Digesto Econômico nº 440

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O AGRONEGÓCIO REPRESENTA 28% DO PIB E 35% DOS EMPREGOS NO PAÍS NO MUNDO, OS PRODUTOS AGRÍCOLAS RENDERAM US$ 449 BILHÕES EM 2000 US$30 BILHÕES. É O GRANDE SALDO DA AGRICULTURA PARA NOSSA ECONOMIA. ENTRE OS GOVERNOS SARNEY E LULA, O CAMPO PERDEU INVESTIMENTOS. AS NOVAS TECNOLOGIAS EM AÇÃO: A BIOTECNOLOGIA E ATÉ A INTERNET. A PRODUÇÃO AGRÍCOLA PER CAPITA SUBIU 25% NOS ÚLTIMOS 40 ANOS INTEGRAÇÃO LAVOURA PECUÁRIA MOSTRA O QUE É A NOSSA TECNOLOGIA TROPICAL O MUNDO QUE JÁ PRECISA DE CAFÉ, CARNE, AÇÚCAR, SOJA, SUCOS... ...AGORA, PODE PRECISAR TAMBEM DA BIOENERGIA: METANOL E BIODIESEL.


CARTA AO LEITOR A SITUAÇÃO DA AGRICULTURA NO PAÍS Durante anos ouvi dizer que o Brasil era um país essencialmente agrícola, exportador de matérias-primas, de café, de carne e de poucos outros produtos. Éramos exportadores medíocres, com balança comercial insignificante para a extensão territorial do País. Não condizia com o impulso da economia cafeeira que dispunha de vastas áreas agricultáveis e que eram a garantia das operações de vendas e exportação do café brasileiro para a Europa e para os Estados Unidos. O crash americano acordou os brasileiros para o perigo de uma produção unificada, predominando o café, que em 1929 entrou em colapso na Bolsa de Valores de Nova York. Só se recuperou muitos anos após com a intervenção do Estado nos órgãos, exclusivamente cafeeiros, que ficavam sob o domínio político de dirigentes partidários; uns bons, outros não, uns capacitados, outros não, variando as administrações de acordo com o domínio político na área. A reforma política, não organizada, oficialmente, mas posta em movimento pelos partidos e pelos órgãos de administração pública, resolveu o problema do café que na economia livre continua sendo um produto de grande prestígio na balança comercial. Foi daí que saiu a decisão dos agricultores brasileiros para organizarem o agrobusiness. Dispensemo-nos das estatísticas, este artigo pretende mostrar a importância do agrobusiness como capitalismo dominante e com resultados altamente satisfatórios. A conquista do Oeste foi um dos desafios que os agricultores brasileiros enfrentaram vitoriosamente, sobretudo nas regiões consideradas inviáveis para a agricultura de escala. Foi lá, no entanto, que se verificou uma extensa adaptação do agrobusiness aos empreendedores da agricultura brasileira. Somos hoje produtores e exportadores em grande escala e poderemos, dentro de pouco tempo, usar o agrobusiness, com o ímpeto que lhe é próprio, para crescer em mercados como os EUA, que, como se sabe, é o primeiro país importador e exportador do mundo. Estamos empenhados no agrobusiness, certos de vencer uma carreira que começou, não faz muito, e que se verificou altamente promissora. Não há porque não apoiar a política agrícola do governo brasileiro concentrada no agrobusiness, na maior área do País, porque é criadora de empregos, além de estimável investidora de recursos bursáteis.

João de Scantimburgo Membro da Academia Brasileira de Letras

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CAPA Foto: Pablo de Souza. Produção: Mirian Pimentel.

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DIGESTO ECONÔMICO NOVEMBRO 2006

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Tiago Queiroz/AE

Roberto de Bias/AE

ÍNDICE

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Repensando as Políticas Agrícola Agrária do Brasil Fabio R. Chaddad Marcos S. Jank Sidney N. Nakahodo

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Paulo Pinto/AE

Celso Júnior/AE

O maior negócio do país. Por Roberto Rodrigues. Entrevista a Tim Teixeira

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O problema não é o custeio mas o seguro. Por Xico Graziano Alexandre Belém/JC Imagem/AE3

56 Paulo Pampolin/Hype

Este é o caminho da salvação para a agricultura. Por João Sampaio. Entrevista a Tim Teixeira

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O que há por trás do MST Por Cândido Mendes Prunes

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Repensando as Políticas AGRÍCOLA e AGRÁRIA do Brasil

Cássio Vasconcelos/Samba Photo

Fabio R. Chaddad Marcos S. Jank Sidney N. Nakahodo Carlos Silva/Imapress/AE



Marcos Fernandes/LUZ Tiago Queiroz/AE Ernesto Rodrigues/AE

Rodney Suguita/Folha Imagem Marcos Peron/Virtual Photo

Documento elaborado a pedido da Associação Comercial de São Paulo. Os autores agradecem a José Garcia Gasques (IPEA) pela disponibilização de dados e leitura da primeira versão do trabalho e à assistência de pesquisa de Magda Chang, Ivan Fernandes e Luiz Fernando Amaral. Os erros que existirem naturalmente são de inteira responsabilidade dos autores.

Fabio R. Chaddad Professor do IBMEC São Paulo (FabioRC@isp.edu.br).

Marcos S. Jank Professor Associado da FEA-USP e Presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais - ICONE (msjank@usp.br).

Sidney N. Nakahodo Pesquisador colaborador do ICONE, atualmente no Programa de Estudos Avançados em Política Econômica Internacional do Kiel Institute for the World Economy, na Alemanha (snn2103@columbia.edu).


Roberto de Bias/AE

Joel Silva/Folha Imagem

Joel Silva/Folha Imagem Luludi/LUZ

Emerson Araújo/AE

O que fazer para dar mais poder à AGRICULTURA


Epitácio Pessoa/AE

Luiz Prado/LUZ Milton Mansilha/LUZ

Toni Pires/Fiolha Imagem Milton Mansilha/LUZ

Milton Mansilha/LUZ

Evandro Rocha/Folha Imagem

Beto Barata/AE

Marcelo Min/AFGa

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s políticas agrícola e agrária brasileiras sofreram profundas alterações nas últimas duas décadas. Até o final da década de 1980, o governo federal praticava uma política agrícola altamente intervencionista com o objetivo básico de garantir a segurança alimentar do país. Adicionalmente, o governo investiu recursos na pesquisa, desenvolvimento e disseminação de tecnologias agrícolas tropicais, o que permitiu a expansão da fronteira agrícola e significativos ganhos de produtividade na agricultura. Entretanto, a partir da crise da dívida pública no final daquele período, o governo federal reduziu fortemente os gastos em políticas agrícola e agrária. Além da redução de gastos e desmantelamento de instrumentos tradicionais de política agrícola, houve uma mudança de prioridade das políticas agrícola e agrária, com a ampliação dos gastos em programas de reforma agrária e agricultura familiar.


Jonne Roriz/AE

Plantação de feijão na fazenda Anoni, um exemplo de agricultura familiar no Rio Grande do Sul.

Analisando os gastos com políticas públicas voltadas à agricultura no período 1985-2005, o presente estudo mostra que: •Houve uma redução nos gastos médios anuais com políticas agrícola e agrária de R$ 20,9 bilhões, em 19851989, para R$ 10,7 bilhões, em 2003-2005 (em moeda corrente de 2005). •Enquanto no Governo Sarney os gastos em políticas agrícola e agrária representavam 5,6% dos gastos totais da União, nos três primeiros anos do governo Lula essa participação caiu para 1,8%. •Houve uma mudança no direcionamento das políticas públicas, priorizando-se a reforma agrária e o apoio à agricultura familiar. Entre 1985 e 2005, os gastos médios anuais com políticas agrícolas tradicionais foram reduzidos de R$ 19,5 bilhões para R$ 5,8 bilhões ao ano, enquanto os gastos com organização agrária e agricultura familiar cresceram de R$ 1,3 bilhão para R$ 4,9 bilhões ao ano. O resultado é uma participação crescente nos programas de organização agrária e agricultura familiar nos gastos totais do setor: de 6%, no governo Sarney, para 45%, no governo Lula. •O Brasil é o único país do mundo com dois ministérios da agricultura: o ministério dos "produtores patronais e agronegócio" (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA) e o ministério dos "agricultores familiares e da reforma agrária" (Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA). Tais ministérios competem por recursos cada vez mais escassos e, fre-

qüentemente, expressam posições antagônicas sobre temas relevantes para o setor. Nos últimos três anos (2003-2005), a administração consumiu 20% dos recursos dos dois ministérios (R$ 6 bilhões). •O governo gasta cada vez mais com políticas dirigidas a grupos específicos (administração, produtores endividados, assentamentos, etc.) e corta recursos dos bens públicos fundamentais para a competitividade do conjunto dos agricultores (pesquisa, defesa sanitária, etc.). Em 2005 os gastos dirigidos foram aproximadamente duas vezes superiores aos gastos com bens públicos e alcançaram R$ 6,5 bilhões. Essa pulverização de gastos e dicotomia entre o ministério do "agronegócio e dos produtores patronais" e o ministério dos "produtores familiares e dos assentamentos" se origina da falsa premissa que "agricultura familiar" é fundamentalmente diferente (e mais desejável) que a "agricultura patronal" e que o "agronegócio" é inimigo do pequeno produtor agropecuário e do desenvolvimento do país. Enquanto as políticas agrícolas e agrárias no Brasil evoluíram de forma a deixar produtores sem acesso a mercados e a serviços fundamentais para a sua competitividade, o sistema agroalimentar se transformou radicalmente nos últimos anos. Impulsionada pelo crescimento da renda e pelos processos de urbanização, mudança tecnológica e globalização, a agricultura está se tornando cada vez mais intensiva em capital e integrada com os estágios antes e depois da porteira. Como resultado desse processo de transformação, os NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 11


mercados ficam cada vez mais demandantes em termos de segurança e qualidade dos alimentos, mais concentrados e integrados, e mais abertos à competição internacional. O processo de transformação da agricultura traz várias implicações para os produtores agrícolas, incluindo: • Redução ao longo dos anos do preço real das commodities agrícolas. Nos mercados internacionais, o preço real das commodities agrícolas no final da década de 1990 se reduziu a 2/5 do seu valor observado na década de 1960. No Brasil, estudo de Geraldo Barros et. al. (2006), do CEPEA-ESALQ, estima que os preços dos alimentos pagos pelos consumidores caíram 35%, em termos reais, entre o Plano Real e o ano passado. Dessa forma, o setor transferiu mais de um trilhão de reais para a sociedade brasileira, nos últimos dez anos, via ganhos de produtividades da terra, capital e mão-deobra. A redução do preço real de produtos agrícolas leva ao achatamento das margens na agricultura. • Aumento do valor adicionado nos estágios pós-porteira do sistema agroindustrial. Uma vez que consumidores demandam cada vez mais alimentos processados e de preparo conveniente, além de aumentar os gastos com alimentos em restaurantes e serviços de alimentação, uma parcela crescente do valor adicionado ocorre após o produto agrícola deixar a porteira da fazenda. • Com a redução das margens e a incorporação de novas tecnologias na agricultura, o processo de transformação do sistema agroalimentar claramente apresenta um viés de consolidação da produção em fazendas mais eficientes e intensivas em capital. • O produtor enfrenta desafios crescentes de acesso a mercados devido a barreiras de entrada cada vez maiores. Essas barreiras à entrada estão relacionadas (a) à intensificação do uso de tecnologias demandando capital e capacidade gerencial; (b) à necessidade de investimentos específicos e relacionamentos com os demais participantes do sistema agroindustrial; (c) à adoção de padrões privados de qualidade; (d) à consolidação nas indústrias de processamento e no varejo; (e) à existência de economias de escala; e (f) aos maiores custos de transação. Goiabas para a Polônia. Depois, para outros países da Europa.

Marcos Fernandes/LUZ

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Tomando como base a análise da transformação do sistema agroalimentar no Brasil (e no mundo) e as implicações dessa transformação para o produtor, a nossa proposta de um novo papel para as políticas agrícola e agrária enfatiza basicamente a inserção competitiva e sustentável do produtor nas cadeias produtivas que compõem o sistema agroindustrial, no país e no exterior. Além de ser um papel de política pública afinado com as realidades do mercado, essa sugestão também tem o intuito de promover a unificação das políticas agrícolas e agrárias em um único Ministério, reduzindo o impacto do falso debate ideológico entre "agricultura patronal" versus "agricultura familiar", "agronegócio" versus "pequena agricultura", etc. Na nossa visão, as políticas públicas voltadas para a inserção competitiva e sustentável dos produtores no sistema agroindustrial deveriam contemplar os seguintes pontos: 1. AUMENTO DA OFERTA DE BENS PÚBLICOS, principalmente defesa sanitária e fitossanitária; infra-estrutura de transporte, armazenagem e comercialização; pesquisa, desenvolvimento e extensão agropecuária; e sistemas de informação de mercado. 2. MECANISMOS DE GESTÃO DE RISCO, principalmente a introdução de mecanismos sustentáveis de seguro rural e o incentivo ao uso de contratos futuros e derivativos. 3. DEFINIÇÃO CLARA E PROTEÇÃO JURÍDICA DOS CONTRATOS E DIREITOS DE PROPRIEDADE, incluindo a distribuição de títulos de posse da terra para os beneficiários da reforma agrária, a solução do problema de titulação de terras na Amazônia Legal e a garantia de cumprimento dos contratos entre os diferentes integrantes do sistema agroalimentar. 4. AVALIAÇÃO SISTEMÁTICA DE TODOS OS PROGRAMAS DE SUBSÍDIOS DIRETOS, principalmente aqueles que se destinam a grupos de interesse específicos, como os beneficiários das renegociações de dívidas e o monitoramento do uso e dos resultados concretos dos programas de reforma agrária e agricultura familiar (PRONAF). 5. POSIÇÃO MAIS AGRESSIVA EM NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS, incluindo o desenvolvimento de novos contenciosos na OMC e a negociação efetiva de acordos regionais e bilaterais de comércio. 6. INTRODUÇÃO DE PROGRAMAS DE CAPACITAÇÃO TÉCNICA E GERENCIAL para produtores e pequenas e médias empresas, com o intuito de formar empreendedores agrícolas com uma pragmática visão de mercado. Tal esforço inclui a promoção e modernização de cooperativas e associações de produtores, entendidos como instrumentos importantes de inserção no mercado e adição de valor desde que consigam solucionar os seus problemas de capitalização, governança e direitos de propriedade. 7. DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA NACIONAL DE CERTIFICAÇÃO DE QUALIDADE E RASTREABILIDADE de alimentos, que auxilie os produtores a agregar valor a seus produtos e a se inserir em cadeias agroindustriais coordenadas e voltadas ao consumidor.


1. INTRODUÇÃO As políticas agrícola e agrária brasileiras sofreram profundas alterações nas últimas duas décadas. Entre meados da década de 1960 e o final da década de 1980, o governo federal tinha uma política agrícola bastante ativa e intervencionista visando garantir a segurança alimentar no país. No período 1985-1989, o gasto médio anual com as políticas agrícola e agrária chegou a 5,6% dos gastos totais do governo federal. A política agrícola era baseada em formação de estoques reguladores, garantia de preços mínimos aos produtores, controle de preços ao consumidor e ampla oferta de crédito agrícola subsidiado a taxas reais negativas. Adicionalmente, o governo federal investiu recursos na pesquisa, desenvolvimento e disseminação de tecnologias agrícolas tropicais, o que permitiu uma espetacular expansão da fronteira agrícola no cerrado e significativos ganhos de produtividade. No que tange à política agrária, o foco era a ocupação da região centro-norte do país por meio de projetos de colonização. Entretanto, a partir da crise da dívida pública, no final da década de 1980, o governo federal reduziu fortemente os gastos em políticas agrícola e agrária. O desmantelamento dos instrumentos tradicionais de política agrícola - em especial, formação de estoques reguladores, garantia de preços mínimos, controle de preços ao longo das cadeias produtivas e crédito subsidiado ao produtor - fez parte de um pacote de mudanças estruturais da economia nacional, que também incluiu liberalização comercial, integração econômica, principalmente no âmbito do Mercosul, privatização e desregulamentação de mercados. Atualmente, somente 1,8% dos gastos totais do governo federal destinam-se às políticas agrícola e agrária. Entre os países com agricultura desenvolvida, o Brasil é um dos que menos gastam com subsídios à agricultura. Além da redução de gastos e desmantelamento de instrumentos tradicionais de política agrícola, a partir do governo FHC, mas, principalmente, no governo Lula, houve uma mudança de prioridade das políticas agrícola e agrária, que se voltou cada vez mais para a reforma agrária e a agricultura familiar. Além disso, uma parcela cada vez maior do crédito é destinada ao PRONAF (Programa Nacional de Apoio a Agricultura Familiar). Essa mudança de prioridade levou a uma pulverização de gastos em uma centena de programas sob responsabilidade de dois ministérios (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA e Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA). Tais ministérios competem por recursos cada vez mais escassos e muitas vezes têm posições antagônicas sobre temas relevantes ao produtor nacional. O objetivo deste trabalho é fazer uma análise crítica das atuais políticas agrícola e agrária do país e propor um novo redirecionamento para as mesmas, visando promover o desenvolvimento dos sistemas agroindustriais no país e a inserção sustentável dos produtores no mercado. A análise crítica das atuais políticas será baseada em uma análise quantitativa dos gastos federais com políticas agrícola e agrária desde a década de 1980, visando identificar gastos com bens públicos (que favorecem todos os produtores) e

gastos dirigidos para programas que beneficiam determinados grupos de interesse. Adicionalmente, será feita uma análise das principais mudanças estruturais no agronegócio do Brasil com o objetivo de se identificar as principais barreiras e desafios à inserção do produtor nos sistemas agroindustriais. Com base nessa análise, serão identificadas as condições necessárias para a participação efetiva de produtores no agronegócio que servirão de base para uma nova agenda de política agrícola no país. 2. ANÁLISE DOS GASTOS FEDERAIS COM POLÍTICAS AGRÍCOLA E AGRÁRIA Esta seção do estudo tem por objetivo analisar os gastos públicos brasileiros com políticas agrícolas e agrárias, sua evolução e composição por meio da desagregação do orçamento destinado à agricultura. Uma abordagem de economia política é adotada, considerando-se a alocação dos recursos e a avaliação dos gastos dirigidos e bens públicos proporcionados. O debate acerca do orçamento da União tem sido um tema central na administração pública ao longo dos anos. Com o modelo de industrialização por substituição de importações (ISI), vigente durante a maior parte da segunda metade do século passado, boa parte dos gastos públicos priorizava o desenvolvimento industrial nacional com o objetivo de atender às demandas do mercado doméstico. As políticas agrícolas inseridas nesse contexto priorizavam a segurança alimentar e a compensação dos setores prejudicados com o viés "anti-agrícola" do modelo ISI (OCDE, 2005). De meados dos anos 80 até o início dos anos 90, o combate à hiperinflação monopolizou as ações governamentais, culminando com o Plano Real (BACHA, 2003). A promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal em 2001 e a conseqüente imposição de limites nas diversas esferas governamentais estabeleceram restrições aos gastos públicos com a criação de legislações específicas, visando a coibir o déficit fiscal nos níveis municipal, estadual e federal (KANDIR, 2000). Em paralelo, com a abertura da economia e a liberalização dos mercados, houve uma mudança do papel do governo em toda a economia. Na agricultura, a intervenção governamental deu lugar à ênfase crescente nos mecanismos de regulação do mercado e de inclusão social. Atualmente, vivenciamos a terceira fase do processo da discussão sobre os gastos públicos, em que a avaliação da qualidade dos programas e projetos envolvidos tem sido tão importante quanto a manutenção do equilíbrio fiscal. Nesse contexto, o presente estudo visa a contribuir com o debate sobre a qualidade dos gastos com a agricultura que vem sendo conduzido por diversos autores (GASQUES, 2001; GASQUES, 2004; e CHADDAD & JANK, 2005), a partir da análise do efeito multiplicador e da distribuição dos benefícios. Antes de descrevermos as despesas com as políticas agrícolas e agrárias nos últimos anos, apresentamos na seqüência uma breve análise da evolução recente das políticas públicas voltadas para a agricultura no Brasil. NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 13


