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Território Queer Ensaios sobre espaço e [des]construção de identidades por Daniel Bruno Vieira de Melo Brasília, novembro de 2015
[1/3] Série de textos desenvolvidos para a disciplina Ensaio de Teoria e História em Arquitetura e Urbanismo do Departamento de Teoria e História de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília — THAU — FAU/UnB. 1. Corpo; 2. Teoria Queer; 3. Identidade; 4. Memória; 5. Gênero e sexualidade; 6. Heterotopia. * As ilustrações utilizadas nesta publicação são originalmente de fontes desconhecidas, editadas pelo autor.
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“Um corpo é material. Um corpo não é vazio, mas cheio de outros corpos. É também cheio de si próprio. Um corpo é imaterial. É um desenho, um contorno, uma ideia. O corpo é ainda uma prisão para a alma. É uma prisão ou um deus.”
“Corpus: um corpo é uma coleção de peças, de pedaços, de membros, de zonas, de estados, de funções. Cabeças, mãos e cartilagens, queimaduras, suavidades, emissões, sono, digestão, horripilação, excitação, respirar, digerir, reproduzir-se, recuperar-se, saliva, coriza, torções, cãibras e grains de beauté. É uma coleção de coleções, corpus corporum, cuja unidade resta uma questão para si própria. Mesmo a título de corpo sem órgãos, ele tem uma centena de órgãos, cada um dos quais puxa de um lado e desorganiza o todo que nunca mais chega a se totalizar.” “A alma, o corpo, o espírito: a primeira é a forma do segundo e o terceiro é a força que produz a primeira. O segundo é então a forma expressiva do terceiro. O corpo exprime o espírito, quer dizer, faz com que ele brote para fora, espreme-lhe o suco, extrai-lhe o suor, arranca-lhe faíscas e atira tudo no espaço. Um corpo é uma deflagração.”
[Jean-Luc Nancy, 2006]
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[1] NANCY, Jean-Luc. 58 indices sur le corps. Trad. Sérgio Alcides. Corpus. Ed. revista e aumentada. Paris: Métailié, 2006, p. 145-162. Revista da UFMG vol. 19 nº 1 e 2. Belo Horizonte, 2012.
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A unidade crucial da arquitetura é (e se não é, deveria ser) o corpo. Início e fim de tudo, via de contato além da imagem pura: o corpo é película, membrana e fronteira. O início deste ensaio não poderia ser outro senão, no que toca à sua relação com a cidade, a corporeidade: material, física, espacial – dotada potencialmente de sentimento, pensamento, vulnerabilidade e ação. O elo entre corpo e cidade, ou, como bem ilustra Sennett (1994), entre carne e pedra[1], tem sido bastante negligenciado na historiografia do urbanismo e das cidades: a maior parte dos estudos ainda se concentra em contar somente a história da matéria construída. Baseando-se nos estudos de Foucault sobre as relações entre corpo e espaço, Sennett intentou escrever uma história da cidade a partir da experiência corporal e, em especial, buscou elucidar como diferentes representações do corpo e de suas manifestações foram capazes de conformar diversos traçados de cidade ao longo da trajetória urbana. Empiricamente, o corpo só pode se mover em algum espaço. Pallasmaa (2001)[2] defende a dependência mútua e a inseparabilidade integral entre corpo e espaço quando diz que um só pode existir enquanto o outro também existir:
Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade, e a cidade mora em miM. [PALLASMAA, 2001]
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[1] SENNETT, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad. Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Bestbolso, 1994. [2] PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Booksman, 2001.
Pode-se dizer sobre esta conexão que o espaço resulta, entre outras percepções, na extensão do corpo (MERLEAU-PONTY, 1945) – e que este dilata para o primeiro, em uma relação de configuração mútua[1]: Em sua condição de ser também espaço, o corpo sente, pensa e diz a cidade, tornando-se ela própria. No sentido inverso, a cidade registra a sua existência por meio dos corpos dos sujeitos do mundo; esses que, nos lugares-territórios, experimentam a vida. Trata-se de “uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de compreender” (SANTOS, 2008) . É possível caracterizar, ainda, a relação corpo-espaço também na prática do cotidiano (CERTEAU, 1980)[2] – não de um modo inverso, mas complementar. O espaço realiza-se enquanto vivenciado, isto é: um determinado espaço só se torna lugar na medida em que indivíduos exercem nele dinâ-
[...] a experiência do corpo nos ensina a enraizar o espaço na existência. [...] A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo [...] é estar atado a um certo mundo, e nosso corpo não está primeiramente no espaço: ELE É NO ESPAÇO. [MERLEAU-PONTY, 1945]
[1] MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. C. A. R. de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1994. [2] CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis : Vozes, 1994.
