeira história de São Paulo”, resume o superintendente. Uma das reivindicações da distrital no bairro é a liberação do alvará de funcionamento para comércios de até cem metros quadrados, com exceção de bares e lanchonetes. “Há muita burocracia para obter o alvará. Boa parte dos pequenos estabelecimentos é irregular por causa disso”, diz Bruzzese. Integrada à comunidade, a distrital vai colocar uma bandeira nacional no obelisco do Ibirapuera, que será trocada a cada três meses, e também ficará encarregada de cuidar de sua iluminação. Outro projeto em andamento é a criação de uma comissão cívico-cultural para divulgar a história da região. Além das palestras oferecidas aos associados na sede da distrital, o diretor também pretende levar palestrantes às faculdades, para dar aos alunos uma visão de mercado. “A Associação Comercial de São Paulo é uma entidade de pressão, que faz a sociedade agir. Não é polícia, não é política, mas levanta bandeiras”, conclui Bruzzese. Evandro Monteiro/Digna Imagem

Alfredo Bruzzese, superintendente da Distrital Sudeste da ACSP: 'Temos o privilégio de estar em uma área que atende a todas as necessidades'


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 47

Reprodução

Inspirado no parisiense Jardin d'Acclimation, o Parque da Aclimação recebe quase sete mil visitantes nos fins de semana. Roberto Casseb (abaixo) foi um dos defensores de seu tombamento Newton Santos/Digna Imagem

O TRANSPLANTE DO JARDIN D'ACCLIMATION Quando era estudante de medicina em Paris, o dr. Carlos José de Arruda Botelho ficou maravilhado com o Jardin d'Acclimation, no Bois de Bologne, local destinado à criação, reprodução e aclimatação de animais dos mais variados tipos e habitats. Logo decidiu que faria algo semelhante em sua cidade, São Paulo. Foi assim que, em 1892, no lugar onde antes ficava o sítio Tapanhoim, o dr. Botelho instalou o primeiro zoológico da cidade e o primeiro posto zootécnico do País. Logo que adquiriu o sítio, comprou vacas holandesas para fornecer leite aos paulistanos, e esses foram os primeiros animais expostos no recém-inaugurado Jardim da Aclimação. O zoológico marcou época, e acabou dando nome ao bairro que se formava a seu redor. Em 1939, os herdeiros do dr. Botelho venderam a área para a Prefeitura. O zoológico foi fechado e o então prefeito Prestes Maia rebatizou o local com o nome de Parque da Aclimação. Nessa época, o parque contava com 182 mil metros

quadrados. Hoje, restaram apenas 112 mil m². Para preservar o local, os freqüentadores do parque iniciaram um movimento reivindicando seu tombamento. "Uma escola próxima havia solicitado a incorporação, por 40 anos, de um pedaço do parque. A comunidade mobilizou-se contra isso, e assim foi criada a Associação de Defesa do Parque da Aclimação", lembra Roberto Casseb, proprietário do Jornal do Cambuci & Aclimação. Casseb e sua mulher, Mirna Leandro de Castro, estavam entre os líderes do movimento que, depois de seis anos de esforços, finalmente obteve o tombamento do parque, em 1986. "Foi a primeira área verde urbana tombada no Brasil. O Ibirapuera foi tombado

depois da Aclimação", recorda. Hoje, o parque é visitado por duas mil pessoas de segunda a sexta-feira, e por quase sete mil nos fins de semana. Mas seus visitantes mais assíduos estão sempre alertas. Para fiscalizar a preservação do local, eles fundaram a Associação dos Usuários do Parque da Aclimação. "A principal reivindicação da associação é a despoluição do lago", diz Casseb.


48 Caderno Especial

IBIRAPUERA: A PRAIA DOS PAULISTANOS O Parque do Ibirapuera foi oficialmente inaugurado em 21 de agosto de 1954, durante as comemorações do 4º Centenário da cidade de São Paulo. Contudo, a região onde o parque se situa tem uma história muito mais antiga, que remonta ao século XVI. Foi nesse período que, fugindo da proximidade dos portugueses, o cacique Caiubi ergueu a aldeia de Virapuéra, ou mata grande em tupi-guarani, e que posteriormente passou a ser chamada de Ibirapuera. Com o crescimento da cidade, a antiga aldeia deu lugar a chácaras e pastagens destinadas às boiadas que seguiam para o matadouro de Vila Mariana e aos animais que puxavam os carros do Corpo de Bombeiros. A partir de 1906, uma lei estadual incorporou toda a região ao município de São Paulo. O Parque do Ibirapuera começou a ser idea-

