Rubem Valentim

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rubem valentim

museu de arte moderna da bahia | 2011


S/ tĂ­tulo, 1987 Serigrafia | 70 x 100 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


das singularidades de

rubem valentim

Há alguns anos realizei uma pesquisa intitulada “Comunicação e Cultura na Bahia dos anos 50 e 60”. Para quem habita hoje uma Bahia imersa na predisposição quase natural de identificar cultura baiana e cultura negra, parece surpreendente que aquela época, agitada pelo intenso e criativo “renascimento baiano”, não tivesse esta quase identidade de modo algum inscrita no seu imaginário. A cultura baiana de então apresentava forte influência e presença das culturas do sertão.Ela estava configurada por esta matriz cultural, marcante na cena brasileira daqueles anos, enquanto os componentes afro-baianos eram quase excluídos do cenário cultural. Eles, por certo, habitam o cotidiano das pessoas e conformam a vida da Cidade da Bahia e do Recôncavo, mas parecem não poder adentrar e ser expressos no universo reconhecido como cultura. Tais componentes, potentes e cheios de vida, são vivenciados como prisioneiros do cotidiano, reclusos em guetos, sem dignidade para explodir barreiras impostas, superar fronteiras e serem traduzidos e reconhecidos como cultura. Neste horizonte, a figura de Rubem Valentim adquire singularidade. Negro, “homem do povo”, como disse, ele viveu intensamente a cultura popular afro-baiana, com destaque para os terreiros de Candomblé, ainda “sem saber que era arte e cultura”. Mas, diferente de outros personagens da geração dos 1950 e 1960, em Rubem Valentim esta experiência existencial, vivenciada como deslumbramento, irá se transfigurar em uma singular criação cultural, que vai marcar toda sua trajetória artística. Na contramão dos estoques populares do sertão, acionados predominantemente no ambiente cultural baiano daqueles anos, Rubem Valentim se constrói e se expressa através de uma simbologia que recria continuamente emblemas e signos do Candomblé da Bahia, ícones do universo religioso e cultural afro-baiano. A densa conexão com os terreiros não se faz em horizonte figurativo, potente na Bahia e no Brasil dos 1950 e 1960, nem por via de nenhuma concessão ao pitoresco, ao exótico ou ao folclórico, tão ao gosto de olhares “estrangeiros”, internacionais ou nacionais, das elites. Antes, ele recorreu ao abstrato, à geometria dos ferros e utensílios rituais dos Orixás. Mário Pedrosa escreveu que ele foi o primeiro pintor abstrato da Bahia. Vários autores, a exemplo de Walmir Ayala, anotaram seu construtivismo, em um instante em que

este movimento se afirma no Brasil e se expressa em Brasília. A contemporaneidade de sua obra advém, dentre outras dimensões, de tais enlaces com o abstracionismo e com o construtivismo, mas vai além. Estes diálogos também acontecem de modo bastante singular. O recurso à abstração e à geometria em Rubem Valentim não significa distância ou esquecimento do mundo ou mera adesão ao racionalismo formalista. Antes, sua obra assumiu uma modalidade profundamente criativa, original e espiritual de expressar sua re-ligação essencial com seu mundo. Sua proposta de levar ao quase purismo geométrico uma simbologia vital e exuberante, “selvagem” aos padrões meramente ocidentais e cristãos, apresenta-se como projeto estético complexo e sofisticado. Exige rigor e vigor. Seus emblemas possuem intensa densidade existencial. Seus signos manifestam original linguagem litúrgica. Sua opção abstrata elabora um caminho refinado para encontrar dimensões profundas do real e do ser. Sua espiritualidade se anuncia em cada “emblema ou logotipo poético” das entidades que referencia. Revisitar Rubem Valentim nos dias atuais não apenas se constitui em uma homenagem de sua cidade / estado natal, que se orgulha de seu filho. Tal ato afirma o reconhecimento de sua atualidade, sua admirável coerência e suas muitas lições. Rubem Valentim demonstra de modo contundente o caráter tênue dos limites impostos aos universos culturais. Popular e erudito, tradicional e contemporâneo podem ser acionados de modo colaborativo e inventivo. Ele mostra como tratar de maneira respeitosa e esteticamente requintada estoques culturais, sem derrapar para o folclórico ou para o populismo, que afirmam sempre mais do mesmo. Ele elabora e inaugura inusitados fluxos que dinamizam a cultura, sem estar aprisionado e acomodado aos esquemas estabelecidos, sem tentar paralisar o movimento imanente à vitalidade da cultura. Enfim, Rubem Valentim constrói delicadas pontes imaginárias entre culturas e propõe belos e possíveis diálogos interculturais. Sem elas não temos o movimento cultural que estimula a imaginação e pode abrir surpreendentes horizontes estéticos e sociais, dos quais hoje tanto necessitamos para sermos, novamente, contemporâneos. Antonio Albino Canelas Rubim

Secretário de Cultura do Estado da Bahia


a transcendência da forma na obra de

valentim

A exposição RUBEM VALENTIM, organizada pelo Museu de Arte Moderna da Bahia, resgata a memória e homenageia a vida e obra do artista baiano. Decorridos 20 anos de sua morte, nossa intenção é a de avivar uma poética pioneira na afirmação da importância da cultura afro-brasileira na construção de nossa própria identidade, e que foi fundamental no movimento de renovação das artes plásticas na Bahia na década de 1950. Através de obras do acervo do MAM-BA e de coleções particulares provenientes de vários estados brasileiros, construímos uma mostra que analisa a evolução da forma na poética de Valentim, das primeiras composições pictóricas à abstração geométrica, evidenciando as linhas estruturantes de seu trabalho. A essência de sua obra não reside apenas na sua evidente relação com a cultura afro-brasileira nem em seu interesse pelas tradições populares, aspecto fundamental e amplamente analisado por diversos críticos e pensadores brasileiros. A fusão desta tradição popular e da estética ocidental, a comunhão de aspectos místicos e o rigor da tradução da forma e de suas relações com o espaço, a transcendência – seja ela espiritual ou plástica – são outros aspectos vitais na obra do artista, e nos são apresentados por meio de estruturas construídas com história e passado, em geometria que ultrapassa as formas visíveis por meio de linhas expandidas ao infinito. O percurso destas linhas que extrapolaram os limites bidimensionais de suas primeiras composições, passando por relevos que desembocaram libertos em esculturas, demonstra o caminho estabelecido pelo artista, marcado pelo desejo de integração e pertencimento com a dimensão espacial. Afirmava Valentim: “A arte é um produto poético cuja existência desafia o tempo e por isso liberta o homem. (...) Busco, ávido, na linguagem plástica visual que uso, uma ordem sensível, contida, estruturada. A geometria é um meio. Procuro a claridade, a luz da luz”.

A própria configuração física do Museu de Arte Moderna da Bahia se revela, felizmente, coerente com esta busca da luz, da verdade, da amplidão. O diálogo – mais do que mera inserção – das obras com as salas expositivas evidencia um aspecto tão básico quanto fundamental para o artista: o espaço e suas relações com a obra. Neste sentido, o pensamento de Rubem Valentim se aproxima do de Lina Bo Bardi, genial arquiteta e primeira diretora do MAM-BA, que potencializou, revendo seus conceitos e usos, todas as áreas do Solar do Unhão. Ainda citando o manifesto escrito pelo artista em 1976: “minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço”. Assim, convido a todos a fruírem da obra e pensamento de Rubem Valentim, apresentados em suas diversas camadas de significação também pela curadoria educativa elaborada pelo núcleo de Arte Educação do MAM-BA, num compromisso de nossa instituição em multiplicar as possibilidades de apropriação da obra aqui apresentada. Quero agradecer ao Secretário de Cultura do Estado da Bahia, Dr. Albino Rubim, pelo comprometimento com a história e cultura da Bahia; ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia; à Diretoria de Museus do IPAC; à Fundação Palmares, pelo apoio decisivo para a concretização do programa educativo desta exposição; à equipe do Museu de Arte Moderna da Bahia, pelo esforço e dedicação, sempre; a todos os pesquisadores, críticos, colecionadores e amigos de Rubem Valentim, que generosamente contribuíram para a realização desta exposição. A todos, o meu reconhecimento e agradecimento pela colaboração, que resultou nesta mostra que oferecemos ao público. Sejam bem vindos, e que todos possam sentir a mesma alegria, percorrendo esta exposição, que tivemos em produzi-la.

Stella Carrozzo

Diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia


Templo de Oxalá | 1977 Escultura | Madeira e tinta acrílica Acervo | MAM-BA Foto | Andrew Kemp


o gênesis,

o deslumbramento Depoimento de Rubem Valentim a Bené Fonteles

Sou um homem do povo. Fui sempre identificado com a cultura popular porque eu vivia no meio da cultura popular, da religiosidade popular, sobretudo, da religiosidade baiana. Espontaneamente, participava dessas coisas sem saber que era arte e cultura. Nós próprios, eu e minha família, fazíamos cultura e éramos elementos atuantes de um meio cultural. Quando eu era garoto, freqüentava candomblés, encantando-me com aquele ritmo. Os toques dos instrumentos de percussão me falavam muito. As cores, as danças, aquele mundo para mim era misterioso e deslumbrante; era como contos verdadeiros. Nesse tempo eu era um garoto que gostava de ouvir estórias; minha mãe me contava muitas estórias populares. Eu freqüentei muito o Candomblé e depois a Igreja Católica. Na Bahia, a Igreja Católica tem católicos animistas-fetichistas, por isso, não há conflitos maiores. Fiz primeira comunhão. Freqüentei muita igreja e também me deslumbrava com o barroco, sobretudo na Igreja de São Francisco, que eu adorava... E ficava sonhando... Quando ia nessas igrejas, ficava lá, olhando aquilo lá, tão bonito... Acho que era um sentido estético que eu já trazia dentro de mim. Esta carga mais ou menos poética, este deslumbramento que eu tinha com as coisas, isso serviu de substrato. Depois, eu era um garoto muito pobre, morava num bairro pobre e eu mesmo fazia meus brinquedos. Fui um grande fazedor de arraias, de pipas, construía minhas pipas: cortava as flechas, armava, colava o papel de várias cores. Na Bahia, chamava-se pipa de “arraia”. As maiores nós chamávamos de “cação”. Eram pipas enormes, já mais trabalhadas, com mais elementos. Não fiz só para brincar, eu e meus amigos fazíamos para vender por um tostão ou alguma coisa assim. Depois eu fiz também balões de São João, fiz vários... Objeto plástico, estético, da maior beleza... Aqueles balões de São João, da Bahia, feitos de papéis coloridos e tal... Ajudei muito minha mãe a armar presépios e comecei, depois armando meus próprios presépios, eu mesmo fazendo a pintura de fundo, aquelas paisagens, aquelas casas... Armei também altares de Santo Antônio, de São Cosme e Damião e do Senhor do Bonfim.

Rubem Valentim Rubem e as serigrafias Foto | Silvestre Silva


Nós acompanhávamos, em casa e na rua todo o calendário das festas baianas, religiosas e folclóricas. Este foi o ambiente que me formou, em que me criei. Quanto aos presépios, tiveram um papel importante em termos de pintura: eu comecei a pintar realmente nesse período.

“Artur Come Só”, o primeiro mestre O meu primeiro mestre foi um pintor de paredes chamado Artur. Ele tinha o apelido de “Come Só”, e, então, o Artur pintava lá em casa. Era um homem simples. Quando eu comecei a tomar consciência do que era arte, ele já tinha morrido; foi aí que eu descobri que ele tinha muito talento, que o cara era um pintor espontâneo, natural, quem sabe até poderia ter sido um Volpi, mas ficou obscurecido na Bahia, perdido lá. Então, ele costumava pintar a minha casa, a casa de meus pais, de três em três anos. Chamávamos ele porque era um costume da Bahia decorar a casa, pintar os cafés, os armazéns, as padarias. Era costume na Bahia, os pintores de parede vinham decorar, pintavam cenas, flores, era uma tradição muito forte. Hoje não tem mais. E o Artur era como um amigo. Aliás, nós, em termos econômicos, não podíamos chamar um pintor, não tínhamos dinheiro para pagar. Acontece que o Artur Come Só viu minha mãe menina, então ele era amigo da família de minha mãe. Ela chamava para ele pintar nossa casa e ele fazia aquilo com a maior satisfação, muita alegria e cobrava muito pouco. Então ele extravasava seu talento. A gente não chateava e ele pintava flores na sala, naturezas mortas na sala de jantar, flores nos quartos. Ele tinha uma imaginação muito fértil, era um grande colorista e eu o admirava, ficava deslumbrado vendo-o pintar. Isto se repetia de três em três anos. Era uma casinha que tínhamos no Tororó, era uma casinha pequenininha ... Toda pintada por ele. Eu chegava da escola e dizia assim: “oh! Seu Artur, que beleza!”. Ele ficava muito contente, e perguntava assim: “ah, você gosta, Rubem? Quem sabe você vai ser pintor! E tal...“. E brincava comigo. Mas ele bebia muito, bebia pra caramba.

A primeira têmpera, azul Artur me ensinou a primeira têmpera que eu fiz: era cola de marceneiro diluída em banho-maria; tinha água de cola e pigmento xadrez, que já havia naquela época. Então, ele trazia os pacotes de azul, lembro-me bem do azul ultramar, das terras, dos amarelos de cromo. Ele misturava aquilo, fazia tinta com aquela cola, e pintava paisagens, as coisas dele. Eu comecei a pintar em papel, em cartolina, em papelão, fui pintando... Fazia presépios, cortava figuras. Aquela coisa primitiva, espontânea. Depois que ele morreu, entrei no ginásio e lá comecei a descobrir um troço mais acadêmico. Eu ia à Escola de Belas Artes e olhava aquelas coisas. Foi um outro tipo de informação que eu tive no ginásio, mas sempre pintando...

Rubem Valentim Rubem Valentim | Studio SP Foto | Silvestre Silva


Foi quando eu comecei a ter contato com o movimento baiano de 1946, depois da guerra, que foi um movimento realmente renovador, com uma revista, Caderno da Bahia. Nisto já tinha Mário Cravo, Carlos Bastos, Wilson Rocha, o poeta, Cláudio Tavares, Vasconcelos Maia e aí é que eu comecei a ter consciência do que era arte realmente. Comecei a estudar, ler, frequentar museus com o José Valadares. Aí, voltando à infância: eu fazia arte na educação, trabalhando, inventando, e sem saber que estava fazendo, já fazendo minhas pinturas, minhas coisas. Esse foi o meu mundo... Houve uma exposição na Bahia, organizada por Marques Rebelo, um grande escritor carioca que andou percorrendo o Brasil com obras de artistas atuantes em São Paulo e Rio de Janeiro. Eram trabalhos de Segall, Portinari, Pancetti, Di Cavalcanti, Bonadei, Goeldi, que eu gostei muito. E eu ficava lá, impressionado com aquilo, sem saber bem o que era. Aos poucos, fui entendendo, intuitivamente, instintivamente.

Língua materna Então, eu saí daí, e conservo com muito orgulho e satisfação estas lembranças. Hoje tenho consciência de que é fundamental para o artista, para a sua autenticidade, para ele existir, ele ter um diálogo profundo com sua terra, seu povo, sua gente, e, depois, que venha por acréscimo a erudição, a informação e o conhecimento através de livros, o contato com outros artistas, com críticos, que vêm enriquecer mais. Mas o substrato vem da sua terra, da sua vivência nela. Primeiro é o problema da linguagem, a língua materna, a qual você expressa melhor fazendo poemas, poeta na sua língua materna, a primeira palavra, o primeiro verbo, então aquilo que você faz tem uma autenticidade. É o conluio e o amálgama com você e sua língua. É o pensamento, é a visual idade profunda... A Bahia é uma terra, sobretudo, plástica, visual, tentadora, uma luz fantástica. Tudo isso contribuiu para meu substrato. Agora, com o tempo, com o contato com outros artistas, com os poetas de 1946, fui descortinando outras facetas do meu mundo, do que era religiosidade, arte e cultura popular, o que era erudito e acadêmico.

Quem fez Deus? Depois de ver Cézanne, Kandinsky, Klee, Van Gogh, que eu gostava muito, vi os artistas nacionais: Lívio Abramo, Bonadei, Djanira; ela apareceu lá na Bahia com uma exposição e eu adorei aquilo. Mas eu gostaria de dizer ainda, sobre minha infância, que teve esta religiosidade desde criança, porque eu já era contemplativo. Eu falava assim pra minha mãe: “mãe, quem é Deus?” minha mãe falava muito em Papai do Céu, aquela visão católica, popular, e eu: “mãe, quem fez Deus?” Eu era muito garotinho, devia ter uns seis ou sete anos: “Minha mãe, quem é que fez Deus, tudo foi feito por Ele, mas quem foi que fez Deus?” Eu já tinha essas indagações metafísicas. “Ah! Meu Deus, Deus existe por si mesmo, Deus não foi criado”. Eu ficava encucado com aquilo. Eram preocupações metafísicas, instintivas de meu ser, nasci assim... S/ título | 1956 Pintura | Óleo s/ cartão 37 x 26 cm Acervo | Celso Albano Costa Foto | Andrew Kemp


Eram meus deslumbramentos na igreja Católica, no Candomblé. As imagens dos santos baianos me impressionavam muito, o barroco... Tinha umas imagens que eu achava fantásticas, lá na Ordem Terceira do Carmo. Aqueles santos de influência sevilhana, espanhola. Aqueles santos vestidos, com aquele olhar... Eu ficava impressionado e não dormia por causa daqueles olhos brilhantes, aquelas cabeleiras; calavam fundo na minha alma.

quando houve a Primeira Bienal de São Paulo, em 1951. Logo eu vi que, por causa da Bienal, muito artista largava-se e dizia: “Vamos fazer arte moderna!”. Aí comecei a ter uma análise crítica do que se fazia no Brasil. Eu já tinha consciência, porque este curso de Jornalismo me deu um estudo formidável sobre o Movimento de 1922.