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micas de movimento através de seus usos, assim potencializando-os e atualizando-os de tempos em tempos, em função ou contraponto a um planejamento predeterminado. Partindo desses princípios, a intenção aqui é entender, além da premissa de que os estudos do corpo influenciam nos estudos urbanos, da forma como mostrou Sennett, que corpo e cidade apresentam reflexos entre si, seja numa relação de coexistência ou de interdependência. Os corpos se inscrevem nas cidades, bem como as cidades ficam inscritas nos corpos. A esta noção, Jacques (2008) deu o nome de corpografia urbana[1], a qual traduz um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo. Trata-se das diferentes memórias urbanas que se instauram no corpo como registro de experiências corporais do e no espaço; uma espécie de grafia da cidade vivida e não-estática, que, ao mesmo tempo em que se inscreve, (re)configura o corpo
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do indivíduo ou do grupo que a experimenta. Assim, o tempo passa a ser uma dimensão relevante para o corpo-cidade, destacando os processos baseados no contato e na interseção pessoa-cidade, performance-arquitetura, em sobreposição às configurações espaciais puras. Os lugares são arranjos únicos de espaço, de tempo (o espaço sempre implica o tempo)[2] e dos usuários que os praticam. São as relações sociais e os comportamentos que constituem o espaço e o tempo. Marcus Doel (1999) enxerga o espaço como algo em contínuo e incessante processo, um constante ‘tornar-se’. Para ele, “se algo existe, é apenas enquanto confluência, interrupção e coagulação de fluxos”. Em consequência, não há “última instância” ou estrutura primeira; solidez e fluidez nunca se apartam, de modo que a permanência é um efeito especial da fluidez. Por isso, espaço é, antes de mais nada, um processo: é espacialização.[3]
[1] JACQUES, Paola B. Corpografias urbanas. 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.093/165> Acesso em: novembro de 2015. [2] BOSI, Eclea. Memória e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 1979. [3] DOEL, Marcus. Poststructuralist Geographies: the diabolical art of spatial science. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, 1999.
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. [CERTEAU, 1980]
Não se trata, entretanto, de tempo e espaço como entidades inertes, mas sociais, isto é, de acordo com as suas estruturações particulares, as quais as sociedades humanas têm concebido ao longo da história (MONNET, 2009)[1]. A temporalidade é a articulação que movimenta corpo e espaço; Esta compreensão é fundamental para analisar seus modos relacionais e a configuração de suas resultantes, sejam estas suas ambiências e corporalidades: Nesse sentido, é possível inferir que a memória do corpo, em termos de sua capacidade sensorial e de seus modos de subjetivação em cada configuração tempo-espaço, ajuda a compreender o espaço. “Cada corpo é historicamente construído conforme os sonhos e receios de sua época e cultura” (SANT’ANNA, 2005)[2]: para além do elo corpo-espaço-tempo, é essencial explorar relações entre indivíduo e coletivo.
[1] MONNET, Nadja. Flanâncias femininas e etnografia. Trad. Paola B. Jacques. Salvador: Revista Redobra nº 11, 2009. [2] SANT’ANNA, D. B. Horizontes do corpo. In: BUENO, M. L.; CASTRO, A. L. (Org.). Corpo território da cultura. São Paulo: Annablume, 2005.
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As corpografias de Jacques funcionam como estados transitórios das corporalidades, isto é, das percepções apreendidas da cidade que o indivíduo, enquanto corpo, processa, relacionando-as a tudo o que faz parte do seu ambiente de existência: outros corpos, objetos, ideias, lugares, situações – a cidade, compreendida aqui como um conjunto de condições para essa dinâmica ocorrer. O ambiente não é para o corpo mero espaço físico, disponível para ocupação, mas um campo de processos declarado pela própria ação interativa dos seus integrantes, produzindo configurações de corporalidades e ambiências. Tais cartografias da vida urbana inscritas no corpo do habitante podem funcionar, então, como ferramentas de denúncia de aspectos excluídos pelo planejamento urbano, revelando usos e experiências desconsideradas no processo de produção da cidade e de seus consequentes regulamentos. As corpografias urbanas fazem emergir as micropráticas cotidianas do espaço vivido, as apropriações diversas que qualificam o espaço urbano: as ambiências abjetas. Esses “desvios” comportamentais representam alternativas possíveis ao espetáculo urbano que vem sendo largamente reproduzido na contemporaneidade, permitindo a transformação das “cenografias urbanas” por meio da (re)apropriação. O uso e a profanação (AGAMBEN, 2007)[1] da urbe e de seus fragmentos traduzem outras formas de apreensão urbana e, em consequência, de reflexão crítica e de intervenção na cidade construída. Por outro lado, o corpo carrega em si também uma dimensão imaterial: a subjetividade. Segundo Milton Santos (2008), “a corporeidade do homem é um instrumento de ação. Mas é sempre preciso levar em conta que o governo do corpo pelo homem é limitado”[2]. Guattari e Deleuze tratam a “subjetividade” como parte indelével do processo de invenção: subjetividade inventiva, que se coloca à prova e que se auto-produz, em constante movimento, exigindo modos de vida
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[1] AGAMBEN, Giorgio. Infância e História: destruição da experiência e origem da História. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. [2] SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo; razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 2008.