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

lizado no final dos anos 20, quando o então prefeito Pires do Rio resolveu criar na cidade um espaço inspirado no célebre Central Park, de Nova York. Havia um problema, porém: o local escolhido era uma área pantanosa e alagadiça. A dificuldade foi superada graças à dedicação e empenho de um funcionário da prefeitura, Manuel Lopes de Oliveira. Manequinho Lopes, que hoje dá nome ao viveiro de plantas instalado no parque, era uma figura peculiar. Com suas longas barbas brancas, costumava circular carregando um guarda-chuva, com o qual cutucava a terra de jardins para testar sua qualidade. Entomologista formado na Alemanha, plantou eucaliptos na pantanosa região do Ibirapuera com a finalidade de drenar o solo e eliminar o excesso de umidade, além de cultivar inúmeras plantas ornamentais. Manequinho morreu em 1938, aos 68 anos, intoxicado por pesticidas. Mas seu legado permanece. O que antes era um brejo transformou-se, com o passar do tempo, em uma bela paisagem de cartão postal.

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

PROJETO PAISAGÍSTICO

As obras de construção do parque começaram mais de duas décadas após terem sido idealizadas pelo prefeito Pires do Rio, e com uma orientação diferente. Em 1951, uma comissão especial liderada por Francisco "Ciccillo" Matarazzo Sobrinho e composta por representantes da Prefeitura, do governo do Estado e da iniciativa privada, elaborou um programa para a criação do parque. A idéia era unir a modernidade urbana, por meio de uma arquitetura arrojada, a um projeto paisagístico igualmente avançado. Em torno desse objetivo, somaram esforços dois dos maiores nomes da arquitetura brasileira, o famos arquiteto Oscar Niemeyer e o paisagista Roberto Burle Marx. Mas o Ibirapuera, com seu lago, bosques e gramados, não seria apenas um espaço de contemplação da natureza e prática de esportes. No final de 1953, abrindo as comemorações do 4º Centenário da cidade, o atual Pavilhão Ciccillo

Paulo Pampolin/Digna Imagem

O parque sempre passou por boas mãos: ganhou plantas ornamentais de Manequinho, edifícios desenhados por Niemeyer e jardins projetados por Burle Marx


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Matarazzo abrigou a II Bienal Internacional de Artes Plásticas (a primeira havia se realizado no local onde hoje se ergue o Masp). Entre as mais de três mil obras expostas, o grande destaque foi Guernica, de Pablo Picasso. Em 1957, a Bienal passou a ocupar definitivamente sua atual sede no Ibirapuera. Um ano depois, o parque ganhou um museu. O Museu de Arte Moderna (MAM), fundado por Ciccillo Matarazzo em 1948, foi transferido para o Pavilhão Armando Arruda Pereira, O parque, que já foi sede da Prefeitura (transferida de lá nos anos 90), hoje abriga mais um espaço de consagradas exposições. Em decreto publicado em julho de 2000, o governo municipal concedeu à Associação Brasil 500 Anos a permissão de uso gratuito do prédio da Oca (o Pavilhão Lucas Nogueira Garcez), com a condição de que a área seja devolvida tão logo o governo a solicite. Inaugurada com a exposição que deu nome à associação, a Oca tem

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

realizado eventos de peso, como a maior retrospectiva do pintor espanhol Pablo Picasso feita na América Latina. 20 MIL VISITANTES

Pólo cultural e de lazer, o Ibirapuera, também chamado de "praia dos paulistanos", recebe uma média de 20 mil visitantes de segunda a sexta-feira, 70 mil nos sábados e 130 mil nos domingos – sem contar o público que comparece a shows e eventos gratuitos, Segundo apontam dados da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. De acordo com os planos da Secretaria, o parque de 1.328.000 m² deverá passar por uma série de reformas, que o deixarão "como seu criador, Oscar Niemeyer, o concebeu": com mais áreas verdes, mais atividades culturais, um auditório para a realização de shows, ampla garagem subterrânea e a despoluição do lago. Já estão em andamento as obras para a construção do auditório e despoluição do lago, que

Fotos: Paulo Pampolin/Digna Imagem

O MONUMENTO ÀS BANDEIRAS

A gigantesca escultura, talvez um dos monumentos a céu aberto mais famosos da cidade, é obra do escultor italiano radicado no Brasil Victor Brecheret (1894-1955). Começou a ser concebida em 1920, quando foi encomendada pelo governo paulista. Sua construção, porém, teve início apenas em 1936, quando as figuras que representam bandeirantes e índios empurrando e puxando um barco começaram a ser construídas num bloco de granito de 50 metros de comprimento, 16 de largura e 10 de altura. O OBELISCO

Com 72 metros de altura, o obelisco que simboliza a Revolução Constitucionalista de 1932 é o mais alto monumento da cidade. A obra do escultor italiano Galileo Emendabili (1898-1974), sob o qual está o mausoléu que guarda os restos mortais dos combatentes de 32 - entre eles Miragaia, Martins, Dráusio e Camargo, cuja morte deu origem à sigla MMDC - começou a ser construído em fins da década de 1940, tendo sido inaugurado em 1954. "O objetivo era colocar os restos mortais do ex-combatentes em um lugar condigno", explica o coronel da PM Mário Fonseca Ventura, secretário da Sociedade Veteranos de 32 - MMDC, instituição responsável pelo mausoléu.