Um dentista na arte

Nós, então, tomamos conhecimento mais profundo da Semana de 22, quem era Tarsila, Anita Malfati, Di Cavalcanti, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet e todo mundo que participou daquele movimento. O que era o Movimento Pau-Brasil, o que era ser brasileiro, o que se devia fazer e o que era da terra.

Fiz um curso de Odontologia, me formei e larguei. Porque eu pensei que pudesse conciliar o trabalho e a pintura. Me formei com 22 anos, para ganhar um dinheirinho e subvencionar minha pintura. Minha família era muito pobre e não tinha dinheiro para comprar tinta. Meu pai era o único esteio da casa e eu não queria ficar pedindo dinheiro. Como sempre fui muito rebelde em questão de patrão, ser empregado, eu nunca gostei de ter chefe. Essa coisa da liberdade, de ter consciência da minha disponibilidade. Eu nasci assim. Trabalhei enquanto estava estudando e dava uma ajuda na Ordem dos Advogados, ia para lá arrumar a biblioteca para ganhar um dinheirinho. Depois, eu vi que era incompatível trabalhar na Odontologia e ao mesmo tempo querer fazer arte. Até montei um consultório com um amigo. Aliás, ele era o dono e eu trabalhava para ele. Levava meus cadernos, meus desenhos lá para o consultório e ficava lá desenhando, não queria ver ninguém. Quando foi um belo dia, eu digo: “não vou me realizar nisso, não sou feliz fazendo isso, eu vou largar”, e larguei. Minha mãe ficou triste, meu pai ficou um pouco chateado: “você tá com futuro, você vai viver como? Da arte? Você não pode viver com isso”. Mas eu larguei, enfrentei tudo, aluguei um pardieiro, lá em cima no Cabeço, um prédio que até já demoliram, um sobrado maravilhoso. Então, eu tinha um estúdio onde à noite nem podia pintar. Eu trabalhava de dia e à noite ia fazer as minhas farras de rapaz. Era uma certa vida boêmia de artista, com os meus amigos Mário Cravo, Rubem Martins, era 1949, 1950, por aí... Mas eu estava me dispersando muito na noite e aí surgiu um tal chamado Curso de Jornalismo.

A arte com um jornalista Como eu tinha um curso superior, podia me matricular. Quando eu vi a lista dos professores que eram também meus amigos: “eu vou pra lá de noite, preciso estudar um pouco de História da Arte. Quero saber mais, eu tenho que ter uma formação razoável”. Então, me matriculei nesse curso e tive uma bruta sorte de encontrar professores do nível de José Valadares, Hélio Simões, Godofredo Filho, Eron Alencar, que ficou exilado e era um grande sujeito, professor de História da Literatura. Um camarada maravilhoso. Eram artistas da maior importância, baianos, pessoas sérias, com as quais aprendi muito. Me encantei com o estudo muito mais do que com a profissão de jornalista. Foi mais pra ter uma formação humanista, porque no nosso curso, além das matérias formais inerentes à profissão, tínhamos uma formação de ilustração cultural muito boa. Eu aproveitei isso, não me arrependo, fiz muito bem, e, nesse susto todo, pintando, passava o dia todo trabalhando, pintando... Comecei a fazer experiências, pesquisas. Foi quando tomei contato com o que se fazia no mundo,

A Semana de 22: “não é que eu posso!?”

Eu comecei a fazer análise crítica, comecei a indagar, descobrir o problema da linguagem. Eu acho que a tônica na minha vida foi ter descoberto o que era a linguagem, a linguagem não verbal, visual. Isso foi fundamental, porque quando eu estudei literatura, e um pouco de lingüística, já se falava na Bahia em noções de semiótica. Descobri que mesmo o Movimento de 22, mesmo as coisas que começaram a fazer aqui, eram de uma certa maneira caudatárias da Europa. Um produto do Cubismo, dos movimentos que aconteciam lá. Comecei a indagar: “por que estou fazendo paisagem parecendo Cézanne? O problema não é este”. Comecei a indagar: “os artistas brasileiros e suas obras vinham do Expressionismo Alemão, outros de Leger, outros das pinturas cubistas”. Então, eu disse: “essa coisa toda tem que vir da terra. Todo este fabuloso mundo do Candomblé, arte popular... Não é que eu posso!?”. E volto a descobrir os ex-votos de madeira vindos de várias partes do Recôncavo Baiano. Muitos, o pessoal trazia para vender como coisa de arte popular. Mário Cravo trazia sacos de ex-votos. Meu irmão Jorge, de uma viagem com amigos, trouxe sacos, que depois eram vendidos em antiquários. O pessoal do Sul ia lá comprar escultura popular. Nós nem sabíamos direito o valor disso. Ex-votos eram “milagres”, era assim que nós chamávamos. Fui me aprofundando e tomando consciência da realidade que me cercava e disse: “a minha fonte tem que ser essa, não há outra”. Aí tudo casou muito bem às minhas indagações de ordem filosófica, de ordem religiosa popular, os signos, os símbolos... Então, eu vi a linguagem popular: a Dança é uma linguagem, então, eu vi a dança dos Orixás, a melhor dança. A cor era da melhor que eu via, os ritmos eram os melhores, os atabaques eram dos melhores. Eu via as coisas mais autênticas.

Um artista no terreiro Garoto ainda, meu pai me levava ao candomblé da Tia Maci, no Engenho Velho. Meu pai também freqüentava o candomblé da Mãe Menininha do Gantois. Ela era muito moça. Tinha também o candomblé do Bate-Folha, do Júlio Branco, que meu pai ia muito. Tinha o candomblé misto, uma parte de caboclo e uma outra de Orixás, uma parte de nagô-jêje e uma parte caboclo. Esse era o Candomblé da Sabina. Eu ia lá muito. Via aquilo tudo, que me impressionava profundamente. Todo aquele contexto complexo, eu comecei a indagar, a estudar. Minha experiência, minha arte, vem do meu lado místico religioso.


O exército com um artista Aí veio a guerra. E eu sempre fui uma pessoa com muita energia, num corpo muito frágil. Não sei como fui conseguir tanta energia, porque fui convocado para a guerra. Eu tinha 16 para 17 anos, fui obrigado a acampar com soldado ligados ao Batalhão de Caçadores, fiz este troço lá, marchei. Aprendi aqueles troços todos, porque tinha que ser. Depois eles disseram: “como você tem cinco anos de ginásio” (porque com 15 anos eu terminei o curso ginasial) “deve entrar no CPOR, estamos precisando de oficiais”. Me meteram na escola, fui obrigado a fazer aquilo, estudar. Tínhamos uma certa folga e ficávamos em casa, íamos pro quartel fazer exercícios, provas,e voltávamos pra casa. Dava tempo de estudar e fazer as minhas coisas. Neste período a minha mãe me ajudava muito e meu pai. Porque era barra pesada ficar agüentando tudo aquilo. Eu lia muito e, modéstia à parte, aprendia com muita facilidade as coisas, sem muito esforço e muito rápido.

Consciência do social e do criar livre Então, entrei neste curso do CPOR, ao mesmo tempo que nos politizamos também. Comecei a tomar consciência do que era o socialismo, do que era o marxismo, do que era a repressão nazista, a ditadura dos fascistas no mundo. Eu tomei consciência do problema racial. Eu tomei consciência e pensei: “pô, esse cara tá pregando tanto arianismo e nós um povo mestiço! Que diabo é isso? Qual é o futuro que vamos ter nisso?” E tomei consciência das injustiças sociais, que nós, principalmente quando jovens, ficávamos revoltados contra a miséria. Uma miséria pitoresca, miséria baiana, aquela coisa toda seca, tudo com um certo conformismo. A intelectualidade começa a ver isso também, de uma certa maneira romântica. Isso gera uma revolta em todo jovem que se condói com a condição humana. Esse foi meu caso, e, então, eu comecei a ler sobre Marxismo, sobre Socialismo. Eron Alencar, Cláudio Tavares, inteligências brilhantes, eram marxistas – se diziam –, mas hoje eu sei que não era nada disso. Hoje eu tenho uma visão completamente diferente. Mas, na época, era o que tinha. Amigos como Ariosvaldo Matos eram militantes do PC, uma série de amigos eram ligados ao Partido. Conversava muito com eles, que queriam que eu fizesse o realismo socialista, inclusive o Jener Augusto enveredou um período por este caminho. Artistas e intelectuais do Rio de Janeiro vinham à Bahia e queriam nos convencer que tínhamos que fazer realismo socialista, pintar a miséria. E não vou citar nomes... Mas eu me revoltei, fui contra. O artista tem que ser livre, há liberdade na criação, não pode ser orientada pelo pai Stalin. Eu ficava danado. E não é que o Stalin escreveu sobre estética? Me deram um livro sobre estética marxista e eu achei aquilo uma droga, porque eles atacavam o Cézanne e Picasso. Tinha que ser a glorificação do operário, esta história que estamos vendo que acabou. Mas eu nunca aceitei isso. Quando eu fiz as minhas experiências chamadas “abstratas”, eu era muito inquieto, é claro, num período de busca, de procura, com muitas informações na cabeça. Expus, então, a primeira coisa abstrata, foi em 1949. A coisa não tinha tanta unidade, porque eu estava num período de aprendizado, de sedimentar o que eu tinha aprendido. Era a tomada de consciência da minha infância e da formação erudita.

Então, como conciliar isso? Como fazer? Não é fácil, é preciso ir trabalhando, ir amadurecendo, meditando. A arte é um produto de reflexão, não é um negócio de moda, de repetir o que foi feito, eu não faria isso, graças a Deus.

Amor pelo Brasil Procurei refletir sobre uma coisa mais ligada à terra. Comecei a tomar consciência não só do amor pelo Brasil, do amor às coisas do povo, como também de uma consciência nacionalista. Enquanto o povo não tiver uma consciência nacionalista não podemos ter um desenvolvimento em plenitude, não só cultural, mas industrial, uma independência. A conquista da independência é muito importante. Eu achava que éramos muito colonizados, uma zorra isso que vem se alimentando através dos tempos. Mas isso pra mim veio num ritmo natural.

Entre a figura e a abstração decadente No Salão Baiano, expus três quadros: um era uma bailarina meio expressionista; outro, uma paisagem com uma barca e umas aves, um tanto expressionista também; e uma experiência abstrata. Agora, como é que eu descobri essa experiência abstrata? Eu trabalhava com madeira compensada e nela eram muito evidentes aquelas formas-veios da madeira. Via que ali tinha formas bonitas e pegava a madeira e desenhava em cima daquelas formas, coloria e acrescentava coisas. No final tinha uma pintura que era uma realidade plástica, visual. Então, eu chamei uma vez o Mário Cravo, e ele disse: “mas isso é pintura abstrata, Valentim”. E me levou ao Museu da Bahia, ao Zé Valadares, e disse: “tem um artista aqui, o Valentim, que está fazendo arte abstrata; ele estava fazendo Cézanne e agora descobriu isso”. Aí o José Valadares me deu um livro do Kandinsky e eu comecei a folhear e vi o que era uma coisa abstrata e tal. O Bonadei nessa época foi à Bahia, em 1947, 1948. Foi várias vezes. Em 1949 ele foi membro de um júri e escolheu um quadro meu. Botou título de Abstração. Quando eu comecei a fazer isso, o pessoal dizia: “mas Valentim, você é um alienado, abstração é arte decadente, é coisa da burguesia, um troço...” Coitados, eles eram honestos, íntegros, mas por falta de consciência, de reflexão, de estudo, de informação comparativa, estavam por fora. Aliás, comparar o quê, lá na Bahia? Eles diziam: “Valentim, entra pro Partido”, e eu: “não entro pro Partido coisa nenhuma, porque eu não quero me submeter, você tem que fazer isso, tem que fazer aquilo, o caminho é esse...“ E eu queria voar livremente.

Iluminação e Bienal Talvez eu seja um individualista, mas eu não entendo o fazer artístico sem uma dose cheia de individualidade. A busca do artista é interior, faz parte de uma religiosidade profunda. Quando eu estava fazendo coisas meio abstratas, isso em 1953/1954, comecei a ter a iluminação e disse: “por que não pego tudo que está ao redor de mim para construir a minha linguagem?”. Comecei a pensar, depois, vendo o que o pessoal desencadeou na


Bienal, que foi organizada por Mário Pedrosa, quando veio Picasso, Klee, e tudo isso foi um grande aprendizado. Eu quase que dormia lá na Bienal. Foi em 1955 que eu pintei a primeira coisa que disse: “o caminho é aqui”. Em 1953 e 1954, já tinha colocado os ferros de Ossain, aquele com pássaro em cima, as ferramentas de Ogum, Oxossi e Oxumaré. Com o conhecimento dos símbolos que são o ibi de Nanã, os abebês de Oxum, o paxorô de Oxalá, os instrumentos litúrgicos de metal, palha, tantas coisas bonitas, meu mundo, comecei a perceber que podia trabalhar, transpor, criar... Não cópias sobre o que vinha da Europa, como faziam os artistas brasileiros da época. Estas obras de 1955 e 1956 tinham muitos elementos (inclusive estão reproduzidas no livro de Roberto Pontual, Cinco Mestres da Pintura Brasileira onde tem um trabalho que eu considero uma espécie de Bíblia, um catecismo, onde estão meus símbolos todos lá. Em 1959, comecei a pensar que o que eu estava fazendo tinha elementos demais, que estava muito cheio, parecia muitos quadros dentro de um só. “Tenho que pegar cada elemento em si e transformar numa forma”. Comecei a me libertar daqueles muitos elementos. Aí comecei a fazer as coisas que faço até hoje.

Suporte/Caligrafia - Linguagem/Deus Fui evoluindo e trabalhando dentro da minha linguagem, me enriquecendo, não fiquei estagnado, nem repetindo fórmulas enquanto usava um suporte diferente. Aliás, quando um artista descobre sua linguagem pessoal, seu suporte pode ser o que for. O suporte é secundário, o suporte é suporte, porque o que vem acima é a poética, a plástica. A poesia plástica, visual, é que usa aquele suporte. Ele é o nosso corpo físico, nossa fisiologia. Mas nós existimos como entidade, como Ser, nós não somos destruídos jamais, porque fazemos parte da criação do mundo, fazemos parte desse grande mistério, desse grande desafio, que por isso mesmo é muito belo e que sintetizamos numa só palavra, que chamamos: DEUS. Que é um Ser que tem todos os nomes e não tem nenhum, porque não esgota nada. O que esgota tem opostos e contradições. Viemos aqui para superar as contradições e a dialética dessa coisa.

Geometria e substrato Bem, em 1955 veio a purificação. Do período analítico veio o cubismo sintético; parti para a síntese, para procurar forma, cor, e firmei mesmo a linguagem. Quando cheguei ao Rio, no final da década de 1950, eu já tinha consciência das coisas. Tinha cadernos, desenhos, pinturas feitas com coisas geométricas – a geometria como meio da minha linguagem e a geometria substrato. Eu uso a geometria como um elemento sensível.

O arquétipo implícito na cultura popular Isto é uma coisa fabulosa, porque as coisas populares têm uma construção, quem morou na Bahia sabe disso. O Nordeste inteiro tem isso e eu tomei consciência do Nordeste, de Pernambuco, Rio Grande do Norte, fui lá várias vezes. Vi estas coisas indígenas com a cultura negra, que teve influência fundamental no que eu fiz. Venho dessa cultura afro-indígena, misturada na Bahia num sincretismo autóctone. Somos cafuzos, mamelucos S/ título | 1956 Pintura | Óleo s/ tela 70 x 50 cm Acervo | Marta e Márcio Lobão Foto | Andrew Kemp


e mestiços, queiramos ou não. Nordestino me considero, com muita honra, com muita felicidade, sou um produto disso tudo.

Bahia/Rio/Luz Na Bahia, nunca tive muita aceitação, inclusive, eu saí de lá por isso. Entrei em conflito com o pessoal, começaram a dar umas opiniões. Os marxistas não suportavam minhas formas “decadentes”; entrei em conflito com outros artistas. Era natural, eu queria ter uma atitude independente, essa zorra de querer ser independente, essa ânsia de liberdade... Eu procurava a luz da luz, essa coisa mística, transcendental. Entrei em choque inclusive com pessoas minhas amigas, com quem mantenho bom relacionamento até hoje. Alguns ainda são meus amigos. Diziam: “misticismo é decadência, metafísica não existe, acabou”. Eram problemas conceituais e filosóficos. Esses conflitos naturais...