mutáveis. Assim, não seria mais adequado falar sobre qualquer individualidade ou pessoalidade, mas sobre impessoalidades e uma inveterada experimentação de singularização e ressingularização. Não se trata, então, de uma subjetividade conformada, conformista ou subordinada a uma essência fixa: ela não cessa de criar novas modalidades de subjetivação – seguindo a mesma lógica “plástica” do espaço. Quando se compreende a subjetividade fora de um eixo centralizador, é possível explorar os encontros e movimentos com o outro, com a alteridade. Complementando, Guattari (1992) diz que:
A SUBJETIVIDADE é o conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como um território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesmA SUBJETIVA. [GUATTARI, 1992] Subjetividade é composição, interseção e sobreposição. Ela concebe e fabrica outros modos de vida a partir de seus vários processos de singularização. Tal perspectiva desafia qualquer sistema de dominação da norma, da regra, a fim de afirmar novas formas de perceber-se e relacionar-se. Portanto se a subjetividade tal qual desenhada por Deleuze e Guattari não se submete a idealizações nem fica presa a essencialidades, ela não se rende ao controle: não se deixa fixar em um território, não se segmenta.
[1] GUATTARI, Félix. Da produção da subjetividade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
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Habitamos hoje, fisica e ideologicamente, um mundo de imagens e de promoção de sonhos “coletivos” de consumo que refrata e reflete uma cidade gentrificada, higienizada e “segura” para um corpo “saudável”, “imaculado” e disciplinado. Procura-se evitar o risco, o perigo, a ameaça: para isso, o planejamento e a prevenção aparecem como remédio a todos os possíveis males que podem atingir a cidade ou o corpo. A concepção da atividade do corpo na experiência do espaço – em especial o urbano, pressupõe o entendimento de que as relações de poder são relações sociais de dominação. Sobre esse disciplinamento, Foucault (1975) afirma[1]: O disciplinamento é espacializado em forma de fixação e rigidez, favorecendo, de maneira rigorosa, o gerenciamento e o manejo das atividades corpóreas. Atua pela vigilância, constante e anônima, por meio de normalizações e pelo confinamento,
[...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) […] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada. [foucault, 1975]
[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. P. Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1987.
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de modo a arrebatar mais conhecimento e trabalho do indivíduo sujeito. Em um sistema assim regido, trata-se a política sustentada na regulação e na supressão da diversidade subjetiva coletiva. Foucault (1975) defende a ideia de que nossa sociedade usa da visibilidade de contraste para produzir determinada “normalidade”. Os indivíduos são, a princípio, categorizados, o que favorece o controle de seu comportamento e a instauração das relações de poder. Nessa conjuntura, aparecem então as ideias de normalidade e delinquência: o “desviado” – a desrazão – emerge como uma figura que reforça a normalidade, garantindo o lugar do cidadão “normal” que não ultrapassa os limites da norma. Atribui-se a alcunha de biopolítica[1] à configuração em que o poder tendeu a se transformar a partir da segunda metade do século XX. As práticas de disciplinamento até então utilizadas objetivavam governar o indivíduo,
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[1] FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.
somente. A biopolítica, por sua vez, tem por propósito controlar a coletividade – a população. As estratégias de controle desempenhadas no cerne da biopolítica esperam garantir a obediência e a organização social, tanto quanto a sociedade disciplinar dos séculos XVIII e XIX desejou. Entretanto, na nova sociedade de controle (assim chamada por Deleuze) as tecnologias estão lançadas no espaço aberto, onde o disciplinamento se irradia: os recursos da sociedade disciplinar ainda funcionam, embora agora partilhem de um novo regime de controle e de suas tecnologias, isto é, o controle imediato e a comunicação instantânea no espaço público. O controle opera por mecanismos tênues e muitas vezes não necessita de qualquer agência reguladora para inserir-se no sujeito: ele se interioriza sob o manto da ideia de segurança e se inscreve propriamente no corpo. De maneira semelhante, ele penetra diretamente nos modos de subjetivação e, em
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simultâneo, na produção e na percepção do espaço. O que está em questão é um processo de alienação e de docilização generalizada, sintonizado pela domesticação de singularidades, desejos e afetos. Manter o corpo como um valor aparente e dentro de determinado perfil – controlado, “saudável” e produtivo – é exaustivo e, ao contrário do que se pensa, improdutivo. O próprio corpo passa a comprimir a subjetividade e vai se consumindo gradativamente por meio de sua “blindagem”. Aproveitando os conceitos de fronteira e limite para pensar a relação corpo-espaço, se as fronteiras voltam-se para fora e os limites, vistos do território, estão direcionados para dentro (HISSA, 2002)[1], o corpo é também território político e, ao mesmo tempo, fronteira, comportando a abertura – a porosidade. O corpo que não se move livre na cidade não se abre: não vive e, ao invés, passa a assistir seu definhar.