Caderno Especial 49

devem ser concluídas ainda em 2004. As garagens subterrâneas aguardam patrocínio da iniciativa privada que, em troca, teria o direito de explorar seu uso comercial. As áreas atualmente utilizadas como estacionamento serão reflorestadas e reintegradas ao parque. O mesmo deve ocorrer com os 70 mil metros quadrados da Praça do Obelisco, que será anexada ao parque. Para que essa anexação seja possível, o governo municipal planeja modificar o traçado da Avenida Pedro Álvares Cabral, que terá um novo desenho, com as duas pistas passando por fora do parque. Com isso, o Ibirapuera chega a seu meio século com grandes planos para o futuro. As mudanças prevêem, ainda, a revitalização das áreas esportivas, remoção das calçadas e ruas em asfalto, que serão transformadas em passeios públicos. Tudo, em meio aos eucaliptos que Manequinho plantou há quase 80 anos onde antes se erguia a aldeia de Caiubi.


50 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Os cristãos orientais vão ao Paraíso Fotos: César Diniz/Digna Imagem

Os belos vitrais da catedral, construída nos anos 50 para atender a fé dos imigrantes sírio-libaneses

Na metade do século XIX, a região onde hoje se encontra o bairro do Paraíso era uma grande chácara, que se estendia da atual Praça Osvaldo Cruz até a várzea do Ibirapuera. Em 1880, o proprietário, o vereador João Sertório, decidiu loteála, abrindo diversas ruas – uma das quais levou o nome de Paraíso. A urbanização da área atraiu novos moradores, entre os quais os imigrantes sírio-libaneses. Como muitos desses imigrantes professavam a fé ortodoxa, no início dos anos 50 começou a ser erguida na Rua Vergueiro a Catedral Metropolitana Ortodoxa, inspirada no tradicional estilo arquitetônico das igrejas bizantinas. A Igreja Católica Apostólica Ortodoxa Antioquina do Brasil tem como arcebispo Dom Damaskinos Mansour. O patriarca, ou líder máximo, Ignatius IV, vive em Damasco, na Síria, onde está instalada a sede da igreja ortodoxa antioquina. "A igreja foi fundada na Antioquia, a partir das primeiras comunidades cristãs criadas por São Pedro e São Paulo. Como a Antioquia hoje faz parte da Turquia, nossa sede foi transferida para Damasco. Mas conservamos o nome antioquino", explica o padre da catedral, Gregório Teodoro.

Toda a construção da Catedral Metropolitana Ortodoxa, que hoje conta com cerca de três mil fiéis, foi inspirada no tradicional estilo arquitetônico das igrejas bizantinas


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 51

Destaque: o iconostácio – espécie de altar onde ficam os ícones da igreja – chama a atenção pela sua imponência. Atrás dele fica o santuário

"A ortodoxia é o antigo cristianismo do Oriente", diz o padre. "Foram as primeiras comunidades cristãs orientais que deram origem aos patriarcados ortodoxos, como o de Constantinopla, Alexandria, Rússia, Romênia, Bulgária, etc.". Devido a uma série de fatores políticos, culturais e doutrinários, a separação entre as igrejas do Ocidente e do Oriente ocorreu em 1054, no episódio que ficou conhecido como Grande Cisma – os ortodoxos rejeitam a denominação Grande Cisma do Oriente, pois alegam que não se tratou de uma decisão unilateral. Foi somente séculos depois, em 1964, que o então papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras I suspenderam oficialmente as excomunhões mútuas. Com um abraço histórico, abriram espaço para o diálogo entre as duas igrejas.

FÉ ORTODOXA

A catedral ortodoxa conta com cerca de três mil fiéis. "Não fazemos proselitismo. Nossa missão é pregar o Evangelho. Não dizemos a ninguém que para se salvar é preciso se tornar ortodoxo. Não seria correto", afirma o padre. Mas, apesar dessa observação, o sacerdote tem notado que um número cada vez maior de pessoas é atraído para a fé ortodoxa. Talvez parte do motivo seja o fato de que certos costumes ortodoxos são vistos como liberais por seguidores de outras religiões cristãs. Ao contrário do que ocorre na Igreja Católica, os padres ortodoxos podem contrair matrimônio, se assim desejarem. E a igreja não se opõe ao divórcio, ainda que os pedidos de separação sejam estudados caso a caso. Mas padre Gregório espanta-se ao

ouvir a palavra liberal sendo associada a esses costumes. "A igreja ortodoxa mantém essas práticas desde que foi fundada", esclarece. Dentro da catedral, chama a tenção o iconostácio, palavra de origem grega que se refere ao local onde ficam os ícones. O da Catedral reúne 65 ícones e está encimado por três cruzes. No centro, onde há a porta régia, pode-se observar do lado direito o ícone de Jesus Cristo, a imagem de São João Batista e, ao lado esquerdo, a imagem de Nossa Senhora e do padroeiro da igreja, que neste caso é Paulo. O santuário localiza-se atrás do iconostácio, e o acesso é permitido somente ao clero. A principal celebração religiosa é a Páscoa, cuja data não coincide com a dos católicos porque os ortodoxos seguem o calendário pré-gregoriano.


