segunda pessoa set-out-nov 2014

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ano 4 | número 4 | set-out-nov 2014 edição especial | raul córdula

distribuição gratuita | venda proibida


Raul Córdula | Bandeira do Ego | Tecido de algodão | 80x120cm | 2005

RAUL CÓRDULA Nasceu em Campina Grande-PB, 1943. Vive e trabalha em Olinda, Pernambuco. Raul fez sua primeira exposição na Biblioteca Pública de João Pessoa, em 1960. Foi diretor de Artes Plásticas do Departamento Cultural/ UFPB (1963-1965); diretor fundador do Museu de Arte Assis ChateaubriandMAAC, Campina Grande (1967); fundador e coordenador do Núcleo de Arte Contemporânea-NAC/ UFPB (1978-1985), ao lado de Chico Pereira, Paulo Sérgio Duarte e Antônio Dias; diretor da Oficina Guaianases de Gravura, Olinda (1982-1984); diretor de Desenvolvimento Artístico e Cultural da Fundação Espaço Cultural da Paraíba-Funesc (1997-1998); membro da Comissão Nacional de Artes Plásticas da Funarte (19861988); curador do 3º Salão de Arte Global de Pernambuco, Recife (1976); integrou e presidiu o Conselho Municipal de Cultura do Recife (2002-2004); coordenou a implantação do Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas, Salvador (1994). É membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA e da Associação Internacional de Críticos de ArteAICA. Em 1992 implantou no Brasil a Associação Cultural Le Hors-Là (intercâmbio entre artistas de Marselha/ França, e de João Pessoa, Recife e Salvador). Participou de comissões de seleção e premiação de salões de arte: Salão MAM-Bahia; Salão Paranaense; Salão dos Novos de Pernambuco; Salão Municipal de Artes Plásticas-SAMAP, João Pessoa; Salão Municipal de Artes Plásticas, Natal; Prêmio Pernambuco de Artes Plásticas; 5ª Bienal Internacional de Esculturas del Chaco, Argentina; 7ª Bienal do Recôncavo, Cachoeira-BA; Prêmio Bunge de Pintura, São Paulo; Prêmio Energisa de Artes Visuais, João Pessoa. Curador da 1ª Bienal Nacional de Desenho/ VIII Fenart, João Pessoa; do SPA Tamarineira, Recife. Exposições selecionadas no Brasil: Museu de Arte Assis Chateaubriand (1967); Museu de Arte Contemporânea do Paraná (1985); Museu da Pampulha, Belo Horizonte (1985); Galeria Verseau, Rio

de Janeiro (1965); Galeria Sérgio Milliet, Funarte, Rio de Janeiro (1982); Galeria de Arte Global, São Paulo (1987); Galeria Vicente do Rego Monteiro, Recife (1990); Museu de Arte Moderna da Bahia (1997). Exposições selecionadas no exterior: Embaixada do Brasil e Galerie Le Cube, Paris; Galerie Le Hors-Là, Marselha; Festival National de Ia Peinture, Cagnes-Sur-Mer/ França; Staatliche Kunsthalle Berlin e Galeria Einstein, Berlim. Prêmios no Salão Municipal de Belo Horizonte (1964 e 1965); Salão da Jovem Arte de Campinas-SP (1966); 1º e 2º Salão de Arte Global de Pernambuco (1974 e 1975); XXXVI Salão de Artes Plásticas de Pernambuco; Prêmio Gonzaga Duque, Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA (2010); Prêmio Sérgio Milliet, Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA (2013), pela publicação da obra “Utopia do Olhar”. Escreveu os livros: “Os Anos 60: aspectos das artes plásticas na Paraíba”, Edição Funarte (1980), coautoria de Chico Pereira; “ALMANAC”, Edição Funarte/ UFPB (1980); “Fragmentos”, Edição Funesc (1997); “Caminhos de Pedra”, Edição URB/ Recife, coautoria de Betânia Luna e Jane Pinheiro; “Tereza Costa Rêgo”, Olinda (2009); “Memórias do Olhar”, Editora Linha DʼÁgua, João Pessoa (2009); “Utopia do Olhar”, Funcultura/ Fundarpe (2013). Atualmente é vicepresidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte-ABCA para o Nordeste.


editorial Desta vez, a revista Segunda Pessoa propõe nova (e inusitada) ideia em sua firme determinação de insistir na reflexão, documentação, estudo e divulgação sobre artistas (e instituições) que fazem/fizeram história na região nordestina: uma edição toda dedicada à obra escrita do artista Raul Córdula. O próprio Raul, há muitos anos atrás, já escreveu que “além da luta por espaços expositivos, os artistas nordestinos engajados numa produção ʻprogressistaʼ sofrem a carência de textos que teorizem suas produções em uma terra onde o papel da crítica é substituído por um colunismo social a serviço da produção de pintura tradicional que, na maioria das vezes, apenas se parece com uma produção de arte”. Noutra oportunidade, em 1995, ele alertava da necessidade dos artistas plásticos, no Nordeste, eles mesmos, terem de escrever seus textos analíticos, ensaios críticos: “Não temos tantos estetas atuando por estas bandas do Nordeste e, pior, aqueles que escrevem bem moram agora entre o Rio e São Paulo”. E é com muita alegria que a Segunda Pessoa, selecionada no Edital Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010, da Funarte/ Ministério da Cultura, apresenta nesta edição impressa (e na internet: www.segundapessoa.com.br) alguns textos de autoria deste que é um dos nomes mais atuantes das artes visuais no Nordeste, seja como criador, incentivador ou animador. São 13 textos, sugeridos pelo próprio autor, de épocas e temas variados, que refletem mesmo sua fama de homem de mil instrumentos. Uns dedicados aos seus caros amigos artistas, outros que resgatam movimentos e eventos localizados em tempo distante, mas que merecem sua oportuna ”puxada na memória”. Como é do seu feitio, Raul também nos oferece sua opinião ‒ sempre firme e isenta ‒ em assuntos até polêmicos em nossa região: arte pública e arte incomum, por exemplo.

Índice A experiência educacional do NAC/UFPB entre 1979 e 1984 4 Tinta sobre papel 7 Leon Clerot, meu amigo elefante 8 Notícias da cidade das esculturas 10 Notícias sobre seres humanos 12 Vuco-vuco: estudo para um céu taoísta 14 Arte pública 16 1º Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas 18 Notícias sobre a arte incomum 21 Labirintos 27 Breno Mattos 28 Archidy Picado e o despertar da modernidade 29

Não custa repetir, Raul Córdula tem toda uma produção ‒ pictórica, estética, política, poética, sensorial, gráfica, visual, plástica, literária, crítica etc. ‒ dedicada não apenas aos olhos do observador mas que extrapola muitas questões propostas pelo sistema da arte (tal qual o conhecemos desde há trezentos anos, pelo menos). Raul vai muito além da ideia comum em situá-lo como esteta ou pintor, como é mais conhecido. Sem dúvida, essa constatação de multiartista faz dele um raro espécime em nossas artes visuais. Ah, a fotografia da capa é também obra de Raul... Boa leitura.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010

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A experiência educacional do NAC/UFPB entre 1979 e 1984 com a UFPE. No seu primeiro momento, que nos referimos, que vai do verão de 1978 ao inverno de 1985, integrava a coordenação do NAC um conselho e uma equipe técnica compostos por professores ligados às áreas artísticas afins, além de funcionários de apoio.

No final da década de 70, em seminário promovido pela Universidade Federal da Paraíba, no Museu de Arte Assis Chateaubriand de Campina Grande, que contou com a participação dos artistas Antônio Dias e Chico Pereira, do professor Paulo Sérgio Duarte e de minha pessoa, foi lançada a proposta de criação do Núcleo de Arte Contemporânea ‒ NAC/UFPB.

Montar no Nordeste um organismo como aquele numa época de repressão política, onde a cultura tradicional dominante e a inexistência de mercado de arte apontavam para a rejeição de qualquer gesto renovador no contexto artístico, no mínimo era uma ação perigosa. Além do mais a UFPB não comportava em seu quadro professores que dispusessem de tempo para tratar de um assunto tão específico. A primeira questão, o mergulho no desconhecido território da contemporaneidade, foi enfrentada com a coragem da equipe; o segundo caso, a capacitação, exigiu uma ação mais criativa. A jovem equipe técnico/administrativa do Dr. Lynaldo, com o olhar voltado para o futuro, produziu um fato excepcional, que também serviu para impulsionar o Departamento de Arte e Comunicação. Tratava-se da Resolução 200/1978 encaminhada ao CONSEPE pelo Reitor, que permitia a contratação de artistas como professores visitantes. A Resolução 200, como ficou conhecida, foi aprovada.

A ideia de núcleos de extensão e pesquisa ganhou corpo na UFPB durante o reitorado do Dr. Lynaldo Cavalcanti que, através da Pró-reitora para Assuntos Comunitários (PRAC), entregue então ao Prof. Iveraldo Lucena, rediscutiu ações concretas da Universidade em relação ao tecido social. Já era conhecido a gap existente entre a abordagem da ciência e da tecnologia, mais ou menos atualizadas em relação ao século XX, e o trato da cultura humanística, especialmente na área de arte, cujos currículos estavam presos ao mundo acadêmico dos séculos XVIII e XIX. No texto que apresentou o ALMANAC, resumo das atividades do NAC, entre os anos 1978 e 1980, Paulo Sérgio Duarte assim coloca essa questão: “Mantém-se viva uma dicotomia pobre que reserva à arte o espaço das emoções, da sensibilidade e à ciência o trabalho da inteligência, território de exercícios intelectuais liberado das vagas do afeto. Qualquer sujeito medianamente capaz percebe a falácia desta distinção. No entanto, ela fundamenta o espaço de consumo estético delimitando-o como império do senso comum. O sujeito da contemplação ainda ocupando o centro deste corpo ‒ é um poço de inércia e encontra-se investido de todos os mecanismos ideológicos capazes de transformá-lo em verdadeira usina de burrice.” O Pró-Reitor Iveraldo caucionou essa ideia ao escrever ”No momento em que nossos campos de conhecimento trazem informações avançadas, a arte deve ser a vanguarda. E é na Universidade que se devem abrir os caminhos.”

Nossa primeira preocupação foi montar um modelo que pudesse atender ao referido abismo histórico existente no conhecimento e na prática da abordagem contemporânea da cultura e também produzir mostras de arte que pudessem motivar a comunidade em direção aos fatos novos que conduziu à arte contemporânea. Nosso principal objetivo era o público. Não exatamente o público de galeria de arte acostumado à arte como objeto decorativo, mas o público do fenômeno artístico como signo de conhecimento, objeto de fruição e fator cultural. O conceito de curadoria de arte era desconhecido no Nordeste dos anos 1980. As instituições culturais tinham como modelo instituições particulares. As galerias dos museus públicos, por exemplo, funcionavam como se fossem galerias comerciais, rechaçando qualquer manifestação artística de caráter questionador. A atividade da crítica de arte durante o regime militar era, na verdade, mais uma atividade coadjuvante do comércio de objetos de adorno. A figura do curador como defensor da ideia, da causa criativa, especialista no fenômeno artístico como

Além do NAC, a UFPB criou mais três núcleos na área cultural: Núcleo de Produção e Pesquisa da Cultura Popular - NUPPO, Núcleo de Teatro Universitário - NTU e Núcleo de Documentação Cinematográfica - NUDOC. O NAC ficou ligado ao Departamento de Artes, na época Artes e Comunicação do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, que mantém um curso de artes visuais (bacharelado e lincenciatura) e mestrado em artes visuais compartilhado

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À coordenação cabia entre outras coisas estabelecer contato entre as partes envolvidas, organizar a comunicação do trabalho inclusive redigindo os textos de apoio jornalísticos e, eventualmente, o texto de apresentação, algo assim como os atuais “textos curatoriais“, além de projetar ou assessorar a montagem da exposição ou instalação. As partes envolvidas e o público alvo eram formados por: a) artistas plásticos e integrantes do meio cultural local; b) o alunado universitário em geral, não constituído necessariamente pelos alunos do curso de educação artística do departamento de arte, mas qualquer grupo de alunos e professores interessados; c) o alunado universitário específico, formado por alunos da cadeira de Prática de Ensino, treinados especificamente para o trabalho de monitoria das mostras e eventos; d) órgãos da imprensa, como editorias de cultura dos jornais e televisão; e) dirigentes de colégios de 1º e 2º graus, públicos ou particulares, que formavam a base do nosso público alvo; f) associações, sindicatos e similares; g) público das galerias de arte. Com este universo trabalhado e com o público e contato pela imprensa, formava-se o programa de visitas guiadas, ação educativa aberta, objetivo principal na experiência de amostragem e comunicação da arte contemporânea que o NAC propunha à comunidade.

conhecemos hoje era escasso, mesmo onde as instituições culturais tinham alcançado estágios mais avançados. A formação de público passou a ser nosso desafio permanente. Mas como? De que maneira estabelecer comparações entre o olhar preconceituoso, voltado para a figura, o retrato, a paisagem e a natureza morta, e o olhar moderno não figurativo, ou contemporâneo, minimalista, fora do suporte tradicional; desincumbido de narrativas lineares, e o olhar conceitual? Como colocar para uma comunidade, que ficou à margem das informações culturais, que as folhas de papel penduradas em varais por Paulo Roberto Leal, o lixo recolhido na praia por Chico Pereira na sua instalação Um Dia de Sol, a perspectiva invertida da Excala:Áquila de Cildo Meireles, ou o Feijão com Arroz de Anna Maria Maiolino, entre tantas mostras que se sucederam no NAC, eram a mais pura expressão da cultura atual? Devo lembrar que nos primeiros dois anos de sua existência o NAC teve a parceria da Funarte, que aportou recursos para as primeiras produções e publicações de livros, cartazes e outras peças gráficas, e o transporte de exposições. Sem isto teria sido impossível deslanchar.