Período Rico Construtivo Então fui pro Rio, e, como eu já fazia essa coisa geométrica e construtivista, tive aceitação do Mário Pedrosa, que foi um crítico que me deu muita força. Eu o conheci em 1956 ou 1957. Conheci também, nessa época o pessoal do Jornal do Brasil, o Reynaldo Jardim, outra figura muito importante. Uma vez ele chegou lá na Bahia e gostou muito das minhas coisas. Ele fazia o suplemento do JB, um movimento que eu acho da maior importância no Brasil, onde o Amílcar de Castro fazia a diagramação e era um grande artista gráfico. Fiquei amigo de Reynaldo, do Ferreira Gullar, Assis Brasil, e conheci o Theon Spanudis, que me deu muita força; ele vinha ao Rio, via minhas coisas e gostava muito. Depois, indo a São Paulo, fiquei amigo dele, foi ele quem me mostrou o Volpi. Esse período é um período muito rico. O Volpi, eu conheci numa destas bienais, acho que foi em 1959, numa dessas minhas idas a São Paulo, porque ia muito lá ver as bienais. Fiz amizade com Bonadei e cheguei a conhecer Tarsila do Amaral, almocei com ela, ela já tinha uns 80 anos. Eu, ela e o Sérgio Milliet. Pessoas que eu tive a alegria e a satisfação de conhecer. Quando eu mudei definitivamente para o Rio, quem me apoiou foi o Ivan Serpa, um grande amigo que fazia um concretismo intuitivo. Porque o verdadeiro concretismo ninguém fez no Brasil. O verdadeiro concretismo era matemático. Max Bill foi um dos papas do concretismo e eu tinha livros dele cheios de formas matemáticas. Mas era matemática transcendental. Ivan Serpa fazia uns quadros até muito bonitos, era um artista sério, muito importante, com uma técnica admirável. Mas ele estava muito imbuído com a coisa do Concretismo Suíço e tal... Mas como ser humano era maravilhoso. Ele me aceitou muito e me levava para o estúdio dele. Foram estes os apoios que eu tive no Rio de Janeiro. Fernado Campos, um amigo maravilhoso, cineasta, de quem até hoje choro a morte, foi quem Estudo |1964 Desenho | Estudo em lápis de cera s/ papel 35 x 24 cm Acervo | Celso Albano Costa Foto | Andrew Kemp


me levou na casa do Mário Pedrosa, que me deu todo apoio, porque, de certa maneira, fui despedido da Bahia. Houve um certo complô lá. Eu comecei a escrever algumas coisas em jornal, dando opiniões, mas o pessoal não queria aceitar o que eu falava.

A primeira individual e Glorinha Foi no Palácio do Governo, na Praça do Elevador Lacerda, ali no hall de entrada, no começo da década de 1950 e mostrei umas 30 pinturas. Tinha muitas obras com cabeças de ex-votos (desenhei muita cabeça de ex-votos como elementos de exercício) e muitas naturezas mortas com cerâmicas da feira de Água de Meninos. Tinha uma mulher que transava comigo, chamada Glorinha. Essa mulher é que eu desenhava, um modelo vivo. Eu precisava ter noções de modelo vivo, de desenhar para olhar a forma. Fiz isso durante os dois anos em que eu vivi com ela. Éramos muito amigos.

Putas poetas da noite Minha vida de farras noturnas? De ter amigas? A Bahia Velha, Açouguinho, Maciel de Baixo e de Cima, Pelourinho... Minha troca com elas foi muito boa... Geralmente eram sensíveis... Poetas existenciais, lúdicas. Um período da minha vida que considero muito bonito... Mas nunca tomei tóxico ou fumei maconha. Cocaína só de ver, como substância química, da farmacopeia. Nunca tive necessidade disso, porque sempre tive meus sonhos, minhas viagens autênticas, vindas de dentro, meus deslocamentos. Dancei e recebi os Orixás no Candomblé, pratiquei meus exercícios de respiração de yoga.

I-Ching brasileiro e outros mistérios Quando cheguei ao Rio de Janeiro, já vinha com uma bagagem toda, cheguei pronto, pode-se assim dizer. Eu já estava interessado no oráculo brasileiro que é o jogo de búzios, o oráculo africano. O jogo de búzios é o I-Ching brasileiro. O tarô eu conheci através da Tia Antoninha, que devia ter uns 90 anos; ela me ensinou. No Rio, eu descobri o taoismo e, depois de um tempo, o Bhagavad Gita. Comecei a descobrir outras fontes de mistérios da religiosidade de outros povos. Comecei a me universalizar. A retroagir, a fazer uma análise crítica do cristianismo, a aceitar o cristianismo como coisa mística, como religiosidade e não como dogma. Enfim, com consciência crítica. Inclusive li um livro recentemente, chamado Caíba/íon, que é um resumo da doutrina de Hermes Trimegistus, aquele grande sábio que é também um mito.

Lúcia, um ato mágico - “da onde?” Lúcia é um fator importante na minha vida, porque foi um ato mágico, um ato de encontro que transcende toda racional idade. Foi um ato holístico, um ato de poesia plena. Eu encontrei a Lúcia por acaso. Estava mostrando uns trabalhos, na Escolinha de Arte do Brasil... A Lúcia estava lá e foi uma coisa muito especial na minha vida. Meu destino

já estava marcado. Na Escolinha, mostrei meus trabalhos para Lúcia e ela disse: “ah! Que coisa bonita!”. Ela vinha dos Estados Unidos, tinha feito lá um curso de aperfeiçoamento, na Universidade de Indiana,e estava ali, na Escolinha... Eu encontrei Lúcia, então foi aquela atração, aquela criatura de uma simpatia muito grande. No outro dia encontrei com ela, depois começamos a passear. Uma intuição, uma voz dizia que o meu destino ia se ligar com o desta mulher: “você vai se casar com essa criatura”. Olha! Eu... Ela disse: “eu tenho a impressão que já o conheço há anos, da onde?”. Com uns quinze dias chegamos à conclusão que devíamos casar. Em quinze dias!

“Uma criatura que me encanta” Houve, assim, uma coisa muito harmoniosa, quase indestrutível, um negocio seríssimo, uma história de premonição, de parapsicologia. E pensando, pensando, descobri que, em 1946 ou 1947, eu tinha lido na revista O Cruzeiro uma entrevista dela falando da Escolinha de Arte do Brasil, de que ela era uma das co-fundadoras, junto com o Augusto Rodrigues. Gravei a imagem dela de uma certa maneira, e disse: “que moça simpática”. Jamais me ocorreu que ia encontrar esta criatura e que ela estava destinada a ser minha companheira.

Imensa Realmente, com a Lúcia eu tive uma harmonia incrível, imensa, até hoje parece um troço mágico. Sou eterno enamorado da Lúcia. Foi esse encantamento que eu sempre tive por ela, a inspiração que ela me deu, para me dedicar mais ao trabalho, a construir a minha obra. Ela me deu apoio emotivo, emocional, muito grande, foi a doçura e a ternura de me tratar, eu que sempre fui um cara brigão, falador, polêmico, rebelde, inquieto pra caramba. Lúcia me deu carinho, tranqüilidade, ela me entendeu profundamente. Ela não me aporrinhou, não me encheu o saco, ela não me contrariou, ela foi o fator Yin-Yang. Ela foi um fator sem o qual talvez eu não tivesse nem lançado a minha obra. A Lúcia é sensível, bom nível cultural, excelente desenhista, pessoa que tinha ajudado a fundar a Escolinha de Arte do Brasil, conhecia a fundo a arte na educação, naquela época, quando não tinha ninguém (e aí me perdoem a imodéstia, pode ser que eu esteja puxando a brasa pra minha sardinha, a Lúcia é minha mulher) com a mesma capacidade teórica e prática em arte na educação no Brasil. Ela teve esta grande influência, tudo que eu fazia eu mostrava para ela. Ela me incentivava com muita ternura, muito dócil, porque se ela tivesse um temperamento violento, nós tínhamos lascado fogo e tudo tinha acabado. Foi o meu lado violento e o lado dócil de Lúcia, o equilíbrio, que nos fez grandes companheiros e enamorados... Bené Fonteles

Artista Plástico, Curador, Poeta e Compositor


S/ título|1987 Serigrafia 100 x 70 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira

S/ título|1987 Serigrafia 100 x 70 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


construção branca:

silêncio

Às vezes é preciso “calar: usar um silêncio artifício”, para dizer melhor e mais alto. Calar para que o silêncio cante toda a extraordinária beleza da vida, para que se possa ouvir “este fio de água cantando”, que “vem das fontes primitivas”. Sabedoria. Às vezes é preciso eliminar a cor, como se elimina o ruído, e chegar “à dura pureza do branco”. Luz. Contra o caos, Rubem Valentim propõe o cosmos. Contra arrivismos e conluios, contra o vale-tudo oportunista de pseudovanguardas encomendadas, como as que vemos serem aplaudidas no tumulto das bienais, Valentim propõe sua coerência e sua luta. Contra os que tudo querem, Valentim se propõe doar. Oferecem ordem, claridades, claras construções. Considerando-se apenas um humilde hóspede da vida – “cada dia de sol é para mim um deslumbramento” –, Valentim, para vê-Ia a cada momento renovada, precisou lutar, de peito aberto, contra toda sorte de hipocrisias, acordos, diluições, mimetismos. Hoje, aos 56 anos, o corpo curtido em muitas batalhas, a barba e os cabelos encanecidos, não se entrega: prossegue sua luta. Revela a mesma vitalidade do jovem e do polemista que sempre foi, a mesma confiança no homem e suas liberdades e numa arte de raízes autenticamente brasileiras. E é assim, entre agradecido e comovido, que oferece a Oxalá, a todos os homens lúcidos e de boa vontade, seu templo: construção branca, linguagem do silêncio. A cada momento, me surpreendo com a vitalidade de sua proposta, por seu pioneirismo, pela notável coerência de sua obra. Já habitei a riqueza vocabular de sua obra, sua vocação construtiva, mas de uma construti-

vidade ligada à nossa cultura, ao nosso ser, à nossa alma, por isso mesmo resistente; já habitei seus altares e emblemas, seus signos e super-signos, seus relevos e objetos; nela, brinquei e rezei, revivi a história dos homens e do mundo, seus mitos e magias, aproximei-me através dela de Deus e Orixás, redescobri as mais autênticas e populares alegrias do homem, de todas as cores e origens, ouvi o som de atabaque de suas cores cortantes, ergui emblemas, escudos, estandartes, bandeiras, cartazes, e com eles fiz périplo das revoltas, das rebeliões e de procissões de todos os povos e tempos, como se fora um templo ecumênico. Percorri a variada geografia de sua obra: Salvador, Rio, Roma, Brasília, e pude perceber momentos de plenitude e vazios, de excessos e contenções, tive visões da terra e visões do céu, presenciei fases de pintura e de relevos, de objetos e de esculturas, de cor e não-cor. Mas, na diversidade encontrei unidade e coerência, em todos os momentos pude ouvir “este fio de água cantando”, vindo de longe, de “fontes primitivas”. Seus relevos brancos de antes, como seus objetos emblemáticos de agora, que Valentim reúne no seu “templo”, são os momentos mais fortemente “religiosos” de Valentim e, ao mesmo tempo, mais fortemente construtivos. Esta vinculação entre construção e religiosidade não é novidade. A obra de artistas como Mondrian, Malevitch, Herbin, Torres Garcia, Barnet Newman, sempre esteve envolvida por um halo metafísico ou aura religiosa. Na contemplação dessas obras, o espectador sensível se deixa impregnar por uma espécie de atmosfera mística. Religião sem altar, missa sem rito, oração silenciosa e branca. O silêncio favorece o diálogo com a divindade, o branco capta a luz. A arte construtiva, como todas as religiões, quer construir um mundo claro, luminoso, justo, coerente, verdadeiro. Malevitch, que chegou a este mesmo “branco” a que chega agora Valentim com seu Templo de Oxalá, entendia a arte como a manifestação do reino de Deus na terra. Valentim se autodenomina “teólogo não-verbal”, querendo, com isto, aludir ao caráter religioso de sua linguagem essencialmente visual. Superar, na vida, como na arte, a oposição fundo-superfície, que é mecânica e estática, significa aceitar a mutabilidade e relatividade dos valores e da própria existência. E pude sentir que muitos reagiram, neste momento, à sua pintura, talvez, pelo excesso de cor. E, assim, não perceberam modificações essenciais que começavam a ocorrer ali, naquele momento. A prova disso é seu Templo de Oxalá. Ao distribuir sobre o piso verde seus objetos emblemáticos de forma assimétrica, Valentim criou um relacionamento dinâmico entre eles. Branco sobre branco, plano sobre plano, signo sobre signo, dinamicamente. Cada objeto existe isoladamente e como conjunto, é independente e interdependente. De qualquer ângulo que se colocar, o espectador vê uma peça penetrar no campo visual da outra. E mais, construídos com partes móveis, seus objetos permitem diferentes combinações, permutando e configurando continuamente novos significados visuais. Quer dizer, Valentim realiza no espaço real, e, valendo-se unicamente do branco, aquilo que já enunciara em suas pinturas imediatamente anteriores. Suas formas brancas parecem flutuar silenciosas no espaço, como emanações de uma religiosidade sentida e vivida. Obra de maturidade definitiva. Frederico Morais

Crítico de Arte


a pedra de raio de rubem valentim,

obá-pintor da casa de mãe senhora

Ele era Obá da Casa de Mãe Senhora. O Iyalorixá do Axé Opô Afonjá1, terreiro da nação Ketu, era pintor amador de quadros. Depois de iniciado na adolescência por Artur Come-Só, pintor-decorador de paredes, deixou a profissão de dentista para se dedicar à pintura a conselho de sua Mãe Senhora2. A trajetória do Obá Rubem Valentim, obsessivamente dedicada aos Orixás, é uma das aventuras mais fiéis a um tema na arte brasileira. No entanto, como quem procura sua voz, a obra de Valentim trazia, mais profundamente, uma incessante busca da linguagem. O machado duplo de Xangô, que corta de dois lados, foi um padrão principal e também a metáfora de uma arte que, duplamente, pensa na tradição ocidental e incorpora genuinamente as raízes africanas da cultura brasileira. É o próprio artista que declara em seu Manifesto ainda que tardio: “intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos –, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do Candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de “fala”, uma poética visual brasileira, capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um “design” (que chamo Riscadura Brasileira), uma estrutura apta a revelar nossa realidade”3. Os negros, trazidos para a América como escravos, viveram a dimensão de um corte cultural abrupto e brutal. Era uma interrupção do tempo com a desintegração promovida pela diáspora. O filósofo argentino Saul Karsz, ao estudar o tempo e seu segredo na América Latina, observou que, para os contingentes formados pela escravidão, alegorias de melancolia do passado pavimentaram o caminho para a represália de um tempo roubado cuja saga e fracasso foram recontados pelo Realismo Mágico de Alejo Carpentier em EI Siglo de Ias Luces (1962)4. No Brasil, Graça Aranha, em sua A estética da vida (1921)5 havia concluído que a cultura brasileira deveria transformar sensações em obras de arte e se constituir a partir de uma nova relação com a natureza do país. Comparando as três etnias básicas da formação da brasilidade, Graça Aranha argumentou que os portugueses traziam melancolia, os índios e os negros mantinham uma relação com a natureza marcada por uma “metafísica bárbara”. Os povos africanos teriam trazido um “terror cósmico” (medo da natureza que se expressa através de representações ilusórias), enquanto que os índios transmitiam uma “metafísica do terror” (que enche de fantasmas o espaço entre a natureza e o espírito humano). Para Graça Aranha, o projeto moderno seria a superação desse dualismo, por meio da integração do eu no cosmo. Templo de Oxalá | 1977 Escultura | Madeira e tinta acrílica Acervo | MAM-BA Foto | Andrew Kemp


Na perspectiva histórica da América Latina, Karsz fala ainda de presentificação do passado. No entanto, Rubem Valentim e, sobretudo, a geração anterior, já não poderiam viver a nostalgia da África, mas experimentaram uma atualidade do presente, como tempo de reivindicação do direito de cidadania ao culto6 e de integração na cultura brasileira. Era uma luta no interior de uma sociedade que sofria de um “complexo de inferioridade do passado africano”, em que negro e africano tornaram-se sinônimos de escravo, conforme observa o antropólogo Arthur Ramos7. A análise da trajetória de Rubem Valentim enseja pequeno retrospecto de momentos de problematização da herança africana na formulação histórica da arte do Brasil. O primeiro estudioso da arte religiosa afro-brasileira foi Nina Rodrigues, em 1904, com o seu artigo As Belas-Artes dos Colonos Pretos do Brasil8, argumentando que o sistema escravista desvalorizava o valor artístico dessa produção. “No entanto, seu pioneirismo deve ser contraposto ao seu racismo, quando escreve que a raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização (...), há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo”9. Décadas depois, Arthur Ramos também notará que certas peças antropomórficas dos cultos do Candomblé da Bahia tinham absorvido traços europeus. Depois de questionar o termo ‘primitivo’ quando referido à arte africana, observa que, nos Estados Unidos, havia se perdido as tradições da arte plástica africana, porque lá “o negro artista prefere imitar os modelos europeus, e se há algum movimento modernista primitivo entre eles, terá vindo de fontes eruditas, e não como uma preservação de traços africanos”10. A obra de Rubem Valentim poderia ser aproximada de uma certa ‘teoria das representações da alma’. No entanto, ela se distancia do conceito de mera representação animista ou de vivificação das forças inanimadas da natureza, discutidos por Freud. A obra de Valentim, no seu viés mitológico e religioso, tem como ponto de partida aquilo que Freud entende como o “fundo vivo de nosso idioma, de nossas crenças e de nossa filosofia”11. O Orixá, escreve Pierre Verger, “é uma força pura, àse (poder do ancestral-orixá), imaterial, que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se a um deles’’12. A teogonia de Valentim se realiza em forma de uma escritura e não na representação antropomórfica dos orixás, mas na compreensão da estrutura simbólica. Nisso, os Orixás de Valentim, no processo de construção de sua presença visível, se diferenciam dos Orixás dos artistas cubanos Wifredo Lam e Cárdenas, que, mais envolvidos numa atmosfera de magia, permitem à Europa eurocêntrica tratar seu conteúdo religioso como “surrealismo”. Rubem Valentim foi, de várias formas, um contraponto na cultura brasileira. Valentim traz uma bagagem cultural dos candomblés da Bahia, na sua vertente iorubá, e será marcado pelo clima cultural do Rio de Janeiro, onde chega em 1957. No Rio conhece a imagística dos pontos riscados da umbanda, inexistentes no candomblé da Bahia”13. A produção concretista carioca, desdobrada com a ruptura do neoconcretismo, encontra um paralelo na obra de Valentim, como uma adesão às matrizes culturais do momento. Seu recurso à geometria, para dinamizar o plano ao ritmo