2.1. Evolução Recente das Políticas Agrícola e Agrária no País Os objetivos e programas das políticas públicas voltadas para a agricultura mudaram radicalmente nos últimos anos (Tabela 1). O período entre meados da década de 1960 até o início dos anos 1980 foi caracterizado por forte intervenção governamental nos mercados de commodities agrícolas. Essa forte intervenção se deu principalmente por meio de farta oferta de crédito rural subsidiado (por meio do Sistema Nacional de Crédito Rural), mecanismos de garantia de preços mínimos, incluindo a formação de estoques reguladores, agências reguladoras (IBC, IAA) e substituição de importações (programas de álcool e trigo). Por meio desses instrumentos de política agrícola, o governo controlava preços ao produtor e ao consumidor, formava estoques e manipulava tarifas sobre exportações e importações para garantir o abastecimento. O Gráfico 1 mostra que o custo do suporte ao produtor por meio do crédito rural subsidiado chegou a US$ 220 por tonelada de grão produzido em 1976 e que praticamente 45% da produção de grãos contava com garantia de preços mínimos em 1982. Naquela época, o setor agropecuário no Brasil era ineficiente e não competitivo, excetuando-se algumas commodities tropicais, como açúcar e café. O setor era então caracterizado pela concentração da distribuição de terra e renda em grandes latifúndios improdutivos. Foi também nos anos 1960 e 1970 que o país começou a se modernizar e urbanizar, com o crescimento de grandes centros urbanos. Nesse período, o objetivo da política agrícola era promover a segurança alimentar de uma população cada vez mais urbana e controlar a inflação em um período de rápido crescimento econômico, compensando o setor agrícola pelas distorções causadas pelo modelo ISI e promovendo sua modernização.

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Esse modelo atingiu seu ápice em meados dos anos 1980, quando o país entrou em um ciclo de estagflação e crise nas finanças públicas, levando o governo federal a reduzir gastos e rever prioridades de políticas públicas. A partir da segunda parte da década de 1980, o governo federal inicia um processo de redução dos gastos com políticas agrícolas, limitando os recursos destinados a formar estoques reguladores, manter preços mínimos aos produtores e financiar a produção e a comercialização. Reformas estruturais são introduzidas no início da década de 1990, incluindo abertura comercial, privatização e desregulamentação da economia. Especificamente na agricultura, foram eliminados impostos à exportação e controle de preços, os mercados agrícolas foram desregulamentados e expostos à competição internacional pela redução das barreiras tarifárias e integração econômica com a formação do Mercosul. Também foram introduzidos instrumentos privados de financiamento da produção e comercialização de commodities agrícolas como uma alternativa ao crédito rural oficial. Entre os governos Sarney e Lula, os recursos disponibilizados para políticas agrícolas e agrárias caíram de 5,6% para 1,8% dos gastos totais do governo federal (veja análise dos gastos na próxima seção). Esse "choque de competitividade" no setor trouxe efeitos positivos e negativos para a economia agrícola. De uma forma geral, o setor se modernizou, tornou-se competitivo e se inseriu internacionalmente (JANK et alli, 2004). A produção de grãos dobrou nos últimos quinze anos, passando de 58 milhões de toneladas, em 1990, para 120 milhões de toneladas, em 2005. No mesmo período, a produção de carnes (bovina, suína e de frango) praticamente triplicou, de 7,5 para 20,7 milhões de toneladas. A taxa de crescimento médio da produtividade total dos fatores utilizados na agricultura foi estimada em 3,3% ao ano, para o período 19752002, e 5,7% ao ano, entre 1998 e 2002 (GASQUES et alli, 2004). Esses aumentos de produção e ganhos de produtividade ocorreram


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Marcos Fernandes/LUZ

graças aos investimentos consistentes do setor público em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias tropicais, que permitiram, por exemplo, a ocupação do cerrado. Entre 1990 e 2003, as exportações agrícolas cresceram a uma taxa média anual de 6,3%, posicionando o Brasil como o terceiro maior exportador de alimentos do mundo, somente atrás da União Européia e dos Estados Unidos. A partir de 2004, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos, tornando-se o país com o maior superávit comercial gerado pelo agronegócio, o equivalente a quase US$ 30 bilhões, em 2005 (CHADDAD & JANK, 2006). Entretanto, com a redução do apoio das políticas públicas, o produtor nacional ficou cada vez mais exposto aos riscos de produção, preço e crédito da atividade agrícola. Dada a grande volatilidade dos mercados de commodities agrícolas, crises de inadimplência da dívida agrícola tornaram-se comuns e recorrentes. A primeira crise da dívida agrícola ocorreu logo após o controle da inflação promovida pelo Plano Real, levando a um plano de securitização de dívidas em 1995 que custou bilhões de reais ao Tesouro Nacional. A segunda crise da dívida agrícola ocorreu em 2005, quando o governo Lula foi obrigado a lançar um plano de alongamento de dívidas no valor de R$ 14 bilhões. A partir de 1995, a nova prioridade da política pública passou a ser agricultura familiar e reforma agrária, como instrumentos para se promover a inclusão social. Enquanto a modernização do setor, a adoção de novas tecnologias, e as empresas do agronegócio "excluíam" milhões de agricultores, o governo fixou-se na idéia que a distribuição de pequenos lotes de terra e oferta de crédito subsidiado iriam "incluir" milhares de novos agricultores. Outras teses não embasadas em teoria ou evidências empíricas foram se enraizando em Brasília, como a falsa dicotomia criada entre "agricultura patronal" e "agricultura familiar". As invasões de terra promovidas por "movimentos sociais" (como o MST), a leniência do Estado e a insegurança jurídica com relação à garantia dos direitos de propriedade, e a reação agressiva de produtores levou a uma crise de segurança no campo culminando com a tragédia ocorrida no Pará em 1995. A partir daí, o governo federal gastou aproximadamente R$ 50 bilhões para assentar cerca de 900 mil famílias em 40 milhões de hectares de terras desapropriadas (GRAZIANO, 2004). Além disso, uma parcela cada vez maior do crédito é destinada ao PRONAF (Programa Nacional de Apoio a Agricultura Familiar), que recebeu mais de R$ 11 bilhões de recursos públicos, entre 2000 e 2005. Essa mudança de prioridade levou a uma pulverização de gastos em uma centena de programas sob responsabilidade de dois ministérios (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA e Ministério do Desenvolvimento Agrário MDA), que competem por recursos cada vez mais escassos e muitas vezes têm posições antagônicas sobre temas relevantes ao produtor nacional, tais como liberalização do comércio internacional de produtos agrícolas e liberação da pesquisa, produção e comercialização de produtos geneticamente modifi-

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cados. A seguir, analisamos a evolução dos gastos da União nas políticas voltadas à agricultura. 2.2. Gastos Públicos em Políticas Agrícola e Agrária Distribuição dos Gastos com Políticas Agrícola e Agrária A divisão dos gastos públicos utilizada em outros trabalhos baseia-se em agregações das despesas públicas por meio de funções, subfunções e programas (GASQUES, 2004; GASQUES et alli, 2006). Apesar de facilitar a transparência e o acesso à divulgação das informações processadas pela Secretaria do Tesouro, a utilização desse método de classificação para a análise dos gastos públicos incorre em algumas dificuldades, a começar pela pulverização dos dispêndios governamentais em iniciativas com um mesmo fim comum. Um exemplo é o PRONAF, que se encontra distribuído em duas funções e envolve nada menos que 15 programas diferentes. De fato, um relatório do Ministério do Planejamento observa que "a classificação funcional, muito embora tenha como escopo principal a identificação das áreas em que as despesas estariam sendo realizadas, preservou, na sua lógica de aplicação, o enfoque matricial da funcional-programática, ou seja, as subfunções poderão ser combinadas com funções diferentes daquelas a que estejam vinculadas" (BRASIL, 2005: 43). Assim, a fim de organizar os gastos de acordo com agregações representando as finalidades para as quais os recursos públicos foram destinados de facto, os gastos públicos com políticas agrícolas e agrárias foram divididos em duas classes: (a) Política Agrícola Tradicional; e (b) Organização Agrária e Agricultura Familiar. Chamamos de Política Agrícola Tradicional à classe que engloba os programas que contribuem com a produção, a comercialização e a competitividade dos produtos agrícolas. Por Organização Agrária e Agricultura Familiar entendem-se, respectivamente, às iniciativas que buscam equilibrar a propriedade e o uso da terra (OCDE, 2005: 110) e ao apoio à integração dos pequenos produtos rurais ao processo de desenvolvimento econômico. Essas classes foram arbitrariamente desagregadas em categorias definidas seja pela aglutinação de diferentes subfunções (como no caso de "Produção", que engloba produção vegetal e animal), seja evidenciando os programas mais expressivos a exemplo do PRONAF, conforme será detalhado a seguir. (a) Políticas Agrícolas Tradicionais 1 • ABASTECIMENTO: visa a implementação de políticas e mecanismos de apoio à produção, comercialização, armazenamento e consumo. Concentra quase todos os instrumentos de política agrícola, como a política de formação de estoques reguladores e manutenção de preços mínimos (GASQUES, 2001a: 17). Essa cate-

1 As descrições são baseadas no Plano Plurianual (PPA) 2004-2007 e em outros estudos, conforme anotado no próprio texto.


Paulo Liebert/AE

Café para exportação, retirado dos armazéns da Trading Velloso Cofee, em Carmo do Paranaíba, em Minas Gerais.

goria inclui a subfunção 20.605 e programas de código 0352 sob a função 20, exceto programa 20.846.352. • PROMOÇÃO DA PRODUÇÃO: constitui-se de programas de suporte à produção e desenvolvimento animal e vegetal como a formação de estoques de café por meio do sistema de opções, despesas com financiamentos de custeio e investimento (GASQUES et alli, 2006: 15). Essa categoria inclui as subfunções 20.601 e 20.602. • SERVIÇOS GERAIS:consistem de projetos de infra-estrutura, extensão rural (capacitação, treinamento e difusão de novas tecnologias), defesa sanitária, educação e pesquisa agropecuária. Composto pelos programas de extensão rural, irrigação, e desenvolvimento científico e tecnológico, com as subfunções, respectivamente, 20.607, 20.606 e 20.572, exceto programas 20.606.0351, 20.572.0351 e 20.572.0750. Diferentemente de outros autores, não incorporamos os gastos com reforma agrária e assentamento em Serviços Gerais (OCDE, 2005: 114).

progressivo proporcional ao tamanho da terra e créditos fundiários para aquisição de terra para trabalhadores carentes, jovens e pequenos proprietários familiares que desejam ampliar suas propriedades de terra (OCDE, 2005). Inclui a subfunção 21.631, exceto programa 21.631.0750. • PRONAF: objetiva recuperar assentamentos existentes, promover o desenvolvimento sustentável do meio rural e fortalecer e consolidar a agricultura familiar por meio de sua inserção nos mercados de fatores e produtos. Orienta-se sob três linhas de atuação (financiamento da produção, infra-estrutura, capacitação e profissionalização) por meio de investimento subsidiado e crédito de insumos (ORTEGA & CARDOSO, 2000). Inclui os programas 0351 sob as funções 20 e 21. Também foram definidas as seguintes categorias, integrantes tanto da classe das políticas agrícolas tradicionais quanto da organização agrária e agricultura familiar:

(b) Organização Agrária e Agricultura Familiar • REFORMA AGRÁRIA: conjunto de mecanismos como assentamentos, impostos diferenciados com aumento

• SUBVENÇÕES ECONÔMICAS, abrangendo itens do orçamento relacionados aos chamados "encargos especiais", incluindo subvenções a setores específicos, fiNOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 17


nanciamento de política fundiária, e empréstimos do governo (GASQUES et alli, 2006: 15-18), com exceção dos itens relativos ao PRONAF da subfunção Encargos Especiais. Inclui as subfunções 20.846 e 21.846, exceto o programa 0351 das funções 20 e 21. • ADMINISTRAÇÃO GERAL, representada pelas despesas correntes que não contribuem com a formação de capital, além de gastos com pessoal e encargos sociais do MAPA e do MDA. Inclui a subfunção 20.122 e os programas de código 0750 sob a função 20 (Administração MAPA) e a subfunção 21.122, exceto 21.122.0351, e os programas de código 0750 sob a função 21 (Administração MDA). Características e Evolução dos Gastos em Políticas Agrícola e Agrária no Brasil A análise desagregada do orçamento fiscal da União mostra uma forte concentração em despesas fixas com encargos especiais (basicamente refinanciamentos e serviços das dívidas interna e externa e transferências) e previdência, que corresponderam a 73% do total em 2005. Dos R$ 623 bilhões disponibilizados, as despesas com investimentos sociais essenciais - incluindo saúde, educação e assistência social - equivaleram a apenas 12% dos gastos federais (Gráfico 2). Uma visão da evolução dos gastos governamentais nas últimas duas décadas mostra uma tendência de queda progressiva na participação da agricultura, tanto em termos absolutos quanto como percentagem dos gastos públicos federais. Em 1987, aproximadamente 12% de todas as despesas governamentais eram destinadas a programas agrícolas, totalizando mais de US$ 32 bilhões (valores de 2005). Em 2003, esse valor foi reduzido para US$ 9 bilhões, equivalente a 1,6% dos gastos totais da União (Gráfico 3).

18 DIGESTO ECONÔMICO NOVEMBRO 2006

A redução nos gastos governamentais destinados a políticas voltadas à agricultura nos últimos 20 anos, tanto em termos absolutos (valores reais) quanto relativos (como percentagem do orçamento da União), ocorreu inserida no contexto das mudanças no cenário macroeconômico, das reformas liberalizantes e, mais recentemente, da priorização das questões relacionadas à inclusão social de agricultores e desempregados rurais e urbanos. A Tabela 2 mostra os valores e a composição dos gastos por administração desde a abertura democrática em 1985 até os dias de hoje. Desde o governo Sarney, nota-se uma redução nos gastos médios anuais com políticas agrícola e agrária de R$ 20,9 bilhões em 1985-1989 para R$ 10,7 bilhões em 2003-2005. Enquanto no governo Sarney a parcela dos gastos em políticas agrícola e agrária era de 5,6% dos gastos totais da União, essa parcela caiu para 1,8% nos três primeiros anos do governo Lula. A Tabela 2 também revela que houve uma mudança importante no direcionamento dos gastos do governo federal no que se refere à priorização entre políticas agrícolas ou políticas agrárias. No período estudado, os gastos médios anuais com políticas agrícolas tradicionais foram reduzidos de R$ 19,5 para R$ 5,8 bilhões, enquanto os gastos com organização agrária e agricultura familiar cresceram de R$ 1,3 para R$ 4,9 bilhões. O resultado é uma participação crescente nos programas de organização agrária e agricultura familiar nos gastos totais com agricultura de 6% no governo Sarney para 45% no governo Lula. Tal mudança de prioridade, que se inicia a partir da administração de Fernando Henrique Cardoso, é explicada em grande parte pelo estabelecimento do PRONAF em 1995 e pela criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) em 2000, cujos gastos administrativos totalizaram mais de R$ 440 milhões em 2005.


Outra grande mudança estrutural na política agrícola brasileira aconteceu no governo Lula. Em 2004, por exemplo, os gastos com reforma agrária e agricultura familiar superaram as despesas da União com programas agrícolas tradicionais tais como abastecimento, promoção da produção, e irrigação. Essa transformação apóia-se sobre duas premissas: (a) no modelo de inclusão social, em substituição à segurança alimentar; e (b) a desregulamentação do mercado e a opção pelas exportações, levando a uma dependência cada vez menor do mercado doméstico e do apoio governamental. A primeira premissa decorre da mudança de estratégia do governo federal, que nos últimos anos têm-se voltado para o desenvolvimento da agricultura familiar em detrimento da agricultura comercial. Nesse contexto, o aumento das verbas para o PRONAF e reforma agrária contrasta com a redução do apoio a políticas governamentais intervencionistas que, no

passado, garantiam preços mínimos e proteção aos produtores rurais nacionais, mas também da redução de investimentos em pesquisa e extensão agropecuária, defesa sanitária e outros serviços que favorecem a competitividade setorial. Essa mudança de prioridade nas políticas voltadas para a agricultura está alinhada com outros programas assistencialistas da administração Lula, incluindo os programas "bolsa-família" e os benefícios tradicionais da aposentadoria rural. O segundo ponto, relacionado à desregulamentação da economia, sugere que as mudanças nas políticas agrícolas estão alinhadas às reformas estruturais que levaram à redução da intervenção do Estado na economia, concomitantemente ao estímulo ao desenvolvimento da economia de mercado. Uma hipótese para a priorização dos gastos com organização agrária e agricultura familiar reside na "lógica da ação coletiva", segundo a qual a provisão de bens públicos é confrontada pela NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 19


atuação de grupos que fazem valer seus interesses particulares em determinados arranjos institucionais (OLSON, 1965). Em outras palavras, quando os benefícios são concentrados e os custos difusos, existem incentivos para a ação de grupos como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de outras entidades afins que, embora se tenham mobilizado ainda durante o governo FHC, acabaram ganhando força principalmente no contexto da tolerância e identificação com as políticas assistencialistas do governo Lula. Análise Desagregada dos Gastos com Políticas Agrícola e Agrária (2000-2005) Nos últimos seis anos, a distribuição do orçamento governamental com políticas agrícolas e agrárias mostra duas tendências distintas. De 2000 a 2003, os gastos totais com agricultura apresentaram queda constante, passando de R$ 11 bilhões a R$ 9 bilhões. Conforme observado no Gráfico 4, os gastos com políticas agrícolas tradicionais mostraram redução de R$ 7,4 bilhões para R$ 5,3 bilhões, enquanto os gastos com organização agrária e agricultura familiar mantiveram-se relativamente constantes, oscilando em torno de R$ 3,7 bilhões. A partir de 2003, percebe-se uma clara tendência de aumento das despesas com a agricultura, em particular com organização agrária e agricultura familiar, que em 2005 foram 40% superiores aos valores de 2003. Por outro lado, ainda que se verifique uma reversão na queda dos gastos com políticas agrícolas tradicionais em 2005, o orçamento do ano passado ainda foi inferior ao montante do início da década. Observa-se, ainda, grande concentração em poucas subfunções e uma diminuição no número de programas - 33 nas políticas agrícolas tradicionais e 13 em organização agrária em 2005 (GASQUES et alli, 2006: 19), tendência oposta à expansão observada nos últimos anos.