52 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

Reprodução

Pintura de Alfredo Volpi do final da década de 40. O artista plástico italiano sempre morou no Cambuci e foi um dos mais ilustres moradores da região Sudeste de São Paulo


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 53

AV E N I D A P A U L I S TA Reprodução

Quadro de Oscar Pereira da Silva, de 1905: reprodução de uma Av. Paulista na época em que ninguém a podia imaginar como a imponente via de arranha-céus de hoje

Textos de Elizabeth Maggio


54 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

A avenida dos paulistas POR POUCO A AVENIDA SÍMBOLO DE SÃO PAULO NÃO FOI BAT IZADA C OM O NO ME DE J OAQUIM E UGÊN IO DE L I MA . G RA ÇA S À MO DÉ ST IA DO EN G EN HE IRO U RU GUAI O QUE A PROJETOU, O NOME ESCOLHIDO FOI OUTRO. "ELA SE DENOMINA PAULISTA EM HOMENAGEM AOS PAULISTAS ", SENTENCIOU E U G ÊN I O DE LIMA EM 8 DE D E Z EM B RO D E 1891, EM SEU DI SCUR SO DE INAU GURA ÇÃO DA N OVA VIA , REC USAN DO A HONRARIA QUE LHE FORA OFERECIDA. Além de modesto, o engenheiro também revelou um pendor profético ao proclamar que "Essa avenida será a via que conduzirá São Paulo ao seu grande destino, sendo, podemos afirmar com absoluta certeza, o marco divisor de duas épocas - antes e depois da Avenida Paulista". Ele não poderia estar mais certo: 113 anos após sua inauguração, a Paulista é, hoje, o próprio coração da cidade, abrigando o maior centro empresarial e financeiro da América Latina, um dos maiores complexos hospitalares do mundo, o principal museu do País, além de uma série de espaços de exposições, cinemas, teatros e restaurantes.

O PREFEITO PRESTES MAIA SANCIONOU A LEI QUE PERMITIA O COMÉRCIO NA AVENIDA PAULISTA, MODIFICANDO SEU CARÁTER EMINENTEMENTE RESIDENCIAL. OS ARREDORES TAMBÉM SOFRERAM GRANDES TRANSFORMAÇÕES. CASO DA RUA AUGUSTA, QUE GANHOU LOJAS DE LUXO, IMPULSIONOU O COMÉRCIO LOCAL E VIROU ÍCONE DA CIDADE

Reprodução

Nos primórdios do século XX, a Paulista ostentava inúmeros palacetes dos barões de café, cada um com o estilo arquitetônico inspirado na terra natal de seus donos


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 55

Studio Stajano

"A Paulista é uma referência em meio à fragmentação e ao caos de São Paulo", diz a pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea (MAC) Cristina Freire, autora do livro Além dos Mapas – Os Monumentos no Imaginário Urbano Contemporâneo (AnnaBlume/Fapesp), que dedica um capítulo à história da avenida. "A Paulista é o primeiro lugar que pensamos para levar nossos visitantes", acrescenta Cristina. "Circular por ali é estar em São Paulo." Não faltam clichês para o paulistano expressar sua relação afetiva com a avenida mais famosa da cidade – de cartão postal da cidade a mais paulista das avenidas. Mas os clichês não deixam de ter seu motivo: nessa faixa de 2,8 quilômetros de extensão, encravada entre os bairros do Paraíso e Cerqueira César, ocorrem as principais manifestações da vida pública em São Paulo, que vão de passeatas e manifestações a shows que celebram a passagem do ano, de comícios políticos a comemorações de vitórias eleitorais. Em dias normais, circulam pela Paulista cerca de meio milhão de pessoas – exatamente metade da população que habitava a cidade quando a avenida começou a ser projetada. O fim do século XIX foi um período bastante agitado para São Paulo. Movimentos revolucionários culminaram com a deposição do então governador Américo Brasiliense, em dezembro de 1891. Naquele mesmo mês, morria o ex-imperador D. Pedro II. Mas era também época de expansão econômica: com o dinheiro gerado pelo café, a cidade recebeu suas primeiras máquinas e começou a consolidar sua vocação de centro industrial e financeiro. Foi nesse contexto que, em sociedade com José Borges de Figueiredo e João Augusto Garcia, Eugênio de Lima adquiriu alguns terrenos no ponto mais alto da Mata do Caaguaçu, espigão divisor de águas dos rios Pinheiros e Tietê. Seu objetivo era construir a primeira via planejada da cidade. Inspirada nas belas avenidas das metrópoles européias, a nova via – larga, plana, arejada e moderna – contrastava com a tortuosa São Paulo das ladeiras e becos. VIA AMPLA E FLORIDA

