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Anexo – A casa �������������������������������������������������������������������������������������������������

ANEXOS

Esta seção foi mencionada no decorrer do memorial e é uma dedicatória à família, aos amigos e ao Laboratório. Agradeço à Laura pelo estímulo e correção nas oficinas de literatura.

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Anexo – A casa

Maria observa a calçada. De sua janela pode se ver um ipê amarelo e o pátio da frente onde plantou uma pitangueira e uma série de jasmins. Suspira com orgulho do seu escritório, o sótão de sua casa. Olha para os livros que a acompanham desde menina. Todos os seus discos estão ordenadamente classificados por ano. Olha para os pôsteres e relembra dos velhos tempos em que queria mudar o mundo. Aqueles tempos em que conheceu seu marido. Ambos queriam conhecer o mundo.

Desejavam visitar a Muralha da China, sentir o frio da Rússia, ver os azulejos portugueses, os mosaicos espanhóis, os mercados turcos... Viajar sem limites. Queriam visitar as diferentes formas que o ser humano tinha encontrado para viver.

Maria era estudante de Sociologia, magra, cabelos escuros e longos, olhos negros e vivazes. João cursava Direito.

Eles se conheceram no movimento estudantil. Participavam de duas tendências de esquerda diferentes, mas do mesmo partido. Foram às passeatas das Diretas Já e do Impeachment do Collor. Fizeram campanha para o mesmo Presidente, mesmo Governador, mesmo Prefeito, mesmo Senador. Ambos queriam mudar o mundo!

Terminaram a faculdade.

158 Memorial Maria Paz Loayza Hidalgo

Começaram a morar juntos. Não casaram, pois casamento era um ritual pequeno-burguês. Juntaram o que tinham em um apartamento de 65 metros quadrados. O quarto de empregada era o escritório. Lá Maria colocou todos os seus pôsteres de Che Guevara, congressos feministas e manifestações contra a ditadura. Fizeram uma prateleira que ia do chão ao teto para os livros e discos de vinil, do samba de raiz a Brahms, passado por Ella Fitzgerald.

Maria fez concurso público, e João foi convidado pelo Partido a assumir a Promotoria do Estado. O país estava mudando, os cargos públicos não eram mais assumidos por generais, coronéis e sargentos, passavam a ser ocupados por gente como a gente. O partido cresceu, e, com ele o cargo de João.

Já poderiam agora realizar um sonho: construir uma casa, sua casa.

Passeavam pela cidade com outros olhos, procurando uma casa. Viram uma, mas o que interessou foi o terreno. Compraram o terreno em um bairro de classe média alta. Demoliram a casa de madeira que fora habitada por uma família negra cujo avô tinha sido escravo alforriado.

Contrataram o arquiteto.

Na primeira reunião com o arquiteto, João e Maria sabiam muito bem o que queriam: uma casa simples com três quartos, dois banheiros, uma cozinha, um escritório e um jardim.

Na segunda reunião, suas necessidades aumentaram. Perceberam que era importante ampliar o espaço privado do casal e, para isso, seria necessário construir mais um andar.

No térreo ficariam a cozinha, um banheiro social e uma sala de estar. Como na região em que viviam o inverno era frio, a sala poderia ter uma lareira. No andar de cima ficariam a suíte do casal e outros dois quartos. Mas, para ter privacidade mesmo, cada quarto teria seu banheiro. E por que não uma sala de TV onde casal e filhos pudessem se reunir independentemente da sala de estar do andar térreo onde receberiam os amigos? A sala de cima para a família e a de baixo para os amigos.

Em um novo encontro, perceberam que seriam necessários uma sala de música e um espaço maior para os livros. Portanto, resolveram construir um sótão onde seria o escritório dos dois e uma biblioteca onde poderiam ficar os romances, livros de poesia de Mistral a Neruda, os livros técnicos de João e os ensaios de Maria. A sala de música poderia ficar no primeiro andar junto com a sala de estar. Ali ficariam o violão de Maria, suas flautas e por que não o piano para o futuro herdeiro ir praticando?

Nas reuniões seguintes, novas necessidades eram criadas. Com o arquiteto agregaram ao projeto as garagens para quatro carros, uma churrasqueira que agradou a João e, claro, uma adega para os vinhos. A essas alturas já eram 4 andares.