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[1] HISSA, C. E. Viana. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
Na multiplicidade de corpos transitando pela cidade, aqueles mais ordinários são necessariamente inventivos (CERTEAU, 1980). Estes específicos praticantes da cidade circulam sob sua penumbra, entre as fissuras do visível, do planejado, do disciplinado, agindo nas especificidades do lugar envolvidos pelo tempo. Ao sofrerem efeitos totalitários na produção do espaço, submetidos às contradições do capitalismo, reescrevem o texto urbano. Ao encontro desta ideia, Milton Santos indica que aos que não experimentam a cidade da pressa – a cidade-espetáculo, resta a invenção. Esses homens lentos desconhecem – ou desconsideram – as regras impostas no cotidiano urbano e, justamente por isso, para eles, sua memória é inútil. Em seus ritmos lentos, produzem novos sentidos no espaço urbano; imprimem novos significados à cidade-corpo. Essas pessoas, ordinárias e lentas, exploram diferentes e imprevisíveis experiências, reinventando os modos de vida nas chamadas zonas opacas da cidade: “[...] espaços do aproximativo e da criatividade, opostas às zonas luminosas, espaços de exatidão”[1] – lugar onde a vida é maior que a regra. Isto posto, é preciso estar atento ao microcosmo urbano, às conexões que as cidades produzem, constituindo espaços-territórios: o elemento inalienável e intransferível do lugar-território é o corpo. Evitando as normas de controle, ele inscreve, no terreno, caminhos de resistência à reprodução da cidade luminosa, criando usos não previstos, gerando movimento e novos sentidos: o encontro e o movimento, verdadeiro sangue urbano, volta a acontecer, como um mecanismo de resistência. Assim, no cotidiano opaco, modos de vida e de subjetividade ainda não dominados por completo pela cidade planejada são produzidos como potência da própria vida, como insubordinação. A partir do espaço, é possível entender o corpo como possibilidade de transgressão necessária das limitações normativas e territoriais – ativada unicamente por meio do uso, da (re)apropriação, da conexão entre objetos, ações e
[1] SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo; razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 2008.
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lugares. Apropriação esta não unilateral: quando o indivíduo se apodera do espaço, este também age sobre o sujeito de maneira indeterminada. O estudo das relações entre corpo e cidade pode, efetivamente, auxiliar na compreensão dos processos urbanos contemporâneos, e, através do estudo da vivência e dos usos urbanos do corpo ordinário e cotidiano, apontar caminhos alternativos para a (re)valorização e (res)significação dos lugares. Na lógica da produção atual, a maior parte dos núcleos urbanos se dedica a projetos urbanos hegemônicos, os quais intencionam transformar o espaço (que deveria ser) público em cenários espetaculares, desencarnando-os. Uma fantasiosa publicidade, que tenta vender determinado estilo de vida, torna-se o ponto de maior interesse, sobrepondo-se às reais diversidade e complexidade da vida urbana. O privado é induzido tanto na esfera do capital, evidente na cidade contemporânea, quanto como parte de um modo prevalecente da experiência subjetiva: priva-se do outro, do risco da alteridade; da política, como possibilidade da dissidência; da heterogeneidade, em uma busca por constante satisfação e segurança, dentro de uma sociedade de consumo imperativo. Priva-se, ainda, o outro - indivíduo à sombra da cidade-luz, de movimentar-se em tal sociedade, endurecendo a dinâmica social. Na corporeidade, algo da subjetividade, em sua inerente capacidade de criar, permanece. Algo indelével e intransponível escapa ao consenso imposto, ao totalitarismo, às identidades, padrões e, sobretudo, ao temor. Assim, em lugar de “produzir cisões no tecido urbano, é possível dobrá- lo de modo que não se rasgue, mas cresça em volume e se multiplique”[1]. Tais dobras da cidade configuram-se em redes de lugares, através de múltiplas apropriações, na pluralidade dos corpos que agem e desenham o mundo: subjetividades rebeldes podem emergir descontinuamente.
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[1] HISSA, Cássio E. Viana. NOGUEIRA, Maria L. Magalhães. Cidade-Corpo. In: Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.54-77, jan./jun. 2013
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