Relevo Emblema nº 78 | 1977 Relevo | Madeira e tinta acrílica Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


gráfico, aos pontos de concentração de energia visual, traz alguns aspectos que permitiriam a aproximação de sua obra dos contemporâneos Metaesquemas de Hélio Oiticica. Valentim abandona definitivamente seu interesse figurativo e se dedica a uma escritura de símbolos dos Orixás do Candomblé da Bahia, reduzidos a elementos estruturais-geométricos fundamentais. Esse desejo de linguagem construtiva, experimentado na obra de Valentim, vai distanciar o artista das apropriações típicas mais pitorescas da literatura de Jorge Amado ou do erotismo edênico do padrão mulher negra, tão adotado entre os pintores modernistas do Brasil. A Bahia padeceu de exotismo (ou “o pecado tão fácil de se cometer na Bahia!”, conforme analisou Mário Pedrosa)14 até que João Gilberto, Glauber Rocha e Caetano Veloso viessem resgatá-Ia de sua doença crônica, o folclorismo. Ao se fixar definitivamente na Bahia em 1950, depois de sua viagem pelo Brasil entre 1946 e 1948, Pierre Verger desenvolve o seu grande trabalho fotográfico, em que o percurso do campo da diáspora africana será também uma cartografia dos territórios dos Orixás, comparando o culto iorubá na África e em diversas regiões da América. É Rubem Valentim quem define, para a arte brasileira, a existência de questões da negritude, até então, em termos gerais, concentradas em cenas de costumes. Valentim é o que problematiza a herança do Candomblé enquanto possibilidade para o momento de transformação das artes plásticas, para além de um tratamento literário. Por sua origem dentro do Candomblé, a produção de Valentim deve ser vista como potência desse universo cultural específico, e não apenas genericamente como mais um traço da cultura brasileira. Por extrair de um contexto popular autóctone os elementos para a projeção de uma brasilidade elementar e contemporânea, Rubem Valentim “pertence à mesma família espiritual de Volpi, de uma Tarsila”, escreveu o crítico Mário Pedrosa15. Poderíamos dizer que Valentim viveu possuído pelos Orixás. Não se poderia restringir a obra de Valentim à discutível idéia de ‘primitivismo’ da arte moderna. Rubem Valentim não se apropriou de coisa alguma estranha à sua experiência e à sua crença. Novo paralelo da obra de Valentim pode ser definido com respeito ao pensamento e à obra de Hélio Oiticica na década de 1960. Em seu programa em direção à experiência vital e à sensorialidade total, Oiticica estabelece referências mais específicas à religiosidade afro-brasileira em alguns Parangolés. Neles inscreve frases como “Incorporo a revolta” (Parangolé P15 Capa 11) ou “Estou possuído” (Parangolé P17 Capa 13). Incorporar ou estar possuído, vinculam-se diretamente aos trabalhos de investimento dos Orixás. No Éden16 encontra-se O Penetrável de água –Iemanjá –, uma tenda branca com o chão de água, evocativo dos atributos desta entidade. Evocando a Antropofagia de Oswald de Andrade para combater o mito universalista eurocêntrico, Oiticica formulou o Tropicalismo, preconizando o não-condicionamento às estruturas da cultura européia, dizendo textualmente que “só o negro e o índio não capitularam a ela”17. No saguão do auditório do Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília18, estão três grandes painéis brancos em relevo de autoria de Rubem Valentim, Emanoel Araújo19 e Sérgio Camargo, respectivamente. O painel de Valentim, de madeira pintada com S/ título | 1987 Serigrafia 70 x 100 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


a pureza do branco (conforme expressão do artista), representa um diálogo de temperaturas e da matéria orgânica, contrastando com o mármore empregado em grandes superfícies lisas de chão e paredes daquele edifício. O artista nele incorporou signos como o machado duplo, elemento emblemático de Xangô20. Para o antropólogo Arthur Ramos, essa figura remontaria às representações egípcias, sumerianas e orientais do enfeite das cabeças dos touros. O símbolo da cabeça representa a pedra do raio, como cena de possessão do pai de santo em cuja cabeça penetrou Xangô. Para Arthur Ramos, seria também como um meteorito, que é popularmente vinculado a raios e trovões21. O painel de Rubem Valentim concentrado em Xangô, Orixá dos raios e tempestades, poderia, então, ser denominado a pedra do raio - o itá de Xangô. Para Pierre Verger, a pedra de raio (a que chama de èdùn àrá) seria um machado neolítico, que é lançado por Xangô como instrumento de sua ira. Xangô foi inicialmente descrito por Frobenius, que acreditava existirem dois Orixás dessa espécie. Segundo Verger, Xangô possui dois aspectos: humano e divino. Diz que “como personagem histórico, Xangô teria sido Aláàfin Oyó, `Rei de Oyól´, filho de Oranian e Torosi, a filha de Elempê, rei dos tapás, aquele que havia firmado uma aliança com Oranian. (...) Xangô, no seu aspecto divino, permanece filho de Oranian, divinizado porém, tendo Yamase como mãe e três divindades como esposas: Oiá, Oxum e Obá. Xangô é viril e atrevido, violento e justiceiro: castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores. Por esse motivo, a morte por raio é considerada infamante”22. Pode-se prever que, na eleição do Orixá desse panteãopainel de um edifício público em Brasília, Valentim não terá dispensado aquela carga simbólica do atributo de Xangô, com respeito à correção de princípios éticos. Desse modo, o painel de Valentim refere-se indiretamente a padrões morais na condução da coisa pública, que nos remeteria aos afrescos das cenas do Bom Governo e do Mau Governo (1338-1339), que Ambrogio Lorenzetti inscreve nas paredes do Palácio Público de Siena.

energias visuais essenciais, ao seu limite máximo de irredutibilidade, além do que já perderiam seu sentido original. É nesse limite que Valentim se distancia do sentido de representação para trabalhar com a idéia de presentificação pelo olhar das forças vitais e naturais. Argan argumentaria conclusivamente aqui que “o seu apelo à simbologia mágica não é, portanto, o apelo à floresta; é, talvez, a recordação inconsciente de uma grande e luminosa civilização negra anterior às conquistas ocidentais. Por isso, a configuração das suas imagens é também mais claramente heráldica e emblemática do que simbólico-mágica”. Com Valentim, a cultura negra no Brasil chega, integralmente, com seu sentido espiritual original à arte. Chega sem intermediações estilísticas e negociações políticas que renunciem à identidade. Paulo Herkenhoff Crítico de Arte e Curador Notas 1. Uma das grandes casas de Candomblé da Bahia, ao lado da Casa Grande do Engenho Velho, do candomblé de Alaketu e do Gantois, conforme Reginaldo Prandi, “As religiões negras do Brasil”. São Paulo, Revista USP, dez.f1an./fev. 1995·1996, n28, págs. 65 a 83. 2. Entrevista de Antonio OIinto ao autor, em 27 de maio de 1996. 3. Bahia, Rio, São Paulo, Brasília. Janeiro 1976 in Rubem Valentim, São Paulo, Bienal de São Paulo, 1977. 4. “Time and its secrets in Latin América” in Time and the philosophies, Paris, Unesco, 1977, págs. 155 à 167. 5. Rio de Janeiro e Paris, Garnier, 1921. Para a análise do pensamento de Graça Aranha remetemos o leitor para A Brasilidade Modernista, sua Dimensão Filosófica, de Eduardo Jardim de Moraes. Rio de Janeiro, Graal, 1978. 6. Apenas em 1919 as perseguições policiais aos cultos afro·brasileiros foram banidas. 7. Arte negra do Brasil. Cultura, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde, 1949, n2, págs. 189 a 212. 8. Kosmos, Rio de Janeiro, agosto de 1904, ano I n8. 9. Na introdução a Os Africanos no Brasil (c. 1906), aqui citado da 5ª edição pela Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1977, pág. 7.

O painel de Brasilia é, ainda, um paradigma do método de redução do símbolo ao signo operado pela obra de Valentim. No plano da constituição da linguagem, podemos dizer que a semiologia triunfa no Brasil a partir da década de 1950, antes que a cultura negra tivesse inserido suficientemente seus símbolos no cenário da arte brasileira. Disso decorre importância adicional da obra de Valentim, com seu código semiológico emergente de uma teogonia. A obra é um texto cosmogônico contínuo. É o desenvolvimento de um código de signos essenciais capazes de atuar como índices dessa espiritualidade. As esculturas, pinturas e relevos de Rubem Valentim conservam múltiplas qualidades, como seu sentido hierático, heráldico, ritualístico, totêmico, ancestral, imemorial, solene, silencioso, expressivo e sintético. O artista teve de estabelecer o código e a sua legibilidade, afastada de hermetismos e da vulgaridade representacional. Giulio Carlo Argan construiu uma síntese da atitude de Valentim: “é necessário expor, antes, que eles (os signos simbólicos-mágicos) apareçam subitamente imunizados, privados das suas próprias virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma de mito”23. Redução do totem às suas

10. Op. cito 197. 11. Totem y Tabu. Madrid, Alianza Editorial, 1972, 5ª edição espanhola. Esse tema da psicanálise freudiana foi retomado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago. 12. “Orixás, deuses iorubás na Africa e no Novo Mundo”. Salvador, Corrupio, 1981, pág. 19. 13. Depoimento do artista, apud Frederico Morais, Rubem Valentim Construção e Símbolo. 14. Contemporaneidade dos artistas da Bahia. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 29 de janeiro de 1967. 15. Op. cit. 16. Vinculado ao CRELAZER:“O mundo que se cria no nosso lazer, em torno dele, não como fuga mas como ápice dos desejos humanos’ (Oiticica in CRELAZER,op. cit. nota supra, pág. 115) 17. 4 de março de 1968, in “Aspiro ao Grande Labirinto”, Rio de Janeiro, Rocco, 1986 (Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Saio mão organizadores), págs. 106 a 109. 18. Rubem Valentim passou a viver em Brasília em 1967, período ainda de consolidação da transferência da capital federal. O edifício foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. 19. A obra de Emanoel Araújo mantém referências às tradições negras brasileiras, daí o crítico americano tê·la denominado “afro-minimalista’. 20. Xangô foi inicialmente descrito por Frobenius, que acreditava existirem dois Orixás dessa espécie. Segundo Pierre Verger lop. cit., p. 134). 21. Op. cit. pág. 203. 22. Op. cit., pág. 134. 23. Rubem Valentim, 1966.


religiosidade e

transcendência

Sem dúvida foi Rubem Valentim o artista brasileiro que mais teorizou, correta e inteligentemente, sobre sua própria obra. Definia seu projeto como a busca de uma “riscadura brasileira”, uma linguagem decididamente ancorada em raízes nacionais, mas articulada segundo uma sintaxe internacionalmente inteligível. Dos três pintores que entraram mais fundo na questão – Tarsila e Volpi completam o pequeno conjunto –, só Valentim a propôs conscientemente com a clareza de uma tese, construindo-a tijolo por tijolo, refletindo sobre ela a cada passo, circunscrevendo um universo de signos deliberadamente escolhidos e delimitando seus parâmetros formais. Volpi, como se sabe, trabalhou fundado apenas em sua intuição, e Tarsila representa um ponto intermediário entre os dois. A sintaxe internacionalmente inteligível nasce da adoção explícita da abstração geométrica como código expressivo. Valentim é, evidentemente, um artista em quem a ordem e a estrutura predominam sobre qualquer impulso. Curiosamente – porque à primeira vista parece um paradoxo –, na América Latina o construtivismo tem sido um filão muito profícuo, no qual mergulharam uruguaios como Joaquin Torres-Garcia (que teve importante atividade na Europa), mexicanos como Mathias Goeritz, venezuelanos hoje bastante badalados, como Carlos Cruz-Diez e Jesús Soto, e, entre nós, Volpi, Sérgio Camargo e Amílcar de Castro, para ficar só nos mais importantes. Mas, na verdade, talvez não haja nenhum paradoxo e, sim, uma legítima resposta, uma resistência necessária à desordem incrustada na cultura, à própria entropia tropical. Quanto às raízes nacionais e ao universo deliberadamente circunscrito, residem, em Valentim, no recurso sistemático e exclusivo a signos das religiões afro-brasileiras, especialmente o Candomblé, as chamadas ferramentas do culto, as estruturas dos altares, os símbolos dos deuses, que ele transpõe para o plano da criação erudita. Já abstratos geométricos na origem, esses signos são adaptados, reorganizados, interligados, construindo um discurso novo cujo vocabulário provém de outro já existente. Mas não se trata só de metalinguagem, visto que o artista não quer falar do Candomblé ou das religiões sincréticas, e sim utilizá-Ias como matéria-prima para uma colocação mais abrangente. Se, por um lado, ao apegar-se exclusivamente a esse repertório, Valentim obtém um universo fechado, por outro, é claro que os arranjos de signos dentro dele são infinitos. Não nos sentimos diante de qualquer limitação, e, sim, de uma perfeita coesão.

S/ título | 1987 Serigrafia 100 x 70 cm Acervo | MAM-BA Foto | Rômulo Fialdini


Há, além disso, em sua geometria, algo de muito específico que nasce das fontes em que bebe, e o distingue de todos os demais artistas geométricos brasileiros: a religiosidade. Falando de sua relação com o Movimento Concretista dos anos 50, - cujo florescimento coincide praticamente com sua passagem à abstração, foi taxativo: “nunca fui concreto. Tomei conhecimento do Concretismo através de amizades pessoais com alguns de seus integrantes. Mas logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos, e isto não me interessava. Meu problema sempre foi conteudístico: a impregnação mística, a tomada de consciência de nossos valores culturais, de nosso povo, do sentir brasileiro”. Talvez seja possível achar, hoje, que Valentim reduziu demais o escopo dos concretistas – mas isso não importa, no momento; importa que a “impregnação mística” seja o primeiro dos conteúdos que buscou. Nascido em 1922 em Salvador, numa família pobre, Valentim tinha sangue negro correndo nas veias. Num longo texto publicado em 1967, na extinta revista GAM, Galeria de Arte Moderna, reuniu uma série de lembranças ao mesmo tempo íntimas e significativas para sua obra e evolução. Um detalhe encantador é, por exemplo, sua descoberta da cor, por volta dos cinco ou seis anos, num pedaço de vidro intensamente azul que ele disputou a dentadas com uma vizinha da mesma idade. Comenta, saudoso: “Não sei que fim levou meu caco de vidro azul, mas o tenho até hoje no coração. Esse foi meu primeiro contacto com a mulher e com a cor. Ambas, posteriormente, marcariam minha vida, irreversível e duramente”. Fala ainda de suas primeiras habilidades manuais, que já caracterizavam a vocação, desenvolvendo-se num campo que ademais revela a religiosidade: “aos nove anos, comecei a fazer meus próprios presépios. Pintava e armava as casinhas de papelão, a igreja branca com janelas verdes, figuras de Maria e José. Adão e Eva com serpente, maçã e tudo, a lapinha, a cidade de Jerusalém. (... ) Tudo era pintado no papelão e recortado, preso num pedaço de madeira atrás, para ficar de pé. Mundo poético, popular, de cor e riqueza imaginativa, que ficou em mim e influenciou profundamente a minha arte”. Diz, finalmente, no que constituem informações muito pertinentes para a natureza e futuro âmbito de sua obra: Céu. Purgatório. Inferno. “Ensinaram-me que havia pecados e que um deles era o pecado original, falaram-me do nada e da criação do mundo. Fiquei ao lado de Cristo contra os que o mataram. Comecei a ir às igrejas e me perdia na contemplação: o ouro dos altares, as imagens, o silêncio, o cheiro de incenso e o de vela. (...) Ao lado da Igreja, comecei a conhecer também o outro universo fantástico do Candomblé. Um fenômeno típico da Bahia: minha família, católica, de quando em vez ia ver um caboclo num candomblé. E lá ia eu, penetrando nele sem querer mais sair. O baiano, para sua felicidade, é católico animista”. Nessas duas últimas linhas, encontram-se as chaves de toda a produção de Rubem Valentim, tanto a de sua ignição, de seu motor de partida, quanto a chave para a compreensão ampla de sua notável inteireza: “católico animista”, penetrando no Candomblé “sem querer mais sair”. A arte permitiu-lhe que nunca mais saísse, de fato, desse mundo perdido da infância – perdido, mas resgatado, perenizado através do Ersatz que é a criação. De minha parte, devo recordar, a essa altura, um momento para mim inesquecível e comovente.