Com 28 metros de largura, a Paulista original tinha o piso recoberto por pedregulhos brancos e três pistas, margeadas por magnólias e plátanos: a central era destinada a carruagens e cavaleiros, e as laterais, a Reprodução

Projetada a partir dos modelos das grandes avenidas européias, a Paulista nasceu ampla e extensa – 2,8 km –, propícia para abrigar as grandes manifestações da cidade: dos corsos das décadas de 30 e 40 (ao lado) aos comícios e shows de hoje


56 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

pedestres e bondes de tração animal. Ao ser inaugurada, a avenida não tinha nenhuma casa. Seu principal uso era servir de caminho para as boiadas que seguiam para o matadouro. Porém, com seus 847 metros de altitude, a região do Caaguaçu era considerada uma área de salubridade ideal, longe do tifo e de outras doenças que grassavam no centro da cidade. E, assim, pouco a pouco, a região da Paulista acabou se tornando o refúgio da elite paulistana da época.

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

"Como no filme O Baile, de Ettore Scola, onde um salão de baile é o cenário utilizado para revelar as modificações testemunhadas nas décadas de sua existência, a Avenida Paulista se presta a contar a história da modernização da cidade em suas diversas fases. Não por acaso, é nessa avenida (...) que ocorrem as mais importantes manifestações populares e políticas na cidade", escreve Cristina Freire em Além dos Mapas. Essa história da modernização, iniciada com a própria construção da

CARTÕES-POSTAIS Reprodução

Paisagem antiga: vista da cidade de São Paulo a partir do tradicional belvedere, localizado no vão do moderno edifício do Masp

MASP: O MUSEU PAULISTA

O mais famoso museu de São Paulo – e um dos mais importantes da América Latina – foi erguido em um pedaço da Avenida Paulista que, desde o início do século passado, já manifestava sua vocação de pólo cultural. Ao doar para a Prefeitura o terreno onde projetara a avenida, Joaquim Eugênio de Lima estipulou, como exigência de doação, que o belvedere do antigo Parque Villon fosse mantido. Assim, quando no início do século XX o então prefeito da cidade, o barão de Duprat, decidiu construir o restaurante Trianon no local, coube ao arquiteto Ramos de Azevedo criar um projeto que respeitasse a exigência de Eugênio de Lima, dilema que ele solucionou incorporando à construção um enorme terraço ladeado por colunas gregas. Inaugurado em 1916, o restaurante logo tornou-se o centro da

2004

vida cultural e intelectual da metrópole. Ponto de encontro de Mário de Andrade e seus amigos modernistas, é citado pelo escritor nos célebres versos da Paulicéia Desvairada e em diversas crônicas, nas quais Andrade definia o local como o "retrato de uma urbes progressista". Tão arraigado ficou o Trianon no imaginário popular que, mais de meio século após sua demolição, ocorrida em 1950, a área ainda é chamada pelo nome do antigo restaurante. Em 1951, em um galpão provisório construído no local, realizou-se a primeira Bienal Internacional de Artes Plásticas, que posteriormente seria transferida para o Ibirapuera. Depois da Bienal, foi, enfim, a vez do Masp. Personagem polêmico, dotado de espírito empreendedor e proprietário da maior rede de comunicação da época, o jornalista Assis Chateaubriand convidou Pietro Maria Bardi, recém-


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

avenida, prossegue a edificação de sua primeira mansão, em 1895. Logo outras a seguiram. Dos barões do café aos capitães da indústria, todos cravaram seus brasões – e seus palacetes – na nova avenida. Eram construções imponentes, cujos donos ostentavam sobrenomes como Matarazzo, Von Bullow, Prado, Mitchell... De estilos arquitetônicos diversos, influenciados pela terra natal dos patriarcas de cada família, compunham uma espécie de mostruário, um mosaico da riqueza, do po-

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 57

der e das origens de seus donos. A primeira via planejada foi também a primeira via asfaltad. Foi em 1909, com material da Alemanha. Na ocasião, os passeios foram alargados e a arborização remodelada. VOCAÇÃO CULTURAL

Desde as primeiras décadas do século XX, a Paulista já manifestava sua vocação de palco da vida cultural da cidade. O corso, desfile em car-