O papel das instituições culturais, porém, na década de 80, era questionado desde sua função primeira, a de mediadora da produção cultural com o público. Nos seus primeiros seis anos, no entanto, o NAC não perdeu de vista este objetivo. Mas, para tanto, fez-se necessária a criação de mecanismos técnicos capazes de viabilizar propostas artísticas. Na verdade, vivíamos no centro da contradição existente entre a vigorosa produção artística e a débil informação sobre o fato cultura. Esta situação proporciona todo tipo de manipulação, como a de promover algo que “se parece com a arte”, em detrimento da própria arte. Na década de 80 a produção artesanal da pintura, caucionada pelos valores subjetivos do “bom gosto”, consolidou-se através da ideologia do chamado “mercado de arte” que se caracteriza como um “varejo de imagens turísticas” ou um “comércio de revestimento de paredes”. Ficaram fora disso, mas também fora de qualquer ação justa de troca, de um lado o artista carente de recursos econômicos, periférico, marginal, rotulado pela cultura oficial como “artista popular”, envolvido pela ideologia do folclore e, de outro lado, o artista informado, atualizado, mas cujas reivindicações não

Além dos trabalhos efetuados na área da extensão e pesquisa firmamos nosso compromisso com o ensino. Daí surgiu o modelo de ação educativa que empreendemos nos seis anos de atividade em que estive à sua frente. A ação educativa do NAC teve o seguinte esquema: - As propostas podiam vir de conselheiros, coordenadores ou demais pessoas e grupos ligados ao NAC ou de artistas isolados, eram discutidas em conjunto e formavam a programação semestral. Alguns eventos faziam parte de acordos com outras universidades ou com a Funarte, nossa principal parceira, dentro do programa de artistas visitantes; - O artista visitante (o artista local também usufruía o programa) viajava para João Pessoa onde trabalhava em todas as etapas da realização do seu projeto, desde a sala de aula no curso de educação artística, diretamente com os alunos, até contatos com jornalista da área cultural. O artista também ficava à disposição dos mediadores de seu trabalho com o público geral, além de assistência à equipe de montagem.

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dizem respeito à estética tradicional e sim aos meios contemporâneos de produção. Ambos os casos sofrem os preconceitos instituídos pelo status quo. É evidente que nestas duas décadas esta situação mudou muito, e para melhor. Ao contrário da década de 1980, hoje temos as instituições privadas e o mercado das galerias utilizando-se da curadoria, das ações educativas, dos projetos editoriais e de tantas propostas anunciadas há duas décadas pelas instituições públicas, como o NAC. Temos hoje não só artistas reconhecidos nacionalmente, como também instituições culturais, públicas e privadas, de grande competência espalhadas por todo o Brasil e. Sabe-se que essas instituições desenvolvem trabalhos curatoriais cada vez mais sofisticados e competentes, cada uma com seu modelo próprio, cada qual a seu jeito. Mas é sabido também que o modelo do NAC continua vivo e serve até hoje como referência de ação cultural pioneira e avançada.

Raul Córdula Olinda, 2014

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Tinta sobre papel

É comum dizer-se que o desenho é o conhecimento básico do artista plástico: assim como se aprende a ler música, aprende-se a desenhar. Mas pouco se sabe ou se diz sobre desenho. Fala-se sempre da habilidade de reproduzir imagens através de traços, da maneira de retratar a natureza por meio de lápis e papel, ou coisas semelhantes. Conceitos assim explicam a parte técnica, mas não o conteúdo dessa atividade humana arcaica, essa velha e deliciosa mania que é o desenho.

Os desenhos de Alice Vinagre são tudo isso, registro e obra acabada, projeto e obra aberta. Vêm de dentro: dos sonhos e dos mitos que habitam sua mente fértil. Não são nada “artísticamente” comportados, são pura linguagem, beleza pura da pintura: a arte da tinta sobre tela (papel). Aliás, o título dessa exposição é crítico ‒ Pintura sobre papel ‒ e comenta o principal elemento deste espetáculo: o suporte da arte. Neste ponto, a pintura, que é uma serpente no suporte celeste, uma constelação de signos, roteiro para viajantes, transforma-se em arte, pois passa a ser um universo em si, e mesmo sendo semelhante a outros universos, nele corre o sangue do seu criador, como pontos que percorrem o espaço, fontes jorrando do nada, serpente mordendo a própria calda.

Imaginemos alguém registrando por traços a paisagem em frente. Ele está fazendo um desenho artístico, como se diz em português, ou drawing, como é em inglês. Mas se desenhamos algo que não vemos, como chamaremos a isto? Se projetamos um signo, ou um logotipo, ou se revelamos nossa alma através de traços, o que estamos fazendo? Certamente estamos também desenhando, mas esta outra visão do mesmo fenômeno chama-se design, em inglês (não há termo em português para traduzir, usa-se desenho industrial, erradamente). Preferimos dizer que estamos designando, tornando uma ideia em signo ou num objeto que identifica a si próprio, uma marca que contenha seu próprio significado.

Raul Córdula Recife, 1984

Nota 1. Texto para a exposição de Alice Vinagre na Galeria Gamela, João Pessoa, 1984

Desenho (designo) é o registro do gesto. Quando esse gesto é resultado de uma emoção, então é arte. Assim é a arte que tem o papel como suporte que Alice Vinagre faz, um quase hieróglifo, um mapa da mina, uma maneira própria de ler sua obra completa. Num fragmento, todo o edifício. É na parte desenhada da arte de Alice que se identifica a obra pictórica. O desenho é o princípio, o módulo básico. Através dele o trabalho se designa, ou melhor, se projeta e se concretiza. O desenho, para qualquer artista que o utiliza, tem um papel estrutural, é elemento de linguagem, é vocabulário. Ocorre que os materiais do desenho são excelentemente expressivos, são em si belos e sensíveis. Os papéis dos artistas são a parte mais preciosa de suas obras: joalharia e relíquia. Nos conjuntos de desenhos se encontram os estudos, os temas formais, o lado escondido e íntimo da estruturação dos quadros, seus equívocos e seus segredos. Alice Vinagre | Desenho | Mista sobre papel | 1984

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Leon Clerot, meu amigo elefante

para lá. No jipe havia mais alguém dirigindo, eu ia atrás nos bancos de metal. A estrada era ruim e ainda andamos um bocado a pé, conversando, conversando... Demoramos a chegar, mas meu deslumbramento foi enorme. A Pedra do Ingá entrou para a minha vida e nela permanece até hoje. Soube depois foi ele que, anos antes, tinha conseguido embargar a obra de uma construtora que estava destruindo o Sítio Arqueológico, fazendo paralelepípedos para calçar a cidade do Ingá do Bacamarte, licenciada pela prefeitura.

Nunca fui aluno de Leon Clerot, fui aluno de um filho seu, em Campina Grande, dele eu fui amigo. Um amigo esquisito, pois eu tinha dezesseis anos, e ele já era sexagenário. Uma pessoa de extrema simpatia que, ao lado de sua mulher, uma senhora mineira culta e elegante, me recebia na casa da Rua das Trincheiras, para onde fui várias vezes ver as coleções de coleópteros e borboletas e, quando era de tarde, tomava um café com leite e biscoitos. Ele fumava cachimbo constantemente, e tinha um nariz grande, por isso eu o chamava, às vezes, de Elefante, e parecia que ele gostava.

Mas Clerot não era apenas o defensor de nosso passado, era um artista requintado e dedicado, um surpreendente desenhista e projetista de arquitetura. Uma vez me mostrou um projeto de uma casa neoclássica, numa prancha aquarelada, algo de muito bom gosto e de perfeita técnica.

João Pessoa era uma cidade simples e linda, com seu Ponto de Cem Réis ainda não mais intacto, já contaminado pelo “art déco” talvez trazido pela revolução de 30, mas ainda sem o buraco que o descaracterizou definitivamente. De “art déco” ele tinha dois abrigos em forma de rins, muito belos, forrados de vidros translúcidos. Era todo projetado na medida certa, um dos mais belos largos urbanos que tenho memória. Lá tudo se passava, todos passavam, Balduíno Lélis muito jovem mas já envolvido com o nosso passado arcaico e cavalheresco, Carlos Azevedo com suas sobrancelhas arqueadas sempre em sinal de alerta, os poetas da Geração 59, os pintores Ivan Freitas e José Lyra. No meio de todos, sempre à tarde, nas imediações da Sorveteria Canadá, passava para conversar o Professor Leon Clerot.

Outra vez ele nos trouxe para expor na Faculdade de Direito, palco das mostras de pintura da época, uma aquarelista pernambucana de nome italiano, Aneliese Tuliolla, que nos mostrou uma série de paisagens com trens, onde a fumaça se confundia com as estruturas da Gare do Recife, algo muito ao jeito de Monet, e das paisagens com canaviais por onde ela passou, na Zona da Mata.

Eu estudava no Liceu, há algumas dezenas de metros da Faculdade de Filosofia, onde Clerot convivia com os professores de geografia. A FAFI era nosso templo, todos nós do Liceu íamos lá para fazer a mesma coisa: aprender conversando com os professores. Otávio Sitônio sempre me acompanhava, íamos assistir uma aula de Virgínius da Gama e Mello, depois eu ia diretamente à sala de mineralogia aonde, deslumbrado, via no microscópio lâminas de minerais. Minha arte abstrata começou ali. Obrigatoriamente procurávamos Leon Clerot para uma prosa, uma piada, um ensinamento.

Visitei-o certa vez no Museu do Estado da época, que ele projetou e o estava instalando num dos mais belos sobrados das Trincheiras, no trecho da balaustrada que dá para a Ilha do Bispo. Parte do acervo que lá estava eram os fósseis de trilobitas que ele colecionou. Perguntei de onde vieram, e ele me disse, apontando com o cachimbo para a Fábrica de Cimento Matarazzo que víamos no alpendre do Museu: “Parte veio de lá, eu os garimpei pessoalmente dos matacões de calcário que a fábrica puxa de dentro da terra, num acordo que fiz com a Matarazzo.” Imaginei aquele homem velho e austero, com chapéu de engenheiro na cabeça, dentro do caos das pedras demolidas procurando fósseis de baratas e conchas pré-históricas. Mas era sua razão de ser, seu modo de viver.

Num sábado de manhã um jipe parou na minha casa. Era ele, ia para a Pedra do Ingá, e me disse, “Raul, você precisa ver uma coisa bonita e importante pra sua pintura”. Mas que ele achava estranha, mas respeitava como algo em formação. Vesti minha calça Lee com uma camisa cáqui, calcei uma basqueteira e me cobri com um boné. Fomos

A última vez que fui vê-lo ele estava em cadeira de rodas, morando no Miramar. Ele e sua mulher me mostraram uma imagem de uma Santa num trono, uma Madona. “É do Aleijadinho”, me disse. Parei para ver aquela obra prima feita em jacarandá e prata. Mais uma vez me emocionei e agradeci por ter como amigo aquele homem parecido com

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um elefante, culto e sereno, mas enérgico e respeitado nacionalmente como um dos nossos grandes cientistas. Enquanto ele pode, manteve o Museu sob pau e pedra, desgastando-se com o poder, expondo-se a todas as dificuldades que a sociedade, já na época voltada para as coisas superficiais. Hoje somos uma cidade sem um Museu Histórico, aonde ficaram aquelas amonitas? O que é feito de velhos quadros de paisagens que eu via no Museu com tanta emoção? Cadê as borboletas e besouros colecionados com tanto esmero em móveis com escaninhos próprios para eles? Aonde está a fé nos homens e a esperança no futuro e nos meninos, para quem ele dedicou seu trabalho, onde estão hoje pessoas que fazem como ele: dedicam a vida à perpetuação da história? Cem anos de Clerot é um marco para a meditação...

