segunda pessoa set-out-nov 2013

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distribuição gratuita | venda proibida

ano 3 | número 2 | set-out-nov 2013


Rodolfo Athayde, Barcelona, 1984

RODOLFO ATHAYDE O artista plástico, fotógrafo, videomaker e médico, Rodolfo Athayde, responsável pela fotografia que ilustra a capa (e outras páginas nesta edição) da Segunda Pessoa, nasceu em João Pessoa-PB (1952), e, enquanto cursava seu doutorado em Angiologia, em Barcelona, no início dos anos 1980, passou a se interessar por artes plásticas, momento que começou a frequentar aulas com os artistas Père Cara e César Lopez Ozornio. Ao voltar ao Brasil, em 1984, rendeu-se definitivamente à atividade artística dividindo seu tempo entre o ateliê, o consultório e as aulas na Universidade Federal da Paraíba (no curso de Medicina). Um dos principais representantes nordestinos da Geração 80, participou dos principais salões de arte do país, entre os anos 1980-90, quando abocanhou mais de dez prêmios (na categoria Pintura), a passou ter obras em acervos de museus como o Museu de Arte de Belo Horizonte, Museu de Arte Contemporânea do Paraná, Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro), e Museu de Arte Moderna da Bahia. Também, foi convidado para workshops (Berlin-in-São Paulo, MAC/SP e Funesc/João Pessoa) e realizou exposições no exterior (Staatliche Kunsthalle Berlin, Alemanha, 1988; Tour du Roi René, Marselha, França, 1992; Cumplicidades, Tondela, Portugal, 1994; Arte Contemporânea do Nordeste, Liberty Street Gallery, Nova York, EUA, 1996).

Além disso, nos poucos intervalos de sua atividade médica, produziu imensos murais em cerâmica, porcelanato e pintura para o Hospital Unimed João Pessoa, e para as sedes da Unimed Paraíba e do Conselho Regional de Medicina. Sem dúvida, estas são obras de referência no ainda hoje acanhado acervo de arte pública de João Pessoa. Em 2001, com patrocínio da Energisa Paraíba, via Ministério da Cultura (Lei Rouanet), lançou o livro 30x40 - Artistas mascarados com fotografias de 34 artistas plásticos paraibanos que, inusitado, todos aparecem sob máscaras. Em 2010, lançou o projeto Artistas Xifóides, um conjunto de vídeosdocumentários sobre artistas paraibanos, com o patrocínio do Programa Banco do Nordeste de Cultura. Recentemente, em 2012, realizou a mostra de fotografia, Se oriente, na Estação das Artes, João Pessoa, com 25 imagens (174x115cm), capturadas em suas viagens pela Turquia e Emirados Árabes. “Eu gosto do outro. Da possibilidade de olhar o outro, tão distante e tão diferente de nós, e encontrar semelhanças. É um discurso aberto, onde há várias interpretações da mesma imagem”, contou Rodolfo. www.rodolfoathayde.com


editorial Há naturalmente um ar de surpresa em muitas das pessoas que folheiam a revista Segunda Pessoa pela primeira vez. “Que projeto gráfico interessante. Tão simples!“, dizem uns. “Que bom que agora temos um veículo para conhecer melhor nossos artistas, nossa arte.“, dizem outros. Mas, a afirmação mais comum é: “Que legal. Espero que tenha vida longa...“. De fato. Talvez seja isso ‒ a falta de continuidade ‒ o maior gargalo que há na publicação de periódicos (em todas as áreas) no país, principalmente se não for uma revista acadêmica, produzida pelas/nas universidades. Mais uma vez, graças ao Edital Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Funarte/ Ministério da Cultura ‒ que contemplou a Segunda Pessoa pelos próximos dois anos ‒, poderemos continuar a causar surpresa às tantas pessoas, artistas, professores e estudantes. A ideia é atingir o maior número de leitores, atrair novos colaboradores, discutir/difundir suas pesquisas, falar da produção de nossa arte contemporânea, do Nordeste e de todas as regiões. E também abrirmos o leque a outros segmentos artísticos proporcionando que, além das artes visuais, possamos contemplar a moda, o design, a arquitetura, o artesanato... Índice Nesta edição, falamos de “passado” ao resgatar uma obra, o painel Tropicália, do artista Chico Pereira, realizado em 1969 como um lampejo de pioneirismo do Grafite e do Pop. E do “presente“ há dois artigos que comentam a recente produção de arte contemporânea nordestina: a Mostra Nordeste de Artes Visuais e a Arte Visual Periférica na Paraíba, por Raul Córdula e Valquíria Farias.

Mostra Nordeste de Artes Visuais por Raul Córdula 4 A fotografia autoral na Paraíba contemporânea por Paulo Rossi 10 Fotografia de moda e cidade como expressões de cultura, por Agda Aquino 14 Arte contemporânea na Paraíba: visualidades periféricas, por Valquíria Farias 19 O painel PopTropicalista de Chico Pereira por Dyógenes Chaves 21 A linguagem e a transgressão da veste por Almandrade 28

Dois outros textos ‒ de Agda Aquino e Almandrade ‒ abordam o hibridismo entre fotografia-moda e artes visuais-moda, com direito também a refletir sobre a fotografia autoral na Paraíba (caso semelhante a outros Estados do país?), em um texto do paulistaibano, o fotógrafo e professor Paulo Rossi. Boa leitura e visite nosso site: www.segundapessoa.com.br.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010

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Mostra Nordeste de Artes Visuais

Raul Córdula rcordula@hotmail.com

tecnologia se encontravam mais ou menos na atualidade, mas a arte estava na Idade Média. Para o seminário foram convidados Antonio Dias e Paulo Sérgio Duarte, vindos da Europa, e a equipe local formada por Francisco Pereira da Silva Júnior, Silvino Espínola, Breno Mattos, e por mim. O resultado do seminário foi a criação do NAC que coordenei até 1984, e neste período produzimos em João Pessoa exposições de artistas como Tunga, Paulo Roberto Leal, Cildo Meireles, Anna Maria Maiolino, Miguel Rio Branco, Gustavo Moura, Rubens Gerchman, Vera Chaves Barcellos, entre outros.

Tocado pela excelência da produção de artes visuais na Paraíba, que espelha a arte contemporânea do Nordeste, o compositor e cantor Chico César, atualmente Secretário de Cultura do Estado da Paraíba, propôs à Representação do MinC e da Funarte para o Nordeste, a realização de um Panorama das Artes Visuais do Nordeste. Naldinho Freire atual representante da Funarte NE aceitou de cara o desafio, e para fazer a curadoria foi convidado o importante artista paraibano José Rufino. O panorama se realizou em forma de exposição que pretende ser uma síntese da arte e do pensamento da contemporaneidade artística tanto no sentido coetâneo, isto é, da produção de artistas que trabalham no mesmo tempo, quanto no sentido de atualidade que as vanguardas e as novas experiências com a linguagem abrangendo o espaço e a materialidade da arte, assumiram nas últimas cinco décadas.

É importante informar que desde o Império a Paraíba é terra de artistas, Pedro Américo e seu irmão Aurélio de Figueiredo afirmam isto, mas na modernidade também reconhecemos o brilho da obra do pintor, ilustrador e cenógrafo Tomás Santa Rosa ‒ o revolucionário cenógrafo da primeira versão de Vestido de Noiva, de Nélson Rodrigues.

Esta exposição itinerante, que estreou no Museu Murilo La Greca, em Recife, entre 11 de junho e 04 de agosto de 2013, pretende percorrer todas as capitais nordestinas.

No Recife, foi criado em 1997 o Instituto de Arte Contemporânea da Universidade Federal de Pernambuco ‒ IAC. Anteciparam-se à UFPE o Museu de Arte Aloísio Magalhães ‒ MAMAM quando da atuação de seu diretor, o curador carioca Marcos Lontra, e dos coletivos de artistas que nasceram na década de 1980, como a Quarta Zona de Arte, o Carasparanabuco e o Grupo Camelo, para citar apenas os pioneiros.

# Costuma-se “datar” a arte contemporânea a partir da Pop Art, quando os cânones estéticos do sistema da arte inaugurado no Renascimento exauriram-se, apartaram-se de suas capacidades inventivas. A arte contemporânea, portanto, segundo os teóricos mais puros, seria a atividade artística carregada do tesouro linguístico adquirido nos cinco séculos posteriores ao Renascimento, período que entrou em sua reta final com a revolução industrial, e culminou na pós-modernidade com a Pop Art. Com a globalização a arte contemporânea vive em plenitude ‒ hoje se diz que a grande arte pé a arte internacional ‒ quando adquire suporte teórico, crítico e sociológico para atingir a grande massa. O Nordeste brasileiro não foi exceção, a arte contemporânea adaptou-se ao ambiente artístico regional através da atuação de artistas e instituições como em todos os lugares. A primeira organização a caucionar o advento da arte contemporânea no Nordeste foi o Núcleo de Arte Contemporânea da Universidade Federal da Paraíba ‒ NAC, fundado em 1978 a partir do resultado de um seminário organizado pela UFPB em Campina Grande a pedido do Reitor Lynaldo Cavalcanti que expressou a ideia de que, a Universidade paraibana, o ensino e a pesquisa de ciência e

Nos anos de 1990 a Fundação Joaquim Nabuco, por meio de sua Superintendência de Cultura administrada por Silvana Meirelles, dirigiu a atividade das artes desenvolvidas nas visuais para a arte contemporânea, e esta atitude foi responsável pelo surgimento de curadores como Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo, relacionados com a Fundaj e o MAMAM, e realizando uma série de seminários sobre o tema que contou com a assistência dos artistas contemporâneos consagrados hoje no Recife.

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Voltando à década de 1980, o trabalho desenvolvido no NAC/ UFPB teve eco em Natal RN, com a realização do seminário “Semiótica e Arte” realizada na UFRN onde a equipe do NAC/ UFPB participou ativamente ao lado de convidados como Décio Pignatari, Mirian Schneiderman, Maria Lúcia Santaella Braga, o arquiteto paulista Ari Rocha e os artistas de Natal ligados ao Poema Processo, Jota Medeiros, Falves Silva, Anchieta Fernandes e Moacir Cirne.


Obra de Ulisses Lociks, 2008

Superintendência de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, chegando a coordenar o setor das artes visuais. É importante lembrar que Maceió é uma cidade que, a exemplo de João Pessoa, tornou-se um polo de arte contemporânea. Desde a modernidade que Pierre Chalita fomentou a partir dos anos de 1960, que hoje sua viúva, a pintora e crítica de arte Solange Chalita mantem como acervo e memorial, passando o surgimento de uma geração pós-moderna da qual quero citar Maria Amélia Vieira, Dalton Costa e Rogério Gomes, e na atualidade artistas como Delson Uchôa e Ulisses Lociks, que participa da Mostra.

Além disso, no Nordeste, o NAC realizou exposições das coleções de arte postal de Daniel Santiago e Paulo Bruscky. É visível o desempenho dos artistas dos estados onde existiu a ação pública no setor das artes visuais, mas observamos que essas instituições ‒ NAC, MAMAM, MAMBahia, Dragão do Mar etc. ‒ nasceram, e de alguma forma são continuidade de atuações de grupos de artistas que independentemente provocaram a atenção dos poderes públicos e, sendo atendidos, protagonizaram a evolução que se percebe hoje. Com esta síntese pode-se ter uma ideia da pequena história da arte contemporânea no Nordeste brasileiro através dos artistas selecionados pelo curador José Rufino, ele mesmo testemunho do que aconteceu na Paraíba da década de 80.

Quando Jeanine atuou na Fundação Joaquim Nabuco ela assistiu à implantação de um setor curatorial de excelência, com a participação dos curadores Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo. Mas a posição do Recife como polo de artes visuais vem de muito antes, vem de Cícero Dias, Vicente do Rêgo Monteiro, Lula Cardoso Ayres, Francisco Brennand e João Câmara. Vicente participou da Semana de Arte Moderna de 1922; Cícero é autor de uma obra seminal da modernidade brasileira, o desenho “Eu Vi o Mundo, Ele começava no Recife”; Lula pronunciou uma arte de base regionalista, quando de resto Vicente, Cícero e Brennand o fizeram eventualmente, mas em Lula isto extrapola a mera função e leva a excelência a tendência pernambucana à arte do mural; Brennand, pintor, escultor e muralista de grande porte não só na dimensão da obra mas principalmente na sua universalidade, marca uma posição singularíssima na arte brasileira; João Câmara, por sua vez, nas décadas de 1970/80 coloca em discussão nossa realidade política através de obras como “Cenas da Vida Brasileira”; finalmente temos a obra de Tereza Costa Rêgo que nas últimas três décadas tornou-se também muralista, passando a comentar de forma poética nossa história política.

Devido à escassez do tempo e à limitação do espaço Rufino precisou ser econômico, quase espartano, tendo de selecionar apenas dois artistas de cada Estado. Em situação ideal uma tarefa como esta seria mais abrangente em sua constituição, pois o acontecimento da arte contemporânea no Nordeste é fato consumado. Adotando um partido curatorial de coerência e sincronia entre as tendências regionais ‒ não regionalistas ‒ Rufino traçou esta pequena, porém importante, Mostra Nordeste de Artes Visuais.