Por volta de 1975, já conhecendo bem a obra de Valentim, mas não tendo ainda percebido direito seu conteúdo mágico-religioso, cheguei um dia a sua ampla casa, em Brasília, e o fui encontrar trabalhando no atelier. Pintava uma tela na horizontal, apoiada sobre algum móvel ou tipo de bancada; debruçava-se de leve, a figura frágil de monge beneditino, com gestos lentos e precisos que sugeriam dedicação e paciência infinitas; em algum lugar do cômodo, um toca-discos enchia o ar com canto gregoriano. Foi naquele instante que percebi – ajudado, naturalmente, por estímulos colaterais tão poderosos: a figura e os gestos de monge, a música envolvente – a dimensão de impregnação mística (como queria ele) que de fato singulariza seu construtivismo rigoroso. Mesmo entre alguns de seus admiradores fervorosos, percebo, às vezes, que lhes escapa essa dimensão, ou pelo menos sua intensidade. Não escapou, porém, a Theon Spanudis, com sua vocação de sacerdote pagão, que também a enfatizou. Coube-lhe ser organizador e curador, em 1981, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, de uma exposição denominada “Arte Transcendente”, da qual participaram, entre outros, Valentim, Volpi, Mira Schendel e Eleonore Koch. Podemos discordar um pouco do conjunto da seleção, que incluía também nomes menores, e fica claro que sua noção de transcendência na arte era muito pessoal (mas não sei se poderia ser de outro jeito). Parecem-me, no entanto, quase irretocáveis as seguintes palavras sobre Valentim: “as poderosas mensagens metafísicas e luminosas da África negra vibram em suas construções simbólicas e religiosas. É a primeira vez que, na arte moderna, a espiritualidade se manifesta tão singela, vigorosa e emotivamente firmada”. Meu único reparo: faltou especificar arte moderna brasileira, sabemos pouco sobre o que acontece na dos próprios povos africanos. Em função disso tudo, criei a sala especial com que Valentim participa da exposição “Vozes da Diáspora”, na Pinacoteca do Estado. A amostragem se concentrou nos objetos de madeira, abundantemente produzidos nas décadas de 1970 e 1980, cujo caráter totêmico ajuda a clarificar a religiosidade, Incluí também algumas pouquíssimas pinturas, cuja função é literalmente colorir, de longe, quase na obscuridade, o hieratismo despojado dos objetos, em sua maior parte deixados pelo artista na tonalidade natural da madeira, ou apenas pintados de branco. A sala é toda negra, o ambiente, contemplativo, sereno e solene. Sem manipular a obra de Valentim em função de uma tese ou ideia, sem trair sua autonomia, apresento-a aqui deliberadamente recortada em função de uma de suas plenitudes. Para podermos vê-Ia ainda melhor, retornemos ao texto já citado em 1967. Entrego a palavra final ao próprio artista – que, aliás, falava e escrevia muito bem: “sobretudo os objetos e instrumentos do culto nagô-gegê. Encontro consciente com o oxê de Xangô: o machado duplo, ele mesmo eixo central, recriado por mim, posteriormente, e transformado em forma fundamental da minha pintura. O xaxará ele Omulu, o ibiri de Nanã, o abebê de Oxum, os símbolos de ferro de Osanhe e de Ogum. (...) A organização compositiva quase geométrica dos pejis. Um amor imenso à construção geométrica, que sentia como inerente a todas as coisas orgânicas e inorgânicas. As contas e colares coloridos dos Orixás”. Temos aí a receita de Valentim, o caminho de sua demiurgia para se (nos) contactar com o Infinito e a Transcendência.

Olívio Tavares de Araújo Crítico, Ensaísta e Curador


a contemporaneidade de

rubem valentim

Na 1ª Bienal da Bahia, um dos momentos mais significativos e mais felizes foi a possibilidade de um cotejo entre artistas de autêntica significação cultural, quanto às suas origens e à contribuição que suas obras vêm trazer à definição da arte brasileira. Havia ali, ao lado de uma Lígia Clarck ou de um Hélio Oiticica, ao Sul, e de um F. Brennand, ao Norte, a presença de extraordinária importância de Rubem Valentim, que pertence à mesma família espiritual de um Volpi, de uma Tarsila. Sua pintura, com efeito, além de ser uma conquista da convicção contra a moda, o fácil, o pitoresco (pecado tão fácil de se cometer na Bahia!), exprime também um momento importante do que poderia ser uma pintura brasileira autêntica, e não de intenções apriorísticas, de receitas ou pré-fabricadas. Ele fez na Bahia, para a pintura brasileira, o que Tarsila e Volpi fizeram no Sul. Tarsila, de um meio aristocrático e altamente sofisticado (aliás, como o de Brennand), nos deu, após a Semana de Arte Moderna, mas através de Paris, de Léger e do formidável Oswald de Andrade da Poesia Pau Brasil e da Antropofagia, a revelação da poética ingênua da “civilização caipira”, com seus esquemas formais e colorísticos (o famoso rosa baú) e depois a admirável fabulação antropofágica que integrou mitos indígenas (sem indianismos literários românticos) à nossa paisagem natural e espiritual. Se o velho, grande Volpi, o único da família nascido no exterior, na Itália, de pais imigrantes, mas no Brasil desde os dois anos, criou, por intuição e maestria artesanal, a pintura abstrata brasileira, extraída da paisagem popular urbana e suburbana paulistana, das cores, dos tons, da atmosfera e da luz adjacentes, transubstanciando-a na essencialidade moderna, isto é, universal; Valentim, mais moço de uma geração, de origem plebeia como ele, autodidata, iniciou a carreira como um rebelde contra a estética então dominadora do chamado feudalismo baiano. Recusou-se a um regionalismo de fachada, de ideias feitas, de anedotário para turistas, de pitoresco e de enfeitiçamentos folclóricos. O paradoxalmente significativo nessa atitude é que, em nome do que havia de mais profundo no contexto popular autóctone de sua terra, o sincretismo religioso litúrgico afro-brasileiro, foi o primeiro artista abstrato da Bahia. Sofreu e lutou por isso. Diferentemente do seu colega pernambucano, o ecológico, a paisagem, o visual puro não foram os elementos que primeiro condimentaram a sua pintura. Plebeu, proletário, como Volpi, citadino, sua inspiração é urbana, em face de um Cícero Dias, Brennand ou Tarsila, de inspiração campestre, gente da Casa Grande. Ele partiu, indiferente aos feitiços da natureza ambiente, que os olhos devoram, já,

de um plano antropológico cultural mais abstrato, isto é, o da criação coletiva intuitiva em si, dominado pela carga simbólica dos signos mágicos da liturgia negra em meio dos quais crescera. Transfigurou-os em formas pictóricas abstratas, geometricamente belas em si, e túrgidas. Ávido e pobre, procedeu por apropriação num instinto de possessão quase obsessivo. Há algo de antropofágico na sua arte no sentido oswaldiano – ser produto de deglutições culturais. Ao transmudar fetiches em imagens e signos litúrgicos em signos abstratos plásticos, Valentim os desenraíza de seu terreiro e, carregando-os de mais a mais de uma semântica própria, os leva ao campo da representação, por assim dizer, emblemática, ou numa heráldica, como disse o professor Giulio Carlo Argan. Nessa representação, os signos ganham em universalidade significativa o que perdem em carga original mágicomítica. O artista projeta, mesmo, abandonando também a fatalidade da tela, organiza seus signos no espaço, talhados como emblemas, brasões, broquéis, estandartes, barandões de uma insólita procissão, procissão talvez de um misticismo religioso sem Igreja, sem dogmas, a não ser a eterna crença das raças e dos povos oprimidos no advento do milênio, na fraternidade das raças, na ascensão do homem. Deduz-se de tudo isso que o que é primitivo ou elementar também pode ser contemporâneo. Contemporâneo e primitivo – brasileiro. O mundo planetário aberto dos astronautas e o mundo imenso dos subdesenvolvidos do Hemisfério Sul são contemporâneos e contraditórios, como o Brasil por sua vez, em face do mundo. O Brasil, é ao mesmo tempo, um anacronismo e uma promessa. Entre um e outro extremo, os artistas aqui mencionados com Rubem Valentim trabalham para a mesma síntese. A tarefa deles consiste em expressar esse anacronismo, como se tratasse de uma operação de catarse para a seguir subsumí-Io no universal, ou partem do universal contemporâneo e já implícito na promessa. A distância do ponto de partida pode ser grande, mas, além dos elos comuns de fundo cultural e moral, como brasileiros, há a responsabilidade por uma ideia ou atitude que, caracterizando-os através do trabalho criativo, não veio de fora por acaso ou por moda, mas brotou neles do complexo sócio-econômico-cultural-moral-artístico onde se situam, onde vivem, trabalham: Recife ou Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasil e, inevitavelmente, o planeta. Mário Pedrosa Crítico de Arte e Literatura


Pintura 3 | 1967 Relevo Tinta acrílica s/ madeira 102 X 75 cm Acervo | Raphael Serruya Foto | Andrew Kemp

Pintura 5 | 1967 Relevo Tinta acrílica s/ madeira 102 X 75 cm Acervo | Raphael Serruya Foto: Andrew Kemp


A escolha temática que está na raiz da pintura de Rubem Valentim resulta das próprias declarações do artista: os seus signos são deduzidos da simbologia mágica, que se transmite com as tradições populares dos negros da Bahia. A evocação destes signos simbólico-mágicos não tem, entretanto, nada de folclorístico, o que se vê dos sucessivos estados através dos quais passam antes de se constituírem como imagens pictóricas. É necessário expor, antes, que eles aparecem subitamente imunizados, privados das suas próprias virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma do mito. Decompõe-nos e os geometriza, arranca-os da originária semente iconográfica; depois, os reorganiza segundo simetrias rigorosas, os reduz à essencial idade de uma geometria primária, feita de verticais, horizontais, triângulos, círculos, quadrados, retângulos; enfim, torna-os macroscopicamente manifestos em acuradas, profundas zonas colorísticas, entre as quais procura precisas relações métricas, proporcionais, difíceis equivalências entre signos e fundo. Não exclui, embora sejam evidentes e determinantes, experiências pictóricas modernas e ocidentais: o percurso histórico dos signos implica estas experiências e este último resultado, pois deve adquirir um significado e um contexto atual. Assim, Valentim chega a extrair daqueles signos um significado que não poderia se definir de outra maneira senão espacial; e o que a sua pintura, em última análise, quer demonstrar é que, nas atuais concepções do espaço e do tempo, os símbolos e os signos de uma experiência antiga, ancestral, conservam uma carga semântica não inferior à geometria pitagórica ou euclidiana. O seu apelo à simbologia mágica não é, portanto, o apelo à floresta; é, talvez, a recordação inconsciente de uma grande e luminosa civilização negra anterior às conquistas ocidentais. Por isso, a configuração de suas imagens é também mais claramente heráldica e emblemática do que simbólico-mágica. Nestes signos está a recordação de um grande espaço civilizado de antigas cidades, de impérios destruídos. A dispersão das populações negras, a sua dura existência no continente americano, reforçaram o significado histórico, já agora não mágico, destes signos cabalísticos: como sinal de entendimento entre gente exilada, de liberdade entre populações oprimidas. É o acontecimento da arte popular que se apresenta mais autêntico e espontâneo nos povos sujeitos a uma dominação estrangeira; e adquire valor de resgate daquela liberdade mais profunda e incoercível, que é a capacidade de criar. Giulio Carlo Argan

Historiador e Teórico da Arte

Composição 7 | 1962 Pintura | Óleo s/ tela 70 x 50 cm Acervo | Coleção Particular Foto | Andrew Kemp


o ritmo do rito ou

a arte super-semiótica de rubem valentim

Se toda arte é jogo de signos, função semiótica, Rubem Valentim pratica, há pouco mais de 15 anos, uma plástica super-semiótica: uma arte comprometida com a transformação consciente do signo. Os fundamentos afro-baianos das formas “abstratas” de Valentim são conhecidos. Seu grafismo é uma estilização dos signos-fetiches do Candomblé, do universo ritual dominado pelos emblemas dos Orixás nagôs. Nos seus espaços limpos e simétricos, não é difícil discernir, bem definidos pelo requinte harmônico do colorido liso, bem recortados em duas ou três dimensões, inesperados avatares geométricos do arco-e-flecha de Oxóssi, o deus caçador, da belicosa faca de Ogum, da dupla machadinha de el-rei Xangô, do chicote de sua mulher lansã, do abebê de sua mãe lemanjá ou do cetro jupiteriano de Oxalá. Desde o período parisiense de Kandinsky (1933-44), e sua suntuosa evocação livre das formas “arcaicas” da arte da estepe russa, ninguém foi tão longe na materialização de um transfiguracionalismo somente por equívoco apelidável de “abstrato”. O chamado abstracionismo geométrico, tirante um ou outro raro Ben Nicholson, Magnelli ou Dacosta, padece cronicamente da glacial idade construtivista: é uma arte faquiresca, constrangedoramente entregue ao jejum do significado. Nada mais distante das formas-signo de Valentim, em que pulsa toda uma memória cultural. No nosso tempo de guerra às raízes, de subculturas ameaçadas no seu direito de exprimir a diversidade humana, Valentim nos propõe uma arte que insiste na universalidade da mensagem do “étnico” e “regional”. Em sua linguagem geométrica, mas não gratuita, produto de uma pesquisa que atravessou com imperturbada autenticidade o ruidoso festival do decorativismo tachista, Mário Pedrosa vislumbrou um anacronismo criador – e um sopro milenarista, anelo de redenção secretamente inscrito na promessa-lembrança das formas sobreviventes de culturas martirizadas. Os signos do Candomblé são sinais, isto é: signos intencionais. As formas geométricas de Valentim, artesanato deliberadamente comunicativo, também são sinais. Porém, o produto estético dessa transfiguração de ecos afrobrasileiros não consiste em sinais, e, sim, em sintomas: em signos não intencionais, mas nem por isso menos poderosamente carregados de sentido. Valentim se serve da arte moderna para erigir o signo étnico em sintoma arquetípico. E o que lhe permite ultrapassar a condição de um mero Volpi do terreiro talvez seja a sugestividade sem par que o seu idioleto plástico extrai do seu revolver um dialeto cultural: o mundo sacro do panteão nagô. Giulio Carlo Argan destacou o halo heráldico das imagens de Valentim, mas a dignidade hierática dessas imagens-brasão cresceu ainda mais quando o artista, depois de um fecundo triênio em Roma, ampliou a escala das suas formas-signos. “Nos últimos cinco anos, Valentim completou o seu trajeto da tela ao relevo e deste à plena terceira dimensão: chegou ao objeto emblemático”, espécie de escultura substitutiva do altar nagô. A meu ver, ele atinge aqui o ápice de sua

Escultura Emblemática 3 1977 Escultura Madeira policromada 116 x 105 x 75 cm Acervo | Paulo Darzé Galeria de Arte Foto | Andrew Kemp

arte, o âmbito mais completo de aplicação da “língua” gráfica e cromática de que estas belas serigrafias são como que frases: pois o emblematismo valentiniano tem vocação amplamente espacial. Como a ascese neoplástica de Mondrian (mas nos antípodas do seu cerebralismo construtivista), os signos de Valentim ambicionam a conquista do ambiente, a redução da totalidade do espaço circundante ao ritmo do rito: à silenciosa musicalidade da composição transfiguratória. Malraux deplorava um dia em que a nossa época tenha sido incapaz de inventar templos ou túmulos. Qualquer que possa ser a resposta a este desafio, deverá, presumivelmente, partir de obras voltadas para a rua, destinadas à praça e ao jardim. Na plástica brasileira pós-modernista, e, na, verdade em toda a plástica ocidental contemporânea, a arte super-semiótica de Rubem Valentim é um dos exemplos mais fortes e originais desse surdo apelo a uma ressocialização da experiência estética. José Guilherme Merquior

Diplomata, Sociólogo e Escritor


sobre o pioneirismo de rubem valentim

na arte semiótica brasileira A designação arte semiótica é recente, mas chega a tempo para indicar o capítulo dos que fundamentam a estrutura temática no uso de sinais tomados dos processos de cultura geralmente religiosos, ou dos meios de civilização, oriundos da comunicação massificada, sobretudo, a publicitária. Ainda resta uma terceira origem, que é a da criação pelo próprio artista, quando capaz de lavrar toda uma obra mediante elementos de sua constante invenção, a ponto de estabelecer um estilo individual caracterizador. Admito que o exemplo de Rubem Valentim, ocorrido há mais de vinte anos, tenha me influenciado bastante quando formulei os quatros atributos para reconhecimento de uma obra de arte proposta em nossos dias. Aquele critério, que utilizei durante duas décadas também como conduta para julgamento, baseava-se e exigia o domínio artesanal, a coerência temática, o acréscimo de originalidade e o sentimento de contemporaneidade. Poucos são os exemplos dos que respondem a esses itens com a plenitude deste artista. Depois de adquirir o domínio da artesania, sempre sob a mais cautelosa e rigorosa escolha de processos e materiais, Rubem Valentim fixou-se a uma linguagem temática que até hoje globaliza sua produção. A simples revelação das datas de seus quadros-definitivos lhe confere, no Brasil, o pioneirismo, ou, melhor dito, a precedência deste capítulo que modernamente se denominou arte semiótica, querendo significar a construção do objeto plástico mediante os valores estéticos contidos no sinal. A locução é adequada para não mais se confundir com o simbolismo – expressividade de símbolos e analogias –, embora símbolo não seja mais que o Sinal carregado de historicidade. O simbolismo evoca, e, por isso, liga-se ao romantismo. O sinal simplesmente comunica, ou simplesmente plasma. Os primeiros trabalhos de Rubem Valentim, de sua fase imediata ao início incipiente, mostram-no usando uma composição de múltiplos sinais dos Orixás de Candomblé, conforme se configuravam na linguagem iconológica da contingência do africano no Brasil. Os sinais eram ordenados como numa tábua escrita, lembrando a composição do uruguaio Torres-Garcia (1874-1949), que, já na década de 1930, produziu surpreendente pintura semiótica, abstratizante, baseada em grande parte nos aspectos formais da arte pré-colombiana. A segunda fase rompe com a ordenação sucessiva, utiliza o espaço pictórico como um todo, e sobre este faz incidir os valores geométricos e colorísticos. Identifica-se, para alguns, como abstração formal (daquela data), parecendo, de certo modo, se entender com as proposições de Auguste Herbin (1882-1960), de ordens não-figurativas, nãoobjetivas, porém geométricas, tentando formular um alfabeto pictorial que, embora rigorosamente abstrato, continha um simbolismo verbal.