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O Gráfico 5 e a Tabela 3 mostram a desagregação dos gastos por categoria. No caso das políticas agrícolas tradicionais, a variação média anual dos gastos do governo federal no período 2000-2005 aponta para uma queda da ordem de 4% ao ano. A evolução recente dos gastos deve-se às variações dos orçamentos com abastecimento e promoção da produção. A alocação com subvenções econômicas, por sua vez, parece ser inversamente proporcional aos gastos com as categorias previamente descritas. Por exemplo, os gastos com promoção da produção foram praticamente nulos em 2004, enquanto as despesas com encargos especiais foram mais de 20% superiores quando comparadas ao ano anterior. A pecuária requer recursos para pesquisa e defesa sanitária.

Vitché Palacin/Folha Imagem


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A desagregação das despesas com serviços gerais mostra que a maior diminuição ocorreu na defesa sanitária, cujos gastos em 2005 foram de aproximadamente R$ 100 milhões e que sofreu uma redução média de 12% a.a. nos últimos cinco anos. A queda no orçamento com pesquisa agropecuária (rubrica "desenvolvimento tecnológico e engenharia") foi menos significativa, sendo que em 2005 foram investidos R$ 150 milhões, valor um pouco abaixo do patamar de 2000. Dentre a categoria de serviços gerais, somente programas de extensão rural receberam um aumento de gastos no período estudado, chegando a R$ 175 milhões em 2005. No caso das subvenções econômicas para políticas agrícolas tradicionais, uma análise detalhada mostra que os gastos com crédito rural vêm apresentando tendência de redução nos últimos 30 anos, apesar do crescimento contínuo a partir de 2000. De acordo com CHADDAD & JANK (2005), as fontes não-tradicionais de crédito provenientes de bancos privados e instituições financeiras internacionais substituíram em parte as fontes oficiais de crédito rural nesse período. Com relação à organização agrária e agricultura familiar, o crescimento médio anual de 8,9% ao ano foi impulsionado principalmente pelos programas de apoio à agricultura familiar (PRONAF) que, em 2005, corresponderam à maior parte do orçamento dessa categoria, totalizando aproximadamente 36% das despesas realizadas. Dessas, mais de 90% corresponderam a encargos especiais, principalmente por meio de crédito rural aplicado (BRASIL, 2006). Assim como o PRONAF, os gastos com reforma agrária representam parte significativa das despesas com agricultura, alcançando R$ 1,7 bilhão em 2005, valor quase um quarto superior ao orçamento de 2003 e 2004 e basicamente representado por assentamentos, dos quais 80% correspondem ao Programa Novo Mundo Rural.

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Em 2005, as subvenções econômicas em organização agrária e agricultura familiar totalizaram R$ 1 bilhão, sendo basicamente compostas por crédito fundiário (R$ 427 milhões), despesas com assentamentos (R$ 364 milhões) e desenvolvimento sustentável (R$ 228 milhões). Finalmente, concluímos que existem não apenas movimentações dos recursos entre as diferentes categorias - política agrícola tradicional e organização agrária e agricultura familiar - mas também entre categorias de uma mesma classe. Na política agrícola tradicional, parece haver alternância entre alocações com abastecimento ou promoção da produção de um lado e subvenções econômicas de outro. Com relação à organização agrária, a complementaridade parece ocorrer entre o PRONAF e as outras categorias. Em ambas as classes verificam-se evoluções dos gastos administrativos, particularmente a partir de 2003. Gastos em Bens Públicos versus Gastos Dirigidos Uma questão importante em qualquer política pública é a distribuição dos benefícios dos programas adotados pelo governo. Para fins deste estudo, além das classes e categorias das despesas com políticas agrícolas e agrárias, efetuamos também divisão baseada em bens públicos (relativos aos benefícios sociais do programas estendidos a toda a sociedade) e os gastos dirigidos, cujos programas possuem um caráter discricionário, em que certos atores são privilegiados em função de necessidades específicas ou conveniência das circunstâncias. No presente trabalho, os gastos dirigidos incluem as despesas com subvenções econômicas em geral, reforma agrária, PRONAF e outros gastos de organização agrária, sendo o restante - com exceção dos gastos administrativos - classificado como bem público.


O Gráfico 6 mostra que, excluídas as despesas com administração, a maior parte dos recursos destinados recentemente às políticas agrícolas e agrárias foi destinada a gastos dirigidos. Em 2005, por exemplo, os gastos dirigidos foram aproximadamente duas vezes superiores aos gastos com bens públicos e alcançaram R$ 6,5 bilhões. Nota-se também uma tendência de redução dos gastos em bens públicos de R$ 3,8 bilhões em 2000 para R$ 1,3 bilhão em 2004, ao passo que os gastos dirigidos aumentaram no mesmo período. A variação em anos recentes deve-se às flutuações com as verbas destinadas ao PRONAF e, principalmente, devido às subvenções econômicas do MDA, que totalizaram mais de R$ 1 bilhão no ano passado. Essa tendência de diminuição de gastos com bens públicos beneficiando todos os produtores agropecuários é preocupante porque prejudica a competitividade atual e futura do agronegócio brasileiro. A redução dos gastos com pesquisa agropecuária e defesa sanitária - analisadas a seguir - são exemplos recentes das conseqüências negativas da mudança de prioridade nas políticas públicas voltadas à agricultura.

Paulo Liebert/AE

Gastos Públicos com Pesquisa Agropecuária: o caso da Embrapa. Tal como foi salientado na seção 2.1, foram os investimentos públicos realizados em pesquisa e extensão agropecuária desde a década de 1970 que permitiram o desenvolvimento e disseminação de novas tecnologias tropicais. A introdução dessas tecnologias explica, em grande parte, os ganhos de produtividade na agricultura brasileira e a expansão da fronteira agrícola. Projetos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico na agricultura ocorreram em diversos institutos de pesquisa e universidades públicas espalhadas pelo país, mas foi a Embrapa que despontou mundialmente como líder em tecnologias voltadas à agricultura tropical. Fundada em 1974, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária compreende uma rede de 37 centros de pesquisa, 3 unidades de serviço e 11 unidades centrais, empregando aproximadamente 2.000 pesquisadores (OCDE, 2005: 112).

Variedades de grãos de café recolhidos nas fazendas do grupo Veloso em Carmo do Paranaíba, em Minas Gerais.

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O milho é uma das culturas em que se usa semente geneticamente modificada). O Gráfico 7 mostra a evolução do orçamento da Embrapa desde a sua criação. Observamos duas tendências bastante claras, com oscilações em torno de um valor médio crescente até 1996 e redução gradativa nos últimos dez anos. Entre 1996 e 2005, o orçamento da Embrapa sofreu um corte real da ordem de 30%, caindo de R$ 1,4 para pouco menos de R$ 1 bilhão. Muitos dos gastos em pesquisa e desenvolvimento agropecuário não aparecem descritos como despesas públicas, pois provêm de captações externas e convênios com instituições internacionais (GASQUES et alli, 2006). Assim, embora 90% do orçamento da entidade ainda têm como origem dotações da União, é cada vez maior a dependência de recursos de fontes alternativas para o financiamento das pesquisas. Entretanto, parte significativa do orçamento da Embrapa é destinada ao pagamento de pessoal, com uma parcela reduzida destinada a investimentos em desenvolvimento científico e tecnológico. Em 2005, por exemplo, 70% do orçamento de R$ 956 milhões alocados para a entidade destinaram-se aos salários e benefícios dos empregados, 20% foram empregados em operações de custeio e somente 10% acabaram aplicados em capital. A redução do orçamento da Embrapa desde 1996 e o comprometimento de 90% desse orçamento em gastos correntes podem atrasar o desenvolvimento e adoção de novas tecnologias e assim reduzir os ganhos de produtividade e comprometer a competitividade futura do setor. Em uma pesquisa realizada pela revista Exame com 148 líderes do agronegócio em 2004, a redução nas verbas de pesquisa da Embrapa foi apontada como uma das três principais barreiras internas para o desenvolvimento do setor (EXAME, 2004).

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Marcos Bergamasco/Folha Imagem


Gastos Públicos com Defesa Sanitária e a Volta da Febre Aftosa O forte crescimento da produção de carnes registrado no Brasil desde 1990 foi impulsionado principalmente pelo aumento da demanda por proteínas animais em outros países em desenvolvimento. A exportação de carnes (bovina, suína e de frango) do Brasil cresceu de US$ 360 milhões em 1990 para US$ 7,5 bilhões em 2005. Durante esse período, as exportações de carne bovina cresceram a uma taxa média de 31% ao ano, ultrapassando US$ 2 bilhões em 2004. Além do aumento da demanda no mercado externo, esse crescimento das exportações de carne bovina deve-se muito aos esforços concentrados de erradicação da febre aftosa no país envolvendo políticas públicas e o setor privado. Em 1992, o país iniciou o Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa e passou a coordenar esforços de defesa sanitária com países vizinhos (LIMA et alli, 2005). Como resultado desses esforços, o número de casos de febre aftosa no país foi substancialmente reduzido (Gráfico 8), o que levou a Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) a reconhecer vários Estados como áreas livres de aftosa com vacinação. Apesar desses avanços no controle da aftosa, as exportações brasileiras de carne bovina ainda enfrentam barreiras sanitárias em importantes países importadores, incluindo os Estados Unidos, Japão, México, Coréia do Sul, Canadá e China, mercados que importaram o equivalente a US$ 7,5 bilhões de carne bovina in natura em 2004. Apesar de o Brasil ter evoluído no controle da febre aftosa, o aparecimento de novos casos - em outubro de 2005 no Mato Grosso do Sul e depois no Paraná - mostra que o investimento constante em defesa sanitária é imprescindível para um grande produtor e exportador agrícola. Como reação a esses casos, mais de 50 países impuseram barreiras à carne bovina e/ou suína brasileira de todo o país ou dos estados afetados e vizinhos, destacando-se dentre eles, União Européia, Rússia, Egito e Chile, que são os quatro maiores países importadores do Brasil. Para controlar o foco, mais de 40.000 animais foram sacrificados, frigoríficos reduziram suas atividades, preços pagos aos produ-

tores caíram e muitos empregos foram perdidos. Essa reação em cadeia prejudica a imagem e a confiança dos consumidores no produto brasileiro, o que não é nada interessante ao País. Produtores e frigoríficos rapidamente colocaram a culpa pela crise na falta de investimentos do governo em defesa sanitária, enquanto o Presidente Lula declarou que os produtores são os responsáveis pela vacinação do gado. Durante a crise, muitos especialistas do setor sugeriram que era somente uma questão de tempo para a febre aftosa ressurgir no país. Essa crise demonstra claramente o custo de oportunidade da redução dos investimentos em bens públicos (como defesa sanitária) pelo governo federal. Isso mostra que a competitividade internacional do agronegócio brasileiro depende de investimentos em infra-estrutura, pesquisa e desenvolvimento, defesa sanitária e outros bens públicos. Comparações Internacionais O relatório Review of Agricultural Policies: Brazil publicado em 2005 pela OECD revela que o Brasil é um dos países que menos gastam em políticas agrícolas e agrárias dentre os países com agricultura desenvolvida. A estimativa de suporte ao produtor agrícola nacional não ultrapassa 3% do valor bruto da produção, enquanto esse suporte chega a 58% no Japão, 34% nos países da União Européia, 21% no México, 17% nos EUA, e 8% na China (Gráfico 9). Visando comparar os gastos com políticas agrícola e agrária no Brasil com outros países, foi feita uma pesquisa dos gastos realizados entre os maiores países exportadores - incluindo os Estados Unidos e países da União Européia - com pesquisa e extensão agropecuária, defesa sanitária, e outros bens públicos que favorecem todos os produtores e promovem a competitividade do setor. A comparação dos gastos com defesa sanitária mostra a atenção que grandes países produtores, e ao mesmo tempo importadores, de produtos agrícolas dão ao tema (Tabela 4). É importante notar que os temas que compõem o que se entende por defesa sanitária agregam não somente a segurança dos alimentos (saúde humana), saúde animal e vegetal, mas também fiscaliNOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 25


zação de produtos e, em certos casos, a criação de padrões sanitários e fitossanitários. Isso reflete uma diferença nas estruturas das agências ou órgãos de defesa sanitária, que passam a cuidar de novos temas como rastreabilidade, bem-estar animal e outros assuntos que favorecem um manejo sanitário mais adequado e maior aceitabilidade pelos consumidores. Outro dado que merece ser citado é o investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) feito por países como os EUA e a União Européia. Dentro do programa Agricultural Research Service (ARS), os EUA investiram US$ 1,3 bilhão em 2005, ao passo que dentro do Sixth Framework Programme, a rubrica "food quality and safety" tem um fundo de 685 milhões de euros previstos para o período de 2003-2006 na União Européia. Desafios das Políticas Agrícola e Agrária Nos últimos anos, a tendência de redução nos gastos públicos com a agricultura, tanto em termos absolutos (valores reais) quanto relativos aos gastos totais da União, foi acompanhada de mudanças estruturais na condução das políticas agrícolas e agrárias. Estas deixaram de enfocar a garantia da segurança alimentar, priorizando o desenvolvimento da agricultura familiar e a reforma agrária como formas de se promover a inclusão social. Uma análise por meio da desagregação das despesas do governo mostra que os gastos com organização agrária e agricultura familiar têm experimentado forte crescimento a partir de 1995. Da mesma forma, sob a óptica dos bens públicos, observa-se uma tendência preocupante na redução das despesas com serviços gerais beneficiando o setor como um todo, em oposição ao orçamento de iniciativas com gastos dirigidos como o PRONAF. Argumentamos que tais movimentos decorrem da ação de

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grupos de interesse cujas ações acabam favorecidas por um arranjo institucional favorável e de uma falsa dicotomia entre "agricultura familiar" e "agricultura patronal". Essa dicotomia se origina de falsas premissas que "agricultura familiar" é fundamentalmente diferente (e mais desejável) que a "agricultura patronal" e que o "agronegócio" é inimigo do produtor agropecuário e do desenvolvimento do país 2. Essas premissas, apesar de cristalizadas na percepção de muitos líderes políticos e refletidas nos gastos com as políticas agrícola e agrária, não têm nenhuma fundamentação teórico-conceitual e levam a desperdícios de recursos públicos em programas de eficácia e eficiência duvidosas, na redução de gastos em bens públicos (como pesquisa, desenvolvimento e extensão agrícola, defesa sanitária, e infra-estrutura) que reduzem a competitividade presente e futura do agronegócio do país. Pior, a falta de políticas agrícola e agrária coerentes e complementares faz com que o país perca uma oportunidade histórica de se tornar o principal fornecedor mundial de alimentos e fibras e consiga interiorizar o seu desenvolvimento econômico e social.

2 VEIGA (1996) apresenta uma nítida visão neste sentido, ao afirmar que

"a agricultura patronal, com suas levas de bóias-frias e alguns poucos trabalhadores residentes vigiados por fiscais e dirigidos por gerentes, engendra forte concentração de renda e exclusão social, enquanto a agricultura familiar, ao contrário, apresenta um perfil essencialmente distributivo, além de ser incomparavelmente melhor em termos sócio-culturais. Sob o prisma da sustentabilidade (estabilidade, resiliência e equidade), são muitas as vantagens apresentadas pela organização familiar na produção agropecuária, devido à sua ênfase na diversificação e à maior maleabilidade de seu processo decisório. A versatilidade da agricultura familiar se opõe à especialização cada vez mais fragmentada da agricultura patronal".


Dentre os desafios presentes no contexto das atuais políticas para a agricultura encontram-se: (a) a redução nos gastos públicos com o setor comprometendo sua competitividade; (b) a falta de avaliação sistemática dos programas - principalmente da reforma agrária e do PRONAF; e (c) a crescente politização do orçamento, em detrimento de uma análise mais técnica do balanço entre bens públicos e gastos direcionados. GASQUES (2001) aponta duas conseqüências importantes decorrentes da redução nos gastos com políticas agrícolas. O primeiro refere-se à natureza pública dos gastos, incluindo áreas de pesquisa agropecuária, defesa animal e vegetal, e comercialização da produção. O impacto negativo da febre aftosa sobre as exportações do agronegócio é um exemplo dos efeitos da falta de maiores investimentos em vigilância sanitária (LIMA et alli, 2005). O segundo aspecto envolve os investimentos privados, que costumam acompanhar os gastos públicos; ou seja, a redução dos gastos com políticas públicas na agricultura ocasionaria uma queda nos investimentos do setor privado. Na definição de políticas específicas para a agricultura e o agronegócio, a limitação de recursos vai exigir ações centradas em, no máximo, duas ou três iniciativas que, de preferência, deveriam focar-se sobre iniciativas com geração de bens públicos em vez de se pautar sobre programas dirigidos como securitização de dívidas e crédito rural. Outro desafio é o da coordenação dos inúmeros programas presentes nos diferentes ministérios (MAPA, MDA e Meio-Ambiente), com a eliminação de confrontos e duplicidades. Uma análise mais criteriosa dos programas é imperativa a fim de se promover uma avaliação imparcial de iniciativas como o PRONAF, cujos impactos econômicos e sociais ainda precisam ser devidamente avaliados. Embora alguns estudos indiquem que esses programas venham contribuindo com o desenvolvimento rural (ABRAMOVAY & VEIGA, 1999), em ou-

Laranjas em Limeira, São Paulo: a exportação garante a sustentação econômica para o produtor.