Mônica Zarattini/AE

O Masp, famoso internacionalmente por sua arquitetura arrojada, reúne importantes obras dos mais consagrados mestres da pintura

chegado da Itália, e sua mulher, a arquiteta Lina Bo Bardi, para auxiliá-lo em sua nova empreitada: a criação do Museu de Arte de São Paulo. Em 1947, o museu foi instalado no prédio que servia de sede à sua empresa jornalística, os Diários Associados, localizado na Rua Sete de Abril, no centro da cidade. O museu ocupava quatro andares do prédio, adaptados por Lina. Mas o local estava longe de ser o ideal. E logo os olhares do trio voltaram-se para o belvedere do Trianon. "Seria o único lugar onde o Museu de Arte de São Paulo poderia ser construído, o único digno pela projeção popular de ser considerado a 'base' do primeiro Museu de Arte da América Latina", disse Lina, em citação reproduzida do livro Além dos Mapas, de Cristina Freire. O museu – que nasceu com a missão de ser um pólo cultural que não apenas preservasse a arte, mas que a difundisse de uma forma até então desconhecida na São Paulo dos meados do século XX –, foi finalmente inaugurado em 7 de novembro de 1968 com toda a pompa a que tinha direito, por ninguém menos do que sua majestade, a rainha inglesa Elizabeth II. Coube a Lina Bo Bardi, arquiteta e idealizadora do projeto, criar um prédio que respeitasse a antiga exigência de Eugênio de

Lima de manter o belvedere. A solução concebida pela arquiteta, a estrutura retangular erguida por colunas laterais, sob a qual se abre um espaçoso vão livre, tornou-se um marco da paisagem paulistana. Lina descreveu sua intenção ao criar o prédio em outra citação, mencionada no livro de Cristina Freire: "Quando o músico e poeta americana John Cage veio a São Paulo, de passagem pela Avenida Paulista, mandou parar o carro na frente do Masp, desceu e andando de um lado para o outro do belvedere de braços levantados, gritou: 'É a arquitetura da liberdade'. Acostumada aos elogios pelo 'maior vão livre do mundo (...)', achei que o julgamento do grande artista estivesse conseguindo comunicar aquilo que eu queria dizer quando projetei o Masp: o museu era um 'nada', uma procura da liberdade, a eliminação dos obstáculos, a capacidade de ser livre frente às coisas". Aberto à visitação pública, o Masp conta hoje com um acervo que reúne obras dos maiores mestres da pintura mundial, como Rafael, Botticceli, Rembrandt, Velazquéz, Renoir, Van Gogh e muitos outros. Um dos destaques do acervo é a coleção completa de esculturas de Edgar Degas. Além de exibições temporárias, o museu também realiza cursos, palestras e eventos diversos.


58 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

ros conversíveis com as capotas arriadas, os bailes e as ricas fantasias dos proprietários das mansões e de suas famílias entraram para a história do carnaval da cidade. Em 1924, realizou-se lá a primeira corrida de São Silvestre. Tão habituada estava a população com sua avenida que uma tentativa de mudar-lhe o nome, em 1927, quase provocou um motim. Face à forte resistência popular, o novo nome, Carlos de Campos, em homenagem a um ex-governador, foi abandonado três anos depois, e a ave-

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

nida recuperou sua denominação original. Nos anos 50 teve início o processo de substituição dos casarões pelos prédios. As enormes mansões, cercadas por amplos terrenos, quase chácaras em meio ao espaço urbano, já não eram compatíveis com a especulação imobiliária e a crescente verticalização da cidade. Uma década depois, o então prefeito Prestes Maia sancionou a lei que permitia o comércio na avenida, modificando seu caráter eminentemente

TRIANON: OÁSIS ENTRE ESPIGÕES

TRÊS VEZES CULTURA

Construído em 1892, um ano após a inauguração da Paulista, o Parque Villon foi projetado pelo paisagista francês Paul Villon – daí seu nome original – e pelo urbanista inglês Barry Parker. Depois, passou a contar com um belvedere implantado pelo arquiteto brasileiro Ramos de Azevedo. Em 1931, recebeu o nome que mantém até hoje, Parque Tenente Siqueira Campos, em homenagem ao militar que participou da revolta tenentista. Mas a nova denominação não pegou. A área ainda é conhecida pela população como Trianon, nome do restaurante erguido no belvedere, posteriormente demolido para dar lugar ao Museu de Arte de São Paulo. Com cerca de 48 mil metros quadrados, o parque foi remodelado em 1968 pelo paisagista Burle Marx e o arquiteto Clóvis Olga. Verdadeiro oásis em meio aos espigões da Paulista, lá ainda se encontra a vegetação remanescente da mata original, além de espécies exóticas introduzidas pelos paisagistas na época da remodelação. Jatobá, cedro, e sapopemba são algumas delas. Há também playground, trilha e aparelhos de ginástica. As mudanças tornaram o Trianon um dos raros lugares da região que oferecem condições para a reprodução de aves como rolinha, pica-pau, joão-de-barro e outras, e também de pequenos mamíferos, como o caxinguelê, ou esquilo.