# Tomemos como ponto de partida a instalação de Jeanine Toledo, uma sequência de fotografias de diversas imagens e também de uma mão que gesticula ‒ uma foto, um gesto ‒ de onde sai um fio de seda vermelha que interliga continuamente as mãos às imagens, levando o leitor a pensar o movimento fragmentado percorrendo o caminho que o fio traça. Temos aí uma narrativa através de imagens que nos leva a meditar sobre a comunicação no seu registro primário, o toque físico da mão, mas nos leva também ao labirinto e o fio de Ariadne que além de salvar o herói o reintegra ao convívio humano. Jeanine está na exposição como artista alagoana que é, mas sua carreira se consolidou na sua convivência com os artistas do Recife no período em que ela trabalhou na

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Esta bagagem não pode ser ignorada. Por exemplo, um dos pontos máximos desta mostra é a instalação “Diário de Bandeja 1/4” da pernambucana Juliana Notari que tem a dimensão espacial muralista e a dimensão estética grandiosa. A instalação constitui-se de um aglomerado de bandejas de diversas dimensões, pintadas de negro com textos escritos com lápis branco, colocadas na parede ao gosto das porcelanas usadas nos lares tradicionais. A narrativa imagística alia-se ao texto, e o contexto muda. É uma obra que já foi apresentada anteriormente no Recife


na Galeria Amparo 60, e em São Paulo no SESC Pompeia. O amplo trabalho desta notável artista foi recentemente editado no livro “Dez Dedos ‒ Juliana Notari”, organizado por ela e pela curadora pernambucana Clarissa Diniz (atualmente Diretora de Conteúdo do Museu de Arte do Rio de Janeiro ‒ MAR). O livro é o registro de uma década de trabalho onde Clarissa enfoca o conteúdo intimista de quem se entrega na obra à autoanálise. Escreve Clarissa: “Ao ofertar suas intimidades em bandejas de luto, Juliana nos impulsiona a dela servirmo-nos e, então, antropofagicamente, passamos a possuir suas mazelas. Dessa forma, sua série Diário de Bandeja apresenta-se ‒ apesar de facilmente adaptável aos enquadramentos autobiográficos e relacionais da produção de arte contemporânea ‒ como mais um ato sutilmente perverso de sua obra.“

Obra de Iris Helena, 2011

Seguindo o mote da acumulação e da narrativa, vemos a surpreendente obra de Iris Helena, jovem artista de João Pessoa. Trata-se de uma fotografia de uma cena de rua de sua cidade fragmentada em 588 quadrados, e remontados como num quebra-cabeças. Um trabalho que demonstra o bom uso dos meios eletrônicos, mas mesmo assim de difícil elaboração, missão que ela enfrenta exemplarmente. O resultado é uma surpreendente imagem, uma fotografia ampliada acima dos seus limites onde a retícula resultante disso parece ser a deformação dos pixels, mas imediatamente se percebe a riqueza imagética que os detalhes nos apresentam. Dominando a linguagem virtual ela afirma o instrumento digital com rara competência. Ainda sobre acúmulos temos a instalação da artista baiana Ieda Oliveira. O interesse desta obra está no ajuntamento de um mesmo objeto de uso comum, cintos femininos, montados um ao lado do outro como que numa mobília de loja tomando todo o espaço da parede. Fez-me pensar na obra de José Patrício que acumula, porém em composições harmônicas, milhares de objetos como pedra de dominós, dados ou botões em quadros e instalações de grande interesse, mas vem-me á cabeça, mais pela cumulação e menos pelo significado, a obra de Jac Leirner.

Obra de Marcelo Ghandi, 2011

Ieda também reflete a história recente de Salvador que tem como referência moderna a obra de Mário Cravo Filho e Neto, de Rubem Valentim e de Sante Scaldaferri, por exemplo. Mas os artistas de Salvador mergulharam na contemporaneidade nos anos de 1990, com a criação do Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas e da Bienal do Recôncavo que se tornaram instrumentos de atualização estética para os artistas locais. Consequência disto passouse a se ver nas obras de Marepe, Caetano Dias, Paulo Pereira, Vauluizo Bezerra, entre tantos.

Obra de Bruno Vilela, 2013

Na mesma vertente está a obra de Ulisses Lociks, também de Alagoas: uma malha de traços pretos de grande dimensão traçada a bico de pincel em suporte colado na parede. Além do emaranhado gráfico dos traços, que seguem direções diferentes, o conjunto das folhas coladas forma também um desenho externo que se configura independentemente do conteúdo gráfico. A obra de Ulisses nos encaminha para outro caminho seguido aqui: a presença, e porque não dizer a permanência, do desenho.

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Fotografia de Sofia Bauchwitz, 2013

Esmeraldo e o desenhista que mudou o desenho brasileiro, Aldemir Martins. Hoje a obra de José Leonilson e Eduardo Frota é mostrada nacionalmente em grandes eventos da arte contemporânea.

É curioso, pois o desenho, assim como a pintura, são as mais básicas, para não dizer tradicionais, das práticas artísticas visuais, porém permanecem na obra de artistas da atualidade, o que nos faz pensar que a arte, como é vista pelos teóricos que propõem o rompimento da arte contemporânea com a arte tradicionalmente realizada, especialmente no que se refere ao conceito de desmaterialização, de certa forma permanece.

O importante artista maranhense Thiago Martins de Melo, que fez parte da exposição Zona Tórrida apresentada no Santander Cultural do Recife com curadoria de Paulo Herkenhoff e Clarissa Diniz. O texto curatorial o coloca ao lado de grandes pintores da geração de 1960. A pintura de Martins de Melo, como a obra de Antonio Dias e Tunga, é campo da fantasmática. Incorpora a carnalidade como o corpo sexualizado do pintor transferido à pintura. Com esta colocação de dois importantes curadores chega-se a pensar como em São Luiz, cidade tradicional fora dos circuitos da arte brasileira, com pouca citação na nossa pequena história da arte, como surge um pintor desta qualidade!

Além da grafitagem de Ulisses, quatro outros artistas mostram desenhos, ou desenhos relacionados à pintura: Yuri Firmeza e Waléria Américo, do Ceará, Marcelo Gandhi, do Rio Grande do Norte e Bruno Vilela, do Recife. Diferente de Ulisses e de Bruno Vilela, artista muito atuante no Recife que apresenta dois grandes retratos pintados sobre papel, um com tinta verde e outro magenta, os outros apresentam pequenos desenhos, mesmo que, como é o caso de Gandhi, alguns desenhos estejam aglomerados em telas de grande formato. A obra de Yuri Firmeza é uma sequência montada em molduras diferentes onde se vê uma casinha que se derrete de desenho em desenho formando uma narrativa, de novo, que nos leva aos comics que parecem ser uma das fontes do desenhista atual, ao lado do grafite de rua.

Dois artistas apresentam obras de fotografia: Sofia Porto Bauchwitz, de Natal, e Christus Nóbrega, de João Pessoa. Sofia fotografou relações eróticas através de detalhes que somente sugerem o ato. Já Christus tem algo mais formal que busca a invenção, embora com algum atraso: retratos montados em cartão e emoldurados com vidro, onde as fotografias são vazadas por recortes de círculos e outras formas geométricas, e se superpõem a outras que aparecem através do vazado. Um truque estético que trabalha a noção de espaço, profundidade e bordeja o objeto.

Em Natal, embora o meio artístico seja menor do que, por exemplo, João Pessoa, destaca-se um grupo que nos anos de 1980 fizeram uma parte da vanguarda possível, os já citados Jota Medeiros, Dailor Varela, Falves Silva, Anchieta Fernandes e Moacir Cirne. Marcelo Gandhi aglomerou numa grande tela vários desenhos que se assemelham aos pequenos desenhos feitos a traços soltos de nanquim que dão sequência na parede. Na tela também se encontram fragmentos de grafites, de sua autoria ou não, espalhados aleatoriamente, sem nenhuma preocupação composicional. Os cearenses Yuri Firmeza e Waléria Américo trazem mini desenhos. Yuri conta a história de uma casinha vermelha que se derrete de quadro em quadro ao jeito das narrativas das HQ. Waléria mostra um vídeo e desenhos pequeninos. Na Mostra, este desvio para o pequeno, o mínimo ‒ não minimal art ‒ não se limita ao desenho, o baiano Gaio Matos traz um conjunto de três fotografias de maquetes das mínimas casinhas dos conjuntos residenciais da população pobre pousadas na palma de uma mão. Fortaleza é uma cidade pioneira da modernidade na arte nordestina, nos anos de 1950 lá estavam o pintor abstracionista informal Antonio Bandeira, o abstracionista geométrico Sérvulo

Temos dois trabalhos do Piauí: uma instalação de autoria de um grupo teatral composto por Jacob Alves, Bebel Frota e César Costa, e as impressões de Edilson Pacheco. O grupo de teatro utiliza as artes visuais nas performances em cena. É útil recordar que os artistas nordestinos introjetaram tardiamente a instalação como categoria de arte, e a performance, hoje relacionada com o happening dos anos 60, muitas vezes é confundida com a arte cênica. A instalação apresentada é composta por um manequim vestido com trajes do dia-a-dia, com a cabeça coberta e uma câmera que filma quem o observa a cena.

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Já obra de Edilson Pacheco é um conjunto de fotografias de fezes humanas trabalhadas em um programa tipo photoshop e impressas em papéis diferentes. Não há como não me referir ao trabalho de Piero Manzoni realizado há meio século (1961) intitulado Merde dʼartista (Merda de


Pela integração do artista nordestino¹ Depoimento de Raul Córdula a Sérgio de Castro Pinto Jornal A União, domingo, 06 de setembro de 1981, João Pessoa-PB

Mais de 200 artistas plásticos nordestinos ‒ da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Alagoas e Bahia ‒ estiveram reunidos em Salvador, no 1º Encontro Nordestino de Artistas Plásticos, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia através do Museu de Arte Moderna da Bahia (Museu do Unhão). O encontro teve também o apoio das Delegacias Regionais do MEC e da Funarte. A ideia do Encontro foi do artista Chico Liberato, Diretor do Museu do Unhão, quando de sua visita à Funarte para articular a recepção das obras dos artistas nordestinos que participarão do IV Salão Nacional de Artes Plásticas. Este ano a seleção deste Salão está sendo feita, além de no Rio de Janeiro, em Salvador, Brasília, São Luís e Florianópolis. Os artistas, reunidos, elegeram o artista plástico baiano, residente em Brasília, Rubem Valentim, presidente de honra do encontro; Raul Córdula, artista paraibano Coordenador do NAC, vice-presidente; Fernando Guerra, da Associação de Artistas Plásticos de Pernambuco, secretário, e Romélio Aquino, professor de arte e presidente da ADUF/BA, relator. Os grupos de trabalhos foram formados sobre três temas: A questão da circulação das artes plásticas, da organização do artista plástico e do ensino de arte no Nordeste. Estes temas foram discutidos durante dois dias de trabalho e, na última reunião plenária, foram lidos os documentos finais de cada grupo e, após as emendas e a aprovação, seguiram-se as moções e o encerramento com um discurso de Rubem Valentim.

artista), onde ele embalou seus próprios excrementos em 90 latas numeradas e etiquetadas. Toda série foi adquirida por colecionadores da época, pois se tratava de manifestação da vanguarda italiana. De Aracaju temos apenas a participação de Elias Santos com uma pequena instalação composta de objetos como caixas compostas no chão onde se encontram cruzes judiciosamente compostas. Aracaju é uma cidade onde vários artistas se reúnem sob a liderança de Antonio Cruz e a égide da ONG Sociedade Semear, mesmo que vigore a tradição da pintura de Jenner Augusto que esteve alinhado aos artistas que orbitavam Jorge Amado. É bom lembrar, embora isto não represente um núcleo de influência para os novos artistas, que Artur Bispo do Rosário é sergipano. As experiências recentes da arte contemporânea sergipana nos leva, além de Elias Santos, a jovens e atuantes artistas como Alan Adi, Ana Carolina, Bené Santana, Fábio Sampaio, Jamson Madureira, João Valdênio e Marcos Vieira, todos eles alinhados com a linguagem de agora.

Qual a importância deste Primeiro Encontro de Artistas Plásticos Nordestinos para o Nordeste e a Paraíba? Antes quero dizer que este parece ser realmente o primeiro encontro de artistas plásticos do Nordeste. A ocasião da montagem da exposição dos artistas concorrentes ao IV Salão Nacional de Artes Plásticas não poderia ser melhor porque isto propiciou uma mostra significativa da nossa produção recente montada no Museu de Arte Moderna da Bahia, local do Encontro para o júri de seleção do deste Salão. Num gesto inteligente de Francisco Liberato, atual Diretor do MAM-Bahia, a mostra foi entregue ao público no dia da abertura do Encontro. Esta atitude fez com que o público baiano tivesse contato com a produção nordestina através de uma mostra de alto nível, e os artistas presentes pudessem ter uma visão panorâmica de nossa expressão atual que serviu como subsídio para os debates desenvolvidos lá. Outro fato importante foi a presença de mais de duzentos artistas de vários Estados e de tendências diversas. A ausência de Maranhão e do Piauí justifica-se pelo fato de haver outra movimentação em São Luiz, outro núcleo de recepção das obras para seleção deste Salão Nacional (a seleção ocorre este ano no Rio, em Brasília, Salvador, Florianópolis e São Luiz). Importantíssima foi a presença do artista plástico baiano Rubem Valentim, que reside atualmente em Brasília, e que é uma das vozes mais atuantes na formação de uma arte brasileira coerente com nossas raízes culturais.

Eis o elenco de artistas visuais deste panorama. Além dos excelentes destaques aqui comentados, ele fornece a possibilidade de intercâmbio entre os artistas e seus públicos em todas as capitais do Nordeste. Trata-se de um trabalho que pode crescer muito com o passar do tempo, anseio de artistas e ativistas da causa das artes visuais como fator de integração da cultura “contemporânea” no Nordeste.

Raul Córdula é artista visual e crítico de arte (ABCA/AICA). Vicepresidente para o Nordeste da Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA. Criador e dirigente de instituições culturais: NAC/UFPB (João Pessoa); Museu de Arte Assis Chateaubriand-MAAC (Campina Grande-PB); Casa da Cultura (Recife); Fundação Espaço Cultural da Paraíba-Funesc (João Pessoa); Oficina Guaianases de Gravura (Olinda). Foi representante do Brasil na Conferência Mundial de Artesanato, México. Representa no Brasil a Association Culturelle Le Hors-Là, de Marselha (França). Publicou os livros Anos 60 (Funarte, UFPB), Memórias do Olhar (edições Linha DʼÁgua), Fragmentos (edições Funesc) e Utopia do Olhar (Funcultura, Fundarpe, Governo de Pernambuco).

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é própria dos artistas, então imaginemos o Nordeste como suas profundas diferenças socio-econômicas e etnográficas, sua produção artística diversificada, tudo isso para se manifestar e informar dentro deste circuito desejado pelos artistas.