Eduardo Nicolau/AE

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Três desafios presentes no contexto das atuais políticas para a agricultura: redução nos gastos públicos com o setor comprometendo sua competitividade; falta de avaliação dos programas, como o da reforma agrária e o da Agricultura Familiar; crescente politização do orçamento, em detrimento de uma análise mais técnica do balanço entre bens públçicos e gastos direcionados.

J. F. Diorio/AE

Colheitadeira numa plantação de algodão na Fazenda Ribeiro do Céu em Nova Mutum, Mato Grosso.


Biotecnologia. O campo já chegou ao futuro. Tony Genérico/Samba Photo

O Brasil é o terceiro maior produtor mundial de milho, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da China.


tros se argumenta que, do ponto de vista da produtividade, o desempenho das famílias beneficiadas com o PRONAF foi significativamente diferente da média da agricultura brasileira (FEIJÓ, 2003). A questão principal, entretanto, é que a ausência de indicadores e procedimentos sistemáticos de avaliação contribui para a falta de transparência e maior eficiência da gestão das políticas agrícolas. Finalmente, a politização do orçamento é um tema que mereceria maior atenção. Se por um lado é legítima a incorporação das demandas de grupos sociais na alocação dos recursos públicos, também é necessário avaliar os benefícios para a sociedade como um todo. O modelo atual de políticas agrícolas e agrárias, baseado na redistribuição de terras e no crédito subsidiado à "agricultura familiar", não tem promovido uma real e efetiva inserção sustentável dos produtores no mercado. Ter direito somente ao uso-fruto da terra e crédito subsidiado a fundo perdido via PRONAF não garante que esses produtores terão sucesso na produção e comercialização de produtos agrícolas. Pelo contrário, através da política atual o governo cria uma contingente de dependentes dos cofres públicos, uma vez que o Estado não distribui títulos de propriedade da terra aos assentados e não consegue emancipar a maioria dos assentamentos. Vários trabalhos mostram que o desenvolvimento econômico não decola e o problema da pobreza persiste em países onde os direitos de propriedade não são claramente definidos e protegidos (NORTH, 1990; DE SOTO, 2000; SACHS, 2005). O desperdício de recursos públicos torna-se inevitável quando dois ministérios (MAPA e MDA), sem coordenação, competindo por recursos cada vez mais escassos, com gastos crescentes com administração e burocracia, adotam políticas com objetivos muitas vezes conflitantes e pulverizam recursos escassos em uma centena de programas que não são monitorados e avaliados. De que forma as políticas agrícolas e agrárias poderiam retornar à racionalidade? Como veremos a seguir, o desafio comum dos policy makers no mundo todo - tanto em países desenvolvidos quanto nos países em desenvolvimento - é implementar políticas que favoreçam a inserção sustentável dos produtores no mercado, cada vez mais competitivo, concentrado e globalizado. Nesse contexto, o desafio da política pública é adotar programas que desenvolvam o empreendedorismo entre os produtores agrícolas. Entretanto, antes de discutirmos esse papel das políticas agrícolas e agrárias, faz-se necessária a análise das transformações recentes do ambiente competitivo onde o produtor se insere, a qual é realizada na próxima seção. 3. INDUSTRIALIZAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO DO SISTEMA AGROALIMENTAR NO BRASIL Enquanto as políticas agrícolas e agrárias no Brasil evoluíram de forma a deixar produtores sem adequado acesso a mercados e serviços fundamentais, pela redução da oferta de bens públicos, o sistema agroalimentar 3 se transformou radicalmente nos últimos anos. Esse processo de transformação foi caracterizado como a "comercialização" (PINGALI & ROSEGRANT, 1995) e "industrialização" da agricultura (REARDON & BARRETT, 2000).

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Impulsionada pelo crescimento da renda e pelos processos de urbanização, mudança tecnológica e globalização, a agricultura está se tornando cada vez mais intensiva em capital e integrada com os estágios antes e depois da porteira. Em decorrência desse processo, as diversas cadeias produtivas que compõe o sistema agroalimentar se tornam cada vez mais coordenadas verticalmente por agentes privados. Tais cadeias "estritamente coordenadas" são organizadas como resposta estratégica dos participantes do agronegócio frente às demandas de mercados cada vez mais diferenciados (ZYLBERSZTAJN & FARINA, 1999). Como resultado desse processo de transformação, os mercados ficam cada vez mais demandantes em termos de segurança e qualidade dos alimentos, mais concentrados e integrados, e mais abertos à competição internacional. A "industrialização" da agricultura traz implicações bastante importantes para a inserção dos produtores no mercado. As mudanças estruturais da industrialização da agricultura oferecem novas oportunidades para os produtores que conseguem se ajustar ao novo ambiente de negócios, mas também colocam sérios riscos aos produtores que não conseguem se adaptar e se inserir no mercado. Torna-se, então, fundamental entender esse processo de transformação da agricultura para informar uma agenda futura de políticas agrícolas e agrárias voltadas para a inserção competitiva dos produtores ao mercado. 3.1. O Processo de Transformação da Agricultura É bem estabelecido na literatura que a estrutura do setor agrícola e o seu papel na economia mudam com o desenvolvimento econômico, especialmente quando a renda per capita do país cresce. Essa transformação traz importantes implicações para a agricultura, incluindo: • Quando o país cresce e sua economia se diversifica, a participação da agricultura na renda nacional e no emprego cai. • Quando a renda per capita do país cresce, o trabalho fica mais caro relativo à terra e ao capital, e pequenas propriedades tornam-se menos competitivas relativamente a propriedades maiores e mais capitalizadas. Esse processo leva à migração de trabalhadores rurais para as cidades. • Quando a renda per capita do país cresce, os consumidores diversificam sua dieta e demandam alimentos de maior valor agregado. Dessa forma, aumenta a demanda por alimentos processados, de melhor qualidade e de preparo mais conveniente. O processo de urbanização acentua essas tendências no consumo de alimentos. Em decorrência dessas mudanças, as unidades de produção agrícolas tornam-se maiores, mais comerciais (isto é, mais vol-

3 Os termos "sistema agroalimentar", "sistema agroindustrial" e "agronegócio" serão utilizados como sinônimos nesse trabalho.


tados ao mercado) e mais especializadas em produtos de maior valor agregado. Muitos pequenos proprietários são forçados a deixar o setor, enquanto outros se adaptam na produção de produtos mais específicos - se integrando em redes, cooperativas, ou cadeias estritamente coordenadas - ou buscam fontes de renda alternativas fora da fazenda. De forma geral, oportunidades para os trabalhadores rurais que abandonam o setor tendem a aumentar com o crescimento da economia. Essas mudanças são resultados normais - e até desejáveis do processo de desenvolvimento econômico. Entretanto, os desafios atuais da agricultura no mundo todo surgem porque esse processo de transformação da agricultura está acontecendo em escala e rapidez jamais vistos, principalmente na China e na Índia. Adicionalmente, novos fatores de mudança - globalização, liberalização comercial, e a aplicação de tecnologias biológicas, de informação e de comunicação na agricultura levam ao surgimento de um sistema agroalimentar globalizado. As mudanças estruturais do processo de globalização do sistema agroalimentar colocam desafios crescentes para produtores agrícolas tanto nos países desenvolvidos, quanto nos países em desenvolvimento. Na maioria dos países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, a agricultura já fez uma primeira transição de um modelo "tradicional", baseado na subsistência, para um modelo comercial, onde a produção agrícola é mais influenciada pelo mercado. Essa primeira transição ocorre como uma resposta aos processos de crescimento econômico, urbanização e diversificação de dietas (Tabela 5). O segundo, e mais recente, estágio desse processo de transformação - para um modelo "glo-

balizado" - difere consideravelmente do primeiro estágio, pois ocorre principalmente devido à influência do setor privado. O modelo globalizado é caracterizado pela concentração industrial, maior integração e interdependência entre produtores e os demais participantes do sistema agroalimentar, e pela maior ênfase em padrões privados de qualidade e segurança alimentar (Tabela 5). O processo de transformação da agricultura é um fenômeno global, que já se consolidou ou está ocorrendo em praticamente todos os continentes. No modelo globalizado, o setor privado é o agente transformador ao adotar estratégias competitivas em resposta a mudanças constantes de mercado e introdução de novas tecnologias (Tabela 6). As cadeias agroindustriais da soja, suco de laranja e do frango de corte são exemplos dessa transformação já consolidada, enquanto as cadeias do café, açúcar e álcool, leite, e carne bovina são exemplos de transformação em andamento no Brasil. Segundo um relatório de pesquisa da FAO, que analisa a globalização da agricultura em vários países (PINGALI et alli, 2005), esse processo de transformação da agricultura muitas vezes exclui determinados países ou regiões pelas seguintes razões: • Existência de condições de demanda não favoráveis, como densidade populacional baixa e falta de mercados de exportação. • Localização em áreas com limitações biofísicas ou sócio-econômicas para produção agrícola, incluindo áreas propensas à erosão, solos de baixa fertilidade, falta de chuva ou regiões distantes de mercados ou sem acesso ao mar. NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 31


• Ineficiências do ambiente institucional, incluindo sistemas fracos de governança, direitos de propriedade mal definidos e sem proteção legal, e oferta insuficiente de bens públicos. • Políticas públicas incoerentes com viés anti-agricultura ou favorecendo grupos de pressão. 3.2. A Transformação do Sistema Agroalimentar no Brasil: 1990-2005 A transformação do sistema agroalimentar brasileiro a partir de 1990 pode ser analisada de acordo com o modelo conceitual proposto por REARDON & BARRETT (2000) ilustrado no Gráfico 10. Mudanças nos hábitos de consumo de alimentos Os processos de crescimento da renda, urbanização, de participação da mulher na força de trabalho, e a emergência de um padrão de vida "urbano-industrial" acarretam em mudanças significativas nos padrões de consumo de alimentos. Com o crescimento da renda, a população passa a consumir alimentos de maior valor agregado e adotam dietas mais próximas aos padrões americano e europeu. Dessa forma, a demanda por proteínas animais (carnes e lácteos), frutas e verduras frescas, e alimentos processados e de preparo conveniente crescem rapidamente. Inovações tecnológicas A industrialização e globalização da agricultura não seriam possíveis sem o desenvolvimento de novas tecnologias aplicadas na produção agrícola e no processamento de alimentos.

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Dentre elas destaca-se a biotecnologia com a introdução de sementes geneticamente modificadas a partir de 1996. Desde então, os impactos positivos da biotecnologia foram estimados em US$ 27 bilhões em benefícios econômicos aos produtores e redução de 172 milhões de kg na aplicação de defensivos agrícolas (BROOKES & BARFOOT, 2005). Apesar de seu enorme potencial, a adoção de sementes geneticamente modificadas concentrou-se em seis países (África do Sul, Argentina, Brasil, Canadá, China, e Estados Unidos) e somente 4 culturas (milho, soja, colza e algodão) até 2003 (FAO, 2004). Apesar do potencial em aumentar a produtividade na agricultura e o valor nutritivo de alimentos, e reduzir impactos ambientais, a biotecnologia foi mal recebida pelo público em alguns países, pela percepção negativa sobre os efeitos de produtos geneticamente modificados na saúde humana e também por preocupações acerca do controle da tecnologia por um pequeno número de empresas privadas. A experiência do Brasil com a adoção da biotecnologia é no mínimo curiosa. Enquanto o Congresso levou 10 anos para regulamentar a pesquisa, o plantio e a comercialização de organismos geneticamente modificados (OGMs), deixando para trás a avançada lei de biossegurança de 1995, produtores da região Sul plantavam soja com sementes transgênicas contraCarregamento de soja no terminal da Ferronorte, em Mato Grosso. Destino: porto de Santos.

bandeadas de países vizinhos. Durante esse período de indefinição, o governo teve que liberar a comercialização da soja transgênica por meio de medidas provisórias. A novela se estendeu quando o governador do Paraná proibiu o embarque de soja transgênica no porto de Paranaguá. A politização da adoção da biotecnologia no Brasil atingiu seu ápice com a invasão e destruição de campos experimentais por organizações não governamentais radicais. Mais recentemente, o Brasil foi o único país grande exportador de soja a assinar o Protocolo de Cartagena, que estabelece regras de identificação de cargas contendo organismos vivos modificados (OVMs), que podem aumentar os custos da produção e exportação dos grãos dependendo de como as negociações do Protocolo caminhem (SILVEIRA, 2006). Apesar da aprovação da Lei de Biossegurança em 2005, a comissão responsável pela implementação da lei na prática (CTNBio) é um típico caso de instituição "inefficient by design", ou seja, feita para não funcionar. Além da biotecnologia, agricultura de precisão, sistemas de informação geográfica (GIS), rastreabilidade e a internet são novas tecnologias à disposição do produtor para aumentar a produtividade, reduzir o uso de fertilizantes e defensivos químicos, ter acesso à informação, permitir melhor manejo sanitário e se conectar aos mercados. Entretanto, a adoção e uso dessas tecnologias requerem capital de investimento e capacidade de gestão. Em vez de dificultar a adoção de novas tecnologias, o governo deveria ser mais pró-ativo em favorecer a disseminação de novas tecnologias para o maior número possível de produtores. Abertura comercial, integração econômica e crescimento do comércio internacional

Eduardo Nicolau/AE

O processo de transformação do sistema agroalimentar também é influenciado pelo comércio internacional de commodities agrícolas e alimentos processados. Em 2000, o comércio internacional de produtos agrícolas foi avaliado em US$ 449 bilhões, representando um valor duas vezes maior que em 1980 (FAO, 2005). Entretanto, esse crescimento foi inferior ao comércio de produtos manufaturados, que triplicou no mesmo período. As tarifas consolidadas para produtos agrícolas permanecem altas, com uma média de 40%, enquanto a média para produtos manufaturados fica em 10% (FAO, 2005). O crescimento do comércio internacional ocorreu em decorrência de um lento processo de liberalização comercial com o Acordo Agrícola da Rodada Uruguai do GATT e as subseqüentes negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) no nível multilateral; com a formação de blocos econômicos e tratados de livre comércio (Mercosul, Nafta, Asean, entre outros) a nível regional; e também com a adoção de programas de ajuste estrutural e abertura comercial a nível nacional, tal como foi o caso brasileiro a partir de 1987. Entretanto, esse aumento do comércio internacional não beneficiou muitos países em desenvolvimento, principalmente devido a distorções causadas pelo protecionismo agrícola dos países desenvolvidos. Apesar da lentidão das reformas nas políticas agrícola e comercial no mundo desenvolvido, algumas características do comércio agroalimentar mudaram consideraNOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 33


Nós estamos os cantos do

Mas tivemos problemas com a febre aftosa nas exportações. Sinal da falta de investimentos em vigilância sanitária.

Benonias Cardoso/Folha Imagem


em todos mundo

Jonne Roriz/AE

Museu do Café no Palácio da Bolsa Oficial de Café em Santos, marco da história da cafeicultura em São Paulo. O museu narra o sucesso da produção e exportação de café pelo País.


velmente nas duas últimas décadas. A principal mudança é o crescimento do comércio de alimentos processados, que ultrapassaram as matérias-primas agrícolas em importância. A participação de alimentos processados no comércio agroalimentar subiu de 27% em 1970 para 58% em 1999 (SENAUER & VENTURINI, 2001). O Brasil se destacou entre os países em desenvolvimento no crescimento da participação no comércio agrícola internacional. Argentina, Brasil, Malásia, Tailândia e Taiwan são responsáveis por 40% das exportações de alimentos processados por países em desenvolvimento. Um relatório da UNCTAD (1997) identifica as principais oportunidades e barreiras para a diversificação da pauta de exportação e o aumento da exportação de alimentos processados por países emergentes. O relatório aponta fatores favoráveis ao desenvolvimento das exportações agrícolas, incluindo proximidade geográfica e cultural com os países importadores e existência de um mercado doméstico suficientemente grande para gerar economias de escala e escopo. Entretanto, o acesso a mercados é restrito devido a barreiras técnicas e fitossanitárias, exigência de altos padrões de qualidade e segurança alimentar, controle de canais de distribuição por conglomerados multinacionais, e confiabilidade de fornecimento relacionado a problemas de logística e infra-estrutura. O desafio para a política pública é facilitar a inserção do produtor nacional nos mercados de exportação através de investimentos em infra-estrutura e logística, defesa sanitária, sistemas de rastreabilidade e certificação de qualidade, além de continuar com uma agenda agressiva de liberalização do comércio agrícola internacional nas negociações multilaterais e regionais. Entrada de multinacionais na indústria e varejo alimentar Além do aumento do comércio internacional de produtos agrícolas e alimentos, a globalização do sistema agroalimentar também é caracterizada pelo aumento do fluxo de capitais e investimentos externos diretos na agroindústria e varejo alimentar nos países em desenvolvimento. Muitos fatores estão relacionados a esse aumento de investimento estrangeiro direto (IED): (a) baixo crescimento do mercado doméstico nos países desenvolvidos; (b) rápido crescimento das economias emergentes; (c) liberalização do fluxo de capital e ambiente receptivo a investimentos externos nos países em desenvolvimento; (d) formação de acordos de livre comércio e blocos comerciais; (e) estratégia de originação global (global sourcing) das empresas de processamento de alimentos e varejo; e (f) estratégias de marketing global de empresas multinacionais. O total do fluxo de capital na forma de IED para os países em desenvolvimento cresceu de US$ 36 bilhões em 1989-1991 para US$ 193 bilhões em 2001-2003. Esse fluxo de capital representa 10,5% da formação bruta de capital nos países emergentes, enquanto o estoque de IED atualmente chega a 26,5% do PIB nesses países. O fluxo de IED no sistema agroalimentar dos países em desenvolvimento atingiu US$ 4,8 bilhões em 2001-2003 (UNCTAD, 2005). A partir das mudanças estruturais iniciadas no início dos anos 1990, o agronegócio no Brasil tornou-se um grande recep-

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tor de IED. Empresas multinacionais atuando no processamento e varejo de alimentos entraram ou aumentaram seus investimentos no país a partir de 1990. Com o ingresso crescente de IED, a participação de mercado de empresas multinacionais aumentou no agronegócio brasileiro. As empresas multinacionais que atuam no agronegócio geraram 137 mil empregos, US$ 5 bilhões em exportações, e US$ 17 bilhões de faturamento no país em 2000 (AZEVEDO et alli, 2004). Entre as dez maiores empresas de processamento de alimentos, oito têm suas sedes em outros países. Dados mais recentes de IED mostram que o fluxo de capital no sistema-agroalimentar totalizou US$ 8,2 bilhões entre 2001 e 2004 (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2006). Criação de porcos na Fazenda Bahia, em Mato Grosso. A demanda por proteínas animais crescem rapidamente.

