Nº 4
Janeiro/Fev 2021
Mergulhando Na Liberdade Artística 1
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Mergulhando na criatividade artística Um ano entrou e sem dar- nos conta o tempo passou e já caminhando por este 2021 tão ardiloso. Com este novo numero brindemos a nossa liberdade poetica, por isso convidei aos escritoras e escritores a terem essa táo inspiradora liberdade e cada um esclher um dos poemas, sem estarem presos a nenhuma raizes… Parabéns a cada um de vocês por mais uma vez estarem no meu sonho com esta revista que também faz parte dos vossos!
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Selecionados Adenilda Silva Souza Adriana Vieira Agostinha Monteiro Alberto Arecchi Aldenor Pimentel Alessandra Cotting Aline Bischoff André Pinto Antunes Augusto Filipe Gonçalves Basílio Kaliel Baran Breno Andrade Camila Cristina Crosgnac Fracalossi Carlos Eugenio Vilarinho Fortes Carlos Valois Carmo Bráz de Oliveira Cecília Pestana Cílio Lindemberg Claudio Marcio Fernandes Crato Reis Edilma Silva Emília Silva Etelvina Tapado Gedeane Costa Gisela Lopes Peçanha Glauber Costa Graziela Tosta Barros de Carvalho HaradaFLV Hélio Guedes de Oliveira Ivone de Assis Jeferson Bicudo Joel Barceleiro Jorge Eduardo Joyce Nascimento Kaos Karine Dias Oliveira Lara Machado Luciano Izidoro de Borba Luís Amorim Marcelo G J Feres 4
Marcos Antonio Campos Moisés Gomes da Silva Paulo Luís Ferreira Paulo Roberto de Oliveira Caruso Perpétua Amorim Raquel Lopes Renato Soares de Lima Ricardo Moncorvo Tonet Rogerio Luz Rosalina LP Fialho Rosangela Mariano Sigridi Borges Sirineu Bezerra de Oliveira Sónia Regina Rocha Rodrigues Valdeci Santana
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Adenilda Silva Souza adenilda.dida2@outlook.com
A compulsão por ser inteligente
O crescimento é algo fascinante de se ver, nascemos e logo somos grandes, nosso físico acaba mudando, mas a mentalidade também muda. A gente evolui ou ao menos acredita nisso, quando pequenos somos “bobos” e a alegria está nisso nas risadas tiradas de situações e acontecimentos inesperados, quando maiores não. O bonito dessa fase é ser sempre mais, melhor a cada dia, sem nenhum erro ou falha grave no currículo. Cada passo é bem preciso, ao menos na imaginação, as ideias são as mais fantasiosas possíveis e ainda acreditamos ser as crianças inocentes. Já tentou adaptar-se ao meio hoje? Conseguiu? Não? Calma, não é assim tem um jeito certo, você tem que ser inteligente amigo. Antes da confusão é melhor explicar que coisa é essa. Ninguém quer ser simples, caso queira, é mera farsa, duvida? Bem, olhe ao seu redor e veja as mídias e conversas, não há quem não seja bem esclarecido sobre algum assunto ou tema. Todo mundo é “culto”, com um alto nível de saber para dizer e analisar qualquer coisa. Ah, esse jeito de falar complicado que acha uma oportunidade de fazer um belo discurso até para comprar pão. Somos modernos e cada vez mais educados, não há chance de errarmos. Oh, ilusão! Seja como os inteligentes, pois ninguém quer ser motivo de uma risada, afinal como você pode não saber tudo? Há várias mentes brilhantes andando por aí todos os dias, você deve ter encontrado com alguma, ela pode ter feito uma piada ofensiva porque os comuns não tem bom senso. 6
São tantas loucuras e viagens, que as agências espaciais estão atrasadas na ida a Marte. Essas pessoas chegaram na frente, cada dia a colônia cresce. Espero não encontrar nenhum de vocês leitores por lá, pois só hoje notei minha ignorância e ri de mim mesma umas dez vezes. Mas como é sempre bom saber: Tem alguém procurando a inteligência aí?
Adenilda Silva Souza
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Adriana Vieira Adriana Vieira, natural de Colatina, graduada em Artes Visuais, pós-graduada em Arteterapia e Arte na Educação. Moro na região de Serra-ES, me inspiro na natureza e em grandes mestres literários para escrever. Na natureza consigo sentir todo meu ser envolvido na grandeza do criador e nas palavras que vão surgindo. Tenho alguns poemas publicados em antologias e sempre procuro participar de concursos literários. Amo arte,respiro arte. E uma das formas artísticas que gosto muito é a arte literária nela consigo eu consigo me sintonizar com as letras. Gosto de ler romances, poemas, contos, em fim amo livros. A arte faz parte da minha vida seja em desenho, pintura, poemas, fotografia eu me encontro nela em suas diversas expressões. https://www.facebook.com/ovnisartesvisuais https://www.facebook.com/driartsvieira/
Saudade O que dizer de você nesse momento de solidão, Nessa hora que aperta o coração, Na noite escura e fria que faz doer o meu o coração. Saudade... Você machuca o coração Há quanta saudade daquele cheiro de pão, ,das risadas em meio a multidão do aperto de mão, do abraço apertado na despedida no portão. Saudade... Sinto até o teu cheiro nesse momento nesse momento de isolamento. E vem em eu pensamento as lembranças de vários momentos, Sinto saudade até dos gritos das crianças. Saudade...Que não acaba nunca. Saudade doe tanto que ate parecem braços, querendo matar essa vontade danada de abraçar. Adriana Vieira Serra Es
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Agostinha Monteiro É natural de Aguiar da Beira, mas fixou em 1996 a sua residência em Vila Nova de Gaia. Licenciada em Línguas, pela Universidade de Coimbra, e Mestre em Educação, pela Universidade do Minho, reparte a sua atividade profissional pela docência, formação, tradução e escrita. Publicou Contos de Esperança, Lendas e Histórias de Aguiar da Beira e Aprender a Escrever, mecanismos de estruturação textual e participou em várias coletâneas em Portugal, no Brasil, na Argentina e em São Tomé e Príncipe, tendo sido distinguida com alguns prémios literários.