A geometricidade de Herbin, entretanto, estava diretamente implicada aos princípios platoniar, os da estética formal, desconhecendo-se qualquer analogia discursiva, ou evocativa, porventura apontada por alguns de seus críticos. Foi fácil à crítica militante de então associar Rubem Valentim aos abstracionistas formais e, mais apropriadamente, aos construtivistas. Faltou, na época, quem advertisse não estar o nosso exemplo na vertente platoniana, mas na aristotélica, exatamente por construir, com elementos descobertos, aqueles sinais iconológicos oriundos da experiência africana religiosa no Brasil. O veio da descoberta de Rubem Valentim já trazia uma mimesis milenária, da África, submetida à catharsis da vivência do homem africano no Brasil. Impedido pela escravatura e pela vigilância da religião colonial oficial, restava ao africano reduzir sua imaginária e simbologia aos sinais iconológicos, limitados a uma representação bidimensional. Enquanto os abstracionistas formais e construtivas da elite ocidental especulavam com a estética formalista, euclidiana, o construtivista de nossa casa ia urdindo, através de prolongada pesquisa, um novo vocabulário de sinais e símbolos de estruturação geométrica, carregado de pujante historicidade. Pela mesma razão que se explica o Cubismo do início do século como decorrência da arte africana milenar exposta à curiosidade do europeu nos museus de antropologia, também se poderia entender a arte semiótica de Rubem Valentim como resultante da expressividade e da representatividade da imaginária afro-brasileira. Quando este artista atinge sua terceira fase, a dos objetos tridimensionais pintados, nada se altera em relação à coerência temática, embora muito se modifique quanto ao meio de elaboração. Ele parte da unidade iconográfica já plasmada em duas dimensões, e esta solução haveria de acondicionar o espaço pictórico sob maior ocupação do elemento projetado. Cessa, desde então, em sua pintura, a ordenação ideogramática de todo o espaço do quadro, a qual é substituída pela unidade imaginária que assim retorna mais hierática, mais dominante. Raramente se pode distinguir, em suas propostas atuais, uma representação simbólica exclusiva de determinado Orixá. Rubem Valentim, em que pese a sua autêntica ascendência africana, jamais se conduziu sob dúvida quanto à sua posição de erudito e estudioso. De fato, ele soube transpor, do campo antropológico para o estético, a experiência formal e cromática da simbologia afro-brasileira, mas nunca para submetê-Ia ao nível do pitoresco, do folclórico ou do exótico. Uma nova característica que se distingue na fase atual, mais que nas anteriores, é a ênfase emprestada ao ícone, isto é, à imagem hierática condensada no próprio “Iogotipo”, dotada de certa virtualidade com a figura humana, em correspondência à antropomorfia do corpo semiótico. Devo confessar que não terei a menor dificuldade em escrever mais sobre um artista que me preocupa há um quarto de século. Mais difícil é resumir, num texto sob medida, o significado de sua origem, o percurso e o alcance de sua obra. Fácil e mais certo é saudá-Ia no seu particular significado, em confronto com a arte brasileira. Porque nele está o exemplo do quanto um genuíno pode se elevar mediante estudo, pesquisa, informação e criatividade.

Clarival do Prado Valladares

Escritor, Poeta, Pesquisador e Crítico de Arte


formas brancas do altar de

oxalá

Oxalá foi enviado por Olodumaré para criar o mundo. Na mão, levava seu grande cajado e o saco da criação. O poder que lhe fora confiado não o dispensava de se submeter a certas regras e obrigações com os outros Orixás. Mas, em razão de seu caráter altivo, ele se recusou a fazer alguns sacrifícios e oferendas a Exu antes da viagem para criar o mundo, e se pôs à caminho, apoiado no grande cajado de estanho, seu paxorô. No momento de ultrapassar a porta do Além, encontrou Exu que, entre as suas múltiplas obrigações, tinha a de fiscalizar as comunicações entre os dois mundos. Descontente com a recusa do grande Orixá em cumprir as oferendas descritas, vingou-se fazendo Oxalá sentir uma grande sede. Oxalá não teve outro recurso senão furar com seu cajado o tronco do dendezeiro. Um líquido refrescante correu: era vinho de palma, que ele bebeu, ávido, abundantemente. Ficou bêbado, não sabia mais onde estava. Caiu adormecido. Veio, então, Odudua, o maior rival de Oxalá, também criado por Olodumaré. Vendo-o adormecido, roubou-lhe o saco da criação e se dirigiu a Olodumaré para mostrar o achado e contar em que estado se encontrava Oxalá. “Se ele está nesse estado, vá você criar o mundo”. Odudua saiu do Além e se encontrou diante de uma imensidão de água. Deixou cair a substância marrom contida no saco da criação. Era terra. Ela formou um montículo que ultrapassou a superfície das águas. Então ele pegou uma galinha, de pés de cinco garras, que começou a arranhar e espalhar a terra sobre a superfície das águas. Onde ela ciscava, a terra ia se alargando. Assim ele se tomou o rei da terra1.

Como na mitologia grega, os deuses africanos viveram, amaram, lutaram e se transformaram em mitos. Mitos e lendas permeiam, através do imaginário, sua permanência ao longo do tempo e no espaço. Assim, as histórias desses deuses surgiram numa espécie de sintonia entre o real e o imaginário, e atravessaram o Atlântico no bojo dos navios. São histórias de homens e mulheres que se transformaram em deuses mitológicos, cultuados numa nova religião e numa nova terra, a que chamamos de Diáspora Negra. Assim surgiu Oxalá, Orixá branco, criador de todos os homens. A representação simbólica das divindades africanas foi a grande descoberta do século 19, quando os movimentos artísticos europeus se curvaram à excelência da arte africana. Não só os cubistas, mas também surrealistas como André Breton, teórico desse movimento, parecem ter encontrado nas máscaras e fetiches africanos um universo de interrogações, além de um fascínio ainda não de todo decifrado no âmago de suas espiritualidades. Breton foi, talvez, o primeiro marchand de arte africana em Paris com apurada sensibilidade estética para fazer chegar aos seus parceiros a excelência da arte de diferentes culturas da África. Emblema Logotipo Poético de Cultura Afro Brasileira nº 6, 1976 Pintura | Acrílica s/ tela 100 x 73 cm Acervo | Paulo Darzé Galeria de Arte Foto | Andrew Kemp


A África e seus testemunhos artísticos invadiram a Europa em silêncio e sem pedir licença aos seus descobridores e colonizadores. As culturas africanas traziam seus próprios dogmas, contra os existentes na cultura ocidental. Atônitos, perplexos, antropólogos e artistas se viram seduzidos pela elaboração sofisticada daquelas criações escultóricas sobre madeira, bronze ou terracota, com inovadoras resoluções formais, geométricas e reducionistas; ao lado de máscaras, totens, utensílios de uso cotidiano, tecidos e estamparias. E, assim, a arte africana, além de seus enigmas, trazia o novo, o revolucionário, o desconhecido aos tradicionais conceitos estéticos de então. Criadas na África, dita selvagem e misteriosa, essas obras de arte traziam a força de um continente inteiro, clamando por um lugar que Ihes livrasse dos preconceitos instituídos; arte negra, anônima, primitiva, mas capaz de renovar o olhar artístico da vanguarda das primeiras décadas do século 20. Os novos dogmas, que vão, aos poucos, sendo incorporados – ou absorvidos – da criação expressiva, nessas obras, transpõem o fosso que separa o real (seres vivos, coisas) do irreal (os mortos, os ancestrais míticos e totémicos, as divindades e as forças) e, também, da natureza. Do movimento modernista europeu dos escultores, dos pintores, dos poetas e dos teóricos de arte, absorve-se a presença dos poetas e intelectuais negros como Leopold Sengor, que viria a ser presidente do Senegal, e dos poetas Leon Damas e Aimer Cesaire, da Martinica. Eles eram a ponte, com suas obras, para melhor dizer da cultura africana e da Diáspora, através dos ideais da Negritude, movimento conceitual sobre a estética negra africana dos anos de 1960. Se artistas e pensadores de arte superaram preconceitos e subdefinições a respeito da arte africana, livrando-a de certas excentricidades, é certo que ela não se livrou de todo das análises em que é descrita como uma arte primitiva, voltada para a criação coletiva, sem autoria, destinada às manifestações animistas e à deuses pagãos, com um sem-número de exemplos tribais, muito longe da concepção do que os europeus consideravam como arte pura, e na ambivalência de definições antropológicas e artísticas. Os caminhos da ancestralidade, aqueles inevitáveis chamamentos das forças ocultas, vão além de uma simples procura estética, representando mais do que propulsores para redescobrir, dentro de si, esse halo desejoso. É claro que a visão da antropologia da época se cerca dos profundos vínculos dentro dos quais essas esculturas foram criadas, indicando seu comprometimento com o mais íntimo dos sentimentos de devoção de ancestralidade religiosa. Arte e religião sempre se juntam, desafiando o sobrenatural. Um desafio milenar da matéria e do espírito entre o homem e Deus.

Rubem Valentim é um artista que vai fundo na procura interior desses símbolos, para construir uma obra que ainda será internacionalmente reconhecida pelos valores originais intrínsecos de uma nova expressão, nascida por contingência desse fluir profundo de um sentido estético consciente. O Valentim baiano, mestiço, esotérico, tem dentro de si a consciência plena da magia secreta das suas construções escultóricas e do largo sentido das suas pinturas. Sua obra exerce esse espírito de volta aos tempos pretéritos dos africanos ou dos afro-baianos, o que vem a dar no mesmo, pois é na Bahia que a África se reinventa na luta contra as forças hostis. Ele soube, como nenhum outro artista dessa enorme Diáspora Africana da Europa, Caribe, das Américas do Sul e do Norte, exprimir esses símbolos ancestrais com o extraordinário sentimento de ordenar formas, de estabelecer uma tensão entre a simetria virtual e real, de estacar ritmos ou empilhar formas geométricas na configuração primária de volumes. Em sua obra, destacam-se jogos visuais ambivalentes, como sugestão de uma longa discussão dos muitos valores desse criador de símbolos sagrados na pintura e nos altares, em que ele reverencia seu profundo mergulho ancestral; como um fetiche devotado à adoração das divindades sagradas, transfiguradas pelo puro sentimento de refinamento estético, e à criação universal da linguagem dos deuses da África. As obras que compõem a célebre instalação Templo de Oxalá, doada pela família do artista ao Museu de Arte Moderna da Bahia, devem estar impregnadas dos eflúvios e da atmosfera desse extraordinário deus africano, o pai de todos, o Orixá Fum-Fum. Essa grande obra, anteriormente exposta na XI Bienal de São Paulo (1971), significa a verdadeira razão sincrética e sagrada da produção de Rubem Valentim. Esse momento de inspiração foi o mais profundo da grande e generosa obra do genial artista, que soube unir o sopro universal e as profundas raízes ancestrais de sua criação.

Emanoel Araújo

Artista Plástico e Diretor-Curador do Museu Afro Brasil notas 1 Pierre Fatumbi Verger, in Orixás, Corrupio/Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1981.


concessão do título de “doutor honoris causa”

ao artista plástico rubem valentim Magnífico Reitor da Universidade Federal da Bahia, professor Macêdo Costa. Autoridades Civis e Militares. Meus Senhores, minhas Senhoras, professores e estudantes,

mestre rubem valentim: Há 26 anos, o jovem artista Rubem Valentim, inconformado com as limitações e dissabores da época e com a veemência que sempre lhe foi própria, convidou-me para partir, deixar definitivamente a província, em busca de outras plagas, de outros campos de luta e de realização pessoal. O cenário era a Rua 28 de Setembro, defronte da antiga e inesquecível Escola de Belas Artes. A sua oratória era convincente, mas não me fazia entender porque não ficar aqui mesmo e enfrentar os muros do arrigado feudalismo cultural de então, em lugar de buscar novos e desconhecidos perigos em terras estranhas, onde fatalmente os interesses e conflitos eram muito mais complexos e desgastantes. Valentim se foi e somente hoje percebo definitivamente a sua coragem e sabedoria, pois a Bahia que hoje o homenageia é a Bahia que ele mesmo ajudou a construir, com a sua sensibilidade, com a sua inteligência, com a sua intrepidez e conquistas pessoais.

mestre rubem valentim: Hoje nos deparamos frente a frente e, entre nós, o interregno de mais de duas décadas, onde o tempo só existe para a prazerosa lembrança dos seus feitos e para a reverência à sua inquebrantável força de vontade e à sua fanática e benfazeja compulsão artística. Muita coisa mudou em todos nós e muita coisa graças à sua própria interferência, à sua inestimável contribuição. O elogio público à sua pessoa é, antes de tudo, um tributo à sua universalidade, uma simples retribuição pelo que você tanto fez pela cultura artística baiana, brasileira, mundial. Pois, na verdade, você sempre esteve presente nesta ingente luta pela democratização da criação artística, pela preservação da dignidade profissional do artista, hoje mais ainda ameaçada do que nunca, pela avalanche de interesses objetos e estranhos à própria dignidade humana. A suprema homenagem que a Universidade Federal da Bahia lhe confere, com a outorga do título de “DOUTOR HONORIS CAUSA”, é, por justiça, uma homenagem da Bahia que você sempre honrou e para quem sempre trabalhou. Daquela inflamada conversa para cá, muitas coisas aconteceram e muitas delas com a sua inestimável participação. Hoje, você encontra uma Bahia mais vigorosa, menos provinciana e com alguns muros da intolerância e da oligarquia cultural já bastante deteriorados. Os nossos horizontes artísticos são mais amplos, principalmente, pelo surgimento do Museu de Arte Moderna da Bahia, de Lina Bo Bardi, atualmente tão bem dirigido por Francisco Liberato, principalmente, pelas conquistas irreversíveis das duas Bienais da Bahia, pela abertura democrática da Revista da Bahia, do saudoso Sostrates Conjunto Altar Sacral Emblemático E 59 | 1980 Escultura | Madeira 71 x 24 x 24 cm Acervo | Paulo Darzé Galeria de Arte Foto | Andrew Kemp


Gentil, pela atuação do Instituto Cultural Brasil-Alemanha, de Roland Schafnner e de Adan Firnekaes, pela existência de algumas Galerias de Arte, como a Ouerino, a Convivium, a Galeria de Arte da Bahia e a Galeria Cavalete, pela atuação da Fundação Cultural e, principalmente, pela participação da nossa Universidade Federal da Bahia na formação de artistas e de professores de Educação Artística. Hoje, você encontra uma Bahia onde os artistas já possuem uma maior consciência de classe e procuram se estruturar profissionalmente através de sua Associação. Uma Bahia onde os seus artistas procuram convencer as autoridades de que o melhor processo para a aquisição de obras de arte e para a contratação de serviços artísticos é o concurso público, e de que o caminho menos injusto é o da necessária regulamentação profissional. Sem dúvida que muita coisa ainda deverá ser feita e é mais do que nunca necessário a sua ajuda para a concretização das nossas aspirações. Ainda sofremos os prejuízos do colonialismo cultural do Sul, que por sua vez sofre do colonialismo de metrópoles alienígenas. Somos um dos poucos estados do Brasil que não possuem um salão oficial de artes plásticas ou equivalente. Não possuímos nenhuma revista de arte e o nosso mercado de arte ainda sofre de nocivas distorções. A veiculação do nosso trabalho ainda é deficiente e ainda sofremos dos equívocos do paternalismo de alguns setores e dos resíduos da tradicional oligarquia cultural baiana. Mas, hoje, você encontra uma Bahia mais consciente e com um quadro mais amplo de artistas, responsáveis por uma gama mais ampla de formas e de cores, de idéias de concepções. E, independente dos artistas que você já conhecia em 1957, gostaria imensamente de lhe falar sobre Bel Borba, Sônia Rangel, Edsolêda Santos, Murilo, Guache, Hilda Oliveira, Denise Pitágoras, Vera Lima, Zu Campos, Florival Oliveira, Márcia Magno, Graça Ramos, Ailton da Silveira, Riolan Coutinho, Yeda Maria, Renato Viana, Bartira, Sérgio Rabinovitz, Mário Cravo Neto, Renato da Silveira, Tatti Moreno, Francisco Liberato, Lígia Milton, Leo Celuc, Vauluísio Bezerra, Zivé, Humberto Velame, Brasileiro, Humberto Rocha, Almandrade, Maria Adair, Maso, Terezinha Dumet, Carmen Carvalho, Marlene Cardoso, Justino, Michael Walker, Didier, Zélia Maria, Chico Diabo, Juraci Dórea, lsa Guimarães, Luiz Gonzaga, Celeste Almeida, Antônio Pinho, Onias Camardelli, Norma Ataíde, Ana Maria, J. Cunha, Mercedes Kruschevski, Ângelo Roberto, José Maria, Henrique Passos, Rino Marconi, José Maria, Enéas e de tantos outros. Mas o tempo não permite e, para o meu consolo, você já conhece muitos deles. O extraordinário acervo de suas obras, Mestre Valentim, certamente que é um legado à produção artística mundial, já que você está na dimensão dos grandes criadores universais. Mas, certamente que é, também, uma parte do corpo cultural baiano, uma indispensável parte da nossa criação mulata, mestiça, ainda mais quando o seu principal suporte inspiracional advém da Grande África, tão rica e existente na Bahia. Da África que Carybé, outro Doutor que tão justamente soube a Universidade reconhecer, tem difundido e enobrecido. Da África tão extraordinariamente expressa na obra de artistas ainda não devidamente reconhecidos pela culpa e omissão de todos nós, como Agnaldo dos Santos, Hélio Oliveira, Didi Deoscoredes, Paulo Matos, Edsolêda Santos e Manoel do Bonfim. Da África que nutriu e revitalizou as Artes Plásticas do Ocidente, através, principalmente, do gênio de Picasso. Um dos seus maiores méritos, Mestre Valentim, foi o de ter recusado os cânones de fora, os resíduos estilísticos da vanguarda internacional, pois buscou na verdadeira fonte, que é o povo, os instrumentos básicos para a elaboração de sua linguagem plástica. Você percorreu um dos caminhos mais penosos, talvez o mais difícil: o da abstração geométrica, o do despojamento total em busca de uma linguagem pura e, por isso mesmo, tão exigente. Pertencente à família dos mestres geómetras, cuja árvore genealógica remonta à própria