Raul Córdula Olinda, 2007

Clerot | Pintura à óleo de José Lyra | 50x70cm | Década de 1950

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Notícias da cidade das esculturas

O Rio Paraná é a grande artéria que integra o Brasil com o Paraguai e a Argentina num complexo cultural que tem como base o povo Guarani. O Paranazão serpenteia e vibra com sua força telúrica entre terras baixas, charcos inundados por águas repletas de vida, luz e calor. Entrando na Argentina, a seiscentos quilômetros de Foz do Iguaçu, capital da Tríplice Fronteira, em pleno Nordeste do país vizinho, estão duas cidades símbolos de nossa cultura atual: na margem esquerda Corrientes, e na direita, dez quilômetro adentro, Resistência. Corrientes, de quatrocentos anos, debruça-se sobre o trecho mais largo do rio onde existe uma ponte de mais de mil metros em direção a Resistência. Corrientes é a capital da Província do mesmo nome. Já Resistência, com pouco mais de cem anos, é a capital da Província Del Chaco. Para o viajante desavisado é surpreendente a vida cultural dessa região, especialmente a força das artes plásticas. Corrientes comporta artistas dedicados ao muralismo que trabalham com a técnica aqui chamada de “grafite”, que temos em Aloísio Magalhães um de seus precursores no Brasil, técnica que consiste na colocação de camadas de reboco colorido, sendo cada camada recortada deixando aparecer a camada de baixo de cor diferente, resultando numa pintura em vários níveis com cada cor localizado em um nível diferente. Na beira do Paraná há um parque de murais de vários artistas locais e alguns brasileiros da tríplice fronteira.

O grupo de intelectuais chamava-se Fogón de los Arrieros, ou melhor, a cozinha (o fogão) dos tropeiros que transitavam pelo Chaco (que se tornou província em 1951). A ideia deste acervo ao ar livre foi concebida em 1961 como “Plano de Embelezamento de Resistência”. Em pouco tempo obras de Lucio Fontana (um interessantíssimo bronze figurativo do início de sua carreira), Gerstein, Labourdete, Fioravanti, Petorutti e outros grandes nomes da escultura Argentina espalhavam-se pelas ruas e pelas praças. Foram pensadas formas de convivência com as obras de arte e a população foi consultada sobre diversas possibilidades de relacionamento com elas. As opiniões do povo formam como que um ideário para quem hoje trata da manutenção dessa ação cultural. Entre 1977 e 1991 o Fogón de los Arrieros passou a ter sua continuidade através da Comissão para a Promoção Artística de Resistência ‒ COPROAR, ligada aos poderes municipais. Mas a partir de 91 entra na história a Fundação Urunday, grupo de escultores formado por Efrain Boglieti (falecido em 1991), Fabriciano Gomes, seu maior nome, maior incentivador e atual presidente, Mimo Eidmam, vice-presidenta, Ana Maria Taiana, Carlos Cuffia e Eugenio Milani. O curador para as obras escultóricas na paisagem é o arquiteto portenho Pradial Gutierrez. Há ainda uma ação educativa realizada por Mário Venegas e assessoria de divulgação a cargo de José Eidman e Diego Libedisnki.

Em Resistência, motivo principal deste comentário, a escultura ocupa uma importância e um espaço inédito em cidades da América do Sul. Na verdade, em termos relativos, não conheço cidade no mundo que comporte um tão grande acervo de esculturas em locais públicos. Resistência é a cidade das esculturas.

Não que a cidade não tenha pintores gravadores, artistas conceituais e contemporâneos, ela os tem e eles são muito bons, da qualidade de Oscar Daniel Nielsen e Oswaldo Marcón. Mas existe alguma coisa além do simples gosto pelas artes plásticas, uma espécie de compromisso dos habitantes com as esculturas, um acordo tácito entre os poderes públicos e o povo que possibilitou este acervo que está por toda parte, nas ruas, em frente das casas, dentro das casas, nos edifícios habitacionais e públicos, nas lojas, em praças e parques, e em um belíssimo parque projetado pelo arquiteto-paisagista Pradial Gutierrez para acolhê-las ainda mais. São mais de trezentas obras aplicadas numa cidade que não deve exceder a trezentos mil habitantes.

Esta história é recente, é pós-moderna, começou em 1961, quando os irmãos Aldo e Efrain Boglietti, empresários de turismo que representavam em Resistência a Aerolineas Argentinas, que eram também intelectuais envolvidos com a vanguarda da época, passaram a reunir em casa (hoje patrimônio da cidade, projetada pelo arquiteto Horácio Masqueroni, um dos símbolos da modernidade Argentina) pessoas ligadas à arte e à literatura. Colecionadores de artes plásticas, eles pensavam a cidade como um museu a céu aberto. A partir disso Resistência tornou-se um museu de esculturas ao ar livre.

E este número cresce porque há uma política pública dedicada à aquisição e colocação das esculturas e uma tendência do empresariado local em apoiar cada vez mais esta atitude coletiva, característica tão especial desse povo.

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Como base estratégica desta política pública, porém encaminhada pela iniciativa privada dos artistas da Fundação Urunday, existe uma Bienal Internacional de Esculturas, a Bienal del Chaco, um dos eventos responsáveis pela manutenção dessa chama que ilumina esse o olhar sobre a arte e as atitudes cidadãs que ela encerra. A Fundação Urunday, cujo nome vem de uma madeira na qual muitas esculturas da região são talhadas, para realizar a Bienal, reúne artistas convidados do mundo inteiro para trabalhar em praça púbica, aos olhos dos passantes, as obras que serão premiadas por uma comissão e incorporadas ao patrimônio da cidade.

normal da arte que acontece em qualquer localidade, e principalmente sem se dirigir ao público geral, o cidadão de qualquer cidade, das capitais que estão fora do eixo Rio/São Paulo, o verdadeiro público que reside em qualquer recanto deste país que possui mais de cinco mil municípios onde floresce o espírito criativo de nosso povo ‒ pois o Brasil é lá dentro ‒ e onde as políticas públicas, se usadas adequadamente, poderiam cumprir seus verdadeiros papeis sociais mediando com o povo o saber de seus criadores.

Raul Córdula Olinda, 2004

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Na noite da premiação da 5 Bienal, da qual fiz parte do júri, o palanque montado na Plaza 25 de Mayo, a principal da cidade, onde funcionaram as oficinas ao ar livre e os escultores trabalharam às vistas do povo, estava cercado por mais de dez mil pessoas reunidas sob um frio de dez graus. O povo aplaudia em praça pública, numa noite de sábado, propícia a programas mais familiares, seis escultores cujas obras viu serem criadas, e que seriam incorporadas ao patrimônio público. Havia música antes da recepção para entreter a massa, mas não uma música de massa, uma música local, linda, autêntica, do Chaco e dos Pampas. Os escultores, com seus jeitos de pessoas comuns eram aplaudidos com um entusiasmo que somente quem cultiva sua cultura podem fazer. Foi uma lição de cidadania para mim, que venho do Recife, cidade cheia de projetos e leis de incentivos à cultura, cuja Prefeitura mantém uma Lei de Obrigatoriedade de Inserção de Obras de Arte nos edifícios com mais de mil metros quadrados de construção, mas onde o povo ‒ mesmo os moradores dos edifícios ‒ não participa da escolha dessas obras, ou como brasileiro, oriundo de um país repleto de instituições públicas e privadas como a Fundação Bienal de São Paulo, Instituto Itaú, Centro Cultural Banco do Brasil, Casa França Brasil etc. etc. etc., e tantos museus, e tantos outros programas e projetos. Verificamos que todas estas instituições, para funcionarem de acordo com o sistema implantado, público ou privado, estão voltadas para o marketing, não para a produção de linguagem, que proporciona a cultura, dirigidas apenas para a promoção de ídolos, para o estrelato, ou então para o assistencialismo culposo da cultura da pobreza que este mesmo sistema promoveu, sem contar com o “meio-de-campo”, a produção

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Notícias sobre os “seres humanos”

Na língua dos Rikbaktsa, falada por pouco mais de 1.000 pessoas na bacia dos rios Juruena, Sangue e Arinos, no Nordeste do Estado do Mato Grosso, dentro da mata amazônica, Rikbaktsa significa ”seres humanos” (Rik é pessoa, ser humano; Bak é um reforço de sentido e Tsa é o sufixo para a forma plural). Nessa generosa língua, incluída no tronco linguístico Macro-Jê, que trata tão gentilmente seus falantes chamando-os de ”seres humanos” (que povo poderia hoje ser chamado verdadeiramente de humano?), homens e mulheres usam vocábulos diferentes, fazendo com que a terminação de muitas palavras indique o sexo de quem fala, aludindo assim à diferença na igualdade, respeitando a pessoa.

síntese da sua convivência com os elementos que formam a floresta: a plasticidade e os movimentos dos rios, a densidade da terra com seus conteúdos minerais e orgânicos, a fluidez do ar com a flexibilidade dos animais alados, e o espírito renovador do fogo. Para esses homens essa convivência se estabelece quando compreendem que viver significa participar do ciclo natural das coisas, ser ao mesmo tempo terrestre aéreo e aquático, ser bicho e gente, ser físico e sutil ao mesmo tempo. O artista branco, ao contrário, representa seu mundo de longe, como quem vê de um avião, de um telescópio ou de um microscópio, seus materiais artísticos são inertes e mortos, ele não os come, como fazem os índios.

Conhecidos também como ”Canoeiros” pela destreza com que navegam nos ”caminhos que andam”, os rios, eles são tidos como grandes guerreiros, e conhecidos também como ”Orelhas de Pau”, pelo uso dos botoques de madeira nas orelhas, os Rikbaktsa são, na verdade, pessoas da floresta, com valores objetivamente selvagens, cultivadores da beleza, da natureza paradisíaca que conhecem e manejam como ninguém, íntimos que são dos mistérios e magias da mata escura do coração do Brasil, centro do mundo, onde nascem como verdadeiros seres humanos.

O índio, porém, come sua caça e transforma seus restos: penas, couro, chifre, dentes, em objetos simbólicos e belos. Comer a caça é se transformar um pouco nela, ser peixe, pássaro, quadrúpede, ruminante. Nessa intimidade com a morte que promove o renascimento eles praticam um enorme intercâmbio no grande manancial da floresta para onde toda a vida converge. Plantam e caçam, colhem e pescam. Cultivam milho, batata-doce, cará, mandioca, inhame, urucum, banana, abóbora, frutas, castanhas e mel. Fazem filhos, roças, coivaras, utensílios, redes, potes, lanças, flechas, flautas, ocas, canoas, remos, e arte plumária. Comem quase tudo que se move, com exceção do Jacaré, do tamanduá-bandeira, das cobras, onças e macacos da noite, uma espécie de pelagem branca, mas comem todos os outros tipos de macacos, e ainda porcos do mato, cotias, pacas, veados, quatis, antas, tatus e ariranhas, e comem também os peixes, ovas de tucunaré que se agarram nos galhos das árvores submersas, tracajás, cágados, pintados, cacharas, jaús, pacus e dourados.

Convivem com tribos vizinhas como os Cinta-Larga, Suruí, Tapayuna, Irantxe, Pareci, Nambiquara, Enauenê-Nauê, Mundukuru e Apiaká, respeitando seus territórios, suas cosmogonias e suas crenças. Mas são também obrigados a conviver, num arremedo de paz controlada desde 1962, com os tais e famigerados homens brancos, como nós brasileiros, e alemães, portugueses, franceses ou americanos que se apresentam no meio da mata como missionários, seringalistas, madeireiros, mineradores ou agropecuaristas. ”Pacificados” por jesuítas nas décadas de 1950/60 eles tiveram, como herança dessa ”paz”, 75% dos indivíduos da sua tribo dizimados por gripe, sarampo e varíola.