Conjunto Nacional Raros são os paulistanos que já não tenham marcado algum encontro no Conjunto Nacional. Ponto de referência da Paulista, começou a ser construído na década de 50. Projetado pelo arquiteto Hélio Libeskind, foi o primeiro edifício de grande porte erguido na avenida e hoje abriga escritórios comerciais, várias lojas, restaurantes e salas de cinema. Instituto Itaú Cultural Iniciativa cultural do Banco Itaú, o instituto foi fundado em 1987 e, desde 1995, tem sua sede na Avenida Paulista. Possui um completo banco de dados sobre cultura brasileira disponível para população, além de salão de exposições, teatro, auditórios e salas para oficinas culturais. Sesc Paulista O prédio administrativo do Serviço Social do Comércio possui espaço para exposições e realiza, todas as segundas-feiras, eventos gratuitos de música instrumental. Com a transferência de todo o setor administrativo para o bairro do Belenzinho, prevista para breve, o edifício da Paulista passará a oferecer uma série de eventos culturais, além de incluir na programação atividades esportivas, a exemplo do que ocorre nas outras unidades do Sesc espalhadas pela cidade.

Vidal Cavalcante/AE

Sombra fresca: o Trianon ainda conserva vegetação da mata original, além de espécies exóticas introduzidas por Burle Marx na década de 60


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

residencial. Os arredores também sofreram grandes transformações. Caso da Rua Augusta, que ganhou lojas de luxo, impulsionou o comércio local e virou ícone da cidade. Mais mudanças viriam nos anos 70, quando as amplas pistas da avenida estreitaram-se e as árvores foram removidas, numa polêmica reforma que deu origem a inúmeros protestos. Por fim, na década de 90 chegou o metrô, e a avenida de hoje, com seus

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 59

modernos edifícios, sedes de bancos e multinacionais, adquiriu feições bem diferentes das que foram projetadas por Joaquim Eugênio de Lima. Hoje, a lembrança do engenheiro uruguaio ainda resiste no nome de uma das alamedas que cortam a avenida e em um obscuro busto erguido em sua homenagem no Parque Tenente Siqueira Campos (Trianon). Mas sua profecia se cumpriu: a história da cidade realmente dividiu-se entre antes e depois da Paulista.

CASA DAS ROSAS, FUTURA CASA DE SARAUS

CIÊNCIA E RELIGI ÃO

Remanescente da época áurea dos barões do café e dos capitães da indústria, a Casa das Rosas, assim chamada por causa dos belos roseirais que a cercavam, foi projetada em 1928 pelo escritório Ramos de Azevedo para servir de moradia para uma das filhas do arquiteto. Habitada até 1986, foi desapropriada pelo governo Estadual e tombada pelo Condephaat. Em 1991, a Secretaria Estadual de Cultura inaugurou ali um espaço cultural destinado à realização de mostras e eventos que foi desativado em 2003. Desde então, a casa permanece fechada. No momento, a Secretaria está à espera de patrocínio para abrir lá um braço do Centro de Referência da Língua Portuguesa, cuja sede será na Estação da Luz. A Casa das Rosas deve abrigar espaço de leitura, biblioteca circulante, cursos de literatura e saraus literários.

Instituto Pasteur e Grupo Escolar Rodrigues Alves Erguido por empresários para ser a sede das pesquisas sobre o vírus da raiva, o Instituto Pasteur está instalado na Paulista desde 1903. Hoje, é órgão de pesquisa do Programa de Profilaxia da Raiva Humana. Já o prédio do Grupo Escolar Rodrigues Alves, em processo de restauração, é obra de Ramos de Azevedo. Igreja e Colégio São Luís Fundado em 1903, o Gymnasio Anglo-Brazilian School foi comprado pelos jesuítas em 1918, mudando seu nome para Colégio São Luís. A capela, projetada na década de 1930, transformou-se, mais tarde, na paróquia São Luís de Gonzaga. Hospital Santa Catarina Fundado em 1906 pelas irmãs da Congregação de Santa Catarina, foi um dos primeiros hospitais particulares da cidade. Hoje, abriga também um centro cultural.

EDIFÍCIOS COM HISTÓRIA

Fiesp Fundada em 1928, a Fiesp/Ciesp (Federação e Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) tem, desde 1979, sua sede no número 1.313 da Paulista. O prédio Luís Eulálio Bueno Vidigal, símbolo do poder econômico paulista, abriga, também, o Centro Cultural Fiesp, com espaço para exibições, biblioteca e o Teatro Popular do Sesi, com espetáculos teatrais gratuitos. Edifício Gazeta Em seu testamento, o jornalista Cásper Líbero determinou a criação de uma escola de jornalismo. A faculdade foi a primeira da América Latina, e fica no edifício-sede da Fundação Cásper Líbero. Ponto de chegada da São Silvestre, o prédio também abriga a tevê e a rádio Gazeta e de uma unidade da escola Objetivo. Reprodução