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Decisão Somos livres para pensar, Para alegremente rir e para amar, E nesses momentos aproveitar, A felicidade que temos em partilhar, A alegria de sabiamente decidir De termos um propósito para existir. Somos livres para entender Que a vida com ou sem medo Solidariamente podemos viver, Sermos ousados e escolher O que construir ou empreender. E nesta sinuosa viagem Todos precisamos de coragem, De uma atitude positiva ter E de sempre a cabeça erguer, Para enfrentar as adversidades E agarrar as oportunidades. Ouça sempre o seu coração, Sem descurar a voz da razão, Porque a essência da sua vida É gerida pela sua decisão. Agostinha Monteiro
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Alberto Arecchi
Alberto Arecchi (1947) é um arquiteto italiano, mora na cidade de Pavia. Tem uma longa experiência em projetos de cooperação para o desenvolvimento em vários países africanos como especialista em tecnologias apropriadas para o planejamento de hábitat. Presidente da Associação Cultural Liutprand, edita estudos sobre a história local e as tradições, sem descurar as relações interculturais (site: https://www.liutprand.it). Escreve contos e poemas em italiano, português, espanhol e francês. E-mail de contato: alberto.arecchi@libero.it
AMAR SEM MEDIDA
Eu nunca quis contar esta história. Agora, no entanto, penso que irei escrevêla, para cravar na minha memória e para aqueles que tiverem a curiosidade de lê-la, antes que o passar do tempo transfigure as lembranças, voltando-as indistintas. Há trinta anos eu estava ensinando em Argel, na Faculdade de Arquitetura. Ali conheci uma jovem, recém-formada, que tinha aviado um relacionamento por correspondência com um pintor espanhol. Os dois se encontraram em sintonia, trocaram fotos, e se conheceram durante umas férias na França, chegando a amar-se. Ele vinha a Argel para vê-la cada vez que podia. A menina pertencia a uma das famílias mais proeminentes de Argel e tinha um grande medo dos pais, porque sabia que eles nunca teriam aprovado, nem aceite, um relacionamento ou até um casamento com um estrangeiro. Naquele país, a igualdade social das mulheres mantinha-se um objetivo distante. O casamento
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de uma argelina com um homem estrangeiro não tinha nenhuma validade legal (enquanto o oposto era admitido). Para obter o seu passaporte, uma mulher devia apresentar uma garantia assinada por seu pai, marido ou um parente do sexo masculino, “responsável” dela. Uma história corria naqueles dias em todos os lábios, havia mesmo sido publicada na imprensa internacional. Uma jovem argelina tinha-se casado com um jovem europeu, apesar da oposição de sua família. Seus irmãos tinham-na muito perseguida e haviam-na seqüestrado repetidamente, na França, na Bélgica e, finalmente, com a ajuda dos serviços secretos do país, até no Canadá, onde o casal havia-se refugiado sob um apelido falso. Uma vez reconduzida ao país em um avião privado, a menina foi obrigada a casar com um homem a quem sua família havia prometido, desde a infância dela. Voltemos para as minhas memórias. A jovem recém-formada quis matricular-se em um curso de especialização. Assim, cada dia, o motorista da família a acompanhava até a Faculdade, indo do centro até à periferia leste da cidade. Ali estava o pintor apaixonado, à sua espera, quando vinha a Argélia por ela. De táxi, ou com outros meios, eles passavam a viver sua história de amor efêmero. Por parte da tarde ela voltava à universidade, onde o motorista vinha para levá-la para casa. O pintor alugava um quarto em uma pensão no centro da cidade, mesmo em frente à casa da amada, a fim de oferecer-lhe um último adeus da noite. Ela olhava por trás das persianas semicerradas da janela, com uma lâmpada acesa que dava vislumbres. A menina era amiga de uma estudante que participava de minhas aulas. Eu não posso negar que entre essa estudante e mim intercorresse uma atração. Sua família, no entanto, estava também rigidamente ancorada na tradição. Nesse emaranhado de situações amorosas difíceis, várias vezes aproveitamos de algumas horas de liberdade para nos dedicar a “fugidas de quatro”. Saíamos com o meu carro para as mais belas praias a oeste da cidade, perto das ruínas 12
de Tipasa, entre as memórias dos marinheiros fenícios, da colonização romana, do cristianismo primitivo.
Sob o céu limpo, as ondas espumosas do Mediterrâneo corriam a bater na areia, evocando mitos antigos. O riso de meninas felizes. Praias fabulosas, em que podíamos tomar sol nos dias da semana, longe de olhares indiscretos, no meio dos esqueletos fósseis de tartarugas gigantes petrificadas, como fossem navios no desembarque, atingidos pelos raios vingadores de uma divindade antiga. Eu estava deitado dentro de uma dessas tartarugas, cuja carapaça havia sido perfurada pelas vicissitudes do tempo. Era uma cama incômoda, pois na placa ventral ficava incrustada uma parte do esqueleto petrificado da tartaruga... Mas quanto charme, no sentimento de sentir-me “incorporado” em um ser, vivido quem sabe quantos milhares de anos antes. No meio da tarde tínhamos que voltar para a Faculdade, onde a namorada do pintor podia esperar o motorista do pai dela. O pintor voltava à cidade comigo e jantávamos juntos. Ele me contou um pouco sobre sua vida. Era um homem bem-sucedido, que assistia a alta sociedade e conhecia o mundo, bem como era ardente prosélito da Maçonaria. Imbuído com racionalismo e com a fé no progresso humano, ele não podia perceber que uma brilhante família da sociedade argelina consideraria sua filha como uma propriedade, em vez de tratá-la como um ser humano, e respeitar sua própria vontade. Depois de jantar, íamos para uma caminhada ao longo da rue Didouche Mourad, a que os franceses chamavam rue Michelet, entre as mansões da era colonial, o tráfego que enfrentava rugindo a subida, as pessoas que saíam do restaurante para o cinema, a prostituta na esquina, vestida com um véu branco e seu rosto coberto pelo haik (que nos chamávamos de açaimo). No horário combinado, o pintor ficava sob a janela de sua amada, para oferecer-lhe um último adeus de despedida. Parecia reviver a fabulosa história de Romeu e Julieta.
