Amanhã Será o Hoje

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AMANHÃ SERÁ O HOJE JOÃO FARELO



Ficha técnica

Título original “Amanhã Será o Hoje” Autor João Farelo Revisão de texto pelo Autor Capa Fotografia e Arranjo gráfico de Diva Almeida Concepção Gráfica Diva Almeida Impressão Atelier Gráfico artes gráficas & plásticas Setúbal | graphorama@gmail.com Paginação, encadernação artesanal e acabamentos MJ Real Imo Editora Setúbal | realeditora@gmail.com ISBN: 972-8670-55-9 Edição do autor 2005



AMANHÃ SERÁ O HOJE JOÃO FARELO



Prefácio

Poemas são janelas que se abrem aos olhos de quem as tenta entender. Porém, só o Poeta é que guarda a essência do momento, a razão do pensamento no gesto de as abrir; Nasce o Homem, nasce uma Vida feita simbiose entre o existir e o Ser. O tempo corre entre patamares de sentires e o Homem molda-se, torna-se espaço e deixa entrar a eterna luz do conhecer; Sente que é feito de opostos e de vontades que é preciso dominar para ser uno num fio condutor tão constante que lhe permita sentir que “amanhã será o hoje”. Não é fácil, mas possível. M.ª José Almeida MJ Real Imo Editora



Gostava de ter mil e um livros para os poder dedicar aos mil e um amigos, mas… Como só tenho este, dedico-o à pessoa que pacientemente foi rasgando e guardando as toalhas de papel dos restaurantes, os guardanapos e os muitos sítios onde escrevia… À minha filha Maria João



Nota do Autor A jeito de biografia Tenho sessenta e um anos de idade e cinquenta de comerciante. Sou o João “Farelo”. Entre peixes e pintos, sementes e pesticidas, flores e passarinhos, fui vivendo e aprendendo. Na verdade, os meus melhores mestres foram os clientes. Nestes cinquenta anos de balcão, no contacto com tantos milhares de pessoas, foi inevitável absorver uma cultura tão diversa como a minha. No pouco tempo livre que me restava, de vez em quando saía-me um “desabafo” que passava para o primeiro papel que encontrava, se o encontrasse, e tantos se perderam!... Este livro é como eu… despretensioso. Não fiz qualquer esforço para o escrever. Foi saindo aos poucos, como suor em dias quentes. São poemas que falam sobretudo de mim; dos meus medos, das minhas esperanças, das minhas crenças e da minha filosofia de vida. Enfim… um livro vulgar… como eu.



GÉNESE

Inventei-me Assim mesmo Como sou !... Aos poucos, Modelei A minha mente !... Gizei ideais, Valores Que fossem lei E... lentamente, Fiz crescer Meu cerne !... Cavei fossos E metas Que nunca ultrapassei !... Cravei fundo Raízes Feitas querer !... Dei frutos Que me fizessem ser Para lá de mim !... Até agora... Inventei-me Assim !...

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JURO COMPOSTO Quando eu nasci Também me foi destinada A governação; De algumas coisas... Sobre os meus ombros Também assentou o poder; Algum... Foi-me entregue o destino De certas pessoas, A responsabilidade de uma parte Do mundo; Nasceu também o sol Nesse dia, E mais uma sombra Que não existia, Mais um sopro E uma alma, E um jugo pesado, Tudo me foi dado, Nesse dia antigo E o mais que há-de vir !... Tudo me foi dado; Mas alguém sofreu Poder de pensar As dores que eram minhas, E saber que penso, Carregando com a cruz Coração para amar, De um pecado antigo, E um grama de senso, P'ra me deixar livre O dom de sofrer De falhar sozinho, E ser desprezado, Deixando-me a luz Uns olhos para ver, No fim do caminho. E ouvidos para ouvir, E um dia virá O Senhor das terras, Pedindo-me contas Do meu escudo de ouro, Que lhe hei-de dizer ?!... Se vou despendendo No meu dia a dia Todo o meu tesouro !...

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ESPIRAL

Cada vez mais, Vou-me enrolando para dentro, Criando uma quitina rija Que aguenta quase tudo. E quanto mais me enrolo E me concentro em mim, Mais me isolo. Sou o centro da tempestade. Enquanto tudo se agita à minha volta Se desmorona e ergue, Eu sou a paz A água calma; Calma em relação à minha volta, À tempestade maior, Porque de facto, Enquanto me enrolo para dentro Me isolo E me concentro em mim, Eu sou a tempestade !