Os pássaros expressam o desejo e a paixão deste povo, e também sua misteriosa origem. A sociedade Rikbaktsa é dividida em duas partes associadas aos pássaros, uma à arara amarela (Makwaratsa), a outra à arara cabeçuda vermelha (Hazobtisa), cada uma dessas partes é subdividida em vários clãs associados a animais silvestres, sendo os pássaros os elementos dominantes. Eles os caçam e os comem, e se adornam com as penas que restam. Os pássaros são ararinhas, papagaios, gaviões, jupuiras, mutuns, mutuns-carijós, tucanos, tucaninhos, garças, patos, marrecos, biguás, jacamins, jacus, jacutingas, macucos, macuquinhos, pombas, corujas e passarinhos de todo tipo.

Guerreiros no passado e resistentes pacíficos agora, os Rikbaktsa expressam seu ”estar no mundo” através do olhar, da mão e do espírito, criando sua maravilhosa arte: pintura corporal, plumária, cerâmica, tecelagem e carpintaria de utensílios da taba e da canoagem. A arte indígena é uma atividade à parte, diferente do que o homem das cidades compreende, é atividade fundamental, é a expressão da

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Sul, os igapós, igarapés, rios, lagos, pantanais ou charcos, e os mares internos onde circulam, conscientes de sua inteligência prática e criativa, falando com a floresta.

A arte plumária dos Rikbaktsa, porém, não vem apenas dos restos da caça, eles também criam várias espécies de araras, por exemplo, das quais retiram as penas de vez em quando, e elas renascem em uma semana com cores ainda mais fortes ou mais “maduras”, como eles dizem, depois de cada arrancada. Hoje criam também galinhas para ter ovos e carne, mas também pelas longas penas do rabo do galo que incorporaram aos adornos de cabeça. Também apanham as penas perdidas pelos pássaros na floresta depois das mudas, ou as plumas deixadas em antigos ninhos.

Invisível é tudo o que é imaterial, mas também é tudo o que aparece nos sonhos, o que chega de uma dimensão alterada da consciência: os espíritos da Amazônia, a caipora, a iara, os deuses da mata. É também o que está na memória e o que se projeta no futuro: a noite escura, o uivo e o pio, o rosnar e o cantar, o som das asas batendo, o frio, a dor, o sono e a morte. É ainda o tempo dentro do homem, a infância oculta, a velhice oculta, O micróbio, a febre, o medo, a fome, a ausência. É também, e, sobretudo, o amor, o gozo, o sabor, o sopro, o ritmo, o coração, o êxtase e o intraduzível prazer contido em sua beleza.

As penas são o principal meio de colorir, são como um tipo de pigmento que traz já em si a forma, a textura e a expressão, diferentes da tintura do urucu, do jenipapo, do carvão ou da calda da argila que atendem ao traço da mão como a tinta dos artistas brancos quando desenham ou pintam seus universos representativos. Penas, vermelhas, verdes, azuis, amarelas, nos seus tons vibrantes como a natureza fez atendem a uma pulsão construtiva, uma vontade de organizar o mundo, de compor a desordem colorida desmembrada do corpo dos pássaros, transformando-se em objetos de adornos de todo tipo, como cocares, máscaras, enfeites de nariz, orelha, perna, braço, cintura, todos significantes, todos fundamentais para a relação com o mundo. Fibras de algodão, cipó, caroá, hastes de palmeiras, ceras de abelhas e de outras origens, resinas, sementes e caroços formam as amarrações, os detalhes, as estruturas, os cimentos, as colas, os acabamentos desses objetos orgânicos e ergométricos, articulados com a forma humana como as vestes harmônicas e simbólicas desses seres afeitos à profunda e indizível beleza.

Raul Córdula Olinda, 2002

Dentro da mata a vida é um constante diálogo entre o que é visível e o invisível. O visível é imediato, agora, aqui, ali, na frente, em cima, atrás, dos lados. As árvores, as folhas, os cipós e os bichos, a chuva, a lua, o sol, as estrelas. É o homem pronto para a guerra, para a dança e para a procriação e o amor, adornado de plumas, paramentado, orgulhoso de seu corpo e de sua vida de guerreiro. É a mulher parindo, construindo o novo dia, pintada de formas geométricas, adornada de penas, tirando mel das pedras, leite da terra. É o canoeiro remando no rio Sangue, viajando nas veias e artérias vitais da mata, no coração da Amazônia, na pulsação do Brasil. São os seres das águas da América do

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Vuco-vuco: estudo para um céu taoísta

”Sem sair de casa, Conhece-se o mundo. Sem olhar pela janela, Vê-se o Tao do Céu. Quanto mais longe se vai, Menos se sabe.”

Vuco-vuco é o nome popular de qualquer loja, bazar, lugar onde se compra qualquer coisa, onde se encontra e se negocia tudo, espaço de aspecto caótico que abriga multidões. Patrício se refere ao Bairro de São José, aos Mercados de Casa Amarela, Madalena, Boa Vista, ou a lojas dispersas pela cidade por onde ele peregrinou em busca dos materiais utilizados em sua arte, principalmente os dominós e os botões. De uma instalação que apresentou no Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas, que constava de centenas de dominós “desarrumados” sobre uma mesa (quem conhece sua obra, se recorda de milhares de dominós arrumados compulsivamente em vários jogos no chão ou em suportes de parede, em composições exatas) ele desenvolveu a série de múltiplos que nomeia esta mostra: vuco-vuco, pequenas composições realizadas com as mesmas peças de dominó que variam em tamanho, cor, material e a textura do esmalte sintético, elemento surpresa que, de acordo com a secagem, resulta em diferentes aspectos.

Lao-Tsé (Tao-Te King, XLVII)¹

O homem nosso contemporâneo não se contenta mais em conceber a realidade como a paisagem vista da janela. Temos (e vemos) diversas realidades, podemos mesmo escolher a realidade na qual queremos pertencer ou estar. Nesta questão sabemos que qualquer objeto, por mais simples que seja, dependendo do contexto em que se coloque, pode significar diferentes coisas. Compostos em conjuntos os objetos se transformam em coisas absolutamente diversas de suas formas e aparências primárias: pedras em castelo, tijolos em casas, folhas de papel em livros. A obra de alguns artistas, entre eles José Patrício, se desenvolve assim, a partir de um princípio arquetípico. Na década de 1990, quando os papéis que ele fabricava significavam não apenas o suporte de seu trabalho, mas sua própria expressão, ele já tinha como sua base composicional uma malha quadrada, estrutura que suportava suas variações de texturas, cores, pesos, símbolos. Dessa malha, suporte da azulejaria árabe, sobrevive a tessituras que mantem sua obra recente. Lembremos que a malha, em sua sequência modular, sobreviveu dos espaços arquitetônicos coloniais até o espaço virtual, pois faz parte da estrutura da linguagem binária. Arcaica, permanece, pois, como elemento atemporal, esta é uma das causas de a arte de Patrício, embora centrada em questões formais, parecer sempre nova, contemporânea na sua essência, pois Lao-Tsé anuncia: “O antes e o depois se seguem mutuamente.”, e também: “Quem sabe estabelecer limites não corre perigo e dura eternamente.”

O Vuco-vuco exprime a abundância e a generosidade do artista quando aproveita (recicla) uma criação anterior transformando-a em objetos múltiplos, democráticos, rearrumando o caos, e assim comungar com o outro, o público. Os vuco-vucos do mundo, os mercados persas, as medinas, os bazares, os armarinhos, as mercearias, as feiras de Campina Grande e de Caruaru, o Saara do Rio, e tantos outros territórios de trocas, intercâmbios, misturas, mestiçagens, são modelos de universos com os mais diferentes princípios e procedências, caráteres e procedimentos, usos, costumes e culturas, assim como também são modelos de universos (realidades) as composições de Patrício, as espirais quadradas, os labirintos, as sequências numéricas de pequenas peças, dados (bozós), contas de colar, cabeças de alfinetes de costura e de marcação de gráficos, pequenas tampas e recipientes, mínimos adornos como guizos, broches e botões.

Um de seus trabalhos, composto pelos algarismos “um” e “zero”, os sinais da linguagem digital, dispostos na sua malha-suporte, parece ser o paradigma do conjunto desta exposição onde os papéis dos anos 90 e os dominós dos 2000 já não são a principal matéria, embora os dominós permaneçam exatamente no múltiplo vuco-vuco, título da mostra que apresentamos, sendo o único aspecto de todo conjunto que foge da base modulada.

Misteriosamente Lao-Tsé nos diz: “O Tao gera o Um. O Um gera o Dois. O Dois gera o Três. O Três gera todas as coisas.“ “Todas as coisas” parece ser a meta de José Patrício quando reúne mais de seis mil botões, diferentes entre eles, numa única peça. Algo notável como a visão da Via-Lactea, um estudo (projeto) para um Céu, um Céu taoísta, perfeito objeto para a contemplação e a meditação. Este objeto não

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significa apenas seu titânico limite numérico, mas a jornada sem limite do artista em busca de cada pequena peça que a compõe, procurando nos armarinhos do Recife seus tesouros ocultos em pequenas caixas que mais escondem do que mostram. É o resultado de uma Odisseia onde o Ulisses também tece sua trama, incorporando no herói o saber do artista. O cosmólogo Martin Rees, no seu notável “Apenas seis números”², cita o seguinte trecho de Santo Agostinho: “O universo foi trazido à existência em um estado incompleto, porém agraciado com a capacidade de se transformar, de matéria disforme, em um arranjo verdadeiramente maravilhoso de estrutura e formas de vida.” Os artistas que constroem sua obra como Patrício, fazem parte do universo ‒ pelo menos deste universo onde achamos que estamos ‒ como agentes dessa transformação do caos em ordem.

Raul Córdula Olinda, 2014

José Patrício | Preto branco / branco preto | Esmalte sobre peças de plástico e pregos de metal sobre madeira | 148x148cm | 2007

Notas 1. Todas citações do Tao-Te King de Lao Tsé neste texto são tiradas da edição da editora Pensamento traduzida do chinês para o alemão por Richard Wilhelkm e do alemão para o português por Margit Martincic. 2. Editora Rocco.

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Arte Pública

A arquitetura, tratada em sua essência, é arte; arte de dimensionar e compor o espaço de se viver, o espaço edificado onde estamos o tempo todo, pública ou privadamente. O espaço arquitetônico é responsabilidade do arquiteto, assim como o espaço artístico é do artista. O arquiteto é o profissional capaz de projetar com responsabilidade um edifício com todos detalhes e ornamentos cabíveis, de projetar uma residência, um conjunto residencial, uma rua ou uma cidade. É claro que admitimos a existência do arquiteto espontâneo, o mestre de obras capaz de criar e edificar belos e importantes prédios ou o pedreiro ingênuo, artista do povo responsável pela casa de fachada colorida que vemos nas pequenas cidades e que representa a cara do nosso povo. Estes criadores estão para a arquitetura como o pintor ingênuo (chamado também naïf) está para a pintura. Mas são pessoas realmente talentosas, capazes de realizar verdadeiras obras arquitetônicas. Ainda não podemos nos esquecer de gênios da arquitetura que não tiveram formação acadêmica como Le Corbusier ou o brasileiro Zanini, por exemplo.

Lei semelhante passou a existir em João Pessoa nos anos 90, adaptada às condições e necessidades locais, e também às ideias surgidas nas discussões que a legitimaram. Muito que bem! As ideias, as discussões, o “frisson”, as idas e vindas dos artistas locais que discutiam as possibilidades de aplicação dessa lei talvez não tenham deixado as pessoas envolvidas com ela levar em contas as consequências que a lei do Recife, que gerou a de João Pessoa, produziu. Teria sido importante que os artistas, que reunidos a legitimaram, tivessem visitado o Recife pesquisado os dramáticos exemplos de “arte aplicada à arquitetura” que fazem o horror ambiental dos bairros de classe média da cidade. Qual a razão do mau uso que esta lei passou a ter no Recife e que ameaça João Pessoa? Antes de qualquer coisa o sentido corporativo e autoritário deste instrumento que obriga o arquiteto a colocar um apêndice na sua obra, sem que ele tenha nenhuma ingerência ou emita qualquer opinião, criando distanciamento e desinteresse do próprio arquiteto por um “detalhe” tão precioso. É notório que no Recife, na maior parte das edificações, quem decide o tipo de mural ou escultura que será obrigatoriamente aplicado é a empreiteira, que em quase a totalidade dos casos opta pela peça mais barata e a apresenta à comissão de artes plásticas da Prefeitura, responsável pela aprovação, como única opção.

Reitero o conceito de que a obra arquitetônica, mesmo que importante, necessariamente não será uma obra de arte, assim como nem toda pintura de porte tem de ser também uma criação artística: existem edifícios ruins que são importantes politicamente ou promocionalmente, ou ainda historicamente, assim como existem pinturas importantes por razões diversas de sua qualidade artística.