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Um dia, com a cumplicidade de uma irmã casada e do marido dela, a jovem argelina conseguiu obter um passaporte e fugiu para a Europa, onde se casou com o pintor. Uma ação muito romântica, com o clássico recado deixado para os pais, sobre a mesa em seu quarto. Eu gostava de tentar imaginar o cheiro de pó de arroz que aquele bilhete de recado devia ter, e a moldura dourada, ou talvez rosa ou turquesa, como a dos bilhetes de outra vez. Naquela época eu estava de férias, então aprendi a notícia só quando voltei para a Universidade. Algum tempo depois, com discrição, um oficial da inteligência veio para entrevistar a metade da faculdade de arquitetura. Eu estava entre os candidatos nessas entrevistas, e devo admitir que isto realmente não me causou nenhum movimento de prazer. Eu realmente não sabia se o casal tinha ido para França, Espanha ou para qualquer outro lugar. Eu nunca soube exatamente como acabou a história, mas poucos meses depois vi a jovem de regresso em Argel. Ela havia retornado sozinha. Eu não encontrei a coragem de perguntar-lhe o que tinha acontecido. Nunca mais vi o pintor. Ainda guardo, no fundo de uma gaveta, algumas fotos dessas escapadas românticas para a praia. Foi difícil voltar “para casa” depois de tantos anos, e procurar um novo emprego. Bem aqui, no meu país, eu vivi a sensação de não existir mais para os velhos amigos, como se eu tivesse ficado afastado durante séculos, como um Ulisses moderno. Os colegas tinham família e filhos que cresciam, enquanto agora eu estava excluído de suas vidas, monótonas e regulares, completamente diferentes da minha. Eu também havia tentado criar-me uma família, mas eu nunca tinha corrido bem, ou talvez eu tivesse tentado com pouco entusiasmo e pouca convicção. O verão, como qualquer pausa de suas atividades normais, como o Natal ou outras ocasiões de feriados, é uma época de balanços amargos. O verão não significa para mim férias, mas solidão e ociosidade, que dominam sem 14
contestação a passagem do tempo. Agora posso só sonhar com praias tropicais em uma tela de televisão. Viagens com o coração, em lugares onde o mar é sempre azul, onde as palmeiras dobram-se a lamberem a água.
Eu fico imerso nos dias quentes de verão da planície, que não têm nada a invejar, nem a temperatura, nem a umidade, a pântanos e florestas tropicais. De dia você agüenta, com um pouco de ar condicionado, mas quando a noite vem... A noite… Horror da noite. Às vezes abro a janela e os humores densos e quentes do ar enchem o quarto da minha insônia. Não é o cheiro de jasmim, com que eu estava acostumado na África. Pelo contrário, é um epítome de fertilizantes químicos e exalações da refinaria, cuja chama se levanta triunfante sobre as formas dos últimos palácios. No barulho de freios e pneus em suspiros, sobre rampas e rotundas, parece-me ouvir os gemidos de crianças prostitutas desconhecidas, evisceradas sob as árvores das avenidas. Todas as noites, no bairro, é a horda de escuridão. Um toque de recolher contínuo, desde a primeira luz das lâmpadas na rua, até o amanhecer. Às vezes, despertando-me na noite, voltam os sonhos da juventude e as lembranças dos anos passados na Argélia. Vejo os rostos das alunas e do pintor espanhol e me pergunto como acabou essa história desprovida de um futuro, mas talvez eu prefira não saber. As palavras de Albert Camus ficam esculpidas nas rochas da Argélia, entre a praia de Tipasa e as encostas das montanhas de Chenoua: “Aqui entendo o que é chamado de glória... O direito de amar sem medida. No mundo só existe um amor. Cingir o corpo de uma mulher, também é segurar contra si essa estranha alegria que vem do céu para o mar. Logo, quando eu vou jogar nos absíntios para fazer-me entrar no corpo seu perfume, eu vou ter
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consciência, entre todos os preconceitos, do acabar de uma verdade, que é a do sol, e também será a da minha morte”.
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Aldenor Pimentel
Natural de Boa Vista (RR), Aldenor Pimentel é jornalista e escritor. Foi o primeiro colocado no 5º Prêmio Literário Sérgio Farina, categoria Prata da Casa, além de ter recebido outros 50 prêmios em concursos literários nacionais e internacionais. É autor das obras Deus para Presidência (2015), Livrinho da Silva (2017) e A inacreditável história do milho gigante (2019). Mantém o blog O Estado da Arte de Aldenor Pimentel (artedealdenorpimentel.blogspot.com). Desde 2016, organiza o Concurso Literário Internacional Palavradeiros. Sua produção literária já é objeto de pesquisas acadêmicas.
https://www.facebook.com/artedealdenorpimentel
Teu futuro te condena — Serás um assassino — dir-te-ei, recém-nascido, quando teus pais te trouxerem até mim. Lerei teu futuro, como o de todos os paridos naquela hedionda cidade, em uma porção do meu sangue. Descreverei em detalhes a teus genitores que, com um instrumento perfurocortante de fabricação caseira, vazarás os olhos de uma mulher de cabelos brancos e dela cortarás o pescoço. Ainda permanecerás ao seu lado, vendo-a sangrar em silêncio até a morte. Minha profecia arregalará os olhos de tua mãe e teu pai, que me questionarão como tal infortúnio seria possível. Passarão noites em claro, ao som do teu renitente choro. Praguejarão contra ti e contra Deus e questionarão a Ele que fizeram para merecer tamanha maldição. Serás repulsivo aos teus pais, que, envergonhados de trazerem ao mundo um monstro, o abandonarão em lugar ermo qualquer. 17
Tua sorte, ou não, será ser encontrado por uma família de operários, que encontrarão entre os panos em ti envoltos um bilhete onde se lerá tua condenação. Aceitar-te-ão entre eles, titubeantes em crer naquelas palavras malditas e mal escritas. Seu pavor por ti perseguir-te-á enquanto dividirem o mesmo teto. Temerão a cada dia e a cada noite que a criatura diabólica que em ti habite enfim acorde. Não suportarás viver sob eterna desconfiança e partirás para longe daqueles que nunca estiveram contigo. Procurarás abrigo nos mais distintos lugares, todavia em nenhum deles serás bem vindo. Por toda a cidade, saberão tua fama. E ninguém poderá ser condenado por não acolher criatura capaz de, no futuro, cometer ato tão abominável. Ainda tentarás frequentar os bancos escolares, mas não te verão com bons olhos, nem os professores, tampouco teus colegas. Pelos corredores, serás objeto dos mais violentos trotes, em represália ao crime que, certamente, estarás por empreender. Nesses e em outros tantos momentos, perguntar-te-ás como poderias ser castigado por delito que ainda nem terás cometido. Ao procurares trabalho, fechar-te-ão as portas. Os patrões temerão não só por sua segurança e de seus empregados, como também serem acusados de bandidos defensores de outro bandido. De certo, receariam a falência, ou pelo boicote dos consumidores ou por greve geral dos funcionários, indignados a serem obrigados a conviver com um assassino. Nem as ruas restar-te-ão. Nelas, estarás eternamente abandonado pela sorte, sob o risco de acordar com o corpo em chamas, diante da multidão de sangue nos olhos. Sem alternativa, ficarás às margens da cidade e viverás sob a proteção das sombras. Lá, encontrarás outros marginais. E até por eles serás rechaçado. Na melhor das hipóteses, tolerado.