E o resultado de tudo isso? Primeiramente os temas discutidos nos grupos de trabalhos ‒ a circulação das artes visuais no Nordeste, a organização dos artistas plásticos e o ensino de arte na região ‒ foram esclarecedoras pois estes temas nos levaram a discutir o relacionamento entre a produção artística e as instituições culturais. Ora, o Salão Nacional é uma instituição cultural que merece todo respeito, mas este respeito está na relação direta ao respeito que a instituição tem pelo artista, obviamente. Convivemos com a incômoda realidade da hegemonia da informação gerada no eixo Rio-São Paulo. Mas o que não pode deixar de ser levado em conta é a importância do Nordeste como região geradora, em quantidade e qualidade, de valores fundamentais para a formação de nossa cultura. Além do mais já é patente a capacidade que temos de administrar nossos bens culturais com políticas próprias que não somente tendem a preservar o olhar tradicional mas também a propor novas visualidades. É importante notar que, apesar de administrações exógenas, nossa cultura resiste. Então eu creio que a melhor proposta gerada neste encontro foi a criação de um Circuito Nordestino de Artes Plásticas que já está sendo projetado e pretende atingir o artista, as instituições públicas e privadas e também os espaços alternativos como as ruas, os muros, os locais não tradicionalmente ocupados pela arte. Fiquei muito honrado, mas também muito preocupado, quando fui eleito pelo plenário na última assembleia geral do encontro, para coordenar este circuito. Tenho disposição para isso, mas nada poderei fazer sem o apoio dos artistas e das instituições. Começo a projetar o Circuito tomando como base as novas vanguardas como a arte correio e a grafitagem dos muros, por exemplo. É preciso mostrar a nossa arte em nossa terra, isto não é fácil porque a produção de qualquer exposição é cara. Além disso, não temos curadores de arte e monitores de exposições suficientes para empreender esta tarefa. O NAC, por exemplo, faz um trabalho de monitoria competente, mas só atinge pequena parcela do alunado de 1º e 2º graus de João Pessoa, imagine-se o Nordeste como um todo, será preciso muito, muito mais. Acredito que somente com um trabalho de aproximação da juventude, do estudante, com a arte, se poderá ter uma verdadeira mediação da produção cultural e a formação do público, coisa que, com muito esforço e competência, levará pelo menos uma geração. Mas a utopia

O que mais de importante aconteceu no Encontro? Antes de tudo a constatação de que temos capacidade de nos orientar. As discussões dos nossos problemas mostraram que eles são comuns, partem de situações impostas, e que estamos acostumados a conviver com elas, mas já é hora de nos libertar. Serviu para refletir sobre a situação de colonizados pelo sul do País, sobre a situação do mercado nem sempre sadio, sobre a convivência com as instituições culturais que têm o papel de mediar nossa produção com o povo, mas que, em alguns casos, são dirigidas pela ideologia do mercado promovendo produção do que parece com a arte em detrimento do que é verdadeiramente arte.

Nota do editor 1 O autor sugeriu incluir este depoimento, publicado em jornal da Paraíba (1981), em seguida ao seu artigo “para se mostrar que lutamos por isto há mais de trinta anos, esta Mostra Nordeste de Artes Visuais pode ser uma retomada desta luta, mesmo que vivamos no tempo da ʻestética da indiferençaʼ“, afirma Raul Córdula.

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A fotografia autoral na Paraíba contemporânea

Paulo Rossi pjrossi@gmail.com

O presente artigo propõe uma breve reflexão sobre o atual momento vivido pela fotografia autoral na Paraíba. Há dois movimentos possíveis de notar, um no âmbito da mobilização e das ações de alguns de seus agentes, e outro no plano da produção das obras no qual se verificam novas posturas dos autores diante das possibilidades de experimentação de diversas formas estéticas. A respeito do primeiro ponto, o recorte temporal é do ano de 2010 em diante, período em que ocorreu uma série de atividades em prol da fotografia autoral no Estado. Há pouco material publicado disponível para se fazer uma análise aprofundada do período proposto, o que se tem de mais consistente é o texto de Bertrand Lira “Fiando o tempo com a luz”, publicado recentemente no Fotografia Paraibana Revista (2013). Sobre o segundo tipo de movimento, proponho uma reflexão a partir da experiência do projeto Novíssimos: talentos da fotografia autoral na Paraíba, coordenado por mim.

financiado pelo Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, da Funarte; e o projeto Novíssimos: talentos da fotografia autoral na Paraíba (2013), de minha responsabilidade, patrocinado pelo FIC - Fundo de Incentivo à Cultura “Augusto dos Anjos”, da Secretaria de Cultura do Estado da Paraíba. Olhando por este viés, a fotografia autoral na Paraíba contemporânea está, sim, em movimento. Um movimento² de mobilização dos agentes da fotografia que vem buscando seu espaço nas Artes Visuais com o objetivo de fomentar a prática e o pensamento a respeito da fotografia como forma de expressão pessoal. Por outro lado, apesar dos recentes esforços, as ações empreendidas continuam concentradas na capital, e têm reduzido alcance de público geral e mesmo especializado. Há pouco espaço e pouco estímulo para o surgimento de novos fotógrafos que pensam a fotografia como expressão artística. O público que aprecia a fotografia como arte é muito reduzido. No entanto, a movimentação em prol da fotografia não é uma novidade na Paraíba, um bom exemplo disso foi a experiência dos Traficantes de Imagem, que, em 1994 organizou a I Semana Paraibana de Fotografia. Segundo Bertrand Lira, este evento

Fotografia paraibana: atuante, mas dispersa À exceção de alguns centros nacionais (exemplo das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Porto Alegre, Fortaleza, Brasília e mais recentemente Recife), nas demais regiões do Brasil a fotografia de autor ainda é pouco apreciada pelo público em geral e pelas instituições locais responsáveis pela produção cultural. Porém esta situação vem sendo alterada paulatinamente com as políticas de fomento à cultura e com ações locais de iniciativa de indivíduos, grupos, instituições públicas e também privadas. Na Paraíba, a partir de 2010, a fotografia autoral vem cavando internamente seu espaço nas artes visuais com importantes atividades de fomento à prática e ao pensamento a respeito da fotografia de autor produzida no estado paraibano: o projeto Lambe-lambe da Agência Ensaio; os encontros Papo de Fotógrafo organizados pela parceria Agência Ensaio e Associação Paraibana de Arte e Cultura-APAC em 2010 [criada e extinta no mesmo ano]; as duas edições do Setembro Fotográfico (2011 e 2012) promovidas pela Fundação Cultural de João PessoaFunjope; o surgimento da Casa das Artes Visuais-CAV (2011), uma galeria e escola voltada para a fotografia que em um prazo de dois anos organizou importantes exposições fotográficas, e também promoveu mesasredondas¹ a respeito da fotografia; o relevante projeto Fotografia Paraibana Revista (2013), de Gustavo Moura,

foi um marco na tomada de consciência e no contato do público local com o mundo da fotografia brasileira e do próprio estado. Uma semente plantada e que só viria a brotar quase duas décadas depois no Setembro Fotográfico de 2011 e 2012 (LIRA, apud MOURA, 2013, p.74).

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Parece, assim, ter havido um hiato de quase duas décadas entre o frutífero movimento dos anos 90 e a movimentação que se nota a partir dos quatro últimos anos. É possível que este vácuo explique, ao menos em parte, a reduzidíssima expansão da fotografia autoral produzida na Paraíba nos quase 20 anos que se passaram, e seu isolamento dentro e fora do Estado: poucos fotógrafos radicados na Paraíba estão inseridos no cenário da arte fotográfica local, regional e nacional. Estes dois problemas, porém, tendem a ser em parte superados se mantida a frequencia com que os eventos em prol da fotografia autoral vem acontecendo, especialmente aqueles que propiciam espaços para a reflexão (mesa-redonda, palestras, oficinas) e difusão de obras fotográficas por meio de exposições e publicações de catálogos. O pontapé inicial para se superar o quadro de


Objeto geladeira, da obra Alucinose, em processo de ressignificação, de Luciana Urtiga. (Fotos: Luca Fiorin, 2013)

isolamento interno e externo da fotografia autoral paraibana foi dado pelas duas edições do Setembro Fotográfico: no âmbito local, suas atividades propiciaram o contato entre os fotógrafos e os demais interessados na arte fotográfica. No plano nacional, os dois eventos promoveram importantes momentos de troca com fotógrafos e curadores de outras regiões do país. No plano regional, a troca com alguns fotógrafos do Rio Grande do Norte presentes no evento, em particular Pablo Pinheiro³, engendrou não apenas um contato mais estreito entre fotógrafos paraibanos e potiguares, como também fez ver que a realidade da fotografia autoral em ambos os Estados é bastante similar. Assim como na Paraíba, agentes da fotografia potiguar também estão procurando dar conta de sua própria produção4.

formação acadêmica em cursos nas áreas de comunicação social, artes visuais e arquitetura, e três são formados em cursos livres de fotografia8. Dos seis selecionados, um é formado em cursos livres, e os outros cinco têm formação acadêmica. Alessandra Soares, por exemplo, autora do ensaio Desmedidas, é mestranda no Programa de Pósgraduação de Arquitetura e Urbanismo da UFPB, e realiza dentro do universo acadêmico pesquisas e projetos fotográficos que abordam temas relativos às cidades e culturas contemporâneas cujo foco é explorar imageticamente as práticas cotidianas. É inegável que o fomento à pesquisa, o contato com a história da arte, os estudos da imagem, o aprendizado técnico e os espaços de interlocução que tais cursos promovem, provocam e estimulam as nova gerações a produzir e, sobretudo, a experimentar diversas possibilidades técnicas e estéticas, a explorar uma tendência espiritual9 típica de nossa época: nos dias de hoje, na era da fotografia digital, das novas mídias e das ferramentas de edição e tratamento de imagem, não apenas ampliou-se significativamente o acesso ao aparato técnico e à quantidade de imagens produzidas, como também ampliaram-se as possibilidades de produção, de criação, de exibição e de interação entre artista e obra, obra e público. Um quadro que se aproxima do modo como Ronaldo Entler (2011) define a fotografia contemporânea:

Experimentando a liberdade de experimentar Simultaneamente a toda esta movimentação, outro tipo de movimento vem acontecendo na Paraíba: várias formas estilísticas tem se manifestado, ainda que timidamente, no quadro da fotografia autoral. A experiência do projeto Novíssimos5 me proporcionou uma visão mais ampla da produção da fotografia de autor no estado paraibano. Dos 123 inscritos6 no processo seletivo, vinte foram préselecionados para entrevistas presenciais e mostrar seus de portfólios. Destes, apenas seis7 foram selecionados para participar da exposição Novíssimos: talentos da fotografia autoral na Paraíba e ter suas obras publicadas num catálogo impresso. Cabe dizer que o número de selecionados poderia ter sido maior, no entanto, os limites financeiros do projeto só permitiam seis fotógrafos.

Tudo pode ser feito em termos de técnicas, de procedimentos, de linguagem. Apenas um dado é irrevogável: a consciência desse tempo presente, e de algumas de suas conquistas. Não é mais cabível mistificar o meio, desconhecer seu sentido cultural, seu modo de funcionamento. Uma fotografia pode voltar a ser documental, pode abordar a realidade e a memória, mas deve estar ciente da intervenção gerada pelo dispositivo. Entenda-se como dispositivo não apenas o aparelho, mas os comportamentos e os rituais que ele gera, as dinâmicas de seu mercado, as formas de diálogo com outras linguagens, seus meios de difusão, suas formas de recepção. Portanto, a fotografia contemporânea não é um tipo de imagem, mas uma postura que se pode ter diante de qualquer imagem. [grifo meu]

Embora conhecedor de sua diversidade, a produção local mostrou-se mais diversa do que eu poderia imaginar: uma produção surpreendente que vai do documental e da clássica fotografia de rua, a séries de retratos ensaísticos e à diversidade da fotografia experimental; do fotógrafo que se expressa sobre o mundo exterior, ao que abarca o universo interior; do que procura representar o outro, ao que procura representar o eu. Há dois aspectos a meu ver relevantes que ajudam a compreender esta diversidade. O primeiro diz respeito ao peso da formação de novos fotógrafos promovida por cursos livres de fotografia e especialmente pelos cursos universitários. Dos vinte pré-selecionados, onze têm

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O segundo aspecto que nos ajuda a compreender a diversidade da fotografia autoral produzida na Paraíba, que extraio da experiência do projeto Novíssimos, se baseia


Os selecionados para o Novíssimos ‒ Adriano Franco, Alessandra Soares, Dayse Euzébio, Everton David, Igor Suassuna e Luciana Urtiga ‒ são uma pequena, mas representativa mostra da potente diversidade da fotografia autoral produzida na Paraíba, que aos poucos abandona o estado latente no qual se encontra para configurar um novo panorama no quadro das artes visuais paraibana e, por que não, nacional.

nesta consciência do tempo presente e nesta nova postura diante da fotografia. Durante todo o tempo de preparação da exposição ‒ pouco mais de um mês ‒ curador e fotógrafos selecionados vivenciaram um processo criativo colaborativo no qual se experimentou a “liberdade de experimentar” (ENTLER, 2011). A imagem em si não poderia representar o limite da obra, dialogando com o passado ou com a era das novas tecnologias, era preciso focar um conjunto de elementos técnicos, estéticos, epistemológicos, conceituais que deriva de um potencial criativo e que portanto transcende a imagem dando a devida liberdade para o desenvolvimento processo criativo. A seguir relato dois casos que exemplificam bem esta experiência. Por favor, bata na porta!, de Dayse Euzébio, é um belíssimo ensaio de cunho documental cujas imagens foram tomadas em 2011 no interior de ocupação de um prédio abandonado na cidade de João Pessoa. A autora já possuía o ensaio pronto, mas durante o processo posto em marcha, trabalhamos sobre uma nova concepção do tema, tratando de transcender o conjunto de imagens. A proposta foi partir de uma das fotos ‒ precisamente a que apresenta um retrato do ocupante da casa e da disposição de seus objetos ‒ e dela extrair a concepção do sentido do “por favor, bata na porta!”. Ou seja, tratando-se ou não de uma ocupação, o que se vê é um lar provido de sua organização interna, como todo e qualquer lar. Esta concepção, somada aos diferentes tamanhos das fotos, da sua disposição nas paredes da galeria, da escolha das molduras, conforma a essência do ensaio de Dayse Euzébio, muito mais do que um conjunto de imagens sobre um tema qualquer. Outro caso bastante elucidativo foi a transformação do ensaio Alucinose, de Luciana Urtiga: um conjunto de fotomontagens ‒ que articulam autorretratos e outros objetos como a lua, a raiz de uma árvore etc. ‒ transformouse em uma instalação na qual foi incorporada uma geladeira velha, agora ressignificada. Ao longo do processo o objeto geladeira foi experimentado de várias formas, sua função e seu significado dentro da obra foram pensados e repensados muitas vezes, com o cuidado para que o ensaio fotográfico não ficasse em segundo plano: fotografias e objeto ressignificado tornam-se um novo objeto fotográfico capaz de provocar um tipo de interação com o espectador diferente do que se as fotografias estivessem expostas na parede. 12