Eduardo Knapp/Folha Imagemredito

A entrada de IED alterou significativamente a estrutura do sistema agroalimentar no Brasil, incluindo transnacionalização e concentração industrial (FARINA & VIEGAS, 2002). A entrada de grandes corporações multinacionais acarretou na saída de muitas pequenas e médias empresas. Adicionalmente, o tradicional dualismo entre o mercado doméstico e o setor exportador foi gradualmente eliminado em várias cadeias agroindustriais. Ao aprofundar sua presença no agronegócio brasileiro, empresas multinacionais adotaram as culturas e padrões operacionais de seus países de origem, que passaram a ser encarados como o benchmark para as empresas de capital nacional. Isso trouxe efeitos positivos para a economia como o aumento da produtividade, a inovação de produtos e processos, e a formação de capital. Além disso, as corporações multinacionais adotam práticas de aquisição de matérias-primas agrícolas, que demandam relacionamentos mais próximos e de longo prazo com seus fornecedores (os produtores agrícolas). Como veremos a seguir, mercados spot são substituídos por contratos e outros mecanismos privados de coordenação vertical, que muitas vezes dificultam o acesso a mercados para produtores de pequena escala. Uma característica marcante do sistema agroalimentar globalizado é a adoção de padrões rígidos de qualidade, incluindo HACCP, ISOs, rastreabilidade e padrões privados de qualidade.


Concentração industrial As reações estratégicas de empresas ao processo de globalização da agricultura estão acarretando em maior concentração industrial. Esse processo é mais forte nos setores mais a jusante nas cadeias agroindustriais com a reorganização dos canais de distribuição. Empresas atuando no varejo e serviços de alimentação competem por participação de mercado global ao aumentar operações de fusões e aquisições tanto nos seus países de origem quanto em economias emergentes. Esse processo é ilustrado pelo crescimento recente das redes Cia. Brasileira de Distribuição (agora controlada pela rede francesa Casino), WalMart e Carrefour no Brasil, as quais já controlam 39% do varejo no país. Além de alcançar economias de escala e escopo, a concentração nos canais de distribuição fornece ímpeto adicional para as empresas que atuam na indústria alimentar a também se consolidar. Essa tendência de consolidação é bastante clara nos Estados Unidos, onde a participação de mercado das vinte maiores empresas processadoras de alimentos subiu de 36% em 1987 para 51% em 1997 (ROGERS, 2001). No Brasil, o processo de consolidação industrial atingiu seu ápice na cadeia do suco de laranja, mas se espalha em outras cadeias como lácteos, carnes e soja (AZEVEDO et alli, 2004). As cadeias do café e açúcar e álcool ainda continuam relativamente pulverizadas, mas a recente expansão de empresas multinacionais nesses setores aponta para o início de um processo de consolidação. Os recentes atos administrativos do CADE contra a formação de cartel nas indústrias de processamento de suco de laranja e carne bovina sugerem que a concentração industrial afeta a conduta das empresas, podendo levar a abusos de poder de mercado em detrimento da renda dos produtores agrícolas.

qualidade desejada, mas também beneficiam os produtores através da transferência de tecnologia, do fornecimento de crédito e insumos, do acesso a mercados e da gestão do risco de preço (GLOVER & KUSTERER, 1990; FAO, 2001). Apesar dos contratos reduzirem os custos de coordenação entre os participantes do sistema agroalimentar, existem evidências de que esses arranjos muitas vezes não favorecem a participação de pequenos agricultores (NARAYANAN & GULATI, 2002; PINGALI et alli, 2005). Contratos tipicamente transferem autonomia e poder de decisão do produtor para a indústria, tal como acontece nos contratos de "quase-integração" de frangos de corte. O produtor muitas vezes fica obrigado a comprar insumos e adotar o pacote tecnológico impostos pela indústria, aumentando sua dependência e reduzindo seu poder de barganha. Adicionalmente, os contratos na agricultura tendem a favorecer grandes produtores, pois os custos de transação com pequenos produtores são maiores. Outro problema relacionado ao uso de contratos na agricultura é a leniência do sistema judiciário com relação a quebras contratuais, tal como ilustrado no episódio recente de não cumprimento dos contratos de soja verde no Brasil pelos produtores (REZENDE et alli, 2005). Criação de frangos em Nova Mutum, em Mato Grosso. A indústria fortaleceu a cadeia de carnes.

Coordenação vertical Os relacionamentos entre produtores agrícolas e demais participantes do sistema agroalimentar ocorrem cada vez mais através de arranjos contratuais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o percentual do valor bruto da produção agrícola comercializada através de contratos e integração vertical - ou seja, fora de mercados abertos - subiu de 28% em 1991 para 39% em 2003 (MACDONALD & KORB, 2006). Apesar da não disponibilidade de estatísticas no Brasil, o uso de contratos na agricultura tem se tornado cada vez mais comum (ZYLBERSZTAJN, 2005). Os sistemas agroindustriais do frango de corte, do suco de laranja, do tomate para uso industrial, e do açúcar e álcool são exemplos onde predominam os arranjos contratuais entre produtores e a indústria. O crescente uso de contratos na agricultura é explicado pela economia dos custos de transação e pela maior eficiência da coordenação vertical entre os participantes de uma cadeia agroindustrial. Tais arranjos contratuais muitas vezes especificam padrões de qualidade, processos de produção, janelas de entrega da matéria-prima na indústria e a alocação de risco e retorno entre fornecedores e a indústria. A literatura sobre o uso de contratos na agricultura sugere que os contratos auxiliam a indústria na aquisição da matéria-prima agrícola na quantidade e na

Marcos Bergamasco/Folha Imagem

Padrões de qualidade e sistemas de classificação privados Uma das implicações da globalização do sistema agroalimentar é o aumento da importância de padrões de qualidade e sistemas de classificação privados. Na transição da agricultura tradicional para a comercial, tais padrões de qualidade foram definidos pelo setor público visando reduzir custos de transação em mercados de produtos agrícolas pouco diferenciados. O objetivo dos padrões públicos de qualidade era definir características do produto, tais como tamanho, formato e cor. O papel atual dos padrões de qualidade adotados pelos participantes do sistema agroalimentar é ser um instrumento estratégico de competição em mercados cada vez mais diferenciados. Atributos de qualidade diferenciaNOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 37


dores incluem a origem e a segurança do alimento, mas também se ele é orgânico, livre de OGM, comercializado de forma justa (fair trade), e outras indicações de como foi produzido. Em outras palavras, a natureza do padrão de qualidade deixa de ser orientado para o produto voltando-se para o processo de produção (REARDON et alli, 2004). As implicações da adoção de padrões de qualidade e sistemas de classificação privados para a organização e funcionamento das cadeias agroindustriais são significativas. Um recente estudo sobre os setores de lácteos e coco no Brasil sugere que padrões privados de qualidade surgiram no vácuo da ausência de padrões públicos adequados (REARDON & FARINA, 2002). A "privatização da qualidade" imposta por varejistas e pela indústria resultou em investimentos substanciais em equipamentos, treinamento e sistemas de monitoramento pelos produtores. O grupo relativamente pequeno de produtores que conseguiram atingir os novos padrões de qualidade e passaram pelo processo de certificação beneficiaram-se com acesso a novos mercados, enquanto a maioria ficou relegada a canais de distribuição menos rentáveis. 3.3. Implicações para Produtores O processo de transformação da agricultura, cada vez mais inserida em um contexto de sistema agroalimentar globalizado, acarreta em várias implicações para os produtores agrícolas. A primeira delas refere-se à redução ao longo dos anos do preço real das commodities agrícolas. Essa redução deve-se principalmente ao fato da oferta de produtos agrícolas crescer a uma taxa maior que a demanda através da incorporação de novas tecnologias e também porque os ganhos de produtividade no campo são repassados ao con-

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sumidor pela redução do custo dos alimentos. Segundo uma análise da revista The Economist (2000), a produção agrícola per capita subiu 25% nos últimos 40 anos, apesar do uso da terra ter crescido somente 10% e a população ter aumentado em 90%. O preço real das commodities agrícolas no final da década de 1990 se reduziu a 2/5 do seu valor observado na década de 1960. No Brasil, o professor Geraldo Barros da ESALQ estima que o preço dos alimentos pagos pelos consumidores brasileiros caiu 35%, em termos reais, entre o Plano Real e 2005. A redução do preço real de produtos agrícolas leva ao achatamento das margens na agricultura, uma vez que os preços dos insumos são mais rígidos e sobem a uma taxa maior que os preços recebidos pelos produtores (o Gráfico 11 mostra dados para os Estados Unidos). Ao mesmo tempo em que as margens na agricultura vão se achatando, o valor adicionado aumenta nos estágios pós-porteira do sistema agroindustrial. O valor adicionado no pós-porteira ocorre através dos processos de transporte, comercialização, processamento, marketing e distribuição de alimentos. Uma vez que consumidores demandam cada vez mais alimentos processados e de preparo conveniente, além de aumentar os gastos com alimentos em restaurantes e serviços de alimentação, é natural que grande parcela do valor adicionado ocorra após o produto deixar a porteira da fazenda. A evolução das margens no agronegócio americano nos últimos 50 anos ilustra claramente esse fato (Gráfico 12). Com a redução das margens e a incorporação de novas tecnologias na agricultura, o processo de transformação do sistema agroalimentar claramente apresenta um viés de consolidação da produção em fazendas maiores e mais intensivas em capital (veja o relatório The Future of Small Farms publicado pelo IFPRI em 2005). A evolução do número e tamanho médio de fazendas nos Estados Unidos demonstra esse viés, mesmo con-


Dalmo Curcio/Folha Imagem

Criação de gado na Fazenda Rebanho, em Mato Grosso do Sul.

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siderando um contexto de subsídios e proteção à renda do produtor (Gráfico 13). O último censo da agricultura realizado nos Estados Unidos mostra que 10% das fazendas - ou seja, 200 mil propriedades, com tamanho médio acima de 1000 hectares - são responsáveis por 75% do valor bruto da produção agrícola. Outra implicação da transformação do sistema agroalimentar globalizado para os produtores é a crescente dificuldade de acesso a mercados devido a barreiras de entrada cada vez maiores. Essas barreiras à entrada estão relacionadas (a) à intensificação do uso de tecnologias demandando capital e capacidade gerencial; (b) à necessidade de investimentos específicos a relacionamentos com os demais participantes do sistema agroindustrial; (c) à adoção de padrões privados de qualidade; (d) à consolidação nas indústrias de processamento e no varejo; (e) à existência de economias de escala; e (f) aos maiores custos de transação. Em outras palavras, o ambiente de negócios onde o produtor agrícola se insere mudou radicalmente nos últimos anos. A agricultura se modernizou e se tornou mais interdependente por meio da inserção em um sistema agroalimentar integrado, coordenado verticalmente, consolidado e globalizado. Os desafios para a inserção sustentável do produtor nesse contexto ficaram maiores e demandam um apoio mais consistente de políticas públicas. 4. PROPOSTA DE UM NOVO PAPEL PARA AS POLÍTICAS AGRÍCOLA E AGRÁRIA Tomando como base a análise da transformação do sistema agroalimentar no Brasil (e no mundo) e as implicações dessa transformação para o produtor, a nossa proposta de um novo papel para as políticas agrícola e agrária seria a promoção da INSERÇÃO COMPETITIVA E SUSTENTÁVEL DO P R O D U TO R nas cadeias produtivas que compõem o sistema agroindustrial, no País e no exterior. Essa proposta segue a recomendação do professor John Davis (1956), que ao analisar as transformações da agricultura americana na década de 1950, cunhou o termo "agribusiness" e colocou claramente que "a única maneira de se resolver o problema da fazenda e evitar políticas públicas desastradas é progredir da agricultura ao agronegócio", isto é, não há solução para o achatamento das margens na agricultura sem uma visão sistêmica de cadeia agroindustrial. No nosso entendimento, a solução do "problema da fazenda" no Brasil passa necessariamente pela inserção competitiva - ou seja, por meio de estratégias de criação de valor voltadas ao consumidor final - e sustentável - sob as perspectivas econômica, social e ambiental - do produtor no agronegócio globalizado. Para tal, a política pública deve dar condições que favoreçam o desenvolvimento de empreendedores rurais no Brasil com tecnologia, capacidade de gestão e pragmática visão de mercado. Além de ser um papel de política pública afinado com as transformações recentes do agronegócio e as realidades do mercado, essa sugestão também tem o intuito de promover a unificação das políticas agrícolas e agrárias em um único Ministério e reduzir o peso do falso debate ideológico entre "agri-

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cultura patronal" versus "agricultura familiar". Na nossa visão, as políticas públicas voltadas para a inserção competitiva e sustentável dos produtores no sistema agroindustrial deveriam contemplar sete pontos: 1. AUMENTO DA OFERTA DE BENS PÚBLICOS, principalmente: (a) defesa sanitária e fitossanitária; (b) infra-estrutura de transporte, armazenagem e comercialização; (c) renovação do compromisso com investimentos em pesquisa, desenvolvimento e extensão agropecuária; (d) sistema de informação de mercado com o intuito de fornecer subsídios ao produtor no momento de comercializar a safra. 2. MECANISMOS DE GESTÃO DE RISCO: dada a clássica limitação de recursos, a política pública mais adequada seria a introdução de mecanismos sustentáveis de seguro rural que reduzissem os riscos da queda de renda dos produtores. O governo deveria também incentivar o uso de contratos futuros e derivativos, buscando reduzir o risco de preços e o comportamento ciclotímico e especulativo dos agricultores. Em vez de continuar intervindo de forma paliativa no mercado físico (PGPM, AGF, EGF, PEP, PROP, PESOJA, PEPRO, etc.), o governo deveria incentivar o uso de mercados futuros e de opções como mecanismos de hedge. Boas opções de políticas públicas que merecem maior aprofundamento parecem ser a vinculação do crédito rural oficial ao hedge de preços por parte do produtor e o prêmio pontual e seletivo nas opções de futuro, em vez de subsidiar a comercialização física. 3. DEFINIÇÃO CLARA E PROTEÇÃO JURÍDICA DOS CONTRATOS E DIREITOS DE PROPRIEDADE, visando (a) distribuição de títulos de posse da terra para os beneficiários da reforma agrária; (b) emancipação dos assentamentos de reforma agrária; (c) a solução do problema de titulação de terras na Amazônia Legal; (d) redução de custos de transação e favorecimento da coordenação vertical entre produtores e indústria por meio da garantia do cumprimento de contratos; (e) favorecimento da transferência de crédito e tecnologia para produtores por meio de arranjos contratuais com a indústria; (f) conclusão do processo de reforma agrária brasileira dentro de um horizonte claro de tempo e de uma definição precisa dos recursos que nele serão alocados, além de estabelecer mecanismos rígidos de monitoramento e avaliação do seu uso. 4. AVALIAÇÃO SISTEMÁTICA DE TODOS OS PROGRAMAS DE SU BS ÍD IO S D IR ETOS , principalmente aqueles que se destinam a grupos de interesse específicos, como os beneficiários das securitizações de dívidas e o monitoramento do uso e dos resultados concretos dos programas de reforma agrária e agricultura familiar (PRONAF). Os programas direcionados especificamente à agricultura familiar deveriam ser redese-


nhados a partir de um melhor entendimento da estrutura das unidades familiares, onde seria necessária uma classificação dos diversos tipos de agricultores familiares existentes no país. É importante notar que, além das 900 mil famílias assentadas pela reforma agrária, existem cerca de 4,5 milhões de propriedades de pequena escala (até 100 hectares) no Brasil, segundo o último censo da agricultura (IBGE, 1995). Entretanto, pouco se conhece sobre a diversidade desses pequenos agricultores, nas diferentes regiões do país. 5. POSIÇÃO MAIS AGRESSIVA EM NEGOCIAÇÕES COMERCIAIS, incluindo a efetiva redução do protecionismo agrícola em países desenvolvidos e em desenvolvimento (maiores acesso a mercados e corte de subsídios distorcivos), o desenvolvimento de novos contenciosos na OMC e a negociação de acordos regionais e bilaterais de comércio. 6. INTRODUÇÃO DE PROGRAMAS DE CAPACITAÇÃO TÉCNICA E GERENCIAL para produtores e pequenas e médias empresas atuando no sistema agroalimentar, com o intuito de formar empreendedores agrícolas com uma

pragmática visão de mercado. Treinamento e formação de recursos humanos são fundamentais para que produtores consigam ofertar produtos de alta qualidade e ter competência e flexibilidade para se adaptar às constantes mudanças e exigências do mercado. Inclui-se neste item a necessidade de promoção e modernização de cooperativas e associações de produtores, criando mecanismos de capitalização adequada, gestão profissionalizada e uma participação pró-ativa dos produtores com clara definição de direitos de propriedade. As cooperativas e associações de produtores podem servir como instrumentos poderosos de inserção no mercado e adição de valor se solucionarem seus problemas de capitalização, governança e direitos de propriedade. 7. DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA NACIONAL DE CERTIFICAÇÃO DE QUALIDADE E RASTREABILIDADE de alimentos, incluindo denominações de origem, certificados de conformidade e selos de qualidade que auxiliem os produtores a agregar valor a seus produtos e se inserir em cadeias agroindustriais coordenadas e voltadas às novas exigências dos consumidores. Café no Vale do Paraía: a plantação é na Fazenda da Taquara, em Barra do Piraí, Rio de Janeiro.

Zeca Fonseca/AG

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Ângelo Maciel/Samba Photo

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A produção de grãos dobrou nos últimos 15 anos: de 58 milhões de toneladas , em 1990, para 120 milhões de toneladas, em 2005. A produção de carnes quase triplicou, de 7,5 para 20,7 milhões de toneladas.

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Epitรกcio Pessoa/AE


O maior neg贸cio do pa铆s. Por Roberto Rodrigues. Entrevista a Tim Teixeira


Celso Júnior/AE

Paulista de Cordeirópolis, 64 anos, casado, quatro filhos, sete netos, o engenheiro agrônomo Roberto Rodrigues levou mais de quatro décadas de experiência na área agrícola para o Ministério da Agricultura ao ser escolhido para integrar o governo Lula. Professor da Unesp em Jaboticabal, com centenas de trabalhos publicados sobre agricultura, cooperativismo e administração rural, integrante do conselho da Embrapa e de inúmeros outros órgãos técnicos nacionais e internacionais, empresário (várias vezes premiado nas áreas ambiental, social, de conservação do solo e de produtividade), podese dizer que ninguém mais do que ele conhece o campo (e seus problemas) no País. Paradoxalmente, foi nesse período que o setor mergulhou numa das suas piores crises.