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De tempos em tempos, serás sorteado como bode expiatório em que o bando descarregará todo o ódio que por eles a sociedade sentir. E, assim, sempre que um novo crime ocorrer, ele te será atribuído. Em uma dessas vezes, uma garota de olhar doce e cabelos dourados e encaracolados será dada como desaparecida. Teus conterrâneos, convictos de tua culpa, procurar-te-ão, sedentos por justiça. Apedrejarão e incendiarão o teu casebre, com o teu nome dito em coro, aos berros. Capturar-te-ão e anunciarão a tua sentença. Mas antes de morreres, a polícia chegará e te poupará do golpe fatal, menos por acreditar na tua inocência e mais pelo dever do ofício. Mesmo atrás das grades, não estarás seguro. Serás torturado por longas horas pelos carcereiros. Temendo que a população volte à tua procura para terminar o que a polícia terá interrompido, renderás o plantonista e te evadirás do local. Teu instinto levar-te-á ao bairro onde nasceste. Entrarás naquela tenda e a mulher de cabelos brancos, de costas, esperar-te-á, sentada, em uma cadeira de balanço. — Peço que sejas rápido — dirá a mulher. Aproximar-te-á dela e, com uma faca rudimentar, a ferirá em seus olhos. Em seguida, golpearás com o mesmo instrumento sua garganta. Em silêncio, até a morte, ela sangrará diante das tuas vistas. Se pudesse falar, dir-te-ia ela: “Não te condeno. Sei que, não por acaso, quiseste cegar meus olhos e calar minha voz. Ora, foi a partir deles que começou tua desgraça. Por causa do que vi e disse é que te tornaste o que és. E agora, tua sina está cumprida: és um assassino, como previ.”
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Alessandra Cotting Sou paulista, morando atualmente em Maceió. Escrevo desde criança, embora tenha desengavetado meus textos há pouquíssimo tempo. Sou formada em Letras e pós graduanda em Literatura contemporânea. Publico textos em revistas literárias e trabalho, atualmente, na produção do meu primeiro livro de contos. Zé Pequeno Era uma daquelas noites faceiras em que os vizinhos se sentam nas cadeiras de palha e esticam a prosa até perto das nove, tarde praquela gente que levanta mais cedo que as galinhas. Dona Sô, alvoroçada como sempre, chegou e já foi contanto as novidades do povoado vizinho, Mata de São João. “Vocês num sabe da nova, minha cumadi disse que tá tendo aparição por lá.” Seu Joca, o primeiro a reagir, fez logo o sinal da cruz, três vezes. “Tá um aperreio danando praquelas bandas, acham que é lobisomem, filhote de demo.” Foi um silêncio só, barulho só dos “Ohs” e dos dentes travando. Dona Neuza que ouvia tudo atenta tratou de botar os menino dela pra dentro. “Avia, Juninho, pegue seu irmão!” gritou pras crianças que pulavam amarelinha no meio da rua. Zé pequeno que até então cochilava de boca aberta despertou e acendeu o cigarro de fumo de rolo. Um, dois, três palitos, estranho pro velho Zé, não era disso, devia de tá nervoso. Foi num piscar de olho que a rua ficou deserta; só se ouvia o silvo do vento fazendo a curva na esquina; nem as corujas, nem os morcegos pareciam querer arriscar o encontro com a fera. Lá pelas três da manhã, Sô acordou numa zuadeira danada, parecia briga de bicho, só que diferente, era um som assustador de alguém sendo atacado: osso quebrando, pele e carne sendo rasgada. Sô tampou os ouvidos com as mãos tentando afastar a imagem que se formava na cabeça dela, mas não conseguiu; então, tomada de coragem, ela saiu debaixo do seu cobertor de lã e foi na ponta do pé até a sala e abrindo bem devagarzinho a cortina, espreitou pela brecha da basculante. Nada. Como num passe de mágica o barulho cessou, nenhum uivo ou gemido, nada, silêncio total. Quando o dia clareou, Sô saiu afobada pra calçada; com a vassoura na mão, queria saber se algum dos vizinhos tinha ouvido o furdunço que atrapalhou seu sono de madrugada. Tava todo mundo lá; quase no meio da rua, os vizinhos se reuniram em volta de uns pedaços de couro com pelo marrom grudado. De olho esbugalhado, Maria limpava as mãos no avental tentando se livrar do pavor. “Eu sabia!” disse Sô. “É lobisomem, vi o peste atacando os bicho de madrugada.” “Viu?” seu Dito indagou, desconfiado. “Ouvi, quer dizer, mas dá no mesmo, sabia que não era coisa desse mundo.” 20
Seu Joca, futucando os restos com o cabo da vassoura, dava o veredito: ”Pode num ser lobisomem, mas não parece bicho bom, não.” “É Lobo!” disse Neuza com veemência. “É lobo, mesmo...” falou Zeca se juntando ao grupo. “E dizem que foi o Zé Pequeno que matou.” Outra vez o silencio tomou conta do lugar, as bocas abertas do povo simples de Arembepe revelando a surpresa que parecia ofuscar o medo. “Oxe, o veinho pequeno? Duvidou Zeca. “Aquele ali num pega nem as mosca que entra na boca dele.” A gargalhada foi geral, mas Neuza foi logo explicar: “Há quem diga que o Velho Zé é dado a essas aventura...” Zeca, sempre com o pé atrás, continuou: “Sei não, muita estranha essa história.” E Joca, enquanto erguia um pedaço do couro analisando, emendou: “A fia dele disse que ele caçava bicho lá pras banda de cima... de repente...” A cada minuto, o povo parecia mais incrédulo e curioso ao mesmo tempo; ninguém sabia mais o que pensar ou dizer. “E cadê ele, o Zé, pra gente perguntar?” falou a Neuza entredentes. “É mesmo, era pra ele tá aqui.” Dona Sô disse enquanto todo mundo esticava o pescoço pro fim da rua de paralelepípedo. “Mandei Juninho ir lá, mas dissero que ele tá dormindo” falou Joca. “Uma hora dessa?” Perguntou Neuza desconfiada. “Estranho...”