Paulo Rossi é fotógrafo há mais de 20 anos. Formado em Sociologia e Política pela Escola de Sociologia e Política de SP, e em Estudos Sociais na Université Catholique de Lyon. É mestre em Sociologia pela USP cuja dissertação discutiu a vida e a obra do fotógrafo August Sander. Foi professor no curso de Bacharelado em Fotografia do SENAC-SP onde ministrou disciplinas técnicas e teóricas dentre as quais Sociologia, História da Fotografia na América Latina e Movimentos Estéticos da Fotografia. Notas 1 Além de atividades organizadas por sua própria iniciativa, a CAV realizou atividades em parceria com o poder público e com dois outros projetos financiados também pelo poder público. Em 2012 recebeu em sua sede algumas atividades do Setembro Fotográfico (organizado pela Funjope): uma mesa-redonda com o fotógrafo mineiro Pedro David, um workshop de caráter técnico ministrado por mim, uma palestra com o coletivo paulistano Cia de Foto, e a exposição do diretor de fotografia paraibano João Beltrão. Em 2013, na sua galeria, foi realizado o lançamento do Fotografia Paraibana Revista e, pelo mesmo projeto, a exposição “Além da bicicleta”, de Alberto Ferreira. Também em 2013 foi palco da exposição Novíssimos: talentos da fotografia autoral na Paraíba, e da mesa-redonda “A fotografia autoral na Paraíba contemporânea”. 2 Merece ser pontuado o assento da fotografia no Conselho Municipal de Política Cultural (CMPC) de João Pessoa, uma conquista que remonta à criação Fórum da Fotografia Paraibana em 2009 (http://forumdafotografiaparaibana.blogspot.com.br). Neste mesmo ano, o Fórum conseguiu ter uma atuação efetiva na mobilização de seus agentes, culminando com a participação de alguns deles na II Conferência Municipal de Cultura de João Pessoa. De 2010 em diante Fórum se desmobilizou, mas conseguiu em 2012 eleger um conselheiro e um suplente para a vaga no CMPC. No início de 2013 houve uma retomada de suas atividades, ainda que muito tímida e com reduzida participação, em conjunto com o Fórum de Artes Visuais. 3 Pablo Pinheiro é fotógrafo, membro do Coletivo Potiguar e do Foto RN - Fórum Permanente de Fotografia do Rio Grande do Norte. É representante do Nordeste do Fórum Nacional Setorial de Artes Visuais, e diretor regional da Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil ‒ RPCFB. 4 Em 2009 o Coletivo Potiguar realiza a exposição Coletivo Potiguar: fotografia contemporânea ‒ Imagens da Esquina do Brasil, com curadoria do fotógrafo Ricardo Junqueira, e publica um catálogo com aproximadamente 70 páginas. Foi um projeto de pesquisa e análise crítica sobre a produção fotográfica no Estado a partir do ano 2000. Em 2012 surge o FOTO RN (Fórum Permanente de Fotografia do Rio Grande do Norte), que no ano seguinte, patrocinado pelo Sebrae-RN, realizou no importante Foto Rio, na cidade do Rio de Janeiro, a exposição A transição: do tradicional ao contemporâneo ‒ produção fotográfica do Rio Grande do Norte. Este projeto, coordenado pelos fotógrafos Pablo Pinheiro e Sônia Figueiredo, e com curadoria de Erik van der Weijde, apresentou um panorama da produção fotográfica autoral potiguar e gerou um catálogo impresso. 5 Novíssimos foi um projeto de cunho artístico e cultural que teve por objetivo selecionar e apresentar seis novos talentos da fotografia autoral na Paraíba, e promover uma mesa-redonda,


Da série Por favor, bata na porta!, de Dayse Euzébio, 2011

Da série Memórias da loucura: um sonho quase surreal, de Everton David, 2013

Da série Desmedidas, de Alessandra Soares, 2013 Da série Chuva dourada, de Igor Suassuna, 2012-2013

Da série Alma da rua, de Adriano Franco, s.d.

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Fotografia de moda e cidade como expressões de cultura

Agda Aquino agdaaquino@gmail.com

aberta ao público, para discutir a produção da fotografia autoral na Paraíba contemporânea ‒ para esta última atividade foram convidados o fotógrafo documental Gustavo Moura e o artista multimídia Chico Dantas, que atua no campo da fotografia experimental. 6 Dentre os 123 inscritos, 23 eram do interior do Estado, cinco dos quais foram pré-selecionados para as entrevistas presenciais, um deles, Everton David, natural da cidade de Arara localizada no agreste paraibano, residente em Campina Grande, compôs o quadro dos selecionados finais. 7 Selecionados: Adriano Franco (ensaio Alma da rua); Alessandra Soares (ensaio Desmedidas); Dayse Euzébio (ensaio Por favor, bata na porta!); Everton David (ensaio Memórias da loucura: um sonho quase surreal); Igor Suassuna (ensaio Chuva dourada); Luciana Urtiga (ensaio Alucinose). 8 Desde 2009 a ofertas de cursos livres de fotografia em João Pessoa têm sido mais frequentes (Setor privado). Isso indica que a demanda por cursos dessa natureza, ainda que lentamente, está aumentando. Ou seja, parece estar crescendo o número de pessoas interessadas em estudar a fotografia na teoria e na prática. Instituições públicas que oferecem algum tipo de formação livre em fotografia: Centro Cultural Banco do Nordeste ‒ Sousa (cursos temporários); Centro Estadual de Arte-Cenated. Instituições privadas que oferecem algum tipo de formação livre em fotografia: Casa das Artes Visuais (oferece cursos de formação continuada em fotografia); Zarinha Centro de Cultura; Curso de Fotografia Cácio Murilo; Curso de Fotografia Rizemberg; Ricardo Peixoto/ Agência Ensaio Brasil. 9 Franz Roh (1890-1965), artista e historiador da arte alemão, propôs que “Três fatores devem convergir logo que um dispositivo técnico permite ampliar neste ponto a história dos homens: o acesso a este dispositivo deve ser relativamente barato, seu uso deve ser tecnicamente fácil, e a tendência espiritual da época deve estar orientada na direção dos mesmos prazeres [visuais].” (apud HAUS; FRIZOT, 1995, p.459; tradução livre).

O que hoje são consideradas as primeiras fotografias de moda da história não eram chamadas assim na época em que foram produzidas. Em meados do século XIX, com a popularização da fotografia, esta aos poucos substituiu a pintura no ato de registrar imagens de damas da sociedade, atrizes e debutantes que, de corpo inteiro, exibiam e registravam seus melhores trajes. No início do século XX as imagens fotográficas de moda começam a substituir as ilustrações nas publicações da área em países como França e Estados Unidos. “Nas fotos editoriais e de propaganda, a fotografia de moda se inspirou na cultura da época e foi moldada por ela, deixando um registro cativante das mudanças drásticas no papel da mulher entre 1900 e 1945.” (HACKING, 2012, p. 260).

Nos anos 1930, impulsionados pelo avanço tecnológico dos equipamentos fotográficos, as imagens de moda começaram a ganhar mais naturalidade e saíram dos estúdios. Foi quando as cidades e as paisagens urbanas passaram a compor a fotografia de moda e o ideal de beleza, inserindo-a em cenas mais reais e cotidianas. “Câmeras portáteis como a Leica possibilitaram aos fotógrafos trabalharem com realismo fotojornalístico fora dos limites do estúdio.” (HACKING, 2012, p. 263). Durante a Segunda Guerra Mundial, o registro da imagem de moda passou a ser mais documental e direto, seguindo o clima de recessão do período. Passada a Segunda Grande Guerra, a alta-costura entrou em decadência e o eixo central do mundo da moda mudou para Londres, que se tornou o centro criativo de jovens estilistas e fotógrafos que fundaram um movimento batizado de “youthquake” em 1963, por Vreeland, então editora-chefe da Vogue (HACKING, 2012). As décadas seguintes são marcadas por mais liberdade nos temas das fotografias de moda, marcadas muitas vezes pelo erotismo e pela crítica ao consumo. “A fotografia de moda do fim da década de 1970 e início da de 1980 muitas vezes apresentava fantasias de luxúria e consumo, e as mais controversas dessas imagens eram publicadas em revistas europeias.” (HACKING, 2012, p. 488).

Referências ENTLER, Ronaldo. Sentimentos em torno da fotografia contemporânea. Icônica. São Paulo: 28 de junho de 2011. Disponível em http://iconica.com.br/blog/?p=2088. Acesso em 21/10/2013. HAUS, Andreas ; FRIZOT, Michel. Figures de style: Nouvelle Vision, Nouvelle Photographie. In FRIZOT, Michel (org.). Nouvelle histoire de la Photographie. Paris: Bordas / Adam Biro, 1995. LIRA, Bertrand. Fiando o tempo com a luz. In MOURA, Gustavo (coord.). Fotografia Paraibana Revista. João Pessoa, PB: FUNARTE, 2013. Sites para consulta: Fórum da Fotografia Paraibana: http://forumdafotografiaparaibana.blogspot.com.br Projeto Novíssimos: http://projetonovissimos.wordpress.com

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Nos anos 1990 o gênero foi marcado pelo neorrealismo, também chamado de antimoda. Fotografias com forte interesse pelo cotidiano e por pessoas e situações comuns passam a aparecer de forma mais constante nas diversas revistas de moda: se aproximam das expressões de cultura das ruas. Algumas mais conceituais, como a Dazed & Confused, aparecem e se destacam com fotos de conotação


Para Easterby (2010) o trabalho dos fotógrafos de moda é importante não apenas como registro imagético de venda de produtos, eles são registros históricos e culturais de um povo e de um tempo. O autor afirma que é necessário ter sintonia com a identidade cultural da população a quem se destina a fotografia de moda para que o resultado obtenha o alcance desejado. “As imagens criadas pelos fotógrafos de moda têm uma conexão tão forte com o público que contribuem para mudar as tendências que sustentam a sociedade.” (Idem, p. 30).

sexual. O que também se fez presente foi o estilo documental de rua característico da revista i-D, os straight up, que defendiam uma fotografia mais pura. “Punks, jovens adeptos do estilo New Wave e outros passantes vestidos de forma estilosa eram parados na rua e clicados em frente a um muro, de corpo inteiro, com as próprias roupas.” (HACKING, 2012, p. 489). Desde o fim dos anos 1990 a manipulação (ou pósprodução a partir de softwares) tornou-se parte fundamental do trabalho dos fotógrafos e a internet um espaço de grande expansão, referência e divulgação para os produtores de imagens de moda. Além disso, essas imagens ganham cada vez mais características artísticas e libertárias, além de permitirem aos fotógrafos criarem seus próprios estilos, independente da publicação a qual as fotos se destinam.

Quem também sustenta esse pensamento é Marra (2008), para quem a moda é algo mais articulado do que simplesmente a roupa: se trata de um fenômeno maior, que relaciona o indivíduo com o seu papel no mundo; e a fotografia de moda o símbolo máximo dessa mensagem. “[a moda] é um fenômeno complexo que concerne e relaciona entre si comportamentos, modos de ser, formas de linguagem e qualquer outra escolha graças à qual estruturamos o nosso ser no mundo. A moda é então também fotografia, aliás, o fotografar, o ato e a prática de fotografar, entendidos como desejo não só de criar, mas de desdobrar a nossa vida em imagem.” (MARRA, 2008, p. 15).

A jornalista e crítica de fotografia, Simonetta Persichetti, defende a ideia que a fotografia de moda hoje é a expressão mais livre dentro da história da fotografia, já que nela tudo é permitido e que sua função é nos trazer um sonho, uma ideia, um conceito. Para Marra (2008, p. 15-16), a fotografia de moda obviamente serve para fazer com se veja a roupa, porém não apenas isso: é um simulacro da realidade, embebida em uma áurea mágica própria dos movimentos artísticos. Ele diz também que “É igualmente verdadeiro que diante de uma boa imagem de moda nós entramos em contato com algo mais, algo mais sugestivo que a pura informação sobre o produto. Diante da fotografia de moda nós substancialmente experimentamos uma possibilidade de comportamento, ou pelo menos a imaginamos, a desejamos, porque a imagem propõe-nos uma espécie de protótipo de vida, uma experiência de estilos e de modos de ser.”

O autor reflete sobre o grau de abstração que os indivíduos vivenciam quando em contato com as fotografias de moda. Para além de ver a roupa, ele afirma que diante de uma boa imagem de moda as pessoas entram em contato com um universo mais sugestivo do que a pura informação sobre o produto. “Diante da fotografia de moda nós substancialmente experimentamos uma possibilidade de comportamento, ou pelo menos a imaginamos, a desejamos, porque a imagem propõe-nos uma espécie de protótipo de vida, uma experiência de estilos e de modos de ser.” (MARRA, 2008, p. 16).

Existem hoje basicamente dois tipos de editorial de moda para revistas: os publieditoriais e os editoriais de cunho informacional. O primeiro tem vinculações econômicas que pautam como a imagem deve ser produzida e o que deve conter nela, já o segundo é livre de intervenções comerciais e pode ser mais conceitual na criação das imagens de moda, pode beber em todas as fontes da vida cultural. “Um editorial é uma reportagem fotográfica sobre moda ou beleza planejada e realizada de modo a expressar a opinião e as atitudes do editor de moda da revista.” (SIEGEL, 2012, p. 16).

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A identificação do observador da imagem com aquilo que está representado nela se torna, então, algo crucial na conjuntura que compõe essa fotografia, composta não apenas pelas vestimentas nela utilizadas, como também por cores, luzes, maquiagens, cabelos e cenários, formando a complexidade da imagem de moda. “[...] a questão que mais caracteriza toda a fotografia de moda é o grau de credibilidade e de identificação que nos é proposto pela imagem. Dito de forma banal, a moda nos propõe um signo, um imaginário no qual acreditar e com o qual se identificar, é, portanto, evidente que o mecanismo de


verdade introduzido pela fotografia desenvolve um papel de primeiríssimo plano na definição teórica do fenômeno.” (MARRA, 2008, p. 39).

A cidade na fotografia de moda A identidade (ou as diversas identidades) de um povo e/ou grupo social se dá de forma complexa, e as referências de cidade ou de urbanidade presentes em seus cotidianos fazem parte do conjunto de informações que ajudam a moldá-la. Hall (2001) explica que uma nação pode ser entendida como um sistema e representação cultural que extrapola a noção de legitimidade do ser social, pois as pessoas não são apenas cidadãs, já que partilham uma série de significados (narrativas, estratégias discursivas, mitos). Deste modo, os diferentes membros das diversas culturas (nacionais, regionais ou locais), independente de sua etnia, classe e gênero, seriam unificados numa única identidade cultural.

produtos, mas vender um conceito. [...] DaModa, uma publicação conceitual, inspirada na liberdade de expressão e sedenta pelo novo.” A publicação começou a ser produzida em setembro de 2012 e é disponibilizada gratuitamente ao público através do site Issu.com¹, voltado para publicações digitais. Alguns dos conteúdos mais importantes produzidos pela revista são os editoriais de moda, que estão presentes em todas as edições, muitas vezes mais de um por edição. Numa primeira observação é importante ressaltar que, por não ter vinculação comercial nem obrigação de publicar anúncios publicitários ou peças de anunciantes, os produtores e fotógrafos da equipe dispõem de certa liberdade na hora de escolher os temas dos editoriais, as peças utilizadas e as locações para as fotos. Por outro lado, dada a sua vinculação à Prefeitura da cidade, parece se fazer necessário mostrar os espaços urbanos, reconhecidos como turísticos ou não, sempre de forma bela, excluindo possíveis situações de abandono, sujeira, pobreza, depreciação etc. Uma cidade idealizada.