Ao longo dos anos, o Brasil foi visto como um país agrícola. Essa imagem ainda é verdadeira? Qual o retrato da agricultura brasileira nos dias atuais? Roberto Rodrigues - O Brasil ainda é visto como um país agrícola, mas já não existe aquela imagem de país subdesenvolvido. Mais do que um país emergente, o Brasil firma posição como país que tem projetos agroindustrial e industrial de peso, que consolidam sua posição de liderança na América Latina. Nos últimos três anos, o Brasil, que já era o maior exportador mundial de café, açúcar, sucos e tabaco, assumiu também a liderança em mais quatro produtos: soja, carne bovina, carne de frango e etanol. Vem avançando também em outras áreas, como frutas, algodão e produtos orgânicos. Além disso, o fato de ter assumido posição de destaque no setor de agroenergia (leia-se etanol e biodiesel) fez com que o Brasil passasse a ser temido pelos países desenvolvidos nesse setor do agronegócio. Vem da agricultura algo em torno de 30% do PIB brasileiro, ela responde também por 37% dos empregos do país e por 40% das nossas exportações. Portanto, é o maior negócio do País, não só do ponto de vista econômico, como também do ponto de vista social por conta da geração de empregos. Nos últimos 20 anos, o Brasil deixou de ser um país rural. A população rural, que era 63% em 1950 passou a ser 24% em 1990. Hoje não passa de 16%, numa tendência que não se inverte. Ainda assim é possível que o Brasil possa ser o chamado "celeiro mundial"? RR - Sem dúvida, por causa do potencial que nós temos. Temos uma quantidade enorme de terras disponíveis, clima favorável e, mais ainda, temos uma reserva de água maior do que qualquer outro país, ou do que qualquer outro continente. Isso cria condições muito especiais que o país precisa aproveitar, desde que consiga equacionar os seus problemas e resolver os gargalos que impedem o nosso desenvolvimento. A que tipo de problemas o senhor se refere? RR - Em primeiro lugar, logística. Durante os dez últimos anos o Brasil investiu muito pouco nessa área. Nossas estradas são precárias, os portos estão sucateados, os fretes acabam retirando competitividade dos produtos. É preciso ver que o governo, por maior que seja sua disposição de resolver esse problema, tem pequena capacidade de investimento. Outra questão é a garantia de

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renda para o produtor, que trabalha num setor sujeito a vários tipos de interferência, desde as climáticas até aquelas ditadas pelo comércio mundial. Existem mecanismos para proteção do produtor, mas nesse setor o Brasil ainda está engatinhando. Além disso, precisamos de investimentos e também de respeito aos contratos. Então, a visão não é muito otimista. RR - É, sim. Veja bem: o mundo moderno construiu-se sobre o petróleo. Cinqüenta anos atrás, para uma demanda anual de 4 milhões de barris descobriam-se reservas de 30 milhões de barris. Hoje a equação se inverteu. E, diante do inevitável esgotamento do petróleo, será inevitável também que caminhemos em outra direção. E essa direção é da biomassa. A civilização do petróleo passará a ser a civilização da biomassa. É aí que se abrem possibilidades imensas para a agricultura, e para o Brasil. Pelas suas condições, o Brasil pode liderar essa mudança de civilização, o que é uma coisa extraordinária. E será, com certeza, uma civilização mais justa, porque centrada numa atividade mais abrangente, que oferece mais oportunidades para todos. Há quem diga que essa tendência pode levar a faltar alimentos no mundo. Isso é uma grande bobagem. Basta ver a quantidade de terras disponíveis no Brasil. E o que o Brasil tem feito para caminhar nessa direção? RR - Como disse, o Brasil fez muito pouco nos últimos anos. Ficamos sentados sobre o sucesso de alguns projetos, como o Proálcool, e deixamos de investir em novas pesquisas. É verdade que há muito por avançar, mas alguns passos consistentes já foram dados. E a idéia é atrair investimentos privados para a pesquisa na agroenergia, com participação nos royalties trazidos pelos seus resultados. Se não fizermos isso corremos o risco de perder essa extraordinária oportunidade que está se abrindo à nossa frente. Embora registre pequeno aumento em relação ao ano passado, a produção brasileira de grãos em 2006 deve ser de 119 milhões de toneladas, contrariando previsões de que passaria de 126 milhões. Para um setor que vinha batendo recordes consecutivos, significa que há crise? RR - Não há dúvida. O setor enfrenta sua maior crise dos últimos 40 anos. Por uma série de fatores. Em primeiro lugar porque os custos de produção subiram muito e os preços


caíram. Depois veio uma série de secas: três anos seguidos com secas, que resultaram em quebras da produção da ordem de até 70%. Tudo isso levou à perda da capacidade de competição e a um grande endividamento dos produtores, principalmente daqueles mais afetados pelos conhecidos problemas de logística. A isso somaram-se a crise cambial e condições adversas nas negociações internacionais. O governo foi obrigado a agir e agiu de maneira vigorosa, mas a ação veio tardia como sempre. As políticas do governo para a agricultura estão orientadas no rumo correto? Ou ainda: não há falta da chamada política macroeconômica para o setor? RR - Olha, eu sou um ex-ministro e não gostaria de fazer comentários sobre a atuação do governo. É claro que o governo é sempre lento nas suas ações, mas isso é típico de qualquer governo e em qualquer país. O que eu posso dizer é que nem sempre as ações governamentais são feitas para produzir resultados imediatos. Muitas delas são orientadas para o futuro. Os agricultores alegam uma certa insegurança em função do apoio que o governo oferece aos movimentos de ocupação de terras. RR - Esse é outro tema que eu não gostaria de comentar, pelas razões que já expus. Mas o problema da reforma agrária e distribuição de terras tem que ser visto por dois ângulos: o social e o empresarial. Alguns setores (e não o governo como um todo) estão vendo apenas o ângulo social. Não se pode tratar desse problema com a visão de 60 anos atrás. Ao distribuir terras o governo tem que assegurar ao novo proprietário não só condições de produzir, mas de competir. Distribuir terras sem garantir assistência técnica e todos os mecanismos de apoio é criar a miséria no campo. Uma vez atendidas essas exigências, contempla-se tanto o lado social como o empresarial. Como enfrentar o problema dos subsídios agrícolas, notadamente da União Européia e Estados Unidos? RR - Esse problema começa muito tempo atrás no chamado conceito de segurança alimentar. Ou seja, preocupados em garantir o alimento dos consumidores, os países passaram a criar mecanismos de defesa dos produtores. Mas a coisa vai além disso, pois coloca em confronto visões completamente

distintas, que são as visões dos ricos e dos pobres. Eu vou dar dois exemplos. Um deles: a Holanda, que é considerada o país das estufas. Pois bem, a Holanda se tornou tão rica que hoje, as pessoas já não querem mais que se construam as estufas. Não é porque atrapalha o meio ambiente, mas simplesmente porque a estufa enfeia a paisagem. E o holandês quer ter um horizonte bonito. Outro exemplo: a Noruega, também um país rico, criou uma lei (chamada Animal Welfare) que obriga os produtores de leite a disporem colchões para suas vacas. Veja só, uma lei que se preocupa com o sono das vacas. Isso significa o quê? Significa que os ricos levam para as mesas de negociação a visão da sua realidade, que é diferente dos pobres. O cidadão da Nigéria não está preocupado com o bem-estar do animal, está preocupado com o bem-estar do filho dele. O pobre tem que comer simplesmente, enquanto o rico escolhe o que comer. Então, não adianta dizer aos países ricos que eles têm que parar de proteger. Eles não vão parar, é da cultura deles. Então, não há solução? RR - Os países ricos vão continuar subsidiando. O que se pode fazer é tentar impedir que os excedentes gerados por esses subsídios possam ser exportados prejudicando os produtores dos países pobres que não subsidiam. O Brasil está firmando sua posição nessa direção. A globalização não acentuou ainda mais esses problemas? RR - A globalização provocou uma explosão do comércio mundial, portanto a produção mundial cresceu e cresceu também a riqueza mundial. O lado negativo é que esse crescimento não foi equitativo. Houve concentração de renda de um lado e exclusão social do outro. E esses dois fatores são hoje o grande desafio da Humanidade, porque a exclusão e a concentração levam à falência da democracia e colocam em risco a paz mundial. Logo será uma questão dramática reduzir as distâncias entre ricos e pobres. Então eu acho que a negociação acabará acontecendo não por generosidade dos ricos, mas por uma necessidade deles de preservarem a democracia.

Não é segredo para ninguém que entrou em rota de colisão com os ministros da área econômica e deixou o cargo três anos e meio depois da posse. Mas, ético, recusa-se a comentar a atuação do governo. Diz apenas que considerou sua "missão cumprida". Defensor entusiasmado dos transgênicos e da agroenergia, diz que o Brasil está diante de uma oportunidade única de se tornar líder de um novo tipo de civilização: a civilização da biomassa, que virá para substituir a sociedade construída sobre o petróleo. "E será, com certeza, uma civilização mais justa", aposta.

Os agricultores, em geral, reclamam que o governo não defende o setor como fazem outros países. RR - O Brasil defende sim, e com vigor. Um dos grandes avanços do Brasil na NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 49


negociação internacional foi a criação do G-20. (Ou Grupo dos 20, grupo de países emergentes com interesse especial em agricultura. Seus países membros -atualmente são 21- têm 60% da população mundial, respondem por 70% da população rural e assumem 26% das exportações agrícolas globais.) O G-20 foi uma inspiração brasileira e, por meio dele, em Cancún, foi possível barrar posições defendidas pelos Estados Unidos, que tinham orientação nitidamente desfavorável aos países em desenvolvimento. Vitché Palacin/Folha Imagem

Galo Nelore, criado em São José do Rio Predo, em São Paulo. A carne bovina e a carne de frango têm grande destaque na pauta de exportações brasileiras. Ao lado do café, açúcar, sucos, tabaco...

De qualquer forma, o Brasil ainda é visto como um país que destrói florestas para criar gado ou plantar soja. Como mudar essa visão? RR - Existe um estudo interessante relacionando as florestas do mundo e do Brasil. Esse estudo mostra que hoje, percentualmente, o Brasil tem muito mais florestas em relação ao mundo do que tinha cem anos atrás. Isso significa o quê? Significa que o mundo destruiu muito mais florestas do que o Brasil. Então, eles derrubaram tudo o que tinham e agora querem que o Brasil pague pelo erro que eles cometeram. Isso é mais uma forma de protecionismo. Não é verdade que estamos produzindo carne e soja à custa do sacrifício da Amazônia. A soja brasileira da Amazônia não passa de 1,5%. Isso não é nada e nem tende a crescer. O que acontece é que a madeireira vai na frente e desmata, abrindo caminho para o gado, que por sua vez, acaba dando lugar para a soja. É preciso, isto sim, conter o trabalho ilegal da madeireiras e das empresas que exportam ou consomem a madeira da floresta.

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O Brasil deve ser o país do agronegócio ou da agricultura familiar? RR - Essa é uma discussão descabida. O que é o agronegócio? Nada mais é do que a soma das cadeias produtivas. É um erro conceitual enorme separar agronegócio de agricultura familiar. A agricultura familiar é parte integrante do agronegócio. E o Brasil é o único país do mundo que tem dois ministérios, um para cuidar do agronegócio e outro para a agricultura familiar. Isso não tem cabimento. Uma coisa é reforma agrária, com todo seu rol de demandas. Outra é a defesa da agricultura e do agronegócio. Portanto, o Brasil deve ser o país do agronegócio como um todo, do qual participa também a agricultura familiar. Claro que são demandas diferentes, em função de tamanho, região, capacidade tecnológica e gerencial, porém tudo dentro do conceito genérico de agronegócio. Há quem sugira que um dos caminhos para a agricultura seria a organização dos produtores em condomínios, consórcios ou cooperativas. Isso é bom? Se é, como superar a falta dessa cultura associativa no país? RR - O cooperativismo é um instrumento importantíssimo, mas ele não se sustenta sem alguns pontos básicos. O primeiro é que a cooperativa seja entendida como uma necessidade por parte dos cooperados. Ele tem que ter clareza de que é importante para a atividade. Portanto, pressupõe educação cooperativa. Segundo, é preciso que haja viabilidade econômica. Ou seja, tem que ser uma empresa. Ela pode ter a sua vertente social, mas é uma empresa e, como tal, precisa ter viabilidade econômica, caso contrário não se mantém. E, finalmente, lideranças. O Brasil está engatinhando nesse setor. Para se ter uma idéia, há no mundo cerca de 800 milhões de cooperados. Se você considerar 3 familiares ou agregados em cada caso, são 2,4 bilhões de pessoas em todo mundo ligadas ao cooperativismo, ou seja 40% da população mundial. No Brasil são 5 milhões de cooperados. Pelo mesmo critério de cálculo, chegamos a um número de 15 milhões de brasileiros ligados ao cooperativismo (8% da população). Os percentuais mostram como estamos atrasados. Como está a situação dos transgênicos e como se define o trabalho da CTNbio? RR - Os transgênicos estão hoje


Jonas Oliveira/Folha Imagem

regulamentados, há uma lei que regula e oferece os parâmetros para que se avance nessa área. Infelizmente, a CTNbio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) está um pouco engessada, pelo fato de as decisões necessitarem da aprovação de dois terços dos membros. A lei é boa, mas a regulamentação permite que se retarde o avanço do setor. Não estaria a CTNbio priorizando a atuação política em detrimento da atuação técnica? RR - Não. A CTNbio é um órgão eminentemente científico. É claro que o componente político está presente em todos os atos das pessoas. Esse engessamento ao qual me referi retarda o encaminhamento dos processos e pode dar a impressão de que ela está fazendo política. Mas trata-se de um órgão técnico e científico da maior relevância que está agindo na área da sua competência. Nos últimos três anos, o governo só aplicou R$ 400 milhões em pesquisa e tecnologia no setor agrícola. Gastou R$ 7 bilhões em reforma agrária e abastecimento. E para defesa sanitária só destinou R$ 300 milhões. Não há algo errado com esses números? RR - O Brasil tem um órgão de pesquisa, a Embrapa, que se situa entre os melhores do mundo. Portanto, temos condições de avançar de maneira consistente nessa área. Só que a pesquisa exige investimentos constantes, porque tudo é muito dinâmico. Ela evolui diariamente. Então você tem que investir permanentemente em pesquisa. Deixando de lado os números, é sabido que o Estado não tem condições de investir tudo que seria necessário investir. Já foi um avanço conseguirmos uma lei que não permite o contingenciamento dos recursos da Embrapa. Mas o ideal seria atrair investimentos privados para a pesquisa. Essa parceria poderia produzir benefícios duplos: não só os da própria pesquisa, como os resultantes dos royalties trazidos por ela. Quais seriam os benefícios para o Brasil de um acerto com a Alca? RR - Um acerto nesse sentido poderia acrescentar cerca de US$ 2 bilhões por ano às nossas exportações, imediatamente. Isso dá uma idéia da importância não só desse acordo, como de todos os acordos capazes de vigorar dentro de regras claras e objetivas.

E o Mercosul por que não avança? RR - Porque houve intransigência de todos os lados. Vários fatores acabaram interferindo, mas os países do Mercosul ainda têm tempo de retomar as negociações e chegar a um entendimento que seja conveniente para todos. Os acordos bilaterais não acabam criando mais obstáculos para o estabelecimento de um acordo mais global? RR - Acredito que não. Os acordos bilaterais, na verdade, são pequenos retalhos. Mas, com vários retalhos você faz uma colcha. E vários países - México, Estados Unidos, Índia, China, Japão - estão construindo acordos bilaterais muito mais rapidamente do que nós.

Colheitadeira em plantação de soja em Cornélio Procópio, no Paraná. A soja é um produtos que deu ao Brasil a liderança nessa área em escala mundial. Vem da agricultura cerca de 30% do PIB brasileiro.

Última pergunta: por que o senhor deixou o Ministério da Agricultura? RR - Porque considerei que a minha missão estava cumprida. Quem examinar meu discurso de posse vai ver que eu assumi uma série de compromissos. Todos eles, sem exceção, foram implementados. Nem todos foram concluídos, mas nenhum deles deixou de ser pelo menos encaminhado. É claro que tivemos alguns contratempos, como o caso da aftosa, a gripe aviária e outros problemas. É claro também que num cargo dessa importância, você sempre fica com a impressão de que gostaria de fazer mais do que aquilo que é possível fazer. Assim, depois do pacote de medidas de 25 de maio, considerei que o possível tinha sido feito e que, portanto, estava na hora de sair. NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 51


O problema não é o custeio mas o seguro, diz Graziano. Fotos: Paulo Pampolin/Hype

Com gráficos e tabelas, Fábio Chaddad e Marcos Jank mostraram a atual situação da...

N

O engenheiro Xico Graziano, Mestre em Economia Rural, é Doutor em Administração de Empresas. Foi chefe de gabinete da Presidência da República, presidente do INCRA (governo Fernando Henrique Cardoso) e secretário estadual de Agricultura e Abastecimento (governo Mário Covas). Deputado Federal-PSDB, pronunciou conferência no Seminário Repensando as Políticas Agrícolas na Associação Comercial de São Paulo, em 3/7/2006, da qual destacamos o texto desta página e o da seguinte. 52 DIGESTO ECONÔMICO NOVEMBRO 2006

os últimos dez anos, com a grande expansão da agropecuária rumo ao interior do País, rumo a Goiás, Mato Grosso, Piauí, Maranhão, Tocantins e Rondônia, eu tenho procurado mostrar a importância histórica de o País interiorizar o seu desenvolvimento. Esse processo de interiorização do desenvolvimento está refreado neste momento, por causa de políticas públicas insuficientes. Para isso vou destacar aqui as tarefas fundamentais. A primeira delas: em todas as nações, a agricultura, as florestas e a pesca estão unificadas em termos de políticas públicas. Aqui estão separadas. E ainda inventamos um jeito brasileiro, dividimos a agricultura em duas, a agricultura dos pequenos e a agricultura dos grandes, ou a agricultura dos agronegócios e a agricultura do familiar, ou a agricultura dos ricos e a agricultura dos pobres. É como se tivesse o ministério da Agricultura dos pequenos e o ministério da Agricultura dos grandes. Segundo, a reforma agrária era para ser feita nas décadas de 60 e 70. Nós não fizemos, estamos fazendo agora e está dando tudo errado. Então a coisa mais sensata é não fazer mais reforma agrária e sim cuidar da reforma agrária que já foi feita. Afinal de contas, certo ou errado, 40 milhões de hectares de terra foram distribuídos, no mínimo 900 mil famílias receberam sua parte. 40 milhões de hectares é pouco ou é muito? Na safra plantada


O Brasil é o único grande país agrícola que não dispõe de um sistema de seguro rural. Em 2005, o País gastou 1.8 milhão de reais em subsídios a seguro. Quanto pode gastar? Responde Xico Graziano:entre 500 milhões a 1 bilhão de reais.