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Aline Bischoff
Poetisa paulista, colaboradora oficial do blog de produção textual Escrita Cafeína. Lançou, em 2018, o livro infantil O Violão Sem Cordas, como coautora da ilustração, pelo selo do Espaço Cultural Marizeth Maria. Já publicou em revistas como Ecos da Palavra, Toró, Ligeiro Guarani, Seresta, Inversos, Fluxos, Cabeça Ativa, Suplemento Acre e Desvario, no Jornal Esopo e em blogs, como o do poeta Abraão Marinho, do poeta Alan Rubens e A Estranhamente. Participou das antologias Experiências de Escrevivências, 2020 Cruzando Entre Linhas e Amarillo. Participa semanalmente do Programa Estúdio Revolução, veiculado pela Web Rádio Bela e Revolução Web FM, com canções e poesias. Possui poesias transformadas em letras de música, para canto coral, pelo CORALUSP - Coral da Universidade de São Paulo, do qual também é integrante, como coralista. Recebeu em 2019, em 2º lugar, o troféu FENAPO - Festival Nacional de Arte e Poesia, da cidade de Osasco, São Paulo; e em 2020, o 3° lugar, na categoria nacional, do XXXI Festival Nacional de Poesias "Eunice Maria de Oliveira", da Academia Rio-Pombense de Ciências, Letras e Artes, de Rio Pomba, Minas Gerais; além de menções especiais, como a "Dra. Marta Teodora Schwarz", do 6° Concurso Internacional de Cuentos y Poesias Cataratas: Maravilha Natural (2020) e a do 1º Concurso de Poesias Livres, da Academia Internacional da União Cultural (2021), entre outras. REDES SOCIAIS: Facebook: https://www.facebook.com/AlineBischoffArtes Instagram: https://www.instagram.com/aline.bischoff/ YouTube: http://www.youtube.com/c/AlineBischoff Site: http://www.alinebischoff.com E-mail: contato@alinebischoff.com
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CHAMA ETERNAL
Trago veemente em meu coração, Eternamente e a cada instante, Avassaladora e impiedosa paixão, Em meu sôfrego peito ofegante.
Irrompendo ardente, Obrigando-me a te querer, Insana e freneticamente, Prestes a desfalecer.
Chama que ao infinito ascendeu, Oriunda de profundo laço ancestral. Que a toda razão se excedeu, Transcendendo ao surreal.
Somente nos braços de Morfeu, Encontro meu amado imortal, A quem minha alma pertenceu, Em remoto enlevo atemporal.
Aline Bischoff
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André Pinto Fotógrafo, músico e poeta, começou escrevem em 1992 quando formou uma banda com os amigos. Em 2018 ficou em primeiro lugar, na categoria poesia, do VI Prêmio Campos do Jordão de Literatura. Em 2020, escreveu o livro cartonera de poesia “Múltiplos”. Também em 2020, teve um poema selecionado para o prêmio OFF Flip. contato: andrepintopy@gmail.com
Canto Vadio
Vou partir do nada Pra ver se essa jangada Me leva para o sul Ou me leva para o norte Quero um canto vadio Um lugar pra tentar a sorte Sigo sentindo a brisa Sentimento não avisa Riso solta o vento Engana, pois, a morte Quero um canto vadio Um lugar pra tentar a sorte Longe uma cadência antiga O que perto não custa nada Vem uma mão amiga Vai o canto na alvorada Quero um canto vadio Um lugar pra tentar a sorte
André Pinto
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Antunes Antunes é um escritor de 34 anos do Rio de Janeiro que escreve desde 2012 no blog aventuras contra o tédio (https://aventurascontraotedio.wordpress.com/) junto com seu amigo Joaquim Miguel.
A poesia Outro dia perguntei me enchendo de ousadia nesse mundo tão mercantil onde está a poesia? Logo os intelectuais com formalismo em demasia apressam-se a responder está na métrica a poesia! mas a métrica do intelectual a resposta de tanto valor só vale se vender quem manda é o produtor então o jovem boêmio com o dinheiro da família compra uns entorpecentes e diz: no amor está a poesia mas o amor que ele declama é o mesmo da tv formatado e burguês é sobre isso que devo escrever? Pergunto então ao operário que com o trabalho todo dia sustenta o intelectual e o boêmio mas diz: não conheço poesia! 25
Sou homem bronco sem cultura de amor e métrica nada sei só sei lutar sem desistir à espera de um mundo sem reis
A poesia está em tudo? Talvez não haja resposta certa mas de uma coisa eu tenho certeza o operário é o maior poeta Autor: Antunes
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Augusto Filipe Gonçalves
Augusto Filipe Gonçalves, nascido a 20 de Junho de 1984, natural e residente em Penafiel. Licenciado em Direito e Mestre em Ciências Jurídicas, Internacionais e Europeias pela Universidade Lusíada do Porto Pós-Graduado em Ciências Forenses, Investigação Criminal e Comportamento Desviante, Instituto CRIAP Porto Funcionário da Penafiel Verde, E.M no departamento jurídico Autor do Livro: Sofia, A Visão Poético Filosófica, Vision Libraries 2019 Curso Livre On Line Filosofia e Nós Com Isso, Mário Sérgio Cortella, Abril 2020 Co Autor: Antologia de Poesia Livre Liberdade,2019 Chiado Books Antologia de Poesia Portuguesa Entre o Sono e o Sonho, Volume XI 2019Chiado Books III Volume da Coletânea Três Quartos de Um Amor, 2020Chiado Books Revista Literária Web Ecos da Palavra 2020 – 1º Número Revista Literária Web Ecos da Palavra 2020 (Verão, O Mar e o Amor) – 2º Número Revista Literária Web Ecos da Palavra 2020 (Folhas de Outono) – 3º Número Antologia Quarentena, Memórias de Um País Confinado, 2020, Chiado Books Revista Projeto Auto Estima – Outubro 2020 Antologia de Poesia 2020 – 2020 Edita Edição e Comunicação Antologia Entre o Sono e o Sonho, Volume XII – 2020 Chiado Books
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Acreditar Sim, é preciso acreditar, Cada um no seu SER, Para se conseguir transcender, Pois assim, Só assim, Conseguirá crescer. Crescer que é o sentido, É o foco da existência, Mas para isso tem de estar comprometido, Com a autoconstrutora essência. Sim, a essência está sempre capaz, É sempre valente e audaz, Mas tem de a existência avivar, Para que no todo a pessoa venha a alcançar, Um mais alto patamar, Com consistência, Com competência, Senão, é uma ilusão, E tudo não passou de rápida efervescência. Augusto Filipe Gonçalves