O autor explica também que uma das consequências sobre as atuais identidades culturais é a homogeneização cultural pós-moderna, que tende a ocidentalizar as representações de cultura, tendo nos meios de comunicação de massa suas principais ferramentas para isso. Mas há também as manifestações de resistência à globalização por identidades nacionais e locais. “Em vez de pensar o global como substituto do local, melhor pensar numa nova articulação entre o global e o local.” (HALL, 2001, p. 77). A revista DaModa nos ajuda a exemplificar e compreender, até certo ponto, a resistência a essa homogeinização da globalização a partir do momento em que reforça as características locais na imagem de moda, se articulando com referências globais, representadas principalmente por elementos urbanos da capital paraibana. Para entender melhor essa caracterização da identidade local é necessário compreender a cultura como um processo complexo e permanente de trocas simbólicas, e o fortalecimento dessa cultura local pode ser compreendido como uma reação a essa interação.

A título de ilustração trazemos aqui, de maneira resumida, o exemplo do editorial publicado na primeira edição da revista sobre o Mercado Central de João Pessoa, com fotos de José Neto2. A cartela de cores é vasta, tanto na paisagem (já que se trata de uma feira onde há a presença de uma grande variedade de produtos alimentícios ou peças utilitárias) quanto nos figurinos. As peças utilizadas no editorial foram fruto da oficina “Célula de Criação” e teve como referência o mesmo local das fotos. Explica o texto que acompanha o editorial: “Inspirado no Mercado Central de João Pessoa, o grupo consegue sair do óbvio e mostra uma coleção cheia de movimento, detalhes, riqueza e aspectos culturais do local.”

Essa resistência, ou diálogo, como afirma Hall (2001), pode ser exercida de diversas formas. Na revista eletrônica DaModa, publicação conceitual sem caráter comercial financiada pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, ela está presente em todo o conteúdo produzido e se caracteriza visualmente principalmente pelos editoriais: tanto na escolha das peças quanto da locação para as fotos. As imagens veiculadas pela publicação optam, na sua maioria, por expor a capital paraibana embebida numa áurea mágica, aquela que é característica dos editoriais de moda, que nos remete a uma esfera de sonhos, desejos e ideais. A revista DaModa faz parte desse projeto de promover a cultura de moda em João Pessoa, e para isso se utiliza de ícones e símbolos da capital da Paraíba no intuito de resgatar a identidade do pessoense na imagem de moda e, assim, reforçá-la. Comandada pela jornalista Larissa Claro, editora-chefe da publicação, e pelo estilista, produtor e diretor da Estação da Moda, Romero Sousa, tem na sua linha editorial a seguinte proposta: “A ideia não é vender

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O Mercado Central de João Pessoa, construção dos anos 1950 recuperada entre 2010 e 2011, faz parte da paisagem urbana da cidade de forma marcante. Ao contrário de outros espalhados pela capital paraibana, este fica em uma área de muito fluxo da população da cidade, por onde passam várias linhas de ônibus e próximo a grandes empresas de comunicação. A coleção tentou refletir o efeito desordenado e multicolorido da estrutura urbana da feira nas peças, recorrendo a modelagens inusitadas, como no primeiro figurino onde as tiras de tecido são inspiradas na visão que o feirante tem da rua estando dentro da barraca.


Capas da revista online DaModa, 2012 e 2013

“Vestir, na história da indumentária, pode ter o sentido de instalar no corpo humano um cenário, no qual o mesmo tem o papel de agir e interagir como se fosse um palco de representação de temas apocalípticos.” (DUARTE; BARROS,

nordestino, algo muito presente no cidadão pessoense. Segundo Flusser (2005, p. 9), “as imagens são mediações entre o homem e o mundo”. Apresentam-se assim como “superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que está lá fora no espaço e no tempo”. Portanto, podemos considerar que o observador da imagem acessa referenciais nostálgicos ao observar esse tipo de fotografia.

2006, p. 212).

Já a chita foi quem ganhou espaço de destaque na segunda edição da revista3 em coleção criada pelo estilista paraibano Romero Sousa, com fotos de Dayze Euzébio. Cheia de cores e estampas florais bem características, o tecido que tradicionalmente decorava as casas pobres do interior do Estado virou matéria prima para peças atuais e foi parar nas areias das praias de João Pessoa.

Trazemos ainda algumas considerações sobre o editorial publicado na quarta edição da revista online4, com fotos de Dayse Euzébio e uma locação incomum para a tradição da fotografia de moda local: o Rio Sanhauá. A cidade de João Pessoa, diferente de outras capitais do litoral brasileiro, nasceu no mangue, no rio que banha a cidade e desemboca no Rio Paraíba. Só a partir dos anos 1950 ela cresce para a praia e dá as costas para o rio que a viu nascer. Hoje sem praticamente nenhuma referência histórica do antigo Porto do Capim, o leito do rio é tomado por habitações irregulares ocupadas principalmente por pescadores que tiram do rio seu sustento. A região é poluída e as águas são impróprias para banho.

A praia é elemento pulsante na vida do pessoense. Caracterizada por uma topografia que permite que casas e restaurantes sejam livremente acessados pela praia, o cidadão da capital paraibana tem o hábito de frequentar diariamente a orla da cidade, seja para a prática de atividades físicas, passeios em família ou mesmo para aproveitar a areia ou o mar durante o dia ou noite. É a área mais nobre da cidade, com os metros quadrados mais caros, compostos por cinco bairros, mas que recebe diariamente moradores de várias regiões da cidade. A chita, por sua vez, vem aos poucos ocupando espaço nobre em coleções de estilistas brasileiros. O tecido, que já vestiu escravos, camponeses, tropicalistas, personagens de literatura, teatro, novela e cinema, não perdeu o seu ar de inocência e rusticidade ao longo do tempo, continua remetendo ao universo ingênuo. (MELLAO, 2005).

As peças trazem um contraste entre a pobreza do lugar e a riqueza esmerada da principal e mais cara renda produzida na Paraíba: a Renascença. A renda Renascença surge na Europa no século XV e ganha espaço em países como a França e a Itália. Ela chega à Paraíba no final do século XVII trazida por freiras carmelitas que vêm para a região e acabam ensinando o ofício a algumas moradoras como forma de geração de renda (NÓBREGA, 2005). Hoje a produção de renda é passada de geração em geração e é cada vez menor o número de pessoas que dominam a técnica, encarecendo gradativamente o produto, que hoje é sinônimo de riqueza e sofisticação, vendida a altos preços nas feiras e mercados da região.

Originária da Índia e com passagem por diversos países europeus, a chita chega a Portugal no século XV e vem ao Brasil no final do século XVIII. Por aqui, as cores discretas lusitanas ganham estampas graúdas de tons vibrantes, tingidas com os corantes vegetais disponíveis na flora da região (GARCIA, 2007). No Nordeste ela se torna produto barato por sua grande produção e por ser um produto originalmente de baixa qualidade e acaba se popularizando entre as famílias pobres da região. Na moda, ela hoje é retomada como símbolo de um resgate cultural brasileiro, vivido intensamente nos últimos anos. No editorial, o contraste entre o bege da areia e a explosão de cores das roupas faz as peças se destacarem ainda mais. A chita cumpre aí também uma função saudosista, a partir do momento em que se refere aos antepassados do povo

No editorial, as cores fortes dos barcos, das construções à beira do rio e da natureza se contrastam com os tons suaves da renda. A revista explica em uma das fotos “A delicadeza da renda Renascença, artesanato típico do Cariri paraibano, entrelaça a cultura da nossa região com apelo sofisticado em que rompe fronteiras”, destacando que hoje essa é uma renda de alto custo e desejada em várias regiões do país e do mundo.

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É importante ressaltar que essa localidade, bem como a do Mercado Central citada anteriormente, não são considerados pontos turísticos da cidade e sim referenciais imagéticos bem particulares daqueles que moram na região, trazendo assim esse referencial de identidade não necessariamente vinculado a um visitante ou turista, e sim pertencente ao cidadão pessoense. Observar esses editoriais colabora com o entendimento de que a fotografia de moda pode ser usada para fortalecer ou perpetuar identidades culturais, bem como a própria moda em si, funcionando nesse contexto como uma espécie de metalinguagem. A identidade local, num diálogo com as identidades globalizadas, se fazem presentes na proposta da revista eletrônica DaModa. Eles são uma forma de representar o mundo e as pessoas da cidade. “Instrumento de comunicação, divindade, a imagem assemelha-se ou confunde-se com aquilo que ela representa.” (JOLY, 1996, p.19).

Em comum a todos os ensaios analisados, percebemos o tema da cidade de forma constante, de maneira mais ou menos óbvia e sempre envolta numa áurea de luxo e de ideal de beleza característicos dos editoriais de moda em todo o mundo (SIEGEL, 2012). É possível identificar ainda, numa visão mais técnica da fotografia, que todos os ensaios privilegiam a figura humana, numa referência clássica ao gênero “retrato” na fotografia, algo também inerente aos ensaios fotográficos das revistas de moda (EASTERBY, 2010). Porém, nos exemplos mostrados aqui, também é possível perceber de forma mais marcante a presença do cenário como elemento crucial para reforçar a mensagem da revista: a cidade como referência de moda. “A categoria da imagem reúne então os ícones que mantêm uma relação de analogia qualitativa entre o significante e o referente.” (JOLY, 1996, p. 40).

A revista mostra a cidade não apenas como um cenário qualquer ou simples, mas como algo pensado, planejado, com objetivos claros, entre eles: mostrar a urbanidade de forma bela e lúdica; reforçar que é possível se inspirar nos elementos locais para produzir moda, tanto nas peças quanto nas imagens de moda; colaborar com a criação e o fortalecimento de uma identidade local que se reconhece nesses elementos urbanos e os valoriza. Assim, a publicação faz um recorte da cidade, mostrando uma urbanidade idealizada, um signo, um imaginário capaz de transmitir o luxo que alguns setores da moda almejam. 18

A moda vem desempenhando ao longo de toda a sua existência o status de seus usuários sendo, ainda, considerada fator de construção da identidade dos sujeitos, muitas vezes demonstrando sua filiação a valores específicos de um determinado grupo ou sociedade e a determinadas expressões culturais. E a imagem de moda propagada pelos meios de comunicação cumpre um papel fundamental nesse processo de identificação.

Agda Aquino é jornalista, professora da Universidade Estadual da Paraíba, pesquisadora de moda, fotografia e comunicação.

Notas 1 Disponível em: http://www.issuu.com/damoda. Acesso em maio de 2013. 2 Disponível em: http://www.issuu.com/damoda/docs/1edicao. Acesso em maio de 2013. 3 Disponível em: http://www.issuu.com/damoda/docs/da_moda _02. Acesso em maio de 2013. 4 Disponível em: http://issuu.com/damoda/docs/4edicao. Acesso em maio de 2013. Referências DUARTE, Jorge; BARROS, Antônio (Orgs.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas, 2006. EASTERBY, John. 150 lições para aprender a fotografar: técnicas básicas, exercícios e lições para fotógrafos iniciantes. São Paulo: Editora Europa, 2010. FLUSSER, Villem. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. GARCIA, Carol. Chita, chitinha, chitão: notas sobre imagens e andanças. In: 3º Colóquio de Moda, 2007. Belo Horizonte, MG. Anais. Disponível em: http://www.coloquiomoda.com.br/anais/ anais/3-Coloquio-de-Moda_2007/3_07.pdf HACKING, Juliet. Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Sextante, 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Campinas, SP: Papirus, 1996. MARRA, Claudio. Nas sombras de um sonho: história e linguagens da fotografia de moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2008. MELLAO, Renata (Org.). Que chita bacana. São Paulo: A casa, 2005 NÓBREGA, Christus. Renda Renascença: uma memória de ofício paraibana. João Pessoa: SEBRAE/PB, 2005. SIEGEL, Eliot. Curso de fotografia de moda. Barcelona/ES: Editorial Gustavo Gili, 2012.


Arte contemporânea na Paraíba: visualidades periféricas

Valquíria Farias valquiriafarias@gmail.com

Brasil/Brasis, artigo de autoria do crítico de arte e curador brasileiro Paulo Herkenhoff, talvez seja a mais esclarecedora análise crítica sobre a realidade da arte brasileira no século 20. Sua diversidade; seus artistas; a multiplicidade de caminhos; linguagens e materiais; como era produzida e sob quais condições/dificuldades políticas, econômicas e sociais são aspectos abordados por Herkenhoff em poucas linhas, quase como uma literatura; na verdade, é uma iniciativa inteligente e feliz para explicar ao leitor que os nossos artistas vivem/sobrevivem múltiplos territórios, “brasis”, e fazem arte com um “doce suor amargo”.

arte brasileiro em relação ao incipiente mercado de arte local e, assim, buscar alternativas de acesso e circulação. Para Paulo Herkenhoff, o sistema de arte no Brasil é equidistante porque segue a lógica colonialista das relações internacionais de poder. Ele diz que “A mesma distância política que separa os grandes centros brasileiros de arte dos centros hegemônicos europeus e norte-americanos parece separar os centros regionais e periféricos brasileiros dos centros hegemônicos do país [...]”, exemplificando que “Uma concentração de artistas e de instituições de arte corresponde a uma concentração de renda interna num quadro de graves desequilíbrios regionais estruturais”.

O artigo foi escrito no final da década de 1990. É atualíssimo. Já que quase nada parece ter mudado no cenário artístico brasileiro neste novo século. Daí a razão de mencioná-lo logo no início do presente texto, que trata da exposição Arte Visual Periférica na Paraíba, coletiva composta de 24 obras produzidas por 12 artistas visuais, jovens em sua maioria, residentes e atuantes neste estado.

Neste contexto, compreende-se que a condição de ser um artista periférico na Paraíba guarda diversas razões relacionadas à realidade do local que escolheram para viver como cidadãos e artistas à realidade brasileira, ou realidades brasileiras. Razões estas transformadas nalgum aspecto em seus trabalhos, pois são resultantes de vivências práticas e reflexivas a partir de seus entornos.