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ECCE HOMO

Homem, ร aquele que se levanta Em cada vez que cai. E caindo outra vez, Se levanta de novo. E que depois de dar Tudo o que tem, Dรก mais um pouco. E quando exangue, Exausto e quasi louco, Num esforรงo supremo, Ingente, enorme... Como se fosse um povo, Se levanta De novo.

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RECEIOS

Verde é a esperança que tenho em ti. Uma esperança toda feita de enlevo E de receios... De confiança E de receios... De ansiedade E de receios... De amor E de receios... Enfim !... De receios E de outras coisas !... Receio não poder estar perto de ti Quando tu precisares... E também Estar perto de ti Quando tu não precisas... Receio precisar de ti Quando tu não estiveres... Receio estares perto de mim Quando eu não precise... Mas, sobretudo... O meu maior receio é... Já não poder recear Quando tu precisares !...

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HOMEOPATIA

Sou o lugar comum A frase feita O anormal Neste mundo de loucos Sou o remĂŠdio Feito da maleita Que morrendo Se vai curando aos poucos.

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NATAL 84

Há um riso apressado Em toda a gente, Um embrulho de cor Em cada mão, Uma febre presente Uma ansiedade, Uma trégua na luta, Na maldade; Quase ausência de mal No coração !... A missa é uma tarefa, Presépio ?!... Obrigação; Bolas, sinos dourados, Pinheiros derrubados, Uns dias de ilusão !... Ninguém pára um momento A contemplar, Aquele que nasceu Há dois mil anos, E as cruzes em mil adros Abrem braços, Como a querer abraçar A humanidade, Inquieta e sem sentido Fugaz e quase-vã !... No dia 26 ?!... Outra manhã.

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REI

Descobri que há muito Que sou rei, Numa vida de sonho, Onde o que quero é lei, Onde tenho o direito de pecar, De ser bom, de ser mau, De apontar e errar, De moldar a vontade Sem matar os sentidos, De fazer uma guerra Sem mortos nem feridos, Porque sou rei e quero, Porque sou eu e posso, Porque a força que tenho Maior que a dum colosso, É puro pensamento, É mar que não tem margem, É fogo que não morre, É rio que na voragem Arrasta a sapiência Dum tempo qu'inda corre, E a força controlada, Como bomba no nicho, Devora-se a si mesma, Derretendo ouro e lixo, E aquilo que amalgama, É tudo que há em mim, São pepitas e lama Do meu veio sem fim; E vou vivendo, assim !...

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O AFAGO E O COICE

Sou como uma concha De várias camadas, Em vez de calcário De várias idades, Sou feito de gostos, Desgostos da vida, E as minhas verdades São coisa aprendida !... Sou feito de vento, Veloz e suave, Garras de veludo, Grito e canto de ave, Sou isto e aquilo, Saber e ignorância, Sou frio e calor, Fedor e fragrância, Sou a cruz de Cristo, A força e a carga, O homem que chega, O barco que larga, Sou riso e careta, Verdade e mentira, Sou morno e sou quente, Sou bombo e sou lira, Se acaso pudesse Escolher o que fosse, Seria o que sou, O afago e o coice.

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SOCORRO

Ai musas Quem me acode Que me sinto Tão cheio De mil palavras Por 'scolher, Que queria Ter um crivo Que as crivasse, E deixasse algo Que se pudesse ler. Mas a malha É tão fina, Tão fininha, Que não deixa passar Nem uma letra; E o que escrevo; É só palavra solta, Que a ninguém enche, Que em ninguém penetra. Por isso Grito às musas Quem me acode, Venham já Que estou quase Quase cheio, Retirem-me as palavras Vãs e ocas; Venham musas Ponham-me à mostra O veio.

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OURO DE LEI

Penso mil vezes Aquilo que n찾o digo. Digo mais vezes Aquilo que n찾o penso. Mas quando penso, E digo, Nunca sai Coisa que valha, Coisa que tenha Senso. Ai !... Se eu pensasse, E n찾o pensasse tanto !... Ai !... Se eu dissesse S처 aquilo que sei, Seriam prata Os versos que hoje canto Seriam de outro Os versos que calei.