Ora! Quem está autorizado a indicar uma obra de arte para um edifício é o seu autor: o arquiteto. A obra é dele, que definiu o estilo, o espaço, o material e a cor, e que definiu inclusive a possibilidade do edifício não conter uma obra de arte. É dele a prerrogativa de definir este assunto e indicar o artista, ou artistas, que criará a obra para compor seu edifício. Isto é uma questão de direito autoral e ninguém mais tem este direito. O arquiteto pode, porém, numa postura ética e transparente, propor um concurso de projetos onde seriam convidados artistas cujas obras se alinhassem esteticamente com o edifício projetado. Nesse caso as questões técnicas estariam especificadas no edital ‒ material, dimensões etc. Assim fizeram os arquitetos Eduardo Aquino e Hugo Peregrino, ao convidarem três artistas para apresentarem projetos para o mural existente na fachada do edifício da Associação dos Plantadores de Cana da Paraíba. Este concurso foi ganho merecidamente por Miguel dos Santos e representa hoje um excelente exemplo de arte pública naquela cidade.

Há uma lei municipal na cidade do Recife criada em 1960 pelo escultor Abelardo da Hora quando foi Diretor de Parques e Jardins da prefeitura de Miguel Arraes, aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal e sancionada pelo Prefeito Carlos de Lima Cavalcanti, que obriga, dentro de determinadas condições, que todo edifício construído com mais de 1.000 m² de área, seja integrado por uma obra criada por um artista plástico. Uma lei que foi ótima há 40 anos, criando um mercado seguro para os poucos artistas existentes no Recife, nos dando verdadeiros monumentos como as esculturas do próprio Abelardo, e as de Corbiniano Lins e Francisco Brennand, por exemplo. Mas esta lei envelheceu, ficou viciada, perdeu seu momento diante do perfil profissional dos artistas e do perfil empresarial das empreiteiras.

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Um segundo registro é que a partir da escolha do arquiteto o morador ou usuário deverá saber, para seu próprio conforto, o que está comprando e com o que irá conviver vida a fora, pois sendo a obra propriedade do condomínio, este será também proprietário da obra. Isto vale também para a obra instalada em um edifício público onde conviverão com ela os funcionários ou operários e público em geral. A questão do preço da obra é mais grave. É claro que toda boa arte é cara, arte barata ou é de um artista principiante, que em tese não teria ainda maturidade artística para que uma obra sua fosse colocada prementemente para o convívio da cidade, ou possivelmente não será uma obra confiável. A maneira certa de resolver este problema seria a obra entrar no orçamento do edifício como um percentual do custo da construção. Mais uma vez se torna necessário que o arquiteto se entenda com o artista para que ele crie algo compatível com o edifício em relação ao estilo, material expressivo etc. Outra questão que exige este diálogo é a escala e a locação da obra: não é possível encarar um pequeno objeto tridimensional escondido atrás de uma grade ou entre plantas de um jardim como a solução para algo tão importante, como vemos com frequência. Mas a tradição nos ensina como devemos proceder no caso de um assunto tão sério quanto a convivência do cidadão com um edifício, algo que ele terá que ver por toda a vida. Vejamos os edifícios clássicos, as fachadas góticas, os elementos escultóricos do Renascimento onde as obras de arte ou ornatos foram criados pelos artistas de maneira a se harmonizarem com a arquitetura, criadas pelo artista dialogando com o arquiteto. O edifício não é suporte para qualquer quadro ou escultura, às vezes para nenhum: o espaço arquitetônico é autônomo, fala por si só.

Raul Córdula Olinda, 2008

Obra (relevo em metal) de Raul Córdula | Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba (vista da Praça João Pessoa e fachada)

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1º Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas

Os Salões de Arte não são novidade em parte alguma. São instrumentos institucionais para aferir, comparar, mostrar, movimentar, polemizar, sugerir caminhos e integrar artistas de diferentes regiões. Eles trazem em si processos em desenvolvimento na dinâmica cultural que podem incorporar os novos acontecimentos artísticos e também as crises pelas quais a arte passa. Certamente isto terá consequências importantes na formação do meio artístico de qualquer lugar.

qualidade; a qualidade de uma exposição de arte depende de fatores que vão além das individualidades dos que a compõem. Devem-se aos salões, como veículo de ideias que também são a concretização e a multiplicação de algumas das propostas mais importantes na história recente das artes plásticas, às vezes como ponto de apoio a estas propostas, outras vezes como oposição a elas. Podemos citar o Salão em Preto e Branco, versão do Salão Nacional de Belas Artes na década de 40, onde os artistas, reivindicando melhores materiais de trabalho ‒ especialmente tintas ‒ e não contando com facilidades para importação, se apresentaram com obras pintadas em preto e branco. Este acontecimento, liderado pelo heróico Iberê Camargo, teve lugar no edifício do Ministério da Educação e Cultura, onde se realizava o salão, e se desenvolveu até os anos 80 quando a Funarte envolveu-se na questão. Hoje jovens artistas têm acesso a materiais de boa qualidade tanto nacionais como estrangeiros. Podemos citar ainda as bienais de São Paulo, que são salões também, embora com um formato específico. As bienais são responsáveis por um intenso intercâmbio de conhecimento da arte em todo o mundo e o principal beneficiário deste evento é o artista brasileiro. No outro sentido, o da reação dos artistas nos salões, o mais clássico exemplo foi o do Salão dos Recusados, que afirmou o Impressionismo na Paris de meados do século passado. Os artistas recusados do Salão da Academia de Belas Artes montaram uma exposição à parte da qual constavam alguns dos gênios da renovação do olhar, os introdutores da modernidade nas artes plásticas. A reação ao salão criou um novo conceito de mostra da arte, chamou a atenção do público e, posteriormente, da crítica especializada.

A primeira dessas crises a que nos referimos é resultante da avaliação do conjunto da produção artística recente da comunidade onde ele acontece. O limite dessa crise é a seleção que um grupo de especialistas deverá fazer, com a finalidade de proporcionar ao público uma síntese desta produção naquele momento. É evidente que os regulamentos dos salões não estão obrigados a uma seleção do tipo “isto aqui é bom, isto não presta”. Mas é também bastante óbvio que não se pode pensar em mostrar toda a produção simbólico/visual de uma cidade, mesmo porque nem tudo que é pintado, desenhado, gravado tem que ser arte, e mesmo se fosse assim não haveria espaço para tudo. Um dos principais objetivos de um salão é mediar com o público o melhor que existe no território da visualidade. Um salão não é feito apenas para o artista. Apesar de conter um concurso e do prestígio que a premiação possa representar para seus participantes, se apenas isso fosse o salão, seria uma atividade corporativa. O salão é feito principalmente para o público, é um instrumento educativo destinado à sociedade, ao cidadão comum que é, em última análise, o principal responsável por sua existência, pois é dele que vêm os recursos fundamentais para o seu custeio. Os Salões de Arte, assim como todo “show” cultural produzido pelo governo, são o retorno lógico, seguro, qualificado do capital público.

Se os salões têm hoje no Brasil regulamentos flexíveis, isto se deve a uma história de mais de meio século, eivada de grandes momentos como a afirmação de artistas do nível de Iberê Camargo, Rubem Valentim, Ivan Serpa, Cícero Dias, Amílcar de Castro, Arcângelo Ianelli, para citar apenas alguns entre tantos, absolutamente irrefutáveis, mestres da arte brasileira. Mais recentemente, com a criação pela Funarte do Salão Nacional de Artes Plásticas, a lista de grandes artistas vindos de todas as regiões do Brasil é enorme.

A qualidade deve ser, portanto, a condição máxime para o espetáculo patrocinado pelo Estado. A qualidade por si justifica o advento da seleção. Regulamentos diversos podem propor formas diferentes de seleção: comissão curadora, comissariado etc. Mas sempre haverá um grupo de especialistas responsável pela avaliação de prérequisitos indispensáveis pela qualidade do que será mostrado. Isto não significa que alguns artistas eventualmente não selecionados, detentores uma obra madura e prestigiada, tenham sido recusados por má

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Os salões revelaram movimentos artísticos formadores da nossa identidade cultural, como o Concretismo do Rio de Janeiro, o Neoconcretismo de São Paulo, a Nova Objetividade também carioca que teve continuidade no Tropicalismo de influência provincial, o Armorial do Recife ou a Pintura Cabocla de Cuiabá, para citar apenas os mais evidentes.

Plásticas, do qual participam artistas de Pernambuco, Paraíba e Bahia. Esta exposição será montada no Sebrae Pelourinho, e de certa forma se integra em outro evento também ligado à atuação da Le Hors Là, que é o Parque das Árvores Queimadas, instalação de autoria de Zenildo Barreto que está prevista para ser montada na Praça Municipal. Esta instalação será mostrada em Marselha no ano que vem a convite da Curadoria de Arte Contemporânea daquela cidade.

A Bahia teve, até a década de 50, um salão de arte acadêmica que resultou numa produção considerada hoje de grande importância para a cultura brasileira. As duas bienais da Bahia em 67 e 69, embora a última tivesse sido interditada pela repressão militar, chamaram para cá as atenções de toda a comunidade artística nacional e a sua extinção se tornou uma perda até hoje lamentada. Dois outros salões de arte contemporânea foram realizados pela Fundação Cultural da Bahia em 1988 e 1989 sem ter, no entanto, continuidade.

No Solar do Unhão, onde será montado o salão propriamente dito, acontecerá um seminário sobre a obra poética da portuguesa Florbela Spanca, com a coordenação do professor Ildásio Tavares e apoio da Fundação Casa de Jorge Amado e da Universidade Federal da Bahia. O seminário irá inaugurar o auditório do Solar onde também acontecerão espetáculos de dança, teatro e música. O 1º Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas é uma das mais bem sucedidas realizações do gênero no Brasil. Graças ao empenho da Fundação Cultural do Estado e da excelente equipe do MAM-Bahia, coordena por seu diretor Heitor Reis, tivemos quase 900 inscrições de diversas partes do Brasil, das quais foram selecionados 145 artistas de 27 cidades de 13 estados, além de artistas brasileiros residentes em Paris e Londres. Da Bahia participaram 48 artistas, entre novos e veteranos. O público terá oportunidade de ver, lado-a-lado, algumas estrelas da arte contemporânea brasileira, e jovens que participam pela primeira vez de um salão, iniciando assim suas carreiras com o pé direito.

A instigante e importante produção artística da Bahia há muito que merece ter como território de lutas e vitórias um salão de arte. A criação do 1º Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas pretende ocupar este espaço criando um evento anual, de âmbito nacional, onde o público e os artistas possam acompanhar e testemunhar a arte brasileira dos vários Brasis. Além disso, o Salão MAM-Bahia prevê eventos paralelos diferentes em todas as versões. No 1º Salão estão sendo montados vários eventos como a exposição “Modernidade na Arte Baiana”, que como o Concurso de Monografias que tem o mesmo tema, resgata a história recente da arte baiana, entregando ao público dois documentos ‒ um em forma de exposição de arte, outro em forma de livro ‒ fundamentais para a compreensão do nosso olhar. A exposição tem a curadoria da professora Sophia Olzewski, da escola de Belas Artes da UFBA e será montada no hall do Teatro Castro Alves, local onde nasceu o museu. O concurso de monografia foi vencido pelo artista plástico Sante Scaldaferri com um texto que tem como tema a obra de José Guimarães, precursor da modernidade entre os baianos. O prêmio inclui a edição da monografia e seu lançamento durante o salão.

Certamente que alguns artistas de muito bom nível, da Bahia ou de outros estados, não foram aceitos pela Comissão de Seleção. Toda comissão dessa ordem tem seus critérios, suas lógicas, seus erros e seus acertos, assim como todo artista tem grandes e pequenas fases. O 1º Salão MAM-Bahia de Artes Plásticas foi aberto ao público no Solar do Unhão, sede do Museu de Arte Moderna da Bahia, ontem, às 20 horas. O evento prossegue até 21 de janeiro de 1995. Este aspecto fica assegurado o cumprimento, pela instituição pública, de seu papel fundamental, tratando-se de uma instituição cultural: a mediação da produção artística com o público. O 1º Workshop faz isso de uma forma completa, pois não está apenas mostrando ‒ isso o

Ainda como eventos paralelos, o 1º Salão estará mostrando uma exposição coletiva com artistas integrantes da Associação Cultural Le Hors-Là, de Marselha, que existe em função do Intercâmbio Cultural França-Brasil nas Artes

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MAM-Bahia já faz com extrema competência ‒ mas produzindo obras de 16 artistas de gerações diferentes, entre eles alguns já maduros e consagrados do público brasileiro e outros emergentes e renovadores, nesta cidade do Salvador. Este Workshop revela, sobretudo, uma arte mestiça. Mestiça na sua forma e no seu conteúdo eivado de símbolos étnicos que, na sua mistura e nos variados meios de combiná-los formam nossa identidade mais forte, sem resquícios de um “regionalismo” estéril mas expressando a marca de um universalismo que traduz os traços brancos, negros e índios e que recria uma ideia de tempo onde os signos arcaicos aparecem ao lado de elementos tecnológicos, aspectos belasarteanos, junto à geometria sensível, volumes ao lado de planos, instalações, ocupações de espaços tradicionais por conceituais, abordagens ecológicas paralelas às historicidades referente às culturas do cacau, do fumo e do açúcar.