Esta exposição no Museu Assis Chateaubriand, da Universidade Estadual da Paraíba, em Campina Grande, mais do que apresentar um conjunto significativo de obras que reflete bem a produção de arte contemporânea na Paraíba, propõe um desafio ousado e muito importante: lançar novos questionamentos e acender o debate acerca da realidade ainda frágil e precária do circuito de artes visuais paraibano. Isto em relação a outros circuitos de arte no País, mais organizados em termos de políticas culturais, distribuição de recursos públicos e privados.

O que querem os “artistas periféricos” não é nada de novo, mas é algo fundamental e que nunca havia sido colocado como pauta de debates por gerações anteriores de artistas paraibanos. Não desta forma compromissada e organizada. Discutir o meio cultural local também faz parte da vida do artista. Basta apenas começar e compreender a importância política de ser um artista-cidadão. Como diz novamente Herkenhoff em seu artigo: “Na experiência brasileira, o artista não apenas fez arte, mas também teve de construir, muitas vezes, o espaço social e armar a possibilidade política de seu discurso”.

O entendimento do que vem a ser “arte visual periférica” por parte dos próprios artistas ‒ que são ao mesmo tempo autores e curadores desta exposição, é importante frisar ‒ expressa não somente a constatação dessa difícil realidade local em que vivem e produzem arte. Exprime também a vontade de todos de discuti-la coletivamente, com outros agentes culturais, instituições, galerias e com a sociedade, a fim de tentar superá-la.

Nesta exposição, não é intenção dos artistas o estabelecimento de aproximações estéticas e conceituais de qualquer ordem (linguagens, materiais, suportes, técnicas etc.) entre os seus trabalhos. Todos são realizações individuais, não pautados por uma abordagem curatorial mais complexa. Embora haja mesmo a necessidade de mostrar que existe uma produção emergente no Estado e que essa produção não é assimilada pelo público porque, muitas vezes, as instituições culturais não lhe dão a visibilidade devida, associada a um processo formativo, de conhecimento.

Ou seja, existe uma ação estratégica dos artistas periféricos, como eles mesmos se definem enquanto coletivo, de, com esta mostra, mobilizar, chamar ao diálogo a classe artística local e reivindicar dos representantes públicos melhorias para as instituições, os museus e os acervos. Além disso, junta-se também a necessidade de discutir o mercado de

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Obra de Antônio Filho (Fotografia: Wênio Pinheiro)

Porém, uma aproximação das suas ideias a respeito do que vem a ser a “arte periférica” que produzem pode ser possível neste texto. A questão das convenções, dos tratados e das regras de conduta criadas pelo homem, na vida e na arte, é discutida, de formas distintas, nos desenhos em nanquim de Américo Gomes, nos retratos em pastel de Carlos Nunes, nas performances de Sandoval Fagundes e nos grafites de Cybele Dantas. Em Américo, há a certeza de lidar diariamente com os esquemas de controle, forjando-os. Em Carlos Nunes, o desejo de vestir-se também do “outro eu”, numa reação afetiva, explosiva e temporal. Em Sandoval Fagundes, no gesto performático/irônico de escapar de amarras de toda sorte, definições em arte, do lugar-comum. “Desenhar como quem faz pipoca” seria o mesmo que desenhar como uma criança que risca uma parede? Nunca se saberá ao certo. As fotografias recortadas de Cybele Dantas são exemplares perfeitos da mistura de linguagens: a fotografia e o grafite, em um suporte convencional, a tela. Sua proposta é experimentar possibilidades de realizar Grafitti e, ao mesmo tempo, desfazer preconceitos em relação à pintura tradicional invadindo seus espaços de circulação.

Obra de Potira Maia (Fotografia: Wênio Pinheiro)

As geografias dos espaços urbano/rural e da natureza estão narradas nas poéticas desenvolvidas por Antônio Filho, Serge Huot e Luiz Barroso. Para Antônio Filho, o espaço urbano é aquele por onde seu corpo transita cotidianamente. Ele constrói, por exemplo, mapas pessoais de lugares da cidade interligados por artérias de um coração, representado como se fosse uma memorialística do corpo trafegado, subjetividades experimentadas partindo de elementos concretos arquiteturais. Serge Huot é artista francês cuja condição de estar atuando em um território periférico brasileiro, vivendo em constante contato com a natureza local, o coloca numa posição historicamente privilegiada em relação aos demais artistas do grupo. Huot cria esculturas com materiais jogados na praia, restos de poliestireno, como se desejasse construir uma arquitetura da paisagem “outrora natural”, aquela que somente o olhar estrangeiro pode enxergar. Não deixa de ser uma forma de denúncia da ação do homem sobre o meio ambiente. Já Luiz Barroso percorre os caminhos dos signos rupestres incrustados na paisagem rural paraibana, símbolos de nossa formação mais rudimentar, para

Obra de Antônio Lima (Fotografia: Wênio Pinheiro)

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Obra de Wênio Pinheiro (Foto: Wênio Pinheiro)


O painel PopTropicalista de Chico Pereira Dyógenes Chaves dyogeneschaves@hotmail.com

construir com papel maché uma metalinguagem compromissada com a cultura do homem no Nordeste do Brasil.

Numa recente visita à Campina Grande ‒ segunda cidade da Paraíba e outrora maior entreposto de peles, algodão e gêneros alimentícios da região que, por sua privilegiada localização, interligava todo o Estado no sentido lesteoeste, sul-norte ‒, fomos ao encontro do painel Tropicália, de Chico Pereira, pintado sobre parede com tinta acrílica, esmalte e spray, medindo 220x600cm, de 1969, que adorna o antigo restaurante universitário da Universidade Regional do Nordeste (URNe), hoje UEPB. A obra, recentemente restaurada (finais de 2013), permanece atual e é importante referência da arte paraibana. Para sua execução o artista se utilizou de elementos visuais, materiais e técnicos do movimento Pop Art, o que sugere também incluir a obra na seara do Grafite (com o uso de spray e estêncil, já naquela época) e do Muralismo na região.

Antônio Lima, Potira Maia e Tony Neto conduzem suas poéticas numa relação de alteridade com o lugar do sujeito e seus objetos cotidianos. Antônio Lima produz objetos e instalações ressignificados de sua iconografia e paisagem, utilizando-se de conceitos antropológicos, filosóficos e científicos para refletir sobre a transitoriedade da vida humana. Potira Maia registra em fotografias os processos de destruição da memória de personagens desconhecidos da cidade, transeuntes, nos inúmeros sapatos achados “perdidos” ou “abandonados” nas ruas de João Pessoa. Tony Neto “se refaz” em cenas precisas de melancólicos rituais de morte, projetando-se numa imagem potencial do suicida anônimo. Seus vídeos aludem às estranhas mortes por suicídio de moradores da região do Vale do Piancó, interior paraibano.

É importante situar o uso pioneiro destes recursos do Grafite por Chico Pereira, já que, somente a partir de 1978 é que se tem notícia semelhante protagonizada pelo artista etíope-brasileiro, Alex Vallauri¹.

Raquel Stanick e Wênio Pinheiro recorrem à literatura para produzir suas obras a partir da apropriação de temas como feminino, intimidade, fantasia, amor, sexo, corpo e erotismo. Raquel Stanick se utiliza ainda das novas mídias para colocar em jogo texto poético versus imagem real e, assim, discutir a formação dos clichês nas relações interpessoais. Para Wênio Pinheiro, interessa o desenho de traço agressivo e nervoso do corpo humano, despudorado nas suas mais variadas posições e situações íntimas, à maneira de Egon Schiele, como depositário da mensagem que deseja exprimir ao leitor.

Mesmo tratando-se de obra localizada em ambiente interno ‒ o restaurante da URNe ‒, o que contribuiu para mantê-la quase intacta, a obra de Chico Pereira recebe até hoje imenso fluxo de estudantes, professores e funcionários ao longo destes mais de 43 anos. Com a intenção de analisar melhor a obra e dar-lhe visibilidade e reconhecimento, optamos por fazer uma viagem no tempo revendo os principais momentos vividos pelo artista, afora outros acontecimentos sócio-culturais na cidade que justificam o pioneirismo deste mural.

Afinal, para que serve a arte? Acredita-se que uma das prerrogativas mais contundentes da arte, no plano político e crítico, seja a de criar vias de acesso tanto a si própria como ao seu entorno. Assim, é provável que, se o ideal por mudanças no cenário da arte paraibana for mesmo levado a cabo em outras ações futuras do Coletivo Periféricos, com resultados sendo alcançados, não poderemos negar a importância que terá esta exposição daqui para frente.

Estamos no ano de 1967. Anacleto Elói, estudante de Belas Artes em Recife, mas também atuante em Campina Grande, sua terra natal e onde faz parte do primeiro coletivo de artistas da cidade ‒ o Equipe 3 ‒, ao lado de Chico Pereira e Eládio Barbosa, é um dos poucos artistas paraibanos a participar da I Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em Salvador. Numa matéria publicada no jornal Diário da Borborema (Campina Grande, 29 de junho), seu depoimento ao jornalista (e cineasta) Machado Bitencourt aponta para algumas das preocupações da arte local na época. A dúvida que permanece é se, hoje, sua análise continua atual ou apenas foi puro arroubo idealista de todo jovem artista. Vejamos:

Valquíria Farias é crítica de arte e curadora, vinculada atualmente à Fundação Cultural de João Pessoa-Funjope.

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O pintor Miguel Guilherme (Foto: Machado Bitencourt)

Capa do livro Os Anos 60, 1979

“José Anacleto tem ideias próprias sobre as causas originárias do atraso cultural de Campina Grande no que se refere às artes plásticas. Segundo os termos de sua análise, os motivos fundamentais desse atraso são as ausências das influências históricas. Campina Grande foi uma cidade que durante muitos anos interpretou a arte como o agradável ou o bonitinho, e que aplaudiu espetáculos medíocres, contribuindo dessa maneira para manter um estágio de gritante alienação. ʻAgora, quando Campina Grande já toma consciência cultural, implantando e mantendo uma universidade, o problema tende a desaparecer (não a curto prazo!) inicialmente com o preenchimento das lacunas existentes.ʼ, afirma o artista.”

Como depõe Chico Pereira: “Esse acontecimento foi marcante na vinculação dos artistas de Campina Grande, notadamente do Equipe 3, a outros centros artísticos, mais efetivamente à Capital João Pessoa. Passamos então a frequentar nos finais de semana os ambientes artísticos e intelectuais da Capital, ampliando as informações e abrindo o intercâmbio. O Museu, de certa forma contribuía para animar o panorama que, ajudado pela efervescência de criação noutras áreas, formava ao seu lado o conjunto de atividades que marcaram profundamente a cultura paraibana daí por diante. Em João Pessoa, sob a liderança de Raul Córdula, que mais uma vez deixara Campina Grande, Breno Mattos, Guy Joseph, Mardem Rolim, Cleófas Leonan, Unhandeijara Lisboa, Pontes da Silva, Régis Cavalcanti, José Lucena, Flávio Tavares (jovem artista que se revelava) e Miguel dos Santos, formavam o grupo dos principais artistas jovens. Juntavam-se aos mesmos os poetas e compositores do Grupo Sanhauá: Marcus Vinícius, Anco Márcio, Severino Marcos, Sérgio de Castro Pinto, Carlos Aranha e Marcos dos Anjos. As visitas a exposições e ateliês terminavam sempre em noitadas poéticas e tinham como ponto de partida obrigatório a Churrascaria Bambu, na Lagoa, onde geralmente, à mesa do escritor Virgínius da Gama e Melo, se reunia esta geração de jovens e outros intelectuais da terra para discussões intermináveis de estética e política. Às vezes, o Equipe 3, por intermédio de Anacleto, que estudava em Recife, se deslocava para encontros desta natureza em Pernambuco, quase sempre com Jomard Muniz de Britto e outros intelectuais e artistas que atuavam entre Recife-Olinda.”

Alguns meses depois, em 20 de outubro de 1967, era inaugurado em Campina Grande o Museu de Arte Assis Chateaubriand, numa grande festa pública com a presença de personalidades do mundo político, empresarial e cultural de todas as regiões do país. “Entre os convidados, estavam os críticos Mário Pedrosa e Mário Barata e os artistas Rubens Gerchman, Alexandre Filho, Anna Maria Maolino, o grego Gaitis, Emeric Mercier e Antonio Dias, que retornava à sua terra natal depois de quase 10 anos. O Museu, por força do acordo estabelecido entre a Campanha dos Museus Regionais (leia-se Assis Chateaubriand) e a Prefeitura de Campina Grande, seria gerido pela Fundação Universidade Regional do Nordeste (FURNe) com a condição de preservá-lo e dinamizá-lo como instituição universitária, e também ficou acertado anexar ao mesmo uma galeria de arte para exposições periódicas, voltada principalmente para a arte local.”, afirma o artista e exdiretor do Museu, Chico Pereira.

Se voltarmos ao ano de 1957, vamos encontrar o ainda menino Chico Pereira como aluno de pintura e desenho da Escola de Arte de Campina Grande, dos professores Jorge Nesse mesmo local, simultaneamente à recepção pública Miranda, Pedro Corrêa e Nourival Gonzaga. Era algo raro ‒ o do Acervo, foi inaugurada uma exposição coletiva com os ensino de arte ‒ numa cidade que não tinha qualquer artistas mais representativos da arte campinense: Raul referência ou tradição nas artes plásticas ‒ como abordara Córdula, Eládio Barbosa, Anacleto Elói e Chico Pereira. Anacleto Elói em seu desabafo publicado no Diário da Borborema ‒ exceto a pintura do forro da Catedral de Nossa A inauguração do Museu, além de ser uma grande Senhora da Conceição, executada por Miguel Guilherme, conquista para a cidade, oferecia a possibilidade de se pintor nascido em Sumé, no Cariri paraibano. Essa obra, que enxergar além dos horizontes locais. Foi, de fato, o primeiro viria a ser demolida em 1963 por razões inexplicáveis, era contato com a arte brasileira dos últimos cem anos e o para Chico Pereira motivo de deleite quando frequentava com seu pai as missas de domingo. A obra de Miguel despertar ‒ pelo acervo estrangeiro ‒ das questões estéticas Guilherme era um belo conjunto de paineis distribuídos na contemporâneas, permitindo a partir daí, uma reflexão mais nave da igreja e nas suas laterais e, curiosamente, em meio aprofundada do processo criativo e apontava sobre o que às cenas bíblicas estavam várias figuras da sociedade local fazer para uma atualização adaptada às condições culturais da região. 22 retratadas pelo autor num estilo quase ingênuo.