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Basílio Kaliel Baran
Basílio Kaliel Baran é autor dos livros Monstros e Isolamento Social e Outros Paradoxos. É estudante de Psicologia na UFPR e dono da página O Observatório. Pensa a literatura como um potencial transformador ao sondar os abismos da realidade. Contato: basiliobaran@gmail.com Facebook: https://www.facebook.com/basilio.baran.5 Instagram: @basiliobaran - https://www.instagram.com/basiliobaran/
As pessoas na sala de jantar - Basílio K. Baran
Era um jantar conduzido, poder-se-ia dizer naturalmente, na sala de jantar. Poder-se-ia porque, nos detendo um pouco mais na cena, percebemos que a mãe porta uma tranquilidade rígida no rosto, um sossego fragmentado, repleto de pequenos rituais como a compra do peixe pela manhã no Mercado Municipal, o ruído branco que tomou a cozinha entre seis em ponto (pois é o horário da novela das seis) e aproximadamente sete e dezessete (pois é quando a fome começa a apertar e os outros membros da família pipocam pelos corredores para checar se a comida já está saindo, sem que anos e anos os tenham ensinado o contrário, mas tudo bem, pois isso é outro dos rituais) e finalmente a disposição de quatro conjuntos, levados um de cada vez, de um prato e dois talheres pelos pontos cardeais da mesa de jantar. Ou seja, o motivo da janta ser conduzida na mesa de jantar é essencialmente trazer tranquilidade à mãe, um rito não-natural cuja capacidade foi adquirida através de uma tradição que perpassa gerações translúcidas e atua na mente da mãe como um pensamento latente de que, por algum motivo, sempre foi assim — e, em uma
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conclusão subjacente à primeira vista natural (mas que na verdade é tão natural quanto a janta ser conduzida na sala de jantar), assim deve ser.
Os leitores mais familiares com essa lógica de pensamento, a de que a tradição é sinônimo de qualidade e reflete, embora estas pegadas de ideologia nunca tenham sido rastreadas tão longe nesta mesa de jantar, propriedades físicas inerentes à natureza, em um sentido vago e comum da palavra, as quais podem ser traduzidas em última instância como uma ordem natural das coisas — uma ordem, em uma conclusão subjacente à primeira vista natural (mas que na verdade é tão natural quanto a janta ser conduzida na sala de jantar), que deve ser seguida — sabem que essa lógica encontrou seu desenvolvimento mais extremo até hoje no que conhecemos como nazismo. Mas essa não é uma mesa de nazistas, ninguém diria isso, embora em outras condições econômicas globais e nacionais poderia ser o caso do pai, do filho e da mãe. Não na mesma proporção, é claro, sabemos que o nazismo posiciona os indivíduos de forma diferente em sua estrutura, desde os ativamente nazistas, passando pelos simpatizantes, até os passivos. De qualquer maneira, apesar da nuvem negra que paira, este é um jantar conduzido na sala de jantar em um sábado, o momento mais calmo na semana dessa família, pois é a única das refeições em que há uma ordem velada para que todos os membros compareçam durante a mesma janela de tempo, já que todos possuem ocupações durante os dias úteis e o domingo é dia das sobras, não sendo adequado como pilar da família. Assim, este jantar constitui-se como uma das poucas oportunidades de confraternização geral, imprimindo outra ordem velada, a de que a paz nessa janela de tempo não deve ser perturbada. Mas será, pois as nuvens negras precisam chover em algum instante e os segundos pesam, marcados pelos estalares agudos dos talheres. — Eu vou amanhã — disse a filha. 30
O pai terminou de mastigar e tomou um gole de suco. — Agora não, filha, nós já falamos sobre isso.
— Eu só estou avisando — Sua frase termina em uma abismo típico das frases muito planejadas. A tranquilidade no rosto da mãe se desfez, o filho mantém-se impassível. Confidenciou em outro momento à irmã que estava de acordo com seu pensamento e seus direitos, mas infelizmente não havia nada que pudesse fazer para ajudar, eles eram assim mesmo e com o tempo melhoraria, embora para ele, mais velho, houvesse levado menos tempo, além de nunca ter precisado, por exemplo, prestar satisfações sobre sua vida sexual. — Agora não — O pai concluiu. A filha sentiu um gosto amargo, não do peixe, que estava ótimo como sempre, todos já haviam dito, mas de um pressentimento. Em sua mente viajavam os cenários das próximas horas em que sua afirmação seria diluída no tempo e em conselhos esparsos dos familiares, o irmão aconselhando-a que era o momento errado em uma esquina, a mãe alegando que seria culpada por ser adepta de uma criação, segundo as palavras do marido, muito liberal, o pai encerrando o assunto com longos silêncios e meias-palavras no café da manhã e se retirando para dormir até ela perder a hora. — Era só isso, eu vou, já acabou. Notando que ela insistia em manter a palavra final justo na ocasião que tinha mais testemunhas, o pai parou de mastigar e levantou os olhos. — Bom, você já sabe o que vai acontecer com você. — Pode me tirar da faculdade, eu não ligo. Os talheres bateram contra o prato. A nuvem descera à mesa. Chama-se mutualismo quando duas espécies diferentes coexistem em uma relação de benefício mútuo. Por exemplo, líquens e algas microscópicas, em que estas 31