Solar do Unhão | Sede do MAM-Bahia | Salvador

Este painel de nossa sociedade que o artista atual revela normalmente é mostrado de forma isolada nas exposições individuais, em produções de um só artista. O Workshop é uma oportunidade de unir artistas e produzir suas próprias expressões a partir de diálogos, trocas e interações inter linguísticas. O resultado é um painel mais perto de uma expressão que é a nossa, sem precisar pertencer à tradição do poder, mas pertencendo ao poder do artista. Emerge, sim, uma arte atual na Bahia, e uma parte dela está neste 1º Workshop MAM-Bahia de Artes Plásticas.

Raul Córdula Salvador, 1994

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Notícias sobre a arte incomum “Uma das funções mais poderosas da arte é a revelação do “inconsciente, e este é tão misterioso no normal como no chamado anormal. As imagens do inconsciente são apenas uma linguagem simbólica que os psiquiatras têm por dever decifrar. Mas ninguém impede que essas imagens e sinais sejam, além do mais, harmoniosas, sedutoras, dramáticas, vivas ou belas, constituindo em si verdadeiras obras de arte.”

o sabemos através das suas importantes participações na vida da cidade de Atenas não apenas como artistas, mas como cidadãos que transformaram a Acrópole num dos maiores monumentos da humanidade. Em grego tradicional a palavra para arte é techné, que é melhor traduzida por técnica: maneira de fazer. Saber fazer era o fator determinante para se atingir, na antiguidade clássica, o que chamamos hoje de arte. Mas o sistema grego ‒ democrata, porém escravocrata ‒ preconizava certa hierarquia entre os artistas, tanto que o Renascimento Italiano eles se basearam nos princípios da arte grecoromana. No Renascimento as relações entre arte e poder se estabeleceram mais ou menos na forma que ainda conhecemos.

Mário Pedrosa

O sistema da arte, tal como conhecemos hoje, tem pouco mais de quinhentos anos. O sistema da arte, não as formas e conteúdos que compõem o fenômeno artístico, ou ainda as atitudes dos artistas de hoje. Produzir objetos artísticos em ateliês e oficinas, entregar as obras a um comerciante ou coloca-las em lojas de decoração e galerias de arte, participar de concursos como bolsas, salões e bienais, competir uns com os outros, fazendo parte de uma corte ou uma elite comentada por jornalistas, estudado por críticos de arte ou conduzidos para os portais da fama pelos curadores, são ações que começaram a entrar na vida dos artistas no Renascimento. Antes a maioria dos artistas trabalhava anonimamente, não se interessava pela assinatura no canto da tela embora alguns tivessem personalidades tão fortes que seus nomes sobrepujaram suas obras.

Embora no teatro a polaridade entre o sentido apolíneo e o dionisíaco, dicotomia que Nietsche se estuda em A Origem da Tragédia, estivesse sempre presente, nas artes plásticas a abordagem da realidade, imperava. Na Grécia antiga a estatuária, principal manifestação da arte grega, era realista. Mas, se olharmos o passado antes do renascimento, se observarmos a antiguidade clássica e viajarmos pelo tempo indo à arte bizantina, à arte do extremo oriente e a arte islâmica, ou se voltarmos à Mesopotâmia, ou ainda, à América pré-colombiana e visitarmos as civilizações andinas, centro-americanas e mexicanas, se vermos a arte ínsita, primitiva, ou naïf, como preferem chamar alguns, de todos os povos do Novo Mundo, veremos que muito pouco disto estava, ou está, inserido no sistema e no mercado das artes visuais conforme conhecemos hoje.

A burguesia transformou o artista num ídolo, numa estrela, ao incentivar a competição como fator de sucesso e de riqueza: o mais bem sucedido era o mais bem pago. E é assim que a maioria pensa até hoje. Porém sistema atual da arte, onde muitos teóricos preconizam a decadência afirmando “a arte morreu ‒ viva a arte contemporânea”, é também excludente e injusto. Privilegia uma elite que foram aos Reis e Papas do Renascimento, representada pelo sistema financeiro. O poder público, por sua vez, eventualmente imita este procedimento e o oficializa.

Se existisse em outro circuito cultural a escultura de Mestre Vitalino de Caruaru, seria tão vigorosa quanto as de Henry Moore ou Brecheret, e as máscaras africanas e dos povos da Oceania que deram origem a muitas pinturas de Picasso, entre elas Demoiselles dʼAvignon¹, Crucificação e Guernica, ícones da cultura moderna, são tão eloquentes quanto as obras de Picasso, Braque ou Modigliani. No entanto Vitalino e os escultores das máscaras africanas ou da Oceania não estão no mercado de prestígio da arte, são apresentados como curiosidades, folclore e artesanato à margem do mercado. Entre Vitalino e Moore falta riqueza de

Os pintores neolíticos das cavernas europeias ou da Serra da Capivara e da Pedra do Caboclo, no Sertão nordestino, os escultores africanos de Benin ou os gregos das Cyclades, os pintores cretenses ou romanos da antiguidade, os escultores da Magna Grécia e do Império Romano, eram anônimos, e se conhecemos o nome de Praxíteles e Fídias ‒ na verdade chefes de grandes oficinas de escultura ‒

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o músico e poeta Gonzaga Leal, o percussionista e compositor Erasto Vasconcelos, Ypiranga Filho, Ana Santiago, Ana Lisboa, atual arte educadora do Centro de Arte-terapia - CAT, da mesma forma como fizeram, na experiência do Museu de Imagens do Inconsciente, artista e críticos de arte como Almir Mavignier, Mário Pedrosa, Frederico Morais, Iberê Camargo e Martha Pires Ferreira, e Letícia Damasceno.

conhecimento técnico, filosófico, estético. E falta a riqueza econômica: falta dinheiro. Se Vitalino tivesse tido uma educação europeia e os recursos que Moore teve para desenvolver sua obra, quem poderia dizer que ele não seria hoje reconhecido como um artista à altura do escultor inglês? Mas Vitalino, como milhares de artistas como ele, viveu no apartheid social, viveu à margem da sociedade, viveu na periferia do Mundo. A diferença entre “arte erudita” e “arte popular”, na verdade, é a diferença entre a “arte dos ricos” e a “arte dos pobres”. Entre a arte das galerias e a arte das periferias do mundo.

Este namoro entre a arte dos loucos e a arte dos normais é antigo e profícuo, vem desde a idade média, com Bosch e Bruegel, e passa pelos artistas românticos e pela atmosfera sutilíssima dos pintores pré-rafaelistas ingleses influenciados por Lorde Byron, pelo pintor e poeta visionário William Blake, pelo fantástico pintor Richard Dadd que numa crise de loucura matou o próprio pai, por Van Gogh, que pintou com tanta genialidade seus alter egos: o amigo Paul Gaugin e o seu médico, o psiquiatra Dr. Gachet. E ainda pelos artistas expressionistas alemães e nórdicos, com atenção para a obra de Munch, chegando aos dadaístas e surrealistas. “Corvos sobre o trigal”, a última pintura de Van Gogh, e “O Grito”, a pintura emblemática de Munch, são marcas fundamentais das ligações entre arte e loucura.

À margem da vida, título do famoso romance de Tennesse Williams, foi também título de uma importante exposição que houve no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1974, com curadoria de Frederico Morais. Ele apresentou pinturas de crianças, de idosos, de presidiários e de pacientes psiquiátricos. Frederico mostrou pela primeira vez a obra de Artur Bispo do Rosário. Este grande artista, que foi reconhecido pela crítica de arte como um dos grandes artistas contemporâneos brasileiros, nunca foi integrado ao sistema oficial da arte por causa de sua condição de doente mental, embora ele tenha influenciado profundamente a arte contemporânea, a ponto de uma das suas maiores estrelas, o cearense Leonílson, no fim de sua vida (ele viveu pouco vítima de AIDS) ter utilizado como suporte as toalhas e os lençóis do hospital onde ele fez bordados, como fez Bispo do Rosário.

No belo artigo de Teixeira Coelho editado em “Psiquiatria, Loucura e Arte”² intitulado “A arte não revela a verdade da loucura, a loucura não detém a verdade da arte”, está dito que o binômio Arte & Loucura foi uma questão importante do século XIX. Mas o mais interessante está nos comentários que o autor tece a respeito da relação entre este binômio e o nazismo. Ele revela, por exemplo, que em 1937 o regime nazista organizou em Berlim uma exposição sobre a “arte degenerada” rótulo que compreendia toda a arte dita de vanguarda feita no início do século XX. Intenção do regime: deixar bem claro aquilo que dali por diante os artistas do nazismo não podiam mais fazer. Uma das obras que foram alvo do ataque nazista pode ser vista no acervo do Museu de Arte Contemporânea da USP: “A Santa da Luz Interior”, de Paul Klee, realizada entre 1921 e 1922. Sob o título de “Ética e Alienação”, o catálogo daquela exposição deu um destaque especial à obra de Paul Klee para dizer que não passava de fruto de um esquizofrênico fugido do hospício. No discurso de abertura da exposição, adolf ziegler³ lamenta-se: “Em torno de nós vê-se o monstruoso

Bispo do Rosário não foi e não será um caso isolado. No Museu do Inconsciente, obra exemplar da psicanalista, Nise da Silveira, encontram-se artistas da qualidade de Emídgio, Diniz, Raphael, Carlos, Octávio, Abelardo, entre outros que assinam assim mesmo, com um só nome, quase anônimos, e completamente desconhecidos, como todos os artistas de todos os centros de saúde mental que emprega arteterapia. No Recife existe há muito tempo um centro de arte-terapia no hospital psiquiátrico Ulisses Pernambucano, conhecido como Hospital da Tamarineira, onde estão Ailton, Majorei, Patrícia, Dorival, Raquel e Marcelo, e para onde tantos artistas solidários acorrem para partilhar com eles seus conhecimentos, como o pintor e ceramista Joelson Gomes, o fotógrafo Luís Santos, o escultor e ceramista José Paulo,

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fruto da insanidade, imprudência, inépcia e completa degeneração. O que esta exposição inspira é horror e aversão em todos nós.”

veremos também como é abundante a expressão simbólica através da criação de imagens do inconsciente, aquilo que chamamos, a priori, de arte. Porque então são todas incomuns, se são tão comuns e tão normais na sua maneira de representar o mundo íntimo de cada indivíduo que as pratica?

Teixeira Coelho continua a revelar a realidade do preconceito nazista na sua mais cruel verdade: “Num discurso sobre a arte moderna Adolf Hitler avisara: De agora em diante, iremos empreender uma guerra implacável contra os últimos remanescentes da desintegração cultural (...). Por tudo que apreciamos, esses bárbaros pré-históricos da Idade da Pedra podem retornar às cavernas de seus ancestrais e lá realizar seus rabiscos primitivos internacionais”.

Não se estabeleceu nenhum consenso a respeito do conceito de arte no decorrer dos últimos cinco séculos. Num universo onde o repertório simbólico é tão diversificado, onde se pode comparar um desenho a grafite com uma pintura a óleo, uma instalação de Joseph Beuys com uma fantasia de carnaval, um Parangolé de Hélio Oiticica com uma gravura de Rembrandt, ou o mictório, que Marcel Duchamp transformou na sua famosa Fonte, com o edifício do Museu Guggenheim de Bilbao. Não se pode dizer mais que arte é isto ou é aquilo. O famoso diálogo de Waltércio Caldas ainda é um dos mais eloquentes teoremas linguísticos a respeito da definição da arte: “Isto é arte? Arte é isto”.