Ao longo dos primeiros anos da década de 60, é importante pontuar alguns poucos eventos de artes plásticas em Campina. Apesar de poucos, eles foram marcantes para a juventude que almejava alguma atuação na área artística, incluindo aí os jovens artistas do Equipe 3. Vejamos: logo em 1960, novembro, acontece a exposição com artistas de João Pessoa ‒ Archidy Picado, Raul Córdula, Pontes da Silva, Leonardo Leal e Ivan Freitas ‒ mais o campinense, Flávio Bezerra de Carvalho, na Fundação para o Desenvolvimento da Arte, Ciência e da Técnica (Fundact). A mostra tinha por objetivo difundir uma arte mais “contemporânea” e aproximar os artistas das duas maiores cidades do Estado, notadamente trazer obras mais instigantes visto que vingava em Campina Grande uma produção ainda acadêmica. E, no ano seguinte, ocorre uma exposição promovida pelo Diretório Acadêmico, da Escola de Economia, durante a I Semana de Cultura Universitária de Campina Grande, com a participação de artistas locais, de todas as linguagens e técnicas. Eládio, Flávio Bezerra e Chico Pereira receberam premiação neste evento. Vale aqui lembrar da criação da Associação Campinense Pró-Arte, entidade que durante quase quatro anos movimentou o panorama cultural da cidade, mais efetivamente na área da música erudita. A Pró-Arte promoveu diversos concertos e recitais e também o ensino da música. Foi de fato a primeira entidade voltada especificamente para a cultura com todos os aspectos legais para funcionar, inclusive com registro no Mec. A PróArte ampliou suas atividades com cursos de dança, por exemplo, e mesmo assim, com todo o esforço dos seus dirigentes, não conseguiu sobreviver pelo mesmo motivo da Escola de Arte: falta de apoio oficial. O ano de 1964 trouxe diversos acontecimentos que modificaram profundamente a vida da cidade. As mudanças políticas ocorridas a partir do “31 de Março” abalaram as relações de sua economia que praticamente se sustentava no comércio. A restrição de crédito, a severa vigilância do sistema de desconto bancário e a ausência de moeda corrente, somando-se à cassação dos direitos políticos de alguns “líderes comunistas” provocou grande rebuliço, exatamente no ano do primeiro centenário da cidade. “Foi no meio dessa conturbação e da falta de horizontes mais largos para a cuItura que se criou, tendo em vista os festejos dos 100 anos, a Comissão Cultural do Centenário, constituída por intelectuais e pessoas de notoriedade, com a finalidade de coordenar as atividades artístico-culturais, objetivamente a edição de documentos e livros, exposições de arte, atividades musicais, as artes cênicas e, principalmente, a descoberta de valores locais. Essa Comissão foi mais tarde transformada em Comissão Cultural do Município e se responsabilizou por diversas edições históricas e literárias, entre elas o Jornal de Arte, coletânea de crônicas e críticas de arte de Rubem Navarra², pseudônimo de Rubem Agra Saldanha, numa homenagem a esse campinense que junto a Mário Pedrosa e Antonio Bento, também paraibanos (sic), formam o grande pensamento da crítica das artes plásticas brasileiras.”, escreve Chico Pereira em artigo publicado no livro Os anos 60 ‒ Revisão das artes plásticas na Paraíba (Mec/Funarte, UFPB, 1979). 23

Desde 1963, estava em fase final de construção o Teatro Municipal. Antes mesmo da sua conclusão, foi oficialmente inaugurado, considerando que isto coincidia com a posse do novo prefeito. O teatro, a partir daí, mesmo precariamente, transformou-se no principal local para as manifestações culturais da cidade. Em outubro, mês de aniversário de Campina Grande, realizou-se durante a programação oficial, a Exposição de Arte do Centenário, reunindo obras de alunos e professores da Escola de Arte e artistas de João Pessoa; entre estes a jovem Celene Sitônio, na sede da Fundact. Neste período três acontecimentos irão marcar definitivamente a vida cultural da cidade: o Cinema de Arte do Cine Capitólio, criação dos jovens Luis Carlos Virgolino e Hamilton Freire, que, com a exibição de clássicos “da hora” ‒ como as obras de Glauber, Pasolini, Bergman, John Ford, Fellini, Lattuada entre outros ‒ propõe um programa de interesse crítico que uniu intelectuais e aficionados pela sétima arte, nos moldes de um cineclube, chegando a provocar deliciosos debates sobre estética e vanguarda. Outro evento foi o I Salão de Fotografia, no hall do recém inaugurado Teatro Municipal, sob a coordenação de Machado Bitencourt e José Clementino. E esta foi a primeira vez na cidade que se mostrou fotografia que não fosse apenas “retrato e pôr do sol”. Também foi criado o Teatro Universitário Campinense, sob a orientação de Wilson Maux, motivado pela existência do novo Teatro. Foi nesse ano ‒ 1965 ‒ e novamente no hall do Teatro que Chico Pereira inaugurou sua primeira mostra individual, Arte das coisas, com grande sucesso de público e de venda. Uma semana depois, o jovem crítico pernambucano, Jomard Muniz de Britto, apresentava o espetáculo Festival Bossa I, sob a coordenação de Anacleto Elói, já estudante de Belas Artes em Recife. O evento serviu de ligação definitiva entre os artistas de Campina e Recife-Olinda, culminando com a presença dos paraibanos no lançamento do Manifesto Tropicalista de 1967, que teve a presença de Gilberto Gil e Caetano Veloso em Recife. Em 1966, foi criada a Universidade Regional do Nordeste, mais um espaço para a discussão cultural na cidade e, ao mesmo tempo, somando-se à UFPB, tornava Campina Grande um pólo de educação superior no Nordeste. Neste mesmo ano, aconteceu a segunda edição do Salão de Fotografia, desta vez no hall do Edifício Jabre, que prestava homenagem aos criadores do Cinema de Arte, Virgolino e Hamilton. Nas comemorações, numa fazenda próxima à


Obra Triálogo, do Equipe 3, 1967 (Foto: Machado Bitencourt)

cidade, faleceu, por afogamento, o jovem homenageado, Luis Carlos Virgolino. A tragédia abalou os jovens artistas e intelectuais e levou-os a criar, dias após e em sua homenagem, uma fundação cultural (com seu nome) que passou a promover várias atividades nas áreas do teatro, cinema, artes plásticas, música, literatura etc.

Calmon. O [jornal] Correio da Paraíba em reportagem sobre o acontecimento batizou-a de “exposição CHE ou Não CHE” em alusão à presença da imagem do guerrilheiro Guevara entre tubos de katchup derramado, num dos trabalhos. O principal objeto da exposição era um grande tríptico representando uma nave espacial, a mais nova pesquisa do Equipe 3, experiência realizada a partir de uma planta em escala reduzida que, dividida em três, uma parte para cada artista, foi ampliada cada pedaço nos painéis, tendo cada artista realizado individualmente uma parte, simultaneamente passando de mão em mão. Era um trabalho inédito pelo menos não encontrado em nenhum dos salões ou galerias que visitamos.

Transcrevo aqui o depoimento de Chico Pereira sobre as “aventuras” do Equipe 3, publicado no livro Os anos 60. “O ano de 1967 foi gratificante para nós do Equipe 3. Já vínhamos acumulando individualmente experiências em participar de exposições oficiais em várias partes do Brasil, comprovando a nós mesmos a possibilidade de extrapolarmos a condição de artista provinciano. Nossa preocupação se revestia no desejo intimo em fazer explodir toda a energia acumulada pelas experiências práticas e informações obtidas nos catálogos, revistas especializadas e nas leituras que nos aprofundava nas questões da linguagem contemporânea que chegavam no intercâmbio que se abria no Museu e nos contatos com outros centros de criação.

Nesse período juntou-se a nós um jovem artista que trabalhava com objetos montados com peças de automóveis e formava com esses elementos representações de órgãos do corpo humano. Era Amaro Muniz que, por nosso intermédio, passou a fazer parte do movimento da jovem arte paraibana. Para definir nossa posição diante do público, lançamos na exposição um manifesto que representava sinteticamente nossas ideias. Machado Bitencourt, que naquela época atuava na imprensa, escreveu um artigo que explicava nosso trabalho e que transcrevemos aqui como ilustração.

Tal entusiasmo nos levou no final desse ano a empreender uma viagem de caráter artístico-cultural que possibilitaria uma melhor compreensão da arte brasileira e internacional. Fixamos um roteiro estratégico que nos ligasse ao que pretendíamos saber. Visitamos a Bienal Nacional [de Artes Plásticas] em Salvador, o Salão de Belas Artes da Prefeitura de Belo Horizonte, as cidades coloniais de Ouro Preto, Congonhas e Sabará; em Brasília, o Salão Nacional de Arte Moderna; no Rio de Janeiro, o Salão de Arte Moderna do Mec e quase todas as galerias de arte; em São Paulo, finalmente, visitamos o principal objetivo: a IX Bienal Internacional, onde Eládio fora classificado na área de Desenho. Nas cidades históricas de Minas vimos detalhadamente a criatividade do Barroco e do colonial brasileiro e, em Brasília, com sua engenharia urbana e a sua arquitetura contemporânea, relacionamos o Brasil do passado e do presente; em São Paulo, o contato com a arte internacional completou nossa visão para o entendimento daquilo que vivíamos e necessitávamos compreender. De volta da viagem já era 1968. Em março, mais uma vez, o Equipe 3 montou uma exposição conjunta de trabalhos individuais e do grupo, na galeria do Museu, denominada Expressão Coletiva. Foi aberta no dia 4 pelo Senador João

Em manifesto de abril de 1967, este grupo de artistas plásticos assim fazia a apresentação de seu primeiro Triálogo: Desde então outras obras foram realizadas, mas aquelas ideias permaneceram como elemento comum a todo o processo criativo subsequente. Seus autores sentem, a cada dia que passa, o quanto o seu trabalho é para eles viável e oportuno, que estas imagens criadas a seis mãos correspondem a uma real necessidade de pesquisa de cada um, a uma curiosidade e sobretudo, a uma vontade de fazer jogo livre mais do que propriamente fazer Arte. O curioso é que as realizações destes três artistas em nada se assemelham. Nas ocasiões em que expõem seus trabalhos individuais (I Bienal Nacional de Salvador, III Salão Nacional de Arte Moderna do Distrito Federal, IX Bienal de São Paulo, Salão Esso de Artistas Jovens, Museu de Arte de Campina Grande) fica patente as divergências nas concepções e nos resultados obtidos.

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Atualmente, mais do que nunca, essas diferenças se fazem sentir: Anacleto compõe quebra-cabeças e jogos de peças para montar; os desenhos de Chico são um amontoado aparentemente caótico de figuras e objetos, gravatas, batmans, peças íntimas do vestuário, chapéus, guevaras, bengalas, bandeiras e rótulos. E as palavras que Eládio usa para definir o que ele faz serve talvez como uma apresentação da obra dos três no pouco que ela tem em comum: ʻSe eu faço esses desenhos é por que quero criar imagens. Fazer Arte ‒ pelo menos no sentido que a palavra teve até agora ‒ não é minha principal preocupação. Uso um de seus processos, o desenho, de uma maneira mais ou menos ortodoxa simplesmente pelo fato de que tal processo tornou-se mais familiar do que qualquer outro, apresentando portanto maiores facilidades na fabricação de minhas imagensʼ”.

Voltando ao Museu de Arte Assis Chateaubriand que, sob a coordenação interina de Miriam Asfora, promoveu a I Feira de Arte Popular do Nordeste com o objetivo de romper o aspecto elitista que vinha tomando aquela instituição artística. Durante mais de uma semana, artesãos, artistas populares, poetas e repentistas, se misturaram com as obras dos famosos artistas clássicos e contemporâneos e às conferências e palestras sobre folclore que ali se realizaram. O Museu rompia assim a tradicional ilusão de “templo de arte” e se integrou definitivamente na comunidade. Outras manifestações se sucederam durante todo ano entre elas uma exposição de Arte Sacra. A Escola de Arte que vivia seus últimos dias sob a direção do Prof. Miranda, inaugurou na galeria do Museu uma exposição com seus poucos alunos. Logo depois a Universidade Regional adquiriu o patrimônio móvel daquela Escola ‒ cavaletes, mesas de desenho, modelos de gesso e sua biblioteca. Foi um fim melancólico para uma das instituições pioneiras do ensino artístico na Paraíba. Na verdade, era pretensão da Universidade utilizar esse acervo para fazer funcionar no Museu um setor de ensino de arte e por isso foi incluído na “negociação” a incorporação do próprio professor Miranda ao quadro de pessoal do Museu na função de conservador. Outro evento, que antecedeu há poucos dias da inauguração do Museu e que merece registro especial, foi a abertura oficial (16/09/1967) da galeria Faxeiro Objetos de Arte, de Francisco Duarte, com obras do Equipe 3 e as presenças de Antonio Dias, Rubens Gerchman, Solange Escosteguy e Mário Pedrosa. Apesar de considerada atitude

do deslumbramento que vivia a arte local, isso bem demonstra a sua capacidade de compreensão do que se passava na arte brasileira. Nesta época, anos 60-70, a arte contemporânea no país põe contra a parede as ideias e status quo do Modernismo, abrindo-se a experiências culturais as mais diferentes. Daí, instalações, happenings e performances são amplamente realizados, apontando para novas orientações da arte como “linkar” a criação artística às coisas do mundo, à natureza e à realidade urbana. Aí as obras se articulam e se interligam em todas as modalidades: dança, música, pintura, teatro, escultura, literatura etc., pondo em cheque as classificações habituais e a própria definição de arte. Arte e vida cotidiana, assim como o rompimento das barreiras entre arte e nãoarte são as principais preocupações do momento, atentando para ações e categorias como a performance, happening, arte ambiente, arte pública, arte processual, arte conceitual, land art etc., que remontam às experiências realizadas pelos surrealistas e sobretudo pelos dadaístas. Muitos outros acontecimentos ‒ exposições, happenings etc. ‒ se seguiram a partir da atuação dos artistas do Equipe 3 em Campina Grande, sempre carregadas de novidades estéticas e políticas. E, finalmente, em 1969, é que entra a encomenda do reitor da URNe, Edvaldo do Ó, para Chico Pereira realizar o painel Tropicália, objeto deste artigo. Mesmo com o afastamento do reitor no andamento da execução do painel, houve continuidade da obra e, ao mesmo tempo em que o artista era elevado à função de novo diretor do Museu de Arte Assis Chateaubriand. O que aqui torna-se relevante destacar é o caráter conceitual da obra, sugerido por Edvaldo do Ó ao encomendá-la a Chico Pereira onde, ele próprio, afirma, em 1979, no livro Os anos 60: “O painel deveria ser uma obra de referência da arte dos anos 60, um documento visual que registrasse para a posteridade as novas linguagens estéticas que surgiam e a década que ia começar. Por influência do movimento Tropicalista, a obra recebeu uma forte dosagem pictórica de colorismo intenso e dos quadrinhos, na época despontando sob a crítica de uma revisão, participação de seus heróis maculados pelas situações criadas na composição”. Realmente, vemos na obra, inaugurada em 1969, as alegorias, símbolos e signos da Pop Art ‒ como os heróis das HQʼs: Super-Homem, Fantasma, Batman e Mandrake ‒ 25 além das imagens de um astronauta no espaço (ligado a um


cilindro de ar comprimido segurado pelo Super-Homem), outro astronauta com garfo e faca em suas mãos, um videocassete, vários sinais de trânsito e símbolos gregos, fotogramas de uma escova de dentes e uma vista da Terra a partir da Lua. Também, uma estrada asfaltada no alto da obra, uma mulher “tropicalista”, flores e frutas estilizados (com o uso do estêncil), a cabeça de uma águia (os Estados Unidos?) e um autorretrato em negativo (essa foi a “assinatura” do artista na obra). No canto esquerdo uma placa com os dizeres “Quem anda com atenção, evita acidentes”... Tudo sob um céu azul típico de Campina Grande. Pelo que fui informado, o cineasta Rômulo Azevedo está produzindo um vídeo-documentário sobre a obra que continua aberta à visitação do público neste mesmo prédio ‒ construído no governo de Plínio Lemos, em 1957 ‒, onde também funcionava a já citada Escola de Arte de Campina Grande (do Prof. Miranda), abrigou outros cursos universitários e hoje o funciona o Centro Artístico Cultural da UEPB, que oferece à comunidade cursos de dança de salão, teatro, música, sanfona, pintura, desenho, ballet etc., na rua Getúlio Vargas, por trás dos Correios, centro de Campina Grande.