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A LISTA

Um dia pus-me a assentar O nome dos meus amigos, E só da lista telefónica Assentei vinte e dois mil, Mas era a lista do sul… E fui à lista do norte E ainda à lista do centro, Depois à classificada, Confesso, não aguento, Escrever tanta morada; Pelo Natal que passou Só postais mandei cem mil, Já meti escriturários, Não sei o que hei-de fazer, Já cheguei à conclusão Que isto assim não pode ser; Gastei todo o meu dinheiro Em selos e em papel, E pensei que ao ficar pobre Os amigos fugiriam, E fiz então lista nova Para ver os que ficavam, Já eram cento e dez mil E em cada hora aumentavam; Desisti… e hoje vivo Como quem vive no céu, Nem acredito que exista Alguém mais rico do que eu.

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QUERIAS !… QUERIAS !…

Só quero verdes campos, Primaveras, Onde o sol seja eterno, E as flores não feneçam. Prados rasos, sem montes Que me cansem o corpo, Lagos calmos de águas Cristalinas, cheias de peixes, Que sejam vermelhos, E aves, muitas aves, Que cruzem os céus Em voos sem sentido. Não haja despertar, Nem pôr-do-sol, Nem haja noite, Chuva, dor ou morte, Nem haja a luta eterna Pela vida, onde ganha O mais forte, Só quero verdes campos, Primaveras !…

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ENTROPIA

Eu sei que pago caro Este conforto, Que aufiro dia a dia E que irradio, Sai-me do corpo O ouro gota a gota, Roubando-me o calor, Deixando o frio, Deixando-me o cansaço Em troca da energia, Pedra filosofal Que me sustenta, Me dá este conforto Dia a dia, Eu sei que ainda existo Hoje e agora, Muito mais mau que ontem, E melhor que amanhã, E em cada momento vou-me embora Eu sei que sou um mini universo Sujeito pela lei à entropia, Vivendo intensamente este momento, Morrendo pouco a pouco Dia a dia !...

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DEO GRATIAS

Louvado seja Deus, Porque me deu as nozes... E... os dentes !... As aves E a lei da gravidade !... O mar, E não me deu as barbatanas !... A luz do sol, E as “cataratas” !... A lonjura, E um passo curto !... Os olhos e os ouvidos, A língua e o nariz, Os dedos, Os sentidos, Os cegos e os surdos, Os mudos e... os outros...!... Louvado seja, Porque me deu a vida !... O veneno, E a vontade de viver !... E muito... mais que tudo... A liberdade De escolher !...

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EU

Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou Sou

o grito da vitória lamento do vencido a derrota e a glória amado e sou temido o ferro e sou o ouro o santo e o pecador a vida e a agonia a esperança e sou a dor o primeiro e o último o tudo e sou o nada o bruxo e sou a fada o pai e sou o filho a semente e o fruto o caule, sou a folha dividendo e produto a carga e o carregador escravo e sou senhor a verdade e o mito o grito, sou o grito !...

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AOS MEUS QUERIDOS FILHOS

Tenho três filhos Que são três cadilhos, Pendurados no xaile Desta vida, Xaile que é manto Que nos cobre a todos, Que mantém Esta família unida. São três tesouros, Três ametistas raras, Como três coroas Pontas de tiaras, Cada um feito Com tantos desvelos, Que é um bem senti-los, Que é um gosto vê-los. E são lindos, lindos, De uma perfeição Que nos faz pensar; Mas que anjos darão !… E são meus, são meus, São minha riqueza, Um pouco de mim, Minha chama acesa; E quando chegar, Decerto o meu fim, Vão continuar A ser eu, por mim !...

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CANCRO

Lágrimas que não correm Abrilhantam-me os olhos; Pelas veias Corre-me o sangue em borbotões, E o pensamento, Inexplicavelmente, É mais célere Que o meu entendimento !... Uma emoção estranha Borbulha em qualquer sítio de mim !... Afastando camadas de comodismo De hábitos antigos, Para... nascer !... Uma ânsia mais que física, Uma insatisfação do intelecto, Uma revolta absurda, Destrói-me lentamente !...

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CONCEITOS

Tantas horas usadas Que agora sei Perdidas Tanta verdade imposta Que agora sei Mentiras Tanto custo a crescer E tão incerta a vida Tanta coisa a aprender Tanta coisa esquecida Tanto ódio rotulado Tanta palavra ambígua Tanta imagem trucada Que mostramos aos outros Tantas coisas no mundo Para serem mudadas Tantas horas perdidas Que agora sei Usadas.

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A CRUZ

O meu crucifixo Já não tem arestas, Nem portas estreitas Por onde um camelo !... Nem cravos... Nem Cristo !... Nem uma argolinha Aonde prendê-lo !... O meu crucifixo Já não tem arestas, Nem vértices duros, Nem bicos, Nem frestas !... São só dois pauzinhos Cruzados “em cruz”... Só falta Jesus...