Adiante ele esclarece: “Os nazistas souberam escolher seus inimigos; Klee entre eles. Pretendeu fazer uma arte internacionalmente baseada no ʻprimitivoʼ e no ʻinfantil”. Mais tarde, esta mistura de primitivo e infantil iria resultar na chamada ArtBrut, assim nomeada e estudada por Jean Dubuffet. Voltemos aos artistas do Centro de Arte-terapia do Hospital Ulisses Pernambucano. Do ponto de vista de suas pinturas os pacientes aqui citados são todos artistas, criam símbolos visuais de grande beleza e expressão. Mas pela condição de pacientes psiquiátricos, porém, não chegam nem mesmo a ser completamente cidadãos, dependem do sistema médico e estão à margem do sistema da arte. Mas também não se consideram artistas, pois nada sabem de arte, mesmo que para eles a arte seja o território da liberdade.

Frederico Morais, certamente inspirado pelo comentário de D. Formaggio ‒ “Arte é tudo aquilo que os homens na história chamaram e chamam de arte“⁴, organizou um de seus mais instigantes trabalhos, o livro “Arte é o que eu e você chamamos de arte”, onde ele relaciona 801 definições sobre arte e o sistema da arte. Sobre esta questão quero relatar um fato que vivenciei em 1963 no Rio de Janeiro quando fui convidado para a festa de aniversário de Lígia Clark. No decorrer de nossas conversas ela me pegou pelo braço e disse: “Paraibano, venha ver meu Klee.“ Na parede do seu escritório havia um pequeno quadrado de madeira recoberta de algas secas pelo tempo, que ela tinha encontrado na praia. Alguns pregos enferrujados, furos feitos por animais marinhos e umas pequenas cascas de moluscos grudadas desenhavam esquematicamente uma carinha de menino sorrindo, como desenharia o artista suíço. O objeto se fez pelo acaso, mas foi preciso que Lígia visse nele uma referência a Klee para ela se tornar uma obra de arte, um Klee criado por Lígia Clark. Atitudes assim

O “território da liberdade” é o lugar perfeito para a singularidade expressa por eles. Por isto suas pinturas e esculturas são chamadas também de “Arte Incomum”. Não que elas sejam raras, ao contrário, são muito mais abundante e comuns do que se pensa antes de se entrar num hospital psiquiátrico. Mas a arte incomum é também abundante nas manifestações espontâneas da arte apelidada de “popular” ‒ a arte dos pobres, ou ainda nas expressões aliadas ao artesanato do barro e às estampas da poesia de cordel e muitas outras manifestações. Se nós verificarmos a arte dos índios

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foram inauguradas por Duchamp na década de 10/20 do século passado, e os objetos artísticos decorrentes disso chamam-se ready-made. Há praticamente um século a arte não se baseia mais nas questões acadêmicas, incluindo as questões autorais, ela pode se basear na própria arte, em vez da natureza, e estas apropriações há muito se legitimaram. Portanto, o que seria arte? Ou melhor, podemos ter dúvidas sobre a arte dos pacientes psiquiátricos? Se compreendermos isto, uma pergunta se faz pertinente: os médicos, os terapeutas e o corpo funcional dos hospitais, normalmente pessoas de classe média, informadas e relativamente cultas, possuem nas paredes de suas casas pinturas dos artistas internos dos hospitais psiquiátricos? Ou preferem pinturas escolhidas nas galerias de arte ou lojas de decoração, atendendo ao status social e ao sistema oficial da arte? Ou ainda, quantas vezes nos espaços oficiais da arte nós temos oportunidade de ver mostras de pinturas de usuários do sistema psiquiátrico, a exemplo da curadoria de Frederico Morais em 1974? Bispo do Rosário é um caso à parte.

Participaram de “Arte Incomum” trinta e dois artistas, os pacientes psiquiátricos como Carlos, Adelina, Emídgio, Fernando, Raphael, e também artistas ligados ao mercado de arte, como Antonio Poteiro, artistas ditos “populares”, como Geraldo Teles de Oliveira ‒ GTO, artistas de trânsito internacional, como os alemães Adolf Wölfli, e Heinrich Anton Muller e os ingleses Scotie Wilson e Modge Gill, e os arquitetos espontâneos Gabriel do Santos, do Brasil, e Facteur Cheva, carteiro francês. Annatereza Fabris, no artigo “O paradoxo do outro”, que prefacia a tese de Frayze-Pereira⁷ define a obra de Dubuffet e coloca a participação do poeta André Breton, autor do Manifesto Surrealista, na construção teórica que levou o pintor francês a conceituar a Arte Bruta. Assim nos fala a Doutora Annatereza Fabris: “Não se pode esquecer que a própria produção de Dubuffet, a partir dois anos 40, é uma expressão bruta, uma representação elementar e ʻregressivaʼ, que se inspira no desenho infantil e nas formas não-culturalizadas. Na base do pensamento de Dubuffet está a influência de Breton que percebia na produção ʻanormalʼ a possibilidade de renovar os conceitos mais consolidados da crítica de arte. Embora se interessasse também pala produção naïve, é, contudo, na arte dos doentes mentais que Breton detecta um reservatório de saúde moral, longe do ʻfalso testemunho socialʼ, a liberdade total dos mecanismos de criação, a garantia da autenticidade absoluta.“

Arte Incomum foi um dos segmentos da XVI Bienal de São Paulo, em 1981, que teve a curadoria da Professora Annatereza Fabris, com o texto curatorial “Cosmogonias outras”. O Curador Geral da XVI Bienal foi o Professor Doutor em História da Arte e Crítico de Arte, Walter Zanini. A Bienal foi composta também por outros segmentos como Arte Postal⁵, e as mostras do surrealista Delvaux e do americano, a meu ver também um artista incomum, Philip Guston. Toda a questão da Arte Incomum está colocada na Tese de Doutoramento em Psicologia “Olho DʼÁgua. Arte e Loucura em Exposição: A questão das leituras”, defendida na USP por João A. Frayze-Pereira, em 1987⁶.

No mesmo artigo, Annatereza Fabris relaciona as questões que o autor da tese nos coloca para pensar, vinte e seis anos depois, nos destinos de um centro de saúde mental como este hospital Ulisses Pernambucano, que se preocupa em projetar seu futuro numa perspectiva de inclusão social e cultural. Ela diz: “Partindo do pressuposto da exposição João FrayzePereira levanta perguntas difíceis e instigantes: o que significa expor loucura? O que significa conservar suas obras num museu? Terá a loucura, através da arte, encontrado um lugar que a ʻrecupereʼ aos olhos da cultura contemporânea?“

O segmento “Arte Incomum” iria se chamar “Arte Bruta”, termo que Jean Dubuffet usou para classificar as manifestações da arte ligada ao inconsciente, como a dos loucos e dos “primitivos”, mas ele não permitiu usar o termo, registrado por ele, para uma exposição cujas obras ele não selecionara. Isto fez com que a Bienal procurasse outro título, encontrando “Arte Incomum”.

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Aprendemos nesta tese que a arte dos loucos foi considerada pela primeira vez em 1922 através do trabalho do alemão H. Prinzhorn, Expressions de la folie⁸, onde o autor realiza uma análise formal sobre 5.000 trabalhos de 450 pacientes esquizofrênicos. Frayze-Pereira informa que, entre outros artistas, “Max Ernst e Paul Klee manifestaram fascinação diante da estranheza a espontaneidade dessas criações que eles próprios procuravam atingir, muitas vezes, por meios artificiais.“ E continua: “Entre nós, em 1933, Flávio de Carvalho organiza em São Paulo uma exposição com desenhos de crianças e loucos. A iniciativa não só questiona o academismo da Escola Nacional de Belas Artes como, segundo Annatereza Fabris, significa uma ocasião para criticar o medíocre gosto da classe média, que, centrado em cenas de amor/procriação, repele o anormal por colocar em crise seu sistema de valores, por revelar o que há de mais profundo no homem e na natureza: o [...] demoníaco, mórbido e sublime.“ O autor cita os comentários de Mário Pedrosa sobre uma exposição de pinturas dos internos do Centro Psiquiátrico Nacional⁹ em 1947: “A realidade é que o mundo de agora não sabe o que é arte. Não consegue o público discernir o fundamental do fenômeno artístico. Daí sua incompreensão da chamada arte moderna, e sua incompreensão ainda maior em face de uma experiência como a exposição do Centro Psiquiátrico Nacional.“

Emígdio | Desenho | SD

O preconceito com a arte não acadêmica vigorou também no território da crítica de arte. Em 1949 o crítico de arte carioca Quirino Campofiorito, a respeito da exposição “9 Artistas do Engenho de Dentro” que teve o apoio teórico e crítico de Mário Pedrosa, teceu o seguinte comentário¹⁰: “A nossa opinião sobre estes desenhos e essas pinturas é que são medíocres demonstrações artísticas e trazem as fraquezas das obras casuais, improvisações inconsistentes, deficientes todas dessas condições de inteligência e razão que deve marcar a criação artística. Se usamos dessa franqueza quando nos referimos à produção de muitos artistas profissionais, isto é, indivíduos absolutamente conscientes do que fazem e para que fazem, o mesmo devemos fazer nesse caso de uma mostra de trabalhos de enfermos mentais, recolhidos desde a infância a um hospital de alienados, e que só há muito pouco tempo foram levados a desenhar e pintar

Octávio | Desenho | SD

Arthur Bispo do Rosário | Objeto | SD

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apenas por necessidade terapêutica. E com maior razão essa franqueza se impõe quando desejam muitos dar a esta exposição o valor de uma excepcional exibição de obras de arte. De excepcional aí só existe o resultado obtido com o definido tratamento terapêutico, que positivamente representa um humano benefício para essas infelizes criaturas.“ Mário Pedrosa reage a esta maneira de ver a arte dos loucos em texto de 1951: “Um empobrecimento intelectual chocante, pernicioso e abominável. Que reação tem o público em face das mesmas considerações no passado (refere-se às civilizações antigas) como altamente inspiradas ou dignas de consideração? A mais reles possível, a mais acanhada, preconceituosa e maléfica. E por isso é-se tão propenso a escarnecer de seus manifestantes, tão brutalmente solícitos em isola-los, esmaga-los, pela camisa-de-força e o confinamento, a destruição moral, espiritual e física; é o reino do utilitarismo burguês, em uma de suas manifestações mais baixas e vulgares.“

Os territórios da liberdade são agora mais vastos e mais densos, as atitudes artísticas mais verdadeiras, a inteligência que coroa a obra de arte está mais próxima do outro, e as fronteiras entre arte e loucura se desvanecem como a bruma. Não cabe mais perguntar o que é arte, mas sim: o que são os artistas?

Raul Córdula Olinda, outubro de 2005

Notas 1. Não se trata da cidade de Avignon, onde se encontra o Palácio Papal, mas à Calle Avignon, em Barcelona, rua de prostitutas nos anos 10 do século passado. 2. Organizado por Eleonora Haddad Antunes, Lúcia Helen Siqueira Barbosa e Lygia Maria de França Pereira ‒ Editora USP ‒ 2000. 3. O autor grafa assim mesmo, em minúsculas, assim como grafa também o nome de adolf hitler. 4. ”Arte”, 1985 ‒ citado na tese de João Fayse-Pereira que comentaremos a seguir. 5. O Núcleo de Arte Contemporânea ‒ NAC da UFPB, participou do segmento Arte Postal com a intervenção “Arte Brasileira Fora do Eixo Rio/São Paulo”. 6. A mesa composta por Annatereza Fabris, Icléia Cattani, Irineu de Moura, Marilena Chauí e Walter Hugo de Andrade Cunha. 7. Publicada pela Editora Escuta. 8. Editado em Paris por Gallimard. 9. Hoje Centro Psiquiátrico Pedro II. 10. O Jornal, 22.12.49.

Voltemos, pois, ao artigo de Annatereza Fabris, onde ela coloca a posição de Nise da Silveira associada à de Mário Pedrosa na consideração desta questão: “Mas, como ocorre em nosso século o encontro entre a dimensão psicológica e a dimensão estética? Nise da Silveira e Mário Pedrosa poderão esclarecer a questão, uma vez que tipificam a leitura a partir da psicologia e a análise a partir da estética. Nise da Silveira, como João Frayse-Pereira demonstra, considera as produções do Museu de Imagens do Inconsciente como verdadeiras obras de arte, como expressões do inconsciente coletivo. Para compreender esta afirmação, é necessário lembrar que o museu de Imagens do Inconsciente nasce de uma prática de ateliê, recobrindo três esferas principais ‒ o interesse científico, a psicoterapia e a valorização das qualidades estéticas presente tanto nos primeiros álbuns organizados por Almir Mavignier quanto nos critérios adotados para organizar a mostra no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1949.“ Um quarto de século depois da “Arte Incomum”, estamos no reinado da arte contemporânea, quando caíram todos os preconceitos e todas as modalidades de arte são legítimas e aceitas dentro e fora do sistema da arte.