pré-história, Rubem Valentim construiu por sintonização instintiva um depurado vocabulário de formas inspiradas nos signos-símbolos da mitologia africana. Superada a fase inicial de interpretação e transfiguração, em que a metáfora e a analogia são mais ou menos evidentes, as estruturas remanescentes do machado de Xangô, do chicote de Yansã, do arco e da flecha de Oxóssi, da faca de Ogum, do abebê de Yemanjá, do cetro de Oxalá, da cobra e do arco-íris de Oxumaré, cedem lugar aos novos sinais, onde a intuição, em lugar do instinto, é alimentada por uma extraordinária erudição. A força selvagem, vital e orgânica do africano continua, mas num nível “gestáltico” renovado. A vibração do vazio que se preenche de tensão visual é mais do que evidente. A obra de Rubem Valentim, como a de grande número de artistas, não obstante a validade e unicidade de cada peça, deveria ser melhor absorvida como conjunto, como um grande painel indivisível. A estrutura semântica das suas formas, no mesmo nível da construção plástica abstrata de Mondrian e dos grandes artistas da ordem e do equilíbrio, atingem autonomia pela persistência e pela refinada alquimia visual. A cor é dosada com sabedoria, mas com suprema sensibilidade plástica. Os seus totens, estandartes ou altares tridimensionais, se libertaram da superfície, mas conservam a mesma tensão hierática, podendo se prolongar com ambição arquitetural, como objetos urbanos de uma nova ordem, de uma nova civilização. A obra de Valentim é contemporânea e universal, um extraordinário exemplo de valorização e transcendência da nossa iconografia regional e da nossa identidade cultural. Arte Construtivista, Semiótica, Emblemática, Arte Heráldica ou outro nome que se queira dar à Arte de Rubem Valentim, o que importa é que o conteúdo mágico-fetichista original só desaparece na medida em que o artista constrói novos arquétipos capazes de engendrar uma comunicação superior equivalente. São formas que certamente serão encontradas nas cidades do futuro ou no interior de naves espaciais, tal a sua inesgotável contemporaneidade. Há mais de 35 anos que Rubem Valentim se dedica exclusivamente às Artes Plásticas. Abandonou a Odontologia porque seu problema era de vocação mesmo. É autodidata e tem se dedicado exclusivamente às atividades artísticas. As suas obras são encontradas em várias coleções particulares no Brasil e no estrangeiro e em vários museus, entre outros, o Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. É um dos artistas mais premiados do Brasil, inclusive nas Bienais de São Paulo. Dos seus prêmios destacamos três, pela sua importância, pelo peso e pelo que representaram na vida do artista. O prêmio de viagem ao Estrangeiro, obtido no XI Salão Nacional de Arte Moderna, em 1962. Este prêmio era o prêmio mais cobiçado do país. O prêmio “Universidade da Bahia” obtido no Salão Baiano de Belas Artes em 1955; independente do seu valor intrínseco, possui um valor histórico e afetivo. E o prêmio especial “pela Contribuição à Pintura Brasileira” obtido na I Bienal Nacional de Artes Plásticas, em 1966, Salvador, Bahia. Com o prêmio de viagem ao estrangeiro, Valentim conheceu a Europa, onde viveu por três anos. Visitou vários países e pôde se dedicar inteiramente aos grandes mestres do passado e da Arte Moderna. Conheceu mais de perto a arte negra e dos povos primitivos. Visitou as Bienais de Veneza e, em 1966 expôs no I Festival Mundial de Arte Negraem Dakar, Senegal. Em setembro de 1966 retorna ao Brasil e trabalha por alguns anos no Instituto Central de Artes da Universidade


de Brasília. Através de centenas de exposições individuais e coletivas, de iniciativa particular ou oficial, as obras do mestre Valentim já percorreram o Brasil e o exterior. São tantas e importantes as exposições realizadas, que se torna uma tarefa impossível citá-las parcialmente.

A Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia teve a honra de realizar tão meritória indicação: o título de “Doutor Honoris Causa”, como reconhecimento do seu valor pessoal e da contribuição que você tem dado à cultura nacional, elevando cada vez mais o nome da Bahia, inclusive internacionalmente.

Não serei inoportuno realizando uma análise crítica da obra de Rubem Valentim, por mais que isto me atraia e me fascine, pois jurei a mim mesmo controlar a minha vaidade pessoal e o meu ímpeto temerário de erudição, tanto quanto respeitar a educação e a paciência de todos os presentes, não sendo redundante e repetindo o que os especialistas consagrados já fizeram. Lembraria, no entanto, para uma total compreensão do fenômeno Valentim, os textos de Pietro Bardi, Clarival Valladares, Roberto Pontual, Walmir Ayala, Flávio de Aquino, Giulio Carlo Argan, Hugo Auler, Mario Pedrosa, Theon Spanudis, Umbro Apollonio, Aracy Amaral, Mario Schemberg, Frederico Moraes, Mario Barata, Ferreira Gullar, Aline Figueredo, Vicente de Percia, e de tantos outros. Felizmente, Rubem Valentim tem sido, graças principalmente à sua tenacidade e trabalho, cantado e decantado por todos os que tenham sensibilidade e senso de justiça. Os filmes, os audiovisuais, os catálogos; as referências bibliográficas em geral, a preservação de sua obra através dos colecionadores, galerias, escolas, museus, etc, felizmente, garantem a sua memória, o benefício do consumo do seu trabalho por milhares e milhões de pessoas pelo futuro a fora. E digo felizmente porque o contrário tem sido a regra geral. A insensibilidade e a desinformação de muitos, e até mesmo a covardia, tem sido responsável pela deterioração de centenas de obras de grande valor cultural, pela diluição e extinção da produção de inúmeros e extraordinários artistas.

Não fosse a morte afoita e injusta, o mesmo título seria também concedido a outro homem igualmente nobre e produtivo, Clarival do Prado ValIadares.

Quando, em detrimento da grande maioria, se exalta até a exaustão uma minoria de artistas que, não obstante o seu valor pessoal, foram contemplados pela sorte de possuírem amigos importantes no contexto político, econômico e social, o resultado só pode ser triste pela perda de um fabuloso tesouro que deveria constituir a nossa herança cultural. Agnaldo dos Santos, Hélio Oliveira, Adan Firnekaes, Geraldo Rocha, Cardoso e Silva, Henrique Oswald, João Alves, estão ameaçados pela falta de registro e de documentação adequados, e, pior do que a morte, que ceifou as suas vidas, é a indiferença do nosso sistema cultural pelo que de tão notável realizaram. Há uma tremenda injustiça quando a grande maioria dos nossos mandatários preconceituosamente elegem os seus artistas preferidos, entregando-lhes as encomendas do Estado, ou, elegendo-os através de quaisquer veículos como os seus artistas oficiais, esquecem que o mais universal, justo e saneador é a divisão eqüânime; o benefício generalizado, principalmente quando somente a falta de percepção e de cultura autoriza a qualificação de artistas como maiores e menores. E Rubem Valentim tem sido, neste particular, mais um exemplo, pois a força que tem dado aos artistas jovens, a todos os artistas que procuram a sua ajuda, tem sido uma constante em toda a sua vida. E isto é mais do que conseqüente, pois, por ser extraordinariamente sensitivo, Valentim tem consciência, sabe que o importante é a soma, a participação de todos, cada um com a sua parcela de originalidade, de humanidade, para a construção de uma consciência cósmica, que vem, no nosso planeta, se densificando desde a aurora do homem e que, não obstante as ameaças constantes de hecatombes e genocídios, tudo indica expandir-se, graças, principalmente, à sensibilidade estética, graças aos artistas de todos os tempos e lugares, graças aos artistas de todos os tipos e qualidades.

Na verdade, você já é um velho conhecido da Escola de Belas Artes. E é bem verdade que ela se encontra muito sofrida materialmente e desfalcada de homens como Mendonça Filho, Sepulveda, Abraão Kosminski, e, agora, lamentavelmente, do nosso grande mestre Alberto Valença. Porém, está renovada pela presença de muitos jovens artistas e professores. A nossa indicação para a outorga deste tão importante título provocou uma grande repercussão nos meios artísticos e culturais da Bahia. Foi acolhida com entusiasmo por personalidades como Jorge Amado, Pasqualino Magnavita, Wilson Rocha, Sante Scaldaferri e por centenas de artistas e intelectuais. Mas foi acolhida com mais entusiasmo ainda pela sensibilidade do nosso Reitor Macédo Costa, Presidente e mentor maior desta festa de reconhecimento e honraria. Quando afirmamos, portanto, que a homenagem que ora se presta é uma homenagem da própria Bahia, não exageramos, porque, independente da excepcional acolhida pela comunidade baiana, na Universidade se concentra uma grande parte dos nossos artistas e intelectuais. Como bem acaba de demonstrar, recentemente, o Reitor Macêdo Costa, com a sua promoção do painel coletivo da Biblioteca Central da UFBA, na Escola de Belas Artes se encontra uma parte bastante expressiva dos artistas mais representativos da Bahia. Portanto, a indicação da Congregação da Escola de Belas Artes e a aprovação unânime do Conselho Universitário expressam, antes de tudo, uma vontade coletiva, a vontade do povo da Bahia, sensível que é, ao seu indiscutível valor, Doutor Rubem Valentim.

Salvador, 20 de setembro de 1983. Salão Nobre do Palácio da Reitoria. Discurso proferido pelo Prof. Juarez Paraíso quando da concessão de título de “Doutor Honoris Causa” a Rubem Valentim Juarez Paraíso, artista plástico, professor titular da Escola de Belas Artes da UFBA, chefe do Departamento da Escola de Belas Artes da UFBA. coordenador das Oficinas Arte em Série do Museu de Arte Moderna da Bahia. A Fala do Congresso - Revista 75


Marca 1Q E 51 | 1980 Escultura | Madeira 66 x 25,5 x 41 cm Acervo | Paulo Darzé Galeria de Arte Foto | Andrew Kemp

Escultura Emblemática E 48 |1980 EsculturaMadeira 70 x 24 x 24 cm Acervo | Paulo Darzé Galeria de Arte Foto | Andrew Kemp


valentim,

um mestre da coerência

Um artista intuitivo que, logo cedo, teve a sorte de descobrir Cézanne e Matisse, aprendeu noções de espaço na pintura e percebeu ainda que pintar era um trabalho minucioso e rigoroso. Aliás, “o verdadeiro destino de um grande artista é um destino de trabalho” (Bachelard). E foi justamente esta dedicação a uma vida de trabalho que fez de Rubem Valentim um mestre virtuoso; talvez o primeiro pintor baiano a enfrentar de frente a modernidade. A cultura popular, as imagens afro-brasileiras, eram materiais de pesquisa plástica, matéria-prima para sua arte, submetida a uma disciplina e organização rigorosas, e constituíam-se em imagens pictóricas no espaço da tela, aspirando uma universalidade. Sua arte acabou se aproximando da tendência construtiva emergente na arte brasileira da época. Não era, com certeza, um artista concreto, mas chegou a representar o Brasil na I Bienal de Arte Construtiva, em Nuremberg, juntamente com o ortodoxo concretista paulista Waldemar Cordeiro. Valentim desenvolveu sua arte a partir de sígnos da cultura afro, ao som de atabaques que reclamavam uma erudição. O artista, ao reduzir o símbolo à sua essencialidade primária, submetia-o à lei da pintura: proporção, simetria, cor etc. Portanto, a importância do seu trabalho não se resume à origem de sua sintaxe, ou ao que ela pode representar. O trabalho tem a autonomia de sua fantasia e assim será lido em tempos futuros. Conhecido, principalmente, como o geômetra da cultura afro-brasileira, sua pintura ultrapassa essa objetividade mais visível. Na definição do próprio artista: “A arte é um produto poético, cuja existência desafia o tempo e por isto liberta o homem. Isto me afeta porque sou um indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo”. O artista é sempre um personagem do romance real que passa a vida querendo ver. Trabalha os signos até transpor sua realidade social e histórica, como se fossem imagens de sonho. Por trás dessa figura emblemática da pintura, deste “monge do Candomblé”, há um mundo de inquietações, revoltas e angústias, que faz parte da intimidade e da cidadania do artista. Um imaginário.

A arte, para Valentim, era mais que um trabalho, era um vício; era mais que um rito, era um raciocínio delirante. Era um artista capaz de passar 24 horas, sem parar, falando de arte, sem perder o entusiasmo e sem esgotar tudo o que desejava falar. “O tempo é minha grande preocupação. Uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo o que imaginei” (depoimento do artista, 1976). A arte, para Valentim, era um sonho imprescindível à vida, e interminável, porque a imaginação estava sempre em atividade. Através do olhar do artista, signos secretos provenientes da cultura popular passaram para o mundo complexo da arte, onde são contemplados como sintaxe do belo, assim como Claude Monet contemplou as ninféias. Somos, então, convidados a participar de um ritual, olhar estes símbolos de contornos rigorosos com profundidade, distância e tranquilidade. Os signos de uma simbologia mágica, retirados de sua iconografia, foram reorganizados em outro terreiro, o da arte, sujeitos a uma outra adoração, a do templo museal. Não estamos diante de coisas, mas de elementos simbólicos de uma outra religião secreta, inventada pelo artista. Fantasia? A obra não responde, nos devolve as indagações. Era um artista que acreditava na arte como motivo essencial da vida, ou, quem sabe, que a arte pudesse substituir a religião e até estruturar o cotidiano. Mas o que mais marca o trabalho de Rubem Valentim é sua proposta de coerência como método de construção da obra. Pintor de vocação construtiva, seu trabalho passou por diversos momentos, sempre marcado por uma paixão: a vontade de refletir e pintar com austeridade, dentro de uma atmosfera mítica, como se pintar fosse dialogar com alguma divindade, nos momentos de plenitude ou de vazio, de excesso ou de contenção pictórica, da cor ao mergulho no silêncio do branco. Que sejam: pinturas, relevos, objetos, esculturas... O desejo de uma ordem construtiva estava presente, sinalizando a coerência de um verdadeiro artista. Avesso às modas e sem fazer concessões: uma lição de mestre. Almandrade Artista plástico, poeta e arquiteto


manifesto ainda que tardio Depoimentos redundantes, oportunos e necessários. Pensamentos do artista expressos ao longo da sua vida de trabalho, em entrevistas, depoimentos, textos e falas.

Libertas quae sera tamen. - Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade –; criando os meus signos-símbolos procuro transformar em linguagem visual o mundo encantado, mágico, provavelmente místico que flui continuamente dentro de mim. O substrato vem da terra, sendo eu tão ligado ao complexo cultural da Bahia: cidade produto de uma grande síntese coletiva, que se traduz na fusão de elementos étnicos e culturais de origem européia, africana e ameríndia. Partindo desses dados pessoais e regionais, busco uma linguagem poética, contemporânea, universal, para expressar-me plasticamente. Um caminho voltado para a realidade cultural profunda do Brasil – para suas raízes – mas sem desconhecer ou ignorar tudo o que se faz no mundo, sendo isso, por certo, impossível com os meios de comunicação de que já dispomos, é o caminho, a difícil via para a criação de uma autêntica linguagem brasileira de arte. Linguagem plástico-vérbico-visual-sonora. Linguagem pluri-sensorial: o sentir Brasileiro. - Uma linguagem universal, mas de caráter brasileiro, com elementos sígnicos (não verbais) de diferenciação das várias, complexas e criadoras tendências artísticas estrangeiras. Favorável ao intercâmbio cultural intensivo entre todos os povos e nações do mundo; consciente de que as influências são inevitáveis, necessárias, benéficas quando elas são vivas, criadoras. Sou, entretanto, contra o colonialismo cultural sistemático e o servilismo ou subserviência incondicional aos padrões ou moldes vindos de fora. - A arte é um produto poético cuja existência desafia o tempo e, por isso, liberta o homem. Isso me afeta de uma maneira total, porque sou um indivíduo tremendamente inquieto e substancialmente emotivo. Talvez, precisamente por isso, busco ávido na linguagem plástica visual que uso uma ordem sensível contida, estruturada. A geometria é um meio. Procuro a claridade, a luz da luz. A arte é tanto uma arma poética para lutar contra a violência como um exercício de liberdade contra as forças repressivas: o verdadeiro criador é um ser que vive dialeticamente entre a repressão e a liberdade. - O tempo é a minha grande preocupação – uma das minhas angústias é ver chegar o tempo final sem poder realizar tudo o que imaginei. Nasce -se em conflito com o mundo, ou o enfrentamos e o deglutimos ou perecemos. Creio que os artistas ou sensitivos, obviamente, resultam disso e da maneira específica como reagem, criam essa coisa que se convencionou chamar arte – ou, como querem atualmente, anti-arte, resulta o mesmo – e desafiam o tempo, este sua maior preocupação já que o vê fluir, ir-se embora, aproximar-se da morte. Sentindo na carne uma triste solidão, fiz do fazer minha salvação. Artista liberto, libertador, faço meus exercícios plástico-visuais, lutando com todas as minhas forças para ser mais humano, mais tolerante em esta época de insólita violência.