ANEXOS

Na última reunião foi a vez dos vegetais: a sala precisava de uma vista, portanto a melhor solução era fazer um jardim de inverno. Maria já sonhava com seus jasmins. No pátio, uma piscina; um espaço com areia que seria a festa do futuro herdeiro. Mas, como o arquiteto não entendia de flores, foi necessário buscar uma especialista em jardinagem. Por isso contrataram uma profissional capaz de organizar, de uma forma supernatural e despojada, os desejos de Maria. Ela queria ter todos os tipos de jasmins, uma parreira, uma laranjeira, uma camélia. No jardim de inverno, cultivariam os maracujás, uma granada, trepadeiras e uma pequena horta de chás naturais. No pequeno jardim em frente da casa, mais jasmins, flores para atrair borboletas e uma pitangueira. E na rua, um ipê amarelo.

Maria insistiu que a fachada não deveria chamar a atenção, o que fez com que o arquiteto ficasse decepcionado, uma fachada simples que não propagandeasse quão magnífica seria sua obra!

Apesar de parecer simples por fora, para os transeuntes, devido ao bairro e por ser uma casa grande, seria fundamental um projeto de segurança.

O especialista em segurança sugeriu a cerca elétrica com seis fios e não quatro, pois com quatro o assaltante enrola uma toalha nos fios e consegue entrar. Instalariam câmeras internas para controlar o trabalho da futura babá, câmara no jardim dos fundos, câmaras na entrada. Alarme com um sistema que poderia ser monitorado pelo celular e com senha e contrassenha. E, por fim, uma porta semelhante às usadas nos cofres que separasse o andar da sala do andar dos quartos para proteger o sono dos moradores.

Ao iniciar a obra, o arquiteto percebeu que o terreno era muito profundo, seria necessário aterrar. Contra os princípios de Maria, seria necessário derrubar a árvore que fora plantada pelo avô da família à qual pertencia o terreno.

Após orçar a quantidade de terra, o arquiteto sugeriu que o melhor seria construir uma laje. Poderiam deixar um quarto subterrâneo. Maria achou a ideia perfeita, pois seria muito útil se houvesse algum golpe militar e precisassem se refugiar ou esconder algum amigo. O alçapão ficaria nos fundos do pátio, perto da parreira e da caixa de areia. Para disfarçar o alçapão, fizeram uma ponte que ligava a piscina à caixa de areia, assim deixariam o quarto do subsolo para refugiados mais seguro.

A construção demorou cinco anos, a cada ano um financiamento a mais. Estavam com o orçamento comprometido por 20 anos. Acabaram comprando uns azulejos portugueses na Carlos Chagas; no shopping center, uns tapetes persas vindos direto da Turquia; para decorar, bonecas russas.

A situação política do país estava cada vez mais complicada, o Partido tinha assumido todos os níveis de poder. João crescia junto com o Partido, mas o medo de ser infeliz aumentava. Maria tinha se tornado uma excelente funcionária pública, mas seu salário era limitado. O que garantia a manutenção

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da casa era o trabalho de João, que agora era assessor do Presidente. João voltava cada dia mais triste e mais tenso.

A casa foi terminada, e agora era necessário trabalhar para pagar os financiamentos e a manutenção do lar.

João não concordava com as alianças que o Partido fizera para chegar e se manter no poder. Mas não podia mais sair, toda sua vida tinha trabalhado para o Partido. O Partido era seu empregador. Há muito tempo parara de ler filosofia, para lidar com a burocracia do Estado.

Agora, aos 40 anos, sua diversão era assistir ao jogo, fazer o churrasco do domingo, o que justificava as cervejas abertas.

Maria nunca aproveitou a adega e, como a casa era grande, muitas vezes preferia se comunicar com João pelo Skype. Cada um tinha dois andares para morar. Mesmo com poucos encontros, tiveram um filho. Maria o levaria na creche do bairro e depois o matriculariam no colégio que também ficava perto de casa. João foi informado de que a escola era muito bem frequentada pelas outras crianças do bairro e preparava para o vestibular. Tudo estava perto, todos os seres humanos viviam ali. Não havia fronteiras, o universo era o bairro. Construíram um mundo e dele já não precisavam mais sair para viver.

O ipê amarelo florescia do lado de fora da casa.

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