provém alimento aos líquens, os quais, por sua vez, criam um ambiente adequado para a realização da fotossíntese. Poderíamos aplicar esse exemplo à situação presente se já não soubéssemos que a mesa de jantar e seus ocupantes tem quase nada, quando muito, de naturais no sentido comum da palavra. Pois é seguro afirmar que as algas microscópicas e líquens querem viver e se desenvolver. No entanto, os seres humanos querem morrer. Ou, quando são ambiciosos, querem se desenvolver, mas seu desenvolvimento não segue um padrão encriptado em um suposto código natural (como acreditam os nazistas), mas depende das vontades e convicções (vontades de outro tipo) de cada indivíduo. Assim, quando parece que podemos tratar uma relação entre diferentes humanos como mutualista, ao determo-nos mais na cena, é comum que percebamos tratar-se na verdade de um, digamos, parasitismo, em que vontades e convicções são implantadas pelo parasita dentro de um organismo, o qual passa a seguir um curso de desenvolvimento que lhe é, em alguma unidade muito difícil de rastrear, estranho, alheio. Curioso, visto que a analogia corrente mais óbvia é de que o bebê é um parasita no corpo da mãe. Talvez, com a quebra do instante de silêncio em que a filha, após desafiar um suposto blefe, coloca as cartas na mesa, possamos supor que estas relações familiares poderiam ser mais precisadas em uma analogia com o duplo parasitismo. — Se vocês me tirarem, eu não vou fazer nada. Não vou trabalhar, não vou estudar, não vou fazer nada o dia todo. O que ela não disse, mas as pessoas na sala de jantar entenderam perfeitamente, é que está se propondo a não fazer nada o dia todo às custas dos pais, comendo sua comida e dormindo sob seu teto, luz e água, sem que eles jamais tenham a coragem de privá-la desse mínimo. Ela, por sua vez, abdicaria das próprias ambições (quer as reconheça ainda como suas em algum grau ou não) e nunca mais se faria um objeto que pudesse canalizar qualquer sentimento paterno positivo, como orgulho, imortalidade, amizade (pois a 32
figura da filha estaria para sempre manchada ao se recusar a continuar o legado das gerações translúcidas e tornar-se alguém). Por isso a hipótese do duplo parasitismo ao invés do mutualismo. Não é que os pais dessem à filha comida para que se escorassem no desenvolvimento natural dela, mas sim deixavam com que ela usufruísse de seus bens porque, em contrapartida (uma palavra
muito mais hostil que escorar), ela tolerava a presença das vontades e ideias deles em seu cérebro, como um protozoário Toxoplasma gondii. Porém, está tudo errado. Mutualismo e parasitismo só nos servem enquanto conceitos intermediários que condensam a dinâmica até aqui apresentada e que precisam ser reformulados para chegarmos em uma explicação que realmente descreva a situação dentro de sua particularidade e dinâmica interna. Entendamos melhor com a réplica do pai que, após alguns segundos de tenso silêncio, percebeu uma falha no próprio trunfo do plano da filha, o fato de que os seres humanos são reféns de suas vontades. Assim, da mesma forma que ele não poderia contradizer a vontade de manter sua filha viva, ela também não poderia viver só de espezinhá-los. — E vai ficar em casa o dia todo? Como vai sair com seus amigos, fazer qualquer coisa sem um centavo? Triunfante, o pai pegou os talheres e relaxou no assento. O irmão e a mãe deram a discussão por acabada. Ele indiferente, ela com uma ponta de amargor ao vislumbrar na filha a aceitação da dependência, algo que conhecia à sua maneira por ter sua ambição maior moldada desde a infância para adquirir os contornos de uma conquista por tabela: seria feliz se o seu marido o fosse. Não é que a mãe se ausentasse do parasitismo (como, em outras condições econômicas, não se ausentaria do nazismo), também era refém das próprias vontades, mas nutria uma vontade secundária de que um dia sua ambição tardia pudesse se realizar através da filha: ser livre. Mas tais emoções duraram pouco,
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pois a filha, diante da impossibilidade de romper as esguias e gelatinosas externas, ao longo de anos destruiu barreiras internas. — Eu vou vender fotos minhas pela internet. O pai cuspiu um pedaço do peixe. A mãe levou as mãos à boca. O irmão soltou uma exclamação imprecisa. Os três tinham pouca consciência de que nas últimas décadas o capitalismo, em sua natureza expansionista, abandonava em escala global fachadas tradicionalistas e dava vazão aos instintos antes
reprimidos de forma, naturalmente (sem objeções), alienada. O desenvolvimento do patriarcado guiado pelo lucro trilhava a criação de novas necessidades de consumo e não demorou para que o filão da sexualidade fosse atropelado, extrapolando-a até os limites da mercadorização do corpo e pegando embalo ideológico inclusive em setores da dita esquerda que confundiam a fetichização com a liberdade sexual, essência com aparência. Assim, a prostituição estava sendo cada vez mais despida dos véus dos preconceitos e ao mesmo tempo plastificada em uma gama maior de opções, como conversas agradáveis com homens solitários, fotos seminuas, fotos de partes específicas do corpo (a mais comum sendo os pés), vídeos com nudez, vídeos pornográficos, lives pornográficas, videochamadas pornográficas, modelos sem ficha rosa, modelos com ficha rosa, até chegar à própria prostituição no sentido entendido pelos três integrantes furiosos da família. A filha tinha em mente realizar desde a parte de conversas agradáveis até a de vídeos com nudez, mas esse escopo de nenhuma maneira é comunicado. Como é típico das famílias repletas de tabus, a transmissão de informação é permeada por lacunas gigantescas e vontades dissonantes são interpretadas como afrontas, embora, neste caso, a filha de fato esteja sentindo certa dose de satisfação ao tomar as rédeas da discussão. O fato é que não estava mais em jogo apenas o apagamento do sonho paterno, mas a possibilidade de que a filha 34
pudesse levar uma vida não só sem ser um conduíte do desejo dos pais como também sendo uma afronta constante a eles. O parasitismo agora era unilateral, as ideias que impuseram na filha entortaram como uma planta cujo caule cresce noventa graus virado em direção ao sol, despertando uma pergunta: que tipo de pai ou mãe eu fui? É curioso perceber que é uma pergunta sem sentido. Assume, como a interpretação de que vontades dissonantes são afrontas, uma causalidade necessária e hierárquica entre a vontade do outro e a própria. Ou seja, nessa mesa, todos os personagens pensam ser os protagonistas (embora a mãe pense dividir o palco).