S/ título | 1987 Serigrafia 100 x 70 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


- Tudo o que foi dito acima é o meu pensamento há 25 anos. Hoje vejo com satisfação que artistas criadores, maduros e jovens inquietos, voltam-se, buscam, tomam consciência mais profunda da cultura de base, das raízes culturais da Nação Brasileira. Esse mundo mítico e místico, poético, às vezes ingênuo, puro e profundo, porque entranhado nas origens do ser brasileiro. Transpor criando, no plano de linguagem, é dar o salto para o universal, para a contemporaneidade de toda essa Poética, sem se recorrer a intelectualismos estéreis, é que é o X do Problema. - A iconologia afro-ameríndia-nordestina-brasileira está viva. É uma imensa fonte – tão grande quanto o Brasil – e devemos nela beber com lucidez e grande amor. Porque perigos existem: como o modismo; as atitudes inconsequentes, inautênticas; os diluidores com mais ou menos talento, mais ou menos honestidade, pouca ou muita habilidade, sendo que os mais habilidosos e vazios são os mais danosos, porque geradores de equívocos; as violentações caricatas do folclore e do genuíno; as famigeradas “estilizações” provincianas e o fácil pitoresco que levam a um subkitsch tropicalizado e ao efeitismo subdesenvolvido. - Atualmente, a minha arte busca o Espaço: a rua, a estrada, a praça – os conjuntos arquitetônico-urbanísticos. Ainda sou pela síntese das artes: caminho para a humanização das comunidades. Integração arte-ecologia-urbanoarquitetural. Como poderei realizar isso? Deixo a pergunta, cuja resposta poderá ficar somente em protótipos. - Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do Candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de “fala”, uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um “design” (que chamo RISCADURA BRASILEIRA), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo menos – em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-56 quando pintei os primeiros trabalhos da sequência que até hoje, com todos os novos segmentos, continua se desdobrando. - Não pertencendo ou me filiando a nenhum dos movimentos ou correntes artísticas das muitas que surgiram e surgem no estrangeiro e aqui chegavam e chegam e são mais ou menos diluídas – tenho a impressão de que criei e construí uma estrutura totêmica, um ritmo, uma simetria, uma emblemática, uma heráldica, um hieratismo, uma SEMIÓTICA | SEMIOLOGIA NÃO VERBAL, VISÍVEL. Isso tudo partindo das formas vivas da “fala” não verbal do nosso povo, de uma poética visual brasileira, da iconologia afro-amerínda-nordestina. Enquanto muitos dos nossos artistas criadores se voltavam para os ismos internacionais, cosmopolitas, eu defendia (nem sempre compreendido ou ouvido) uma tomada de consciência cultural da Nação Brasileira, do Povo Brasileiro. Eu defendia e falava sobre a Cultura do Nordeste, sobre Cultura do Índio, a Cultura Negra (e mulata, mestiça e cabocla), eu defendia o barroco como um produto da nossa criatividade mulata, eu defendia um sentir brasileiro manifestado nas carrancas do Rio São Francisco, nos ex-votos, na cerâmica popular, nos signos litúrgicos dos rituais afro-brasileiros, na xilogravura de cordel, nos humildes e inventivos brinquedos populares. Achava e continuo achando que o Brasil tem de fazer uma arte mestiça como a do Aleijadinho, como a dos santeiros e ferreiros da Bahia. Reconheço que sou um obcecado por uma cultura genuinamente brasileira, apesar da famigerada aldeia Global. Eu não nasci na Europa (óbvio), não tive educação europeia. Não sou punhos de renda, não nasci para ser diplomata. Não sou bem nascido, pelo contrário, sou um homem áspero, agressivo, sou um homem desesperado que procura a Divindade, o Ser dos Seres. Assim, o que eu tinha para me apegar era o Brasil.

S/ título |1987 Serigrafia 100 x 70 cm Acervo | MAM-BA Foto | Luciano Oliveira


- Minha arte tem um sentido monumental intrínseco. Vem do rito, da festa. Busca as raízes e poderia reencontrá-las no espaço, como uma espécie de ressocialização da arte, pertencendo ao povo. É a mesma monumentalidade dos totens, ponto de referência de toda a tribo. Meus relevos e objetos pedem fundamentalmente o espaço. Gostaria de integrá-los em espaços urbanísticos, arquitetônicos, paisagísticos. - Meu pensamento sempre foi resultado de uma consciência de terra, de povo. Eu venho pregando há muitos anos contra o colonialismo cultural, contra a aceitação passiva, sem nenhuma análise crítica, das fórmulas que nos vêm do exterior – em revistas, bienais etc. E a favor de um caminho voltado para as profundezas do ser brasileiro, suas raízes, seu sentir. A arte não é apanágio de nenhum povo, é um produto biológico vital. - Eu acho que a nação brasileira continua. Por isso, trato sempre em termos de povo brasileiro. Estou consciente de que os sistemas políticos passam, os problemas econômicos são substituídos por outros, a dialética da existência é um fato. Portanto, essas coisas são efêmeras se nós as encaramos em termos de perenidade de povo, de continuidade de Nação, de continuidade histórica, no tempo e no espaço. Como dizia Rui Barbosa (a citação não é literal), um povo pode ser dominado economicamente, o seu território pode até ser ocupado e conquistado pelas armas, mas o que ele não pode fazer é entregar a sua alma, seu sentir, sua poética, sua razão de ser. Se isto acontecer ele deixará de existir historicamente como Nação, como povo. Assim, eu acho que no Brasil, hoje, temos de defender nossa alma. É o que faço, transpondo todo este sentir, esta poética, para uma linguagem contemporânea, evitando cair nas coisas caricatas, nos “tropicalismos”, no nefando kitsch, como tantos outros artistas brasileiros. - Gostaria de citar um trecho escrito pelo crítico Mário Pedrosa para o catálogo da minha exposição individual na Galeria Bonino, realizada em Julho de 1967, no Rio: “Há algo de antropofágico na sua arte, no sentido oswaldiano – ser produto de deglutições culturais. Ao transmudar fetiches em imagens, e signos litúrgicos em signos abstratos plásticos, Valentim os desenraíza de seu terreiro e carregando-os de mais a mais de uma semântica própria, os leva ao campo da representação por assim dizer emblemática, ou numa heráldica, como disse o professor Giulio Carlo Argan (Itália, 1965). Nessa representação os signos ganham em universalidade significativa o que perdem em carga original mágico-mística. - O artista projeta, mesmo abandonando também a fatalidade da tela, organiza seus signos no espaço, talhados como emblemas, brasões, broqueis, estandartes, barandões de uma insólita procissão, talvez de um misticismo religioso sem Igreja, sem dogmas, a não ser a eterna crença nas raças e nos povos oprimidos, no advento do milênio, na fraternidade das raças, na ascensão do homem. - Concluindo: A Arte Brasileira só poderá ser um produto poético autêntico quando resultado de sincretismos, de aculturações sígnicas (semiótica/semiologia não verbal) das culturas formadoras da nossa nacionalidade de base (brancoIuso-negro-índio), acrescidas com a contribuição das culturas mais recentes, trazidas pelos diferentes povos de outras nações, e que, aqui nesse espaço Brasil-Continente comum a todos, se misturam criando um sistema de brasilidade cultural de caráter singular, de rito, mito e ritmo, que sejam inconfundíveis, apesar da famigerada Aldeia Global. O fundamental é assumir a nossa identidade de povo, em termos de Nação. Rubem Valentim

Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília Janeiro 1976

S/ título Escultura Metal 124 X 80 X 13 cm Acervo | Coleção Particular Foto | Andrew Kemp


Emblemágico 81 | 1981 Pintura | Acrílica s/ tela 73 x 100 cm Acervo | MAM-BA Foto | Rômulo Fialdini


biografia

rubem valentim

Em Salvador, capital do estado da Bahia, o ano modernista de 1922 viu nascer Rubem Valentim – homem do povo, da cultura popular, da religiosidade baiana – em um contexto que, talvez de forma inesperada, já na infância o aproximou do domínio da criação: pinturas e paisagens para presépios fluíram de forma natural. Valentim foi, nesse ofício, autodidata: reconheceu maestria na figura de um pintor de paredes, iniciou seus experimentos com materiais rústicos. Instintivo, intuitivo, teve seu primeiro contato com um movimento artístico no mesmo ano em que se formava em odontologia, 1946. As esperanças em conciliar o trabalho e a pintura logo foram frustradas e, com o ofício de dentista abandonado, em 1948 Valentim passou a se dedicar completamente às artes plásticas. A busca por disciplina e por conhecimento, contudo, o reaproximou da universidade, e 1953 foi o ano em que, pela Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia, Rubem Valentim se formou jornalista. No ínterim, dialogou de forma relevante com elementos da História das Artes, da Cultura Negra, das Artes do Povo da Bahia e do Nordeste brasileiro – já era integrante, desde 1946, do movimento renovador das artes, iniciado na Bahia entre 1946 e 1947. O convívio universitário o aproximou do circuito mundial de artes, e, em 1951, enquanto São Paulo sediava sua primeira Bienal, Valentim se deu conta de que a arte brasileira necessitava não só de uma perspectiva crítica, mas de certa independência dos movimentos europeus. “Por que estou fazendo paisagem parecendo Cézanne? O problema não é este!”. Tal consciência se enraizou de forma definidora, e, movido por ideais provenientes da semana de 1922, Valentim resolveu se voltar aos símbolos da terra, à arte popular, ao Candomblé. O artista deixou Salvador em direção ao Rio de Janeiro em 1957, com uma proposta estética definida – sua geometria como elemento do sensível –, proposta esta que lhe deu, em 1962, o prêmio de viagem ao estrangeiro no XI Salão Nacional de Arte Moderna. Esta viagem, da qual não retornaria por cerca de três anos e meio, lhe ofereceria um novo horizonte no que diz respeito à Arte Negra e dos Povos Primitivos. Nesse meio tempo, visitou duas das Bienais de Veneza (1964 e 1966) e participou da exposição de arte contemporânea do I Festival Mundial de Arte Negra (1966). Ainda em 1966, à convite da I Bienal Nacional de Artes Plásticas, Valentim participou com Sala Especial e foi contemplado com o prêmio pela Contribuição à Pintura Brasileira. Em 1969, já de volta ao Brasil, a convite do então Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, viajou novamente ao exterior para participar como artista convidado da I Bienal Internacional de Arte Construtiva de Nuremberg. A partir daí, a carreira já frutífera passou a obter ainda mais êxito, tendo o artista sido convidado a integrar a II Bienal de Havana, em Cuba (1986), e a expor no Museu Afro-americano da Califórnia (1989), em Los Angeles, e no Museu do Bronx (1990), em Nova Iorque, ambos nos Estados Unidos. Rubem Valentim faleceu em São Paulo em 1991, após residir, por vários anos, em Brasília.

Rubem Valentim Foto | Silvestre Silva


exposição rubem valentim Organização

Marlon Santana

Museu de Arte Moderna da Bahia

Coordenação Núcleo de Comunicação

Curadoria

Thiago Falcão Ana Rodrigues

Stella Carrozzo

Designer Dinha Ferrero

Co-curadoria

Designer Assistente

Almandrade

Ângelo Serravalle

mam-ba

Allysson Viana

Direção

Coordenação Núcleo Administrativo

Stella Carrozzo

Dércio Santana

Assessora Técnica Luciana Moniz

Assistente de Direção

Planejamento de Mídias Online

catálogo

Liane Brück Heckert

Coordenação Editorial

Coordenação Núcleo de Museologia

Stella Carrozzo Thiago Falcão

Sandra Regina Jesus

Acompanhamento Museológico

Produção

Rogério Sousa

Carolina Câmara Mariana Vaz

Coordenação Núcleo Arte e Educação Roseli Amado

Projeto Gráfico Dinha Ferrero

Coordenação Núcleo de Produção Carolina Câmara

Tratamento de imagem

Produção

Jorge Morabito

Mariana Vaz

Coordenação Núcleo de Montagem Daiane Oliveira

Produção de Montagem Lia Cunha

Montadores Agnaldo Santos Jairo Morais

Fotografias Andrew Kemp Luciano Oliveira Rômulo Fialdini Silvestre Silva

Revisão Alana Camara

Agradecimento Especial Paulo Darzé Agradecimentos Almandrade | Andrew Kemp | Bené Fonteles | Celso Albano Costa | Cica Lima | Eloi Ferreira de Araújo | Emanoel Araújo Frederico Morais | Joãozito | Juarez Paraíso | Luciano Oliveira | Márcio Lobão | Martvs das Chagas | Olívio Tavares de Araújo | Paulo Herkenhoff | Raphael Serruya | Roberto Bicca de Alencastro | Rômulo Fialdini | Silvestre Silva | Verônica Nairobi

Emblemágico 78 1978 Pintura | Acrílica s/ tela 75 x 103 cm Acervo | MAM-BA Foto | Rômulo Fialdini


MUSEU DE ARTE MODERNA DA BAHIA DIREÇÃO Stella Carrozzo ASSESSORA TÉCNICA Luciana Moniz ASSISTENTE DE DIREÇÃO Liane Brück Heckert Núcleo de Museologia

Coordenação Sandra Regina Jesus Museólogos Rogério de Sousa | Janaína Ilara Estagiária Cremilda Sampaio Restauro Maria Lúcia Lyrio | Alberto Ribeiro | Walfredo Neto Supervisão de Guardas de Acervo Diego da Silva | Emile Ribeiro | Luiz Henrique Oliveira Guardas de Acervo Derilene Pinho | Diogo Vasconcelos | Fábio Messias | Gilson Assis | Jackson Queiroz | José Mario de Jesus | Luiz Augusto Silva | Paulo Victor Machado | Robson José de Jesus | Sílvio Sérgio Silva | Tamires Carvalho Núcleo de Arte E Educação

Coordenação Roseli Amado Produção do Educativo Nara Pino Assistente de Produção Gil Cleber Moreira Assistentes Eliane Silveira Garcia | Leila Regina dos Santos | Margareth Abreu Estagiária Tássia Mirela Correia Gomes Supervisão de Ações Sociais Adriana Araújo Supervisão das Oficinas Lica Moniz de Aragão Produção Oficinas Eduardo Santana Assistentes Oficinas Ana Cláudia Muniz | Antonio Bento | Antonio Cruz | José da Hora | Raimundo Bento | Sebastião Ferreira | Valter Lopes Costa Professores Barbara Suzarte | Maria Betânia Vargas | Evandro Sybine | Florival Oliveira | Hilda Salomão | Renato Fonseca | Marlice Almeida Supervisão Mediação Cultural Janaína Silva Mediadores Culturais Daniel Almeida Costa | Ednaldo Gonçalves Junior | Juan Noreña | Luciana Pinheiro | Maju Fiso | Roseli Costa Rocha Biblioteca Vera Bezerra

GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA

Jaques Wagner SECRETARIA DE CULTURA DO ESTADO DA BAHIA

Albino Rubim INSTITUTO DO PATRIMÔNIO ARTÍSTICO E CULTURAL DA BAHIA – IPAC

Frederico Mendonça

Núcleo de PRODUÇÃO E PROJETOS

DIRETORIA DE MUSEUS – DIMUS

Coordenação Carolina Câmara Desenvolvimento de Projetos Cristiane Delecrode | Carolina Almeida Produção Executiva Marcela da Costa Produtora Cultural Clara Trigo Produção Carmen Palumbo | Noemi Fonseca | Paulo Tosta | Wilkens de Santos

Maria Célia Teixeira Moura Santos

Núcleo de Comunicação

Coordenação Thiago Falcão | Ana Rodrigues Planejamento de Mídias Online Allysson Viana Assistente de Design Angelo Serravalle Assistente Fábio Vasquez Estagiário de Comunicação Luiz Oliveira Estagiário de Design Gustavo Pontas Núcleo de Montagem

Coordenação Daiane Oliveira Produção de Montagem Lia Cunha Montadores Agnaldo Santos | Jairo Morais | Marlon Santana Marcenaria Marcos Antônio da Silva | José Humberto da Silva

PRODUÇÃO

Núcleo Administrativo

Coordenação Dércio Santana Moreira Recepção Antonieta Pontes Secretárias Cristiane Moreira | Sandra Cristina Moura | Valdete Moreira Silva Loja Aldemiro Brandão | Nadiene Lopes Assistentes Administrativos Alexsandro Muniz | Carlos Costa | Edmundo Galdino | Fernando Nascimento Lopes | Júlio Cesar Santos Almoxarifado Antônio Mascarenhas | Jocimar Lopes Supervisores de Manutenção Ramon Maciel | Sergio Sena Pereira Pintores Antonio Jorge Ferreira | Ademir Ferreira dos Santos | Cid Eduardo Ferreira Eletricistas Jorge Bispo dos Santos | José de Assis Alecrim Jardineiro Claudio Pinheiro de Almeida Pedreiros Francisco Vitório | José Inácio Santos Copa Ângela Maria Pereira Limpeza Antonio Lourenço de Jesus | Emanuel Rubens Oliveira | Isidro da Silva Cruz | Jean Lobo dos Santos | Jorge Luiz Mendes | Jussara Reis de Souza | Raimundo José | Reinaldo Quirino | Sueli Conceição dos Santos | Vera Lúcia Ferreira

APOIO

REALIZAÇÃO



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