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Labirintos¹

O final do milênio nos tem dado possibilidades criativas quase impossíveis em décadas passadas. A arte contemporânea trouxe, afinal, a abertura para o olhar livre de estilos, escolas, maneiras ou preconceitos comuns à estética tradicional. Abertura que retoma as vertentes perenes da arte, questiona a ideologia na arte e, pugnando pela ideologia da arte, recoloca na sociedade o papel do artista pensador.

da série Labirintos | Gravura (monogravura) em serigrafia | 50x50cm | 1992

Uma das vertentes mais importantes da arte atual é a que aborda os símbolos arcaicos, tratando-os como signos de um conhecimento que se amplia dentro do saber humano. Muito se tem dito, por exemplo, sobre a arte rupestre e seu interesse no Nordeste. Hoje, pensamos que esse interesse está ligado ao conteúdo simbólico localizado na raiz de nossa origem mestiça.

partido de tudo isso com a maestria necessária para o alto nível que é sua meta. Utilizando uma mesma matriz ‒ imagem de um labirinto ‒ ele compõe diversos outros labirintos com várias impressões, mudando a cor e a posição da tela. Na parte central, geralmente está um quadrado onde ele, eventualmente, imprime a imagem de animais. Esses animais têm um significado além da imagem, são mistérios ou tesouros guardados pela malha de dificuldades. Como no labirinto onde Teseu, ajudado por Ariadne, venceu o Minotauro, ele utiliza a chave binária, o código, o fio condutor para a compreensão de sua arte: às vezes, as imagens arcaicas eivadas de visões inconscientes, outras vezes, a mondriânica racionalidade da obra construtiva.

Esses pensamentos nos chegam através de Labirintos, série de serigrafias únicas de autoria de Dyógenes Chaves, artista possuidor de notável base artesanal que lhe dá o instrumental perfeito para a obra que está disposto a criar. No labirinto mitológico reside a invenção de muitos artistas: desde Dédalus e seu filho Ícaro, aos construtores da Catedral de Chartres ou Reims, os índios Kadweus, os projetistas de circuitos impressos e demais artefatos eletrônicos. René Guenon nos fala, em Os Símbolos da Ciência Sagrada, das três muralhas druídicas, uma espécie de labirinto na sua função de guardar o segredo. O labirinto de Creta guardava o Minotauro, um mistério feito monstro que devorava jovens numa alegoria ao saber grave e soturno, destruidor da sazonalidade inconsequente, como Saturno devorando seus filhos. O ato saturnino representa também a posse da obra pelo autor e seu poder sobre ela. Isso explica o Minotauro, criação simbólica do Rei Minos guardado pela malha de túneis, corredores e caminhos. Vemos a mesma relação saturnina na queda de Ícaro quando desobedece a Dédalus: no conflito entre o arquiteto e o aventureiro, salva-se o saber.

Do zoológico estampado, um lagarto chama-nos a atenção. Esse belo animal nos faz lembrar de nosso cérebro reptiliano guardado por um córtex humano e racional. Ele lembra nossa condição de bicho subordinado à natureza. Certamente as pessoas encontrarão nas impressões do quadrado interior desses labirintos os seus bichos, ao rasgarem os véus do olhar e mergulharem em tão atuais e ao mesmo tempo tão antigas revelações.

Raul Córdula Recife, 1992

Cada técnica de multiplicação de imagem possui sua própria expressão. A serigrafia traz em si a possibilidade de registros de cor (montagem perfeita de uma cor ao lado de outra) através da mobilidade da matriz. Dyógenes tira

Nota 1. Texto para apresentação do catálogo da exposição de Dyógenes Chaves na Aliança Francesa Maceió, 1992

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Breno Mattos¹

Muito se fala, atualmente, em um novo renascimento nas artes plásticas. Verifica-se a integração dos meios de comunicação com a arte e deixa de fazer sentido a ideia do quadro dentro das normas técnicas da pintura ou a escultura nos limites meramente formais. Os quadros com relevos e as esculturas pintadas são marcas da Nova Objetividade², por exemplo, e de movimentos artísticos com ela sintonizados como a Pop Art americana ou a Nova Figuração francesa. Em toda história da arte podemos dividir as tendências artísticas em caóticas ou construtivas, isto é, artistas ligados a uma expressão emocional (paleolítico, barroco, expressionista, abstracionista etc.) ou ao seu oposto racionalista (neolítico, clássico, cubista, concretista etc.), mas sempre alguns fugiram à regra tentando dar ordem ao caos ou caotizar a ordem. Este último procedimento, ao que parece, vigora em nosso tempo de guerra: subverter os valores formais para expressar nosso momento.

Breno Mattos na montagem de Feijão com arroz, de Anna Maria Maiolino | NAC/ UFPB | 1980

importante do que o aspecto amplamente desumano do mundo industrial. O sentido crítico da arte de hoje não está apenas na sátira ou no humor denunciativo de horrores, mas nos símbolos, nas formas e no espaço público, onde o artista introduz sua marca criando a diferença entre o olhar acomodado e o olhar dinâmico.

As novas esculturas de Breno Mattos se inserem nessa tendência. Utilizando materiais industriais recentes como a chapa de acrílico, ele modela seus volumes rompendo quadrados perfeitos de chapas acrílicas aquecidas, usando cones de madeira, num ato semelhante a um defloramento. Depois, o artista monta as partes defloradas compondo cubos, os quais apresenta nesta exposição pendurados em fios de nylon, suspensos no espaço. Esse é o aspecto mais interessante desta mostra, o momento em que ele usa a matéria e a linguagem moderna ao lado do sentimento instintivo do rompimento. Torna caótica a construção, constrói o caos.

Raul Córdula João Pessoa, junho de 1968

Notas

A civilização moderna nos tem dado uma nova imagem do mundo, uma imagem fantástica, geométrica e ampliada. Para alguns artistas, essa imagem tem algo de místico dentro de seu ascetismo de aço e concreto, de sua frieza feita de espaços inúteis e adornos indecifráveis. Os proclamadores dessa nova mística se apropriaram do inútil e revelaram sua beleza estática e interespacial. Para o homem urbano (produto da cidade nua e crua) a beleza é necessária até o ponto em que possa ser consumida e que ele possa participar do banquete. A arte jamais poderá (ou deverá) se desligar de sua abrangência pública, ainda mais hoje quando o aspecto romântico de um atelier é menos

1. Texto de apresentação do catálogo da exposição de Breno Mattos na Galeria José Américo de Almeida, Teatro Santa Roza, João Pessoa, 14 de junho de 1968. 2. Movimento de artistas plásticos do Rio de Janeiro, integrado por Antônio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães e Pedro Escosteguy.

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Archidy Picado e o despertar da modernidade¹

Ninguém foi tão cobrado na João Pessoa de sua época por suas atitudes pioneiras, suas propostas criativas e interferências no olhar complacente da classe dominante do que o pintor e poeta Archidy Picado. Pouco conheceu das glórias devidas à sua arte. Pouco se escreveu ou se pesquisou sobre sua obra pictórica ou literária, até porque ele não frequentou nem prestigiou o mercado formal da arte. Sua obra, pequena diante da sua ansiedade de criar, pertence hoje a seus familiares e a seus amigos fiéis. Ninguém foi, porém, mais generoso do que ele. Acolheu na casa de seu pai, no bairro de Jaguaribe onde tinha seu ateliê, toda uma geração de jovens artistas ávidos de suas ideias e das informações sobre suas idas-e-vindas ao Rio de Janeiro para frequentar os cursos livres do Museu de Arte Moderna, foco da atualidade da arte brasileira na década de 1950. No MAM, seus mestres principais foram Ivan Serpa e Faiga Ostrower. A homenagem que o II FENART presta a Archidy Picado é importante e necessária para que seja realizado um dos principais objetivos da instituição cultural: mediar a produção artística com a população, e nisso devemos incluir com prioridade a juventude. Archidy Picado | Desenho | Década de 1960

Este acontecimento destina-se a ser um resgate do período de nossa cultura em que João Pessoa descobriu a modernidade e se destacou como um centro de produção cultural ‒ condição que mantém até hoje ‒ caracterizado pela universalidade de seu produto expressivo, mesmo que para isso tenham seus artistas que nadarem contra a correnteza alimentada pelos que mantêm no poder as tradições menos progressistas. Abrir este baú em que se transformou a memória da vida e da obra de Archidy é como mobilizar as atenções do público para uma geração de artistas e pensadores responsável pela introdução no cotidiano da local da pintura e do texto modernos e vanguardistas, das discussões entre forma e conteúdo oriundas dos movimentos Concreto e Neoconcreto, da poesia visual como, por exemplo, o Poema Processo, do Teatro do Absurdo e as outras vertentes do teatro atual, da questão do regionalismo versus universalismo, da consciência

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ecológica, da cultura de massa, da crítica de arte, de Aruanda e o Cinema Novo, dos conceitos de urbanismo e arquitetura como conhecemos hoje, da preservação da qualidade de vida, do rock and roll, das políticas culturais e de tantas outras coisas que propiciaram a visão de mundo que temos agora. Nada mais pertinente, portanto, que essa homenagem revele ao público paraibano o artista e o homem Archidy Picado. Foi montada uma exposição de suas pinturas e seus textos, e uma série de painéis com a iconografia referente a ele, seu tempo e seus pares na aventura de criar. Uma mesa redonda composta por intelectuais e amigos discute sua vida e sua obra. Tudo isso está acontecendo em torno da galeria de arte do Espaço Cultural José Lins do Rego, que tem seu nome e que comemora dez anos de existência quando faz dez anos de seu falecimento. Esta galeria, ou melhor, a Coordenação de Artes Plásticas a qual ela está ligada, tendo à frente o artista plástico Dyógenes Chaves, tem mantido um programa de trabalho exemplar a partir de mostras e discussões da arte atual, a exemplo do que foi o Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB, estudando e debatendo cada exposição apresentada, fazendo com que percam o caráter eventual, ou apenas comercial, já que esse é um trabalho educativo. Expõe-se na mesa redonda sobre sua vida e obra, entre outras coisas, como foi sua intervenção na cena cultural paraibana. Archidy certamente não foi o pioneiro da modernidade na Paraíba, mas ele foi o artista que despertou nos artistas plásticos de trinta anos atrás, assim como no ambiente universitário da época, as esperanças numa cultura livre, numa arte liberta das amarras acadêmicas, que faziam dela um simples apêndice da sociedade, e não sua expressão verdadeira como é toda produção simbólica.

Archidy Picado | Autorretrato (caricatura) | Década de 1960

Raul Córdula Recife, 1995

Nota 1. Apresentação do evento em homenagem a Archidy Picado, II Festival Nacional de Arte - Fenart , Espaço Cultural José Lins do Rego, João Pessoa, 1995.

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Capa: fotografia de Raul Córdula | Sertão da Paraíba | Década de 80

expediente Segunda Pessoa Revista de Artes Visuais Ano 4, Número 4 ‒ Set-Out-Nov de 2014 Edição especial ‒ Raul Córdula Editor-geral | Dyógenes Chaves Gomes (ABCA/AICA) Jornalista responsável | William Pereira da Costa DRT-PB 792 Conselho editorial | Dyógenes Chaves Gomes | Francisco Pereira da Silva Júnior | Gabriela Maroja Jales de Sales | Madalena Zaccara | Maria Cristina de Freitas Gomes | Paulo Rossi | Paulo Sérgio Duarte | Rodolfo Augusto de Athayde Neto | Valquíria Farias | William Pereira da Costa Projeto gráfico | Dyógenes Chaves | 2ou4 Fotografia | Arquivo Raul Córdula Impressão | Gráfica JB Ltda.

Contatos para envio de artigos e colaborações: e-mail: dyogeneschaves@gmail.com 2ou4 Editora/ Revista Segunda Pessoa Rua Protásio Pontes Visgueiro, 111, Jardim 13 de Maio João Pessoa-PB ‒ 58025-680 Telefones: (83) 8787.6973 / 8808.7877 www.segundapessoa.com.br Os artigos publicados são de total responsabilidade de seus autores. Os interessados em publicar na Segunda Pessoa: devem observar as normas de publicação no site da revista. Esta edição de Segunda Pessoa (ISSN 2237.8081) foi impressa em janeiro de 2015, na Gráfica JB Ltda., utilizando os tipos da família Kozuka Gothic e Caslon, em papel pólen (90g/cm²), com uma tiragem de 10.000 exemplares, sob a responsabilidade da 2ou4 Editora.

Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


ISSN 2237-8081

9 772237 808001

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Este projeto foi contemplado com o Prêmio Procultura de Estímulo àsArtes Visuais 2010


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