A civilização do petróleo passará a ser a civilização da biomassa. E se abrem possibilidades imensas para a agricultura e para o Brasil, que pode liderar essa nova civilização. Roberto Rodrigues O agronegócio é um setor dinâmico porque nele cerca de 400 milhões de pessoas estão deixando a linha de pobre nas economias emergentes. Pessoas que em geral estão na zona rural. Marcos Jank

...agricultura brasileira e o que se deve fazer para seu desenvolvimento.

agora em outubro, semeou-se em todo o Brasil ao redor de 45 milhões de hectares. Então o tamanho do que já foi feito em termos de distribuição fundiária é quase o tamanho da safra brasileira e a produção nem se sabe. Não é que é pequena, mas não é mensurada. São Paulo tem uma centena de assentamentos de reforma agrária. Qual a produção advinda desses assentamentos? O Estado de São Paulo não sabe. O que nós precisamos fazer, propor, discutir, levar a todos aqueles que têm responsabilidade é integrar esses assentamentos no mundo do mercado de hoje. É uma tarefa enorme. Cerca de 50 bilhões de reais foram consumidos nesse processo de reforma agrária. É muito dinheiro que a Nação brasileira gastou para fazer o que não está funcionando. Então, é preciso botar para funcionar. Agora, fazer mais assentamentos, atender mais ainda os invasores de terra? Parece-me que uma idéia fundamental começa a ser aceita: o grande problema da agricultura brasileira não está no crédito e no financiamento. Hoje em dia, facilitar o financiamento pode levar o agricultor à morte. Foi o que acon-

teceu nos últimos anos com a modernização da frota, quando os agricultores se endividaram exageradamente, adquirindo máquinas porque o financiamento era bom, barato, a juros fixos, prestação fixa etc., com dois, três anos de carência. Para os fabricantes de máquinas foi um período fantástico, só que agora, quando acabou a carência, o agricultor não vai conseguir pagar. Então a questão não está mais no crédito rural e sim no seguro da atividade agropecuária, na redução do risco da atividade. O Brasil é o único grande país agrícola do mundo que não dispõe de um sistema de seguro rural. No ano passado, o País gastou 1.8 milhão de reais em subsídios a seguro. Quanto poderíamos gastar? Na nossa conta, entre 500 milhões a 1 bilhão de reais, mas gastamos 1.8 milhão. A questão não está no custeio mas no seguro. A última das questões, talvez a maior de todas elas, é que jamais haverá uma política agrícola consistente se ela não estiver inserida na política econômica do País. A agenda não é a agenda da agricultura, é a agricultura que fornece uma nova agenda para o País.

O Brasil hoje é o terceiro do mundo em agronegócio, atrás da União Européia e dos Estados Unidos, mas crescendo a uma taxa bem mais elevada. Marcos Jank

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Barreiras no meio do caminho do Brasil no exterior

U

ma simples pergunta de João José Pires, diretor-secretário da distrital da Associação Comercial em Pirituba, permitiu abrir um grande espaço para o café durante o seminário sobre políticas agrícolas realizado em julho na ACSP. - Qual a bebida que mais se consome na Alemanha? Não é cerveja, é o café: 150 litros per capita, muito mais do que cerveja. E esse país sequer planta café. Fábio Chaddad, pesquisador do Ibmec, recorre à experiência da Cooxupé, da Guaxupé, Minas Gerais, a maior cooperativa de cafeicultores e um dos grandes exportadores de café do Brasil. A única cooperativa, segundo ele, que consegue exportar diretamente para os mercados europeu, americano, japonês, etc. E são só seis os grandes compradores de café no mundo inteiro. São eles que fazem os blends, têm marcas fortes e sabem fazer o processamento, a comercialização e o marketing A secagem de café na Fazenda Cascata em Altinópolis.

Fotos: Marcos Peron/Virtual Photo

Sérgio Castro/AE

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desse café. Por isso, acrescenta Chaddad, as barreiras à entrada de produtores brasileiros são muito grandes. "O Brasil é um excelente exportador de café, um excelente exportador de suco de laranja, um excelente exportador de soja, mas é um péssimo agregador de valor", diz. A Cooxupé, ao contrário, faz isso muito bem, na opinião de Chaddad, pois dá acesso ao mercado para cerca de 10 mil produtores de café de Minas, de São Paulo, etc. E consegue barganhar com gigantes como a Nestlé ou a Sara Lee.Com a experiência de ter sido proprietário do Café do Ponto e CEO da Sara Lee (EUA) em São Paulo, o vice-presidenrte da ACSP, Luiz Roberto Gonçalves acha que outros produtos brasileiros, além do café, enfretam problemas semelhantes no meio do caminho. Segundo ele, o produtor não pode fazer isso diretamente, tem que fazer uma parceria com a indústria local. E mais: é preciso entrar no segmento de distribuição, o que não é fácil, tem que investir em marketing e publicidade para fortalecer a marca. "É preciso capital para investir em toda a cadeia. Os financiamentos, lá fora, são baratos, e os prazos bastante longos para o segmento de distribuição. Sem isso, não vamos conseguir colocar não só o café como alguns outros produtos de consumo brasileiros." Outra coisa importante, os cafés são feitos com blends de países diferentes, e aí surge a taxa de câmbio e o custo do produto.

Paulo Pampolin/Hype

Eu acho que a mãe da reforma é a reforma política. Se não vier, o cidadão brasileiro fica perdido. Não tem com que falar. Não poderá dizer eu vou por aqui porque nisso eu acredito. Alencar Burti, vice-presidente da ACSP. Quando comparei o MST e o MLST com o PCC, recebi críticas.Depois, soube que o PCC distribuia alimentos na periferia para conseguir adesões. Os processos são muito parecidos mesmo. Deputado Xico Graziano.


Ed Ferreira/AE

Tanto 2005 quanto 2006 foram anos ruins para a agricultura, em função principalmente do câmbio. Mas 2007 poderá ser um ano melhor. João Sampaio, da SRB.

O MST está preparado para uma missão que vai muito além da mera distribuição de terra ditas improdutivas. Basta saber onde e como o MST ergueu seus acampamentos. Cândido Mendes Prunes O Brasil é o único país do mundo com dois ministérios da Agricultura - o próprio da Agricultura e o do Desenvolvimento agrário -, que competem por recursos cada vez mais escassos. Fábio Chaddad

O presidente Lula recebe representantes do MST no Palácio do Planalto

Muito dinheiro para a reforma agrária

O

País já gastou 50 bilhões de reais com reforma agrária, segundo o deputado Xico Graziano. Já assentou 900 mil famílias em 40 milhões de hectares. "No meu entender, no futuro", disse Fábio Chaddad durante o Seminário sobre Política Agrícola, "ou essas 900 mil famílias vão abandonar esses assentamentos e voltar para as cidades, trazendo mais problemas sociais, ou de alguma forma o País terá que ajudar essas famílias a se inserirem no mercado. Marcos Jank acha que a dívida dos agricultores deverá consumir pelo menos a metade da renda este ano, o que pode forçá-los a vender suas terras a qualquer preço para pagar dívidas. Essa situação, segundo ele, pode levar ao aceleramento da reforma agrária a partir de 2007 e, assim, atender ao MST, que reclama dos assentamentos feitos no Amazonas, em áreas de difícil acesso, sem infra-estrutura, sem recursos técnicos. Seria a oportunidade de estender o processo de assentamentos para o Centro-Oeste, para o Sudeste e para o Sul. O diretor executivo da Sociedade Rural Brasileira, Eduardo Soares de Camargo, estendeu suas críticas não só ao MST ("Eu não consigo entender como neste País se é tão leniente com invasão de terra, porque se uma pessoa invade a sua casa hoje à noite, ou se invade a sua fábrica, ou se invade a sua padaria, a justiça se faz rapidamente. Quando se invade terra, não, é como se fosse uma outra categoria de propriedade.") mas também ao processo de endividamento. "Como disse o Xico (Graziano) crédito é um negócio perigoso. Por quê? Pode gerar um sobrendividamento, como já aconteceu na área do Pronaf."

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Este é o caminho da salvação para a agricultura. Por João Sampaio.

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Fรกbio Rossi/AG

Entrevista a Tim Teixeira

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Paulo Pinto/AE

Depois do fundo do poço, a redenção. É o que espera João de Almeida Sampaio Filho, presidente da Sociedade Rural Brasileira, numa rápida análise da situação da agricultura brasileira para o próximo ano. Nascido em São Paulo, 41 anos, formado em economia pela FAAP, filho, neto e bisneto de família tradicional do setor rural, ele cumpre seu segundo mandato à frente da SRB e, mais que a redenção, vê oportunidades extraordinárias para a agricultura brasileira nos próximos anos. "Mas precisamos fazer a lição de casa. Temos que diminuir a carga tributária, resolver a questão cambial e tomar sérias providências no setor de logística e infraestrutura". Sem isso, arrisca uma previsão pessimista: "Vamos perder de novo o bonde da história".

Como é que a agricultura termina o ano de 2006, visto que 2005 foi um ano difícil para os produtores? João Sampaio - Tanto 2005 quanto 2006 foram anos ruins para a agricultura, em função principalmente do câmbio, que, para alguns setores, diminuiu a receita e aumentou os custos de produção. Nesse período enfrentamos ainda uma seca muito forte e, no caso específico da soja, o ataque maciço da ferrugem asiática. Para o setor de grãos, 2006 foi muito pior do que 2005, até porque as finanças dos produtores já estavam deterioradas. Tivemos ainda o problema da aftosa, que comprometeu seriamente o setor, levando os pecuaristas a terem os piores preços praticados nos últimos 30 anos. Por extensão, esse problema afetou também o setor de carne suína, pois a Rússia (destino de 40% da nossa exportação) deixou de comprar, provocando uma queda brutal nos preços no mercado interno e os produtores amargaram um ano de muitos prejuízos. Para completar, a gripe aviária (embora não chegasse ao Brasil) afetou os avicultores, pela retração do mercado internacional. Nos últimos meses, começamos a perceber alguns sinais de recuperação, o que leva a crer que 2007 poderá ser um ano melhor, mesmo porque em 2006 chegamos ao fundo poço. Os fatores que atuaram negativamente em 2005 estão superados? JS - A questão cambial não. Mas a gente não imagina que ocorra uma valorização ainda maior do real. Trabalhamos até com a hipótese de uma desvalorização da nossa moeda. Além disso, os preços internacionais de algumas commodities (principalmente soja) reagiram. Os problemas resultantes da aftosa estão em grande parte superados e muitos embargos já foram levantados. A carne de frango voltou a ser consumida em todo mundo, principalmente a carne brasileira. E, por fim, o governo Lula, cujos três primeiros anos foram péssimos para a agricultura, conseguiu neste último ano fazer um pacote de apoio aos produtores: melhorou as linhas de crédito e criou alguns mecanismos de proteção à safra. Ainda temos problemas, mas eles são menores.

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O senhor tem números para situar os problemas vividos pelo setor rural nesse período? JS - O setor rural perdeu 30 bilhões de reais em receitas ao longo de 2006. Isso dá uma idéia do tamanho do rombo. Sem falar na queda do número de empregos com carteira assinada. No setor de maquinário agrícola, por exemplo, essa queda foi da ordem de 15%, sendo que no Rio Grande do Sul, onde se concentra a maior parte das empresas desse setor, as quedas nas vendas e empregos gerados foram maiores ainda: 20%. A previsão do Ministério da Agricultura (de uma colheita em torno de 125 milhões de grãos) vai se confirmar este ano? JS - Não se confirma. A previsão da SRB, desde o início do ano, era de um número próximo de 115 milhões de toneladas. O governo começou falando em 125 milhões, chegou a elevar a previsão para até 130 milhões e agora fala em 119 milhões. Não acredito, e talvez a gente não vá muito além dos 113 milhões de toneladas. É importante notar que esses números vêm caindo. A maior safra que o Brasil colheu foi a de 2002/2003, que chegou a 126 milhões de toneladas. De lá para cá vem diminuindo, ano após ano. Na verdade, neste ano pode até crescer um pouco em volume, mas não vai crescer em receita, porque houve uma grande substituição da soja pelo milho - e o milho, como se sabe, gera um volume maior, mas com receita menor. (Exemplificando: num hectare o produtor colhe em torno de 2.400 quilos de soja e 3.500 quilos de milho; mas, enquanto a saca de 60 quilos da soja vale de 10 a 12 dólares, a saca de milho não passa da metade desse valor). Como é que a agricultura brasileira se situa no quadro do crescimento da economia mundial? JS - A agricultura brasileira cresceu até 2002 e aí parou. O que cresceu internamente foi a agroenergia. É preciso ver que o mundo, cada vez mais, vai necessitar de alimentos e de energia. Os Estados Unidos têm um projeto chamado 15 to 15 (fifhteen to fifhteen), que consiste no seguinte: até o ano 2015, eles deverão adicionar 15 bilhões de galões de etanol na gasolina. Isso são 60 bilhões de litros. Hoje, o Brasil produz 22 bilhões e exporta apenas 2 bilhões de litros. Esse etanol vem do milho. Isso significa que os americanos vão substituir grande parte das áreas de soja. Significa também que grande parte do milho destinado à ração vai


ser utilizado para produção de etanol. Como eles vão tratar do seu gado e do seu frango? Ou seja, eles vão ter que importar. Ou soja, ou milho, ou a carne. Ou o próprio etanol. E o Brasil está em condições de fornecer qualquer um desses produtos. Pelo menos tem capacidade para isso. A demanda mundial vai melhorar os preços e o Brasil tem muito a ganhar com isso. Mas precisamos fazer a lição de casa. Ou seja, precisamos diminuir a carga tributária, resolver a questão cambial e tomar sérias providências no setor de logística e infraestrutura. Se o Brasil não resolver rapidamente tudo isso, vamos perder o bonde da história como maior fornecedor mundial de alimentos e Alan Marques/Folha Imagem de energia renovável. Qual é a participação dos principais produtos de exportação brasileiros no mercado mundial, hoje? JS - Hoje, o Brasil é o maior produtor e exportador mundial de suco de laranja, café e açúcar. É o segundo maior produtor e exportador mundial de soja, de carne bovina e de carne de frango. É quarto na lista dos maiores produtores e exportadores mundiais de carne suína. Também tem uma atuação muito importante no setor de tabaco. Mas continuamos sujeitos a políticas pouco consistentes. Veja o caso do trigo: o Brasil, que chegou a ser o maior importador mundial, conseguiu inverter a equação e passou até a exportar. Agora, nos dois últimos anos precisamos importar novamente. Em termos globais (mercado interno e externo), quais são os números do agronegócio brasileiro? JS - O agronegócio oferece 35% dos empregos gerados no país, responde também por 40% das exportações e contribui com 80% do superávit comercial brasileiro e tem um peso próximo a 37% do PIB. Há possibilidade de se ampliar esses números? JS - Em termos de superávit comercial, há dois anos, o agronegócio chegou a representar 120%, diante da situação de

Nesse primeiro mandato, o governo foi leniente com os movimentos agrários, principalmente com o MST e o MLST. Não coibiu as invasões, nem mesmo cumpriu a lei. ...

... Então, houve até um incentivo por parte do governo, que continuou ainda fornecendo cestas básicas para os invasores e continuou fazendo convênios com as cooperativas que representam esses movimentos.(O MST deixa a Fazenda Renascença, em Uruana, MG.)

déficit experimentado pela indústria e pelo comércio. Hoje todos os setores são superavitários, de modo que - ainda que não ocorra em termos percentuais - a ampliação dos números pode ser obtida em valores absolutos, principalmente se conseguirmos resolver os problemas e os gargalos que limitam as atividades do setor agrícola. Se no ano passado, mesmo com crise, o agronegócio respondeu por 80% do superávit comercial do país, significa que esse setor continua sustentando o país? JS - Não há dúvida. Não só é o setor que está sustentando o país, como é o grande responsável pela inflação baixa e pelo custo menor da cesta básica porque os alimentos estão muito baratos. Os números não dão razão aos que dizem que os agricultores reclamam de barriga cheia? JS - Se olharmos os números do ponto de vista macroeconômico, até se poderia dizer que sim. Mas, com exceção do açúcar e álcool e um pouco também do café, os demais setores perderam. Perderam renda e rentabilidade. O que os agricultores reclamam principalmente os de grãos e da pecuária - é que, embora tenham produzido muito, tiveram prejuízo na sua atividade. A gente sabe que os riscos são inerentes à atividade, mas o que se pede são providências de forma que os riscos possam ser controlados. Diferentemente da indústria e do comércio, a agricultura tem alguns riscos que a gente não tem como administrar. Clima, por exemplo. Outro exemplo: a ferrugem asiática que prejudicou os plantadores de soja. A aftosa foi outro caso: os pecuaristas fizeram sua parte, o governo não. Quanto aos demais riscos, são próprios de qualquer atividade e a gente não está pedindo nada mais do que pede o empresário urbano, ou seja, correção cambial, menor tributação, melhor gestão do governo, crédito mais barato. O que é importante é saber que volume não significa resultado positivo. NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 59


O governo tem sido mais parceiro ou adversário? JS - O governo demorou para entender a real situação dos agricultores. Embora tivesse um ministro que é do setor e que conhece como poucos a agricultura brasileira, o governo Lula, ao longo dos três primeiros anos, mais atrapalhou do que ajudou. Neste último ano, passou a ser mais parceiro. Renegociou as dívidas, finalmente criou mecanismos de comercialização que eram reivindicados pelo setor, destinou recursos para defesa sanitária e atuou de maneira mais proativa nas negociações internacionais. Enfim, melhorou sua relação com o setor. Mas nos três primeiros anos teve uma atuação desastrosa. Arrisco até a dizer que, porque nomeou o Roberto Rodrigues como ministro da Agricultura, o governo achou que tudo estava resolvido. E isso se mostrou um equívoco, apesar de toda a competência do ministro. O que se pode dizer da atuação do governo em relação ao câmbio? JS - Nessa questão cambial, o governo precisa agir de maneira a reduzir juros e criar condições macroeconômicas para que o real se desvalorize um pouco em relação ao dólar principalmente. O câmbio brasileiro não pode ser muito diferente do câmbio argentino e uruguaio, porque trabalhamos praticamente com os mesmos fundamentos. Se o câmbio argentino está em 3,10 o brasileiro não poderia ser inferior a 2,80. Uma diferença de até 10% é aceitável. Além disso, fica complicado. E em relação a crédito e custeio? JS - Até pouco tempo, trabalhávamos com os mecanismos de crédito rural criados 30 anos atrás. Nesse último ano, o governo evoluiu criando novos mecanismos de comercialização, que somente agora começam a ser melhor trabalhados. Uma reivindicação muito antiga é a questão do seguro rural, que traria modernização para o setor. Para isso é preciso que o governo atue como indutor, como regulamentador. É preciso que corrija distorções, como o monopólio de resseguros do IRB. É preciso ser criado um fundo de catástrofe. Enfim, são mecanismos que existem em todos os países de agricultura forte, como Estados Unidos, França, Canadá, Alemanha.