A este ponto do conflito parece adequado nomear e categorizar a moeda de troca que guia de um lado ao outro o que até agora foi referido como parasitismo. Talvez possamos encontrar a peça que falta na atitude do filho, o qual já subverteu a dinâmica apresentada. Já formou-se, mas ganhou um carro logo ao entrar na faculdade (também particular e de medicina) e ao fim do segundo semestre já não respondia mais a ninguém. Esses fatos são constantemente usados pela sua irmã ao argumentar sobre os pais preferirem um dos filhos, mas é difícil que qualquer observador externo corrobore com essa afirmação. Atentemos: — É, pai, realmente você deu educação pra sua filha — Ele disse enquanto recolhia o talher do colo. Tal tipo de injúria é recorrente nas conversas familiares e em situações tão indelicadas quanto. Acontece que, durante sua adolescência, o filho também acumulou muita raiva a partir dos atritos com a regra paterna. Sua libertação ecoa, sem que ele saiba, as contínuas seduções que a mãe fez ao marido para que este fornecesse as condições materiais para o filho adquirir independência, pois ela identificou ao longo dos anos uma oportunidade de suporte às suas necessidades. Ou seja, viu nascer um aliado a suas pequenas reivindicações de liberdade cotidianas, mas não esperava que não tivesse garantias de resgate de 35
seu investimento, se vendo em algum momento pega em um fogo cruzado de dois homens que não se respeitavam e que a tomavam às vezes como uma aliada temporária. Mas suas discussões tinham apenas um objetivo, provar quem tinha razão. Ou seja, discussões sem substância, retóricas sobre retóricas em que a solução encontrava-se em deixar o outro sem palavras, preso em alguma armadilha da linguagem e das contradições aparentes. Ou seja, discussões pra ver quem tinha o pau maior. E como a mãe não tinha pau, era abandonada tão logo acabava-se o conflito, seus apelos sem destino. Vemos então que os pais não tem preferência real por qualquer dos filhos, apenas não
tinham expectativa que nada de bom pudesse vir de uma emancipação da mais nova, sendo que nada lhes trouxe da do mais velho. Claro, o controle exercido sobre a filha investe mais fundo, vai até o íntimo, mas não é uma questão pessoal, e sim atravessado pelas gerações translúcidas. Dito isso, a situação apresentada não é nada mais que natural, uma consequência das premissas. A única coisa estranha na verdade é aquilo sobre o que normalmente não se pergunta. Por que esta família ainda existe, o que a mantém de pé? Dinheiro? É essa a moeda de troca que sustenta as relações de parasitismo? Com certeza ele as possibilita, dinheiro é o solvente e o conduíte universal, mas em sua essência é vazio de significado. Ou melhor, é carente de um. Dinheiro adquire e ao mesmo tempo molda a cor e o gosto das intenções e vontades. O que a filha sente quando vê-se numa situação dependente da vontade paterna, sustentada pelo dinheiro? O que o pai sente quando vê o filho que consumiu seu dinheiro voltando-se contra ele para tomar o resto? O que a mãe sente ao ver-se em uma conta conjunta, mas sem possuir a coragem para sacar o dinheiro ela mesma e desaparecer? O que o filho sente ao ver os sonhos e vontades paternas se esfacelando aos poucos, notas ao vento, desabando sobre fundações carcomidas por vermes? Ressentimento, ódio, amargor, 36
desespero. Múltiplas facetas de sensações que convergem a um ponto comum, o desejo de vingança. Ao que parece, o pilar desta família é o jantar na sala de jantar aos sábados, a sessão semanal em que é possível, às vezes em pequenas provocações, meios-tons, outras vezes em brigas generalizadas, aproximar-se dessa vingança e descarregar o que quer que chamemos a moeda de troca. Então se recolherão em seus quartos e alimentarão o ódio até a próxima semana, a qual se aproxima como uma miragem no deserto. Entre os gritos e estalar de talheres caindo sobre o piso, é impossível distinguir o resultado desse jantar, apenas sabemos que constitui o início de mais uma espiral em que o tempo se dilatará e só poderá voltar ao seu curso normal depois de uma transformação, que pode ser risível, quase consolatória,
ou uma rachadura que anuncia o intransponível, mas sempre uma transformação. O que nos resta é a hipótese que agiganta-se em nossos ouvidos: uma possibilidade e, por isso, muito mais assustadora que uma certeza, pois esta nos agride com sua solidez mas também nos consola com sua inevitabilidade. Não podemos a partir deste exercício literário concluir algo sobre a verdadeira natureza da família nuclear, talvez desvelar algumas causalidades necessárias e despir outras desse manto, mas descobrimos que é possível que pobres corpos e almas possam ficar presas à mesa de jantar, reféns de suas vontades, sem nunca poderem sair pois estão em custódia, suspeitos de um crime ocorrido muito antes de qualquer uma delas nascer. E nada nos garante que não somos uma delas. Sempre pensamos ser o narrador.
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Breno Andrade
Cearense, 19 anos, apaixonado por literatura, sou um brasileiro que gosta de ajudar as pessoas e espero, por meio da escrita, entreter e auxiliar o maior número possível de cidadãos. Facebook: Breno Andrade Instagram: breno_andrade9
No interior do Ceará, na zona rural de um pequeno município, havia a Vila do Silêncio, onde morava Maria. Batizada de Maria das Dores, era filha única de um casal de agricultores já falecidos. Casou muito cedo, aos dezoito anos, com um homem mais velho chamado Severo. Maria das Dores já contava com quarenta anos em 2020, com uma beleza mediana, nem bonita nem feia, era uma pessoa muito simpática. Não falava mal de ninguém, perdoava a todos. Não sabia sentir o ódio, pode até ser que não soubesse sentir o amor. Após o casamento, Maria ficou conhecida como Maria de Severo. Severo, seu esposo, era um homem muito sério, muito trabalhador, mas com muitas atitudes grosseiras. Aliás, possuía dois empregos, trabalhava de segunda a sexta das sete às dezoito horas em uma fábrica de tijolos no município ao lado e, no sábado pela tarde, trabalhava em uma borracharia. Trabalhava muito e passava a maior parte do tempo fora de casa. Maria, por sua vez, não trabalhava fora, cuidava apenas dos afazeres domésticos. Acordava sempre bem cedo para preparar o café do Marido. Passava a manhã fazendo crochês, a tarde assistia novelas e preparava o jantar do esposo. Quando Severo chegava, já ia tomar o seu banho, mal falava com Maria e atacava as panelas. Comia enfurecido, muito rápido. Maria apenas o observava, ele apenas comia e, além disso, só apontava defeitos.
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Reclamava do sal da comida, reclamava do arroz que não estava muito solto, reclamava da carne que era para ter sido melhor cozida, reclamava da salada que era um desperdício de dinheiro, reclamava do suco que não estava gelado o suficiente. Quando tudo estava perfeito e não havia nada de errado, comia e ficava calado. Assim, Maria sabia que o tinha agradado. Ao terminar de comer, Severo tomava seu café, ligava a TV para assistir notícias e deitava no sofá. Sua esposa sentava em uma cadeira ao seu lado e assistia aquilo que o marido estivesse com vontade. Quando o sono e o cansaço batiam forte, Severo logo ia dormir. E se dirigia a esposa: -