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LOBOTOMIA?!...

Vou arranjar outro Deus Que não me exija demais, Ou um cérebro idiota Que não pense todo o dia, Ou um botão que o desligue Quando vem esta agonia De saber que este teatro Tem sempre as portas abertas Vinte e quatro horas por dia !... Se fosse parvo de todo Que feliz me sentiria !... Deve haver outra maneira... Talvez a lobotomia ?!...

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ESPERANÇA

Lá longe Muito longe... Onde começa tudo Há uma esperança Que me espera; Um mar Finalmente chão; Uma praia Livre de escolhos; Uma mulher que não se cansa E que sempre espera por mim; Ou a última página, A das soluções; Ou a errata da minha vida; Ou outro raio de outra coisa Que não sei o que é, Porque não a tenho... ainda, Mas... quem sabe ?!... Lá longe ou mais além...

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VIDA

Navegando Neste mar de medos, Uma promessa Me serve de farol; Uma esperança Me sustenta, Me anima E me dá coragem !... Ressuscitarei. Flutuo... Sem dominar, Nem ventos, Nem correntes; A minha rota Está ao sabor das marés; Já nem a morte temo !... Ressuscitarei !.

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DA MINHA VARANDA

O rio é pouco mais azul que o céu, A lamber a cidade enorme e quieta, As nuvens são castelos ambulantes Em busca de distante e ignota meta, Ao longe, o infinito é só um traço, Por trás da estranha Tróia de cimento, Ruas de asfalto, torres de vidro e aço, Só o mar é o mesmo, imenso e lento, Ao lado vê-se a serra a emoldurar Este quadro - cidade - entardecer, E os guindastes do cais parecem armas Defendendo esta paz de enternecer; Vê-se assim a cidade, de onde vivo, Com olhos de poeta sonhador, Tudo é beleza aos olhos de quem sonha, Até o grito é canto, até o negro é cor.

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CADA VEZ MAIS… O SILÊNCIO… A CONTEMPLAÇÃO…

Como se fosses, Amor, A madrugada, Ainda fria Da noite que morreu !… Quero sentir o cheiro Do teu corpo, E respirar-te, Como se fosses eu !… Deixa que em ti descanse, E que me aqueça, Pois tenho um frio terrível Nos sentidos !… Perdoa-me o silêncio, E a quietude, Pois tenho a incerteza Dos perdidos !…

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MOMENTOS

Morrendo aos poucos Vivo em cada hora Momentos de alegrias E de penas, E arrasto os dias Que correm velozes, No querer viver e ser Mais e melhor. Sem parar um momento P'ra pensar, Na ânsia louca De ser sempre jovem, Vivo esta vida, Que não quero viver. E sou assim Como me deixam ser.

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O RIO

Já não sei se sou só eu Ou se somos todos nós Que vivemos neste charco De águas quase semi mortas; Eu sei que apenas flutuo Com medo de esbracejar Apenas ondulo o corpo Num suave movimento Que me mantém a boiar Arrastado na corrente Que faz o vento do leste, Preguiçoso e quase aragem, Que me empurra não para a margem, Mas cada vez mais para sul; E os meus olhos tão cansados Já não sabem se é miragem A sombra que vejo ao longe E que me parece a foz; Já não sei se vou sozinho Ou se vamos todos nós !... Mas sei que vou a jusante Da nascente onde parti, Já acredito que o charco Onde pensava viver É afinal um riacho Que corre direito ao mar; Apesar de estar cansado E ver o fim com temor, Não me empurrem, Por favor...

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HOMEM DO TRAÇO RASGADO

Que tens como teu fado Tracejar Traceja então Traceja sem parar Pois se tracejas com traço rasgado O teu traço é mais firme E ao teu lado Eu quero rever-me Nesse traço sem destino Sendo apenas um ponto De partida Sendo um traço que parte Ao desatino Sendo um rasgo Até ao fim Da vida !...

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POR AQUI VOU

Por aqui vou Por ali não Vou pela estrada Que não tem chão Por ali não Por aqui vou Sou peregrino Sou como sou E se quisesse Ser como o vento Ia às estrelas Em pensamento Ai como queria Ter uma meta Ai como eu queria Não ter escolha Ser assim como Os outros são Mas tenho a sina Da decisão Nos cruzamentos Lá vem a lei Por aqui vou Por ali não

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Editora


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