60 DIGESTO ECONÔMICO NOVEMBRO 2006


A política agrária do governo (com apoio aos movimentos de ocupação patrocinados pelo MST) está levando desestabilização ao campo? JS - Nesse primeiro mandato, o governo foi leniente com os movimentos agrários, principalmente com o MST e o MLST. Não coibiu as invasões, nem mesmo cumpriu a lei. A lei diz, por exemplo, que aquele que promove invasão deve ficar excluído dos programas de reforma agrária e que fazenda invadida tem que ficar pelo menos dois anos fora dos projetos de desapropriação. Nada disso foi respeitado. Então, houve até um incentivo por parte do governo, que continuou ainda fornecendo cestas básicas para os invasores e continuou fazendo convênios com as cooperativas que representam esses movimentos. Tudo isso deu gás para que esses movimentos continuassem invadindo, depredando, seqüestrando, saqueando e mantendo pessoas em cárcere privado. Esse modelo distributivista que o governo adotou (ou seja, desapropriar e entregar para os assentados) não funciona. É caro e ineficiente. O governo já gastou uma fábula nisso e o resultado é nulo. Gostaríamos que o governo simplesmente cumprisse as leis e partisse para um projeto diferente em relação ao tema agrário. Gostaríamos que o governo Lula tivesse a coragem de dar um passo além. Isto é, oferecer acesso à terra àqueles que têm vocação, com outros mecanismos como a criação de um Banco da Terra, que oferecesse financiamentos para aquisição ou arrendamento de terras e apoio à produção. Esse mecanismo que está sendo usado é medieval, de custo alto e não leva a nada, pois obriga o governo a uma tutela permanente dos assentados.

Ernesto Rodrigues/AE

Comunidade de lavradores descendentes de pomeranos cultiva café em Pancas, no Espírito Santo. O Brasil é o maior produtor e exportador mundial de café.

Além disso, o que mais o senhor espera do governo Lula no novo mandato? JS - Se eu pudesse escolher duas providências para o governo tomar imediatamente, eu escolheria a questão do seguro e a questão da logística e infraestrutura. Gostaria ainda que o governo atuasse de maneira mais clara na questão dos marcos legais. É a questão agrária, a questão trabalhista, a questão ambiental e a questão tributária. Enfim, se quiser realmente resolver os problemas da agricultura, o governo pode escolher por onde começar. NOVEMBRO 2006 DIGESTO ECONÔMICO 61


O que há por trás do

Jonne Roriz/AE

MST

Ou a estratégia dos acampame Susi Padilha/AG


Alexandre Belém/JC Imagem/AE3

Renata Carvalho/Ag.A Tarde/Folha Imagem

Integrantes do MST ocupam a Fazenda Berra Boi, em Glória do Goita, na zona da Mata pernambucana. À direita, o MST na Fazenda Céu Azul, da empresa Suzano Papel e Celulose, em Teixeira de Freitas, no extremo sul da Bahia.

ntos não é para conseguir terras

O

Movimento dos Sem Terra (MST), depois do anunciado “recesso eleitoral” de 2006, deve iniciar um outro “abril vermelho”, com invasões a propriedades rurais. O discurso oficial da entidade é de que se trata de uma “luta por terra”. Alegam que no Brasil existem latifúndios improdutivos que precisam ser repartidos entre os milhões de famílias de agricultores, ávidas por um pedaço de terra para cultivar. As invasões se justificariam como instrumento de pressão para o governo acelerar esse processo de distribuição de terras. Visando entender melhor o que está de fato ocorrendo no campo, percorri quase 8.000 km pelas (péssimas) estradas brasileiras, durante o mês de março de 2004. O percurso foi entre São Paulo e o Maranhão, atravessando quase todos os estados do Sudeste e (todos) os do Nordeste. Rodei por estradas secundárias, muitas de terra, incluindo algumas no cerrado e na caatinga. Atravessei diversas regiões onde se cria gado, se planta cacau, cana-de-açúcar, carnaúba, coco, frutas, enfim, uma importante parte do Brasil rural. Foi um longo trajeto fora da rota turística convencional, visando obter um conhecimento direto da realidade

brasileira, em especial do aproveitamento agrícola. Como já conhecia bem o percurso entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, ao completar o trajeto até São Luís pude ter contato com a realidade rural de Norte a Sul do Brasil, exceto a da Amazônia. Pude observar dezenas (quase uma centena) de acampamentos do Movimento dos Sem Terra (MST) e de outras poucas agremiações congêneres. Muitos fatos chamam a atenção para a situação do MST e só um observador que se dê ao trabalho de enfrentar o caos rodoviário brasileiro pode ter uma idéia do que de fato está ocorrendo. Os comentários abaixo foram feitos com base na observação visual de acampamentos dos estados do Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Devido aos notórios problemas de segurança nas rodovias brasileiras, bem como a conhecida hostilidade que o MST demonstra contra os que querem conhecer em detalhes a sua organização, métodos e propósitos, não entrei nos acampamentos, nem entrevistei as pessoas acampadas, até porque não era esse o objetivo do levantamento. Nem este artigo busca apresentar dados concretos ou estatísticas so-

Por Cândido Mendes Prunes (o autor é contribuinte do Imposto de Renda, advogado no Rio Grande do Sul e São Paulo, pós-graduado em Direito Econômico e Vice-Presidente do Instituto Liberal do Rio de Janeiro)

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bre o observado. É mais um testemunho de um observador “engajado”, para utilizar a feliz expressão de Raymond Aron. O primeiro aspecto que chama a atenção é que todos os acampamentos – com a exceção de um observado nas proximidades da represa de Itaparica, em Sergipe - estão estrategicamente localizados junto a entroncamentos roA proximidade doviários importantes. As principais rodovias com centros urbanos federais, com grande tráfego de veículos, foram aquinhoadas com acampamentos do de grande ou médio MST. Assim, por exemplo, a Rio-Bahia, ou a porte é outro fator Salvador-Recife, são duas rodovias com granque as lideranças do de quantidade de acampamentos. Claro que o MST estão levando movimento deve alegar a facilidade de desloem consideração camento de seus militantes para essas áreas. Seria perfeitamente crível se, no entanto, ouna hora de escolher tras áreas mais remotas, localizadas em estraonde fincar das secundárias fossem invadidas em igual a sua bandeira. número. Deve haver algumas poucas invasões e acampamentos em locais isolados do país, mas quase todos provavelmente se originaram a partir de um interesse específico das lideranças do MST, como ocorreu com a invasão da fazenda do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, numa região mais remota de Minas Gerais, onde não há conflitos. Essa estratégia pode ser observada, assim, do Rio Grande do Sul até o Nordeste . A marAílton de Freitas/AG cha de “sem terras” que em 2004 e que quase resultou em conflito com os ruralistas, verificou-se na principal rodovia que liga Porto Alegre à Uruguaiana, na fronteira com a Argentina, a pouco mais de 200 Km de Porto Alegre. Trata-se de uma rodovia estratégica para o Estado e o transporte de cargas entre os países do Mercosul. Tivesse a marcha ocorrido em uma rodovia secundária, numa região menos próspera do Estado, não teManifestantes do ria merecido o destaque que recebeu na mídia MLST atacaram em e certamente não interessaria ao MST. junho deste ano o Em segundo lugar, a proximidade com cenprédio da Câmara tros urbanos de grande ou médio porte é tamdos Deputados, em bém outro fator que as lideranças do MST estão Brasília. Pediam levando em consideração na hora de escolher reforma agrária, onde fincar a sua bandeira. Nas regiões brasimas agiam leiras de pouca densidade populacional (certas como vândalos. partes do interior do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Minas Gerais, sendo que neste último estado, destaca-se o especialmente o pobre vale do Jequetinhonha), não observei a presença de nenhum acampamento. Também nos pontos distantes de centros urbanos, mes-

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mo em grandes rodovias, não se vê a presença do MST. Como também nunca vi acampamentos em estradas vicinais, nem em estradas de terra, como no interior de Minas Gerais, Bahia, Alagoas e Paraíba, estados em que percorri longos trechos por estradas secundárias. Mesmo em áreas onde há um grande potencial agrícola sendo explorado, mas que estão um pouco mais distante de centros consumidores – como as capitais dos estados, ou algumas cidades de médio porte – não se vê a presença do MST. É interessante também observar o aparente desinteresse do MST pelas plantações de carnaúba, o que livra boas extensões do Ceará, Piauí e Maranhão de suas ações. Observando-se a quantidade de novas invasões entre março e abril de 2004 confirma-se facilmente a veracidade dessa observação: 10 invasões em São Paulo, 4 em Minas Gerais, 5 na Bahia, 7 em Sergipe e 56 no Pernambuco. Raramente alguma invasão é registrada no Maranhão ou no Rio Grande do Norte. Piauí, Espírito Santo, Goiás e Alagoas registraram apenas uma invasão no período em que cruzei o Brasil. Rio de Janeiro, Paraíba, Ceará e Mato Grosso observaram duas invasões cada. Fica assim evidente o interesse no MST exclusivamente nos estados mais prósperos do Sul, Sudeste e Nordeste. Aliás, o MST praticamente não mantêm acampamentos no Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e Maranhão – pelo menos nos trechos asfaltados que percorri entre Natal e São Luiz, e entre Fortaleza e Juazeiro, pouquíssimos acampamentos foram observados. Alagoas e Pernambuco, em compensação, apresentam uma quantidade elevada de acampamentos em comparação com outros estados, ao menos na região mais próxima ao litoral, onde o cultivo da cana-de-açúcar é importante. É evidente que o semi-árido nordestino representa uma área que, graças as dificuldades climáticas impostas à agricultura, também não interessa ao MST. Os acampamentos maiores e mais organizados são justamente aqueles melhor localizados, ou seja, estão em prósperas zonas agrícolas, contam com boa estrutura viária e próximos aos centros consumidores. Em terceiro lugar é curioso notar que normalmente a população masculina de um acampamento não excede a 30% do total, ao menos numa observação visual. O maior movimento é feito de fato por mulheres, que podem ser vistas cozinhando, colocando roupa


Henry Milleo/Gazeta do Povo

para secar ou cuidando de crianças pequenas. Há vários acampamentos que aparentemente estão vazios (cerca de 20% do total). Nos acampamentos ocupados, um número significativo de barracos se encontra fechado. Quase sempre a metade dos barracos aparentam não ter ninguém ocupando-os e por coincidência, são aqueles melhor construídos e que apresentam lonas plásticas pretas para garantir que a chuva não molhe o seu conteúdo. Fica a pergunta: o que contêm esses barracos fechados? Uma das hipóteses é que eles servem para fazer os acampamentos parecerem maiores o número e superestimar o número de sem terra. Em quarto lugar, fica evidente que o MST não está preocupado em ocupar terras que sejam consideradas “improdutivas” pela burocracia estatal. Seus acampamentos se localizam em geral em zonas de excelente aproveitamento e produtividade. Ficam longe das fronteiras agrícolas, e mais distante ainda de terras que precisem de investimentos mais elevados para se tornarem produtivas. Assim, o MST só tem olhos para o pampa gaúcho, onde a produção de bovinos e ovinos, junto com lavouras de arroz, tem obtido ganhos crescentes; ou para o interior catarinense, onde diferentes culturas em constante expansão sustentam modernos criatórios de suínos e aves; ou para o Paraná, com os seus extensos cafezais e zonas de reflorestamento destinadas à indústria de madeira, celulose e papel; ou para São Paulo, onde está a agricultura mais eficiente do País, com a quase totalidade de seu território ocupado com lavouras que vão do café, à laranja, passando pela cana de açúcar e algodão, além de criação de gado, sem contar o fato de estar junto ao maior mercado consumidor brasileiro; ou para o Rio de Janeiro, cuja excelente produção de horti-fruti-florigrangeiros abastece o segundo mercado brasileiro; ou para as regiões de Minas Gerais próprias para o gado leiteiro ou lavouras subtropicais; ou para o sul da Bahia, onde as lavouras de cacau estão se dividindo com reflorestamentos de eucaliptos destinados à indústria de papel; ou para as áreas próximas ao litoral dos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba, grandes produtoras de cana-de-açúcar e de coco e próximas das capitais e, portanto, centros consumidores. As zonas agrestes, secas, do interior de Minas Gerais e dos estados nordestinos são solenemente desprezadas, mesmo que possam, com o emprego de modernas tecnologias de irrigação, ser adequadamente exploradas. Aliás, esses solos são em geral de grande fertilidade e de baixa acidez, exigindo apenas in-

vestimento com irrigação, permitindo mais de uma safra por ano, como acontece com o cultivo de uvas no vale do Rio São Francisco. Tamb é m a s re g i õ e s , ainda que apropriadas para a exploração agrícola, mas distante dos centros de consumo, não interessam ao MST. Esses são alguns fatos. A primeira conclusão que se pode tirar diz respeito à localização estratégica dos acampamentos. Não apenas quanto ao fato de estarem em zonas de boa ou ótima produtividade. O que de feto chama a atenção é que o MST está teoricamente em condições de paralisar todo o transporte rodoviário do Sul, Sudeste e Nordeste. Não há estrada (e entroncamento) importante onde não exista na proximidade um acampamento do MST. Aliás, há mais acampamentos do MST do que postos da Polícia Rodoviária em determinadas estradas. Como se trata de um movimento revolucionário, como seus próprios líderes não se cansam de declarar, ele já conseguiria rapidamente paralisar o transporte rodoviário no País. Nem o Exército pode a ele se contrapor com tamanha eficiência. Mesmo que não existam armas nesses acampamentos, não é difícil com uma ou duas centenas de pessoas rapidamente bloquear uma rodovia. E o tumulto que se criaria num entroncamento bloqueado, com centenas ou milhares de ônibus, caminhões e automóveis parados, dificultaria qualquer ação armada por parte do Estado. Aliás, a existência de barracos fechados e a dificuldade de alguém de fora penetrar nos acampamentos permite levantar a suspeita de que possam existir armas para serem utilizadas em caso de confronto. Talvez seja mera coincidência a localização desses acampamentos espalhados por todo o Brasil. Mas nenhum observador atento pode deixar de avaliar o seu significado e eventual utilização, num contexto que fuja a mera questão agrária. Aliás, outros fatos observados também sugerem que o MST não está apenas empenhado na “luta” por terra. São muitas as coincidências que preocupam, pois elas criam todas as condições para o MST extrapolar e ameaçar ainda mais o precário estado de direito brasileiro. Aqui cabe um pequeno parênteses. Tive a

Milho transgênico devastado pelo fogo dos Sem-Terra na fazenda da multinacional Monsanto, em Ponta Grossa, no Paraná.

... o MST não está preocupado em ocupar terras que sejam consideradas 'improdutivas' pela burocracia estatal. Seus acampamentos se localizam em geral em zonas de excelente aproveitamento e produtividade.

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Terra não é a questão desse movimento. Melhor qualificado estaria como um grupo cuja motivação ideológica se sobrepõe, em muito, a qualquer vestígio humanitário ou econômico.

Crianças brincam e moça cozinha milho em área ocupada ao lado do Projeto de Assentamento Nova Amazônia, a 30 km de Boa Vista, Roraima.

oportunidade também de percorrer extensas partes do litoral brasileiro, especialmente as mais pobres. Visitei inúmeras colônias de pescadores, desde a foz do Rio São Francisco, até a foz do Rio Parnaíba, no Piauí. Em grupos, sem organização formal, ou organizados sob a forma de cooperativas, dezenas de milhares de pescadores tiram do mar o seu sustento. Usam como instrumento de trabalho desde as tradicionais e frágeis jangadas, passando por pequenos barcos à vela ou a remo, até embarcações de maior porte que contam com radares, sonares e tudo o que a moderna tecnologia pode oferecer. Ainda existem centenas de quilômetros do litoral nordestino onde não se vê atividade pesqueira, ou melhor, que continuam completamente desabitadas. Existem inúmeras cooperativas que facilmente poderiam expandir os seus quadros. Faz-se então a pergunta: porque não existe um movimento de “sem barco”? Ou de “sem rede”? Porque alguns acampados – muitas vezes a uma curta distância do mar, como é comum em quase todo o Nordeste – não reivindicam condições para explorar os recursos naturais do oceano, tão fartamente disponíveis e que demandariam menos recursos governamentais? Também pude constatar a melhora na condição de vida das populações caiçaras devido a um novo fator: além da pesca, a renda familiar em muitas localidades tem aumentado significativamente em decorrência da produção artesanal das mulheres (e também de jovens). Associações e cooperativas de artesanato têm surgido em várias localidades nordestinas, até mesmo em regiões remotas, e hoje elas vendem não apenas para cidades turísticas brasileiras, como também exportam. É impressionante ver o treinamento que muitas ONG’s estão dando aos membros de cooperativas e associações, ao transmitir conceitos como qualidade total, competitividade, criativi-

Paulo Liebert/AE

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Paulo Liebert/AE

dade, planejamento, controle de custos e assim por diante. Tive oportunidade inclusive de assistir a um evento altamente organizado em São Luís, no Maranhão, com comunidades de expositores de artesanatos de diversas regiões. As famílias estão dependendo cada vez menos da atividade pesqueira, numa compreensão – talvez até intuitiva – de que a produção de alimentos tende a proporcionar ganhos relativamente decrescentes. Mas o MST insiste em navegar contra a corrente, num jogo de reivindicações cuja irracionalidade do discurso para o grande público é cada vez mais gritante. Até aí não haveria problemas, se não fosse pelo lado desumano da história. As lideranças do MST estão usando um expressivo contingente de pobres e miseráveis como massa de manobra. São pessoas que estão perdendo um tempo precioso de suas vidas. Mesmo que venham a obter no futuro uma gleba de terra, esta de pouca serventia será para garantir o seu sustento. Num mundo em que o problema alimentar vem se reduzindo a uma questão de logística (pois o volume da produção não é mais o problema), somente o agricultor profissional, dotado de conhecimentos muito superiores ao do agricultor familiar ou de subsistência, poderá sair-se bem nesse novo cenário. Além do que, as populações pobres das cidades, por mais carentes que sejam, sequer se imaginam retornando para a zona rural. O Brasil ainda precisa despertar para o verdadeiro objetivo dos “sem terra”. Terra não é a questão desse movimento. Melhor qualificado estaria como um grupo cuja motivação ideológica se sobrepõe, em muito, a qualquer vestígio humanitário ou econômico. O MST está preparado para uma missão que vai muito além da mera distribuição de terras ditas improdutivas. Isso fica evidente para qualquer observador que queira saber como e onde o MST ergueu seus acampamentos.



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