A Casa das Rosas, é um dos únicos casarões preservados na Paulista

Sebastião Moreira/AE


60 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

Reprodução

Paisagem bucólica: nos final do século XIX, a Avenida Paulista exibia calçadas arborizadas, amplas pistas e belas mansões dos barões do café

2004


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 61 Fotos: Arquivo/AE

RUA AUGUSTA: ÍCONE DO COMÉRCIO PAULISTA Em meados dos anos 50, bem antes de ser imortalizada pelo primeiro hit do rock nacional, na voz de Ronnie Cord na década de 60, a Rua Augusta já era famosa em São Paulo, principalmente entre as famílias da alta sociedade paulistana. Sua vocação para abrigar belas vitrines foi reforçada após a lei sancionada pelo prefeito Prestes Maia, que permitia o comércio na região, modificando o caráter residencial do bairro na época. E as vitrinas incentivavam o sobe e desce de elegantes compradores. A movimentada rua que corta a Paulista já nasceu como centro das tendências da moda feminina e, mesmo depois de sua fase de decadência provocada pela chegada dos shoppings, continuou cultivando lojas de novos nomes do mundo fashion. Um de seus principais ícones é a Galeria Ouro Fino, fundada em 1962 com o objetivo de reunir lojas luxuosas. Acompanhando as mudanças do comércio local, a galeria se especializou em moda jovem na década de 70 – nos tempos em que o coreto da Jeans Stores na Augusta reunia os adolescentes para shows de Rita Lee e Raul Seixas – e, hoje, reúne jovens estilistas. Mas não eram apenas lojas que se destacavam no cenário. Confeitarias, como a tradicional Bologna, e inúmeras salas de cinema também marcaram história por lá e concederam à Augusta o perfil de reduto cultural. Na década de 90, a rua foi mais uma vez pio-

neira ao abrir os primeiros outlets. De lá para cá, o comércio continuou se diversificando, misturando espaços culturais, cinemas e vitrines. De lojas populares a grifes internacionais.

“ E N T R E I N A R U A A U G U S TA A 1 2 0 P O R H O R A , B OT E I A T U R M A T O D A D O PA S S E I O P R A F O R A . . .” ( H E RV É C O R D O V I L )

As várias fases da Augusta: a história do comércio e da moda na cidade pode ser contada a partir das vitrines que essa movimentada rua exibiu ao longo do tempo. Das lojas chiques dos anos 60, passando pela tendência dos jovens rebeldes da década de 70, chegando aos novos estilistas da atualidade


62 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

Arquivo/AE

Vocação para passarela: as atraentes e abundantes vitrines da Rua Augusta sempre atraíram todo tipo de consumidor, de exigentes senhoras a jovens descontraídos

2004


S ÃO PAU L O ,

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

Caderno Especial 63

Iconografia AS IMAGENS USADAS PARA ILUSTRAR ESTE CADERNO SÃO: (1) REPRODUÇÕES DOS LIVROS Álbum Iconográfico da Avenida Paulista (DE BENEDITO LIMA DE TOLEDO, EDITORA EX LIBRIS, 1987), Lembranças de São Paulo, a capital paulistana nos cartões-postais e álbuns de lembranças (DE JOÃO EMÍLIO GERODETTI E CARLOS CORNEJO, SOLARIS EDIÇÕES CULTURAIS, 2002), Iconografia Paulistana do Século XIX (DE PEDRO CORRÊA DO LAGO, CAPIVARA, 2003), Retalhos da Velha São Paulo (DE GERALDO SESSO JR., OESP-MALTESE, 1986); Volpi: 90 anos (DE JACOB KLINTOWITZ, SESC, 1989); Anchieta nas Artes (PE. HÉLIO ABRANCHES VIOTTI S.J. E PE. MURILLO MOUTINHO S.J., EDIÇÕES LOYOLA, 1991) (2) FOTOGRAFIAS DE ARQUIVOS PESSOAIS DOS ENTREVISTADOS (3) FOTOGRAFIAS DOS ACERVOS DO AEROPORTO DE CONGONHAS; DO SHOPPING IBIRAPUERA; DO COLÉGIO ARQUIDIOCESANO (4) FOTO CEDIDA PELO STUDIO STAJANO (5) FOTOS COMPRADAS DA AGÊNCIA ESTADO E PRODUZIDAS PELOS FOTÓGRAFOS DA AGÊNCIA DIGNA IMAGEM

N E G RO S E PAU L I S TA E S T U D O , C. 1825-1827 Por Jean-Baptiste Debret


64 Caderno Especial

D IÁRIO

DO COMÉRCIO

S ÃO PAU L O ,

Bruno Giorgi/Reprodução

PRÓXIMO CAPÍTULO: OS NOVOS A N C H I E TA S

QU I N TA - FEIRA ,

19

DE AG O S TO DE

2004


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.