Manifesto do Equipe 3 Partimos do princípio de que a Arte é uma expressão em totalidade, particularmente em nosso século, das diversas tendências e manifestações de caráter estético de uma comunidade. Situamo-nos numa região onde os contatos com os maiores centros do país são de acesso difícil, quando não algumas vezes impossível, e este nosso trabalho é caracterizado por uma resposta ao nosso meio ambiente no que ele nos agride em sua estrutura carcomida pelo subdesenvolvimento. A nossa experiência, individualmente, assemelha-se e foi motivadora para este trabalho que resume as nossas aspirações, como o tema, e as nossas técnicas, como diversidade. Cada “unidade” do tríptico foi trabalhada pelos três artistas de uma maneira quase simultânea. Sendo por sua própria natureza um trabalho que não deixa margem a virtuosismos, foi permitida a cada artista uma total liberdade na escolha das técnicas a serem empregadas. Ficou, apenas, como ponto de referência, o intuito de se obter uma forma de expressão coletiva, a exemplo do que já havia sido tentado nos jogos automáticos de palavras dos dadaístas e primeiros surrealistas. Como pesquisa, este trabalho seria vazio se não mostrasse um caminho a ser trilhado: o da expressão/comunidade, arte/multidão. É nosso pensamento que, sem ferir seus fundamentais objetivos e princípios, o campo das artes plásticas seria enriquecido pelo trabalho em conjunto de artistas de uma coletividade. Iniciamos com três, mas esperamos resultados idênticos com quatro, cinco, dez ou muito mais indivíduos trabalhando a fim de obterem novas perspectivas nestes domínios da expressão artística.

Enquanto o vídeo não fica pronto, vale uma visita a esta obra que deveria ser imediatamente tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP). Fica o registro!

Dyógenes Chaves é artista visual, designer têxtil e membro da ABCA/AICA e do Colegiado Setorial de Moda/SEC/Ministério da Cultura. É professor do curso superior de Moda/Unipê. Autor do livro 2005-2010: ensaios sobre artes visuais na Paraíba (Programa Banco do Nordeste de Cultura, 2ou4 Editora, 2013) e do Dicionário das Artes Visuais na Paraíba (FMC, Edições Linha DʼÁgua, 2010). Organizou o livro Núcleo de Arte Contemporânea da Paraíba-NAC (Coleção Fala de Artista/Edições Funarte, Rio de Janeiro, 2004) . Editor geral da Segunda Pessoa.

Notas 1 Após viver em Nova York, onde cursa artes gráficas no Pratt Institute, entre 1982 e 1983, Alex Vallauri (1949-1987), considerado artista pioneiro do Grafite no Brasil, em 1985, apresenta a série A Rainha do frango assado na Bienal Internacional de São Paulo. 2 A obra de Rubem Navarra sobre o Barroco mineiro e o Modernismo (além de crônicas, algumas ainda inéditas), compõe um apanhado da maior importância para o estudo e a compreensão da arte brasileira. Infelizmente, é pouquíssimo conhecido até em sua terra natal, Campina Grande.

Campina Grande, 18 de abril de 1967. Eládio de Almeida Barbosa Francisco Pereira da Silva Jr. José Anacleto Elói de Almeida

Fontes primárias Entrevista com Francisco (Chico) Pereira da Silva Júnior, João Pessoa, em outubro de 2013. Referências CÓRDULA, Raul. SILVA JÚNIOR, Francisco Pereira da. Os Anos 60: revisão das artes plásticas da Paraíba. João Pessoa: Funarte/UFPB, 1979. SILVA JÚNIOR, Francisco Pereira da. Memórias e anotações. João Pessoa: Grafset, 2012. SILVA JÚNIOR, Francisco Pereira da. Paraíba - Memória Cultural. João Pessoa: Grafset, 2011.

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Painel Tropicália (restaurado), Restaurante da FURNe (hoje UEPB), Campina Grande, 1969 (Foto: Chico Pereira, 2013)

Alípio e Antonio Dias, Francisco Duarte, Mário Pedrosa e Gerchman, inauguração da galeria Faxeiro, 1967 (Foto: Machado Bitencourt)

Painel Tropicália, detalhes da obra e da restauração, 2013 (Fotos: Rafael Soares e Chico Pereira)

Chico Pereira, Parque do Ibirapuera, São Paulo, 1967 (Foto: Eládio Barbosa)

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A linguagem e a transgressão da veste

Almandrade almandrade2008@gmail.com

“O traje veste a história” Luiz XIV

o estilo do uniforme associados às profissões, crenças, identificação de classe, estações do ano. Podem informar o destino do usuário, a cada lugar um código ou um estilo.

A roupa desde sua origem foi determinada pela necessidade de abrigo e aparência para o corpo como a arquitetura, desde os tempos da caverna que o homem criou hábitos de pintar o corpo ou fazer uso de indumentárias confeccionadas com peles de animais para expressar seu desejo de poder e exibição. A veste e seus acessórios são meios de comunicação que espelham o modelo social. A moda é uma linguagem simbólica que ultrapassa a sua função de proteção para significar o indivíduo na sociedade, é uma espécie de identidade que fala de sua condição e/ou opções social, profissional e sexual. Em todas as épocas a roupa, além de sua função, explicitou significados, como uma embalagem que protege, embeleza, decora e identifica o produto. Com suas cores e estilos, a vestimenta é um signo e um dispositivo da condição social e cultural através do qual o homem atende suas necessidades de comunicação e expressão.

A roupa além de ser “uma extensão da pele” (McLuhan) é também uma necessidade de consumo criada pela publicidade da etiqueta. Waldemir Dias-Pino, um dos criadores da poesia concreta, faz relações entre os modelos da roupa e as formas da arquitetura: o homem moderno de calça e paletó com o arranha-céu, a tanga do índio e a palha que cobre a taba, o árabe se veste com a forma de uma tenda, a japonesa carrega nas mangas do vestido as formas dos beirais de seus telhados. A moda do vestuário aproximou-se da vanguarda, no processo das revoluções nas linguagens artísticas, cada época tem as suas vestes e elas integram o indivíduo ao meio ambiente social, cultural, tecnológico e ao grupo social. A moda pode acentuar também a divisão de classes, ou ao contrario, participar das contestações sociais. Com os Beatles, o Tropicalismo e os hippies com um estilo naturalista descontraído, nos finais da década de 1960, a roupa tinha um sentido crítico, em aparente contradição com a moda corrente, imposta pela indústria da moda, produto da revolução industrial.

As obras de arte do passado são o principal meio de informação do corpo e suas indumentárias. Grandes retratistas, como Velásquez, na Espanha de Felipe IV, registraram nas suas pinturas a moda de seu tempo, quando retrataram os nobres e sua corte. Em Velásquez podemos perceber como o preto era a cor predominante para ambos os sexos, veludos com ornamentos de prata e ouro. O vermelho também uma cor favorita e o branco era usado em raras ocasiões. No ocidente, surge durante o Renascimento o conceito de moda, quando o interesse pelo traje deixa de ser uma necessidade puramente funcional para afirmar posições hierárquicas de poder.

A partir da modernidade designers e artistas interessam-se em desenhar roupas e objetos utilitários que atendam à funcionalidade do mundo moderno. Artistas transformam a roupa ou o ato de vestir em objeto de sua experiência artística. Os construtivistas russos criaram a roupa do trabalhador, cuja principal preocupação, era a funcionalidade. O professor da Bauhaus, Johannes Ittens, desenhou uma roupa para ser usada pelos seguidores de uma doutrina de vida, criada por ele, que tinha como objetivo a perfeição. Os futuristas italianos pregavam a necessidade de uma roupa confortável, prática, agressiva, ágil e alegre, decorada eventualmente por lâmpadas elétricas.

Roland Barthes e sua semiologia da moda, fala da existência de uma língua do vestuário, postulada em escritores como Balzac, Proust ou Michelet. Para Barthes: “A moda é uma combinatória que tem uma reserva infinita de elementos e de regras de transformação.” Uma língua falada por todos e ao mesmo tempo desconhecida de todos. A roupa não só protege (função), informa, embeleza, contesta (significa), na condição de um fenômeno semiótico fala de seu usuário. A leitura da vestimenta mostra a multiplicidade, diferenças e contradições da sociedade. Valores culturais e condições econômicas determinam as opções do figurino. Existem sistemas de codificação, tais como: a cor, o tipo de tecido ou

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Os surrealistas e dadaístas posicionaram ironicamente, apropriaram-se da roupa como um instrumento de transformação da linguagem da arte. Marcel Duchamp que já havia posado como Rrose Sélavy em 1921 numa prática de “ready-made”. Em 1938, numa exposição em Paris vestiu um manequim feminino com chapéu, paletó, colete, gravata e sapatos masculino.


No Brasil, algumas experiências são pioneiras, principalmente na obra de dois artistas: Flávio de Carvalho e Hélio Oiticica. Em uma movimentada rua do centro de São Paulo, em 1956, o arquiteto e artista plástico Flávio de Carvalho, autor da coluna do Diário de São Paulo “A Moda e o Novo Homem”, desfilou com sua “indumentária do futuro”, por ele denominada “New Look”. Vestindo com meias rendadas de bailarina, saiote, blusa de nylon com aberturas laterais, o artista lançou o novo traje para o verão dos trópicos, provocou pânico e escândalo na população. Artista, arquiteto, engenheiro e escritor, Flávio, um personagem excêntrico na história da arte brasileira, apelidado de “divino louco”, não teve ainda o reconhecimento à altura do seu talento por nosso meio cultural. Desenho de Flávio de Carvalho para o seu traje de verão, New Look, 1956

Na década de 1960, as experiências de Hélio Oiticica e seu envolvimento com o samba resultaram em capas denominadas “Parangolés”. Propostas para o espectador/participante em lugar de simplesmente contemplar a cor, vestir-se nela. Uma estética da existência e não do objeto/arte, o corpo não é o suporte da obra. “O objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora“. (Oiticica) Lygia Clark e suas “máscaras sensoriais”, que integram a fase sensorial de seu trabalho, a exemplo da obra que consiste num macacão para ser vestido por um homem, contendo um zíper que ao ser aberto, ele retira uma “barriga grávida“, feita de borracha cor-de-rosa e de dentro dessa barriga, retira uma espuma de borracha. Ao praticar essa operação “cesariana“, as pessoas experimentam reações mais inesperadas. Até os heróis das histórias em quadrinhos têm suas identidades garantidas pela veste. Essa embalagem que envolve o corpo ocupa um lugar no sistema da linguagem e sua leitura é uma necessidade do mundo contemporâneo. Como forma de comunicação é abordada por várias teorias como: a antropologia, a semiologia, a sociologia e a teoria da informação. Experiência nº 3, de Flávio de Carvalho. Foto publicada em O Cruzeiro, 1956

Almandrade é arquiteto e artista visual.

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rodolfo athayde

Lisboa, 2012 (Foto da capa)

Barcelona, dĂŠcada de 1980

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Instituto dos Arquitetos, ladeira do Hotel Globo, João Pessoa, 1997 (antes da restauração)

expediente Segunda Pessoa Revista de Artes Visuais Ano 3, Número 2 ‒ Set-Out-Nov de 2013 Editor-geral | Dyógenes Chaves Gomes (ABCA/AICA) Jornalista responsável | William Pereira da Costa DRT-PB 792 Conselho editorial | Dyógenes Chaves Gomes | Francisco Pereira da Silva Júnior | Gabriela Maroja Jales de Sales | Madalena Zaccara | Maria Cristina de Freitas Gomes | Paulo Rossi | Paulo Sérgio Duarte | Rodolfo Augusto de Athayde Neto | Valquíria Farias | William Pereira da Costa Projeto gráfico | Dyógenes Chaves | 2ou4 Fotografia | Arquivo Chico Pereira | Arquivo revista O Cruzeiro | Chico Pereira | Machado Bitencourt | Rafael Soares Pereira | Rodolfo Athayde | Wênio Pinheiro Colaboradores | Agda Aquino | Almandrade | Paulo Rossi | Raul Córdula | Valquíria Farias Impressão | UniGráfica

Contatos para envio de artigos e colaborações: e-mail: revistasegundapessoa@gmail.com 2ou4 Editora/ Revista Segunda Pessoa Rua Protásio Pontes Visgueiro, 111, Jardim 13 de Maio João Pessoa-PB ‒ 58025-680 Telefones: (83) 3042.7979 / 8808.7877 www.segundapessoa.com.br

Os artigos publicados são de total responsabilidade de seus autores. Os interessados em publicar na Segunda Pessoa: devem observar as normas de publicação no site da revista. Esta edição de Segunda Pessoa (ISSN 2237.8081) foi impressa em dezembro de 2013, na UniGráfica, utilizando os tipos da família Kozuka Gothic e Caslon, em papel pólen (90g/cm²), com uma tiragem de 10.000 exemplares, sob a responsabilidade da 2ou4 Editora.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


ISSN A2 A2 A3 A7 AA8 A0 A8 A1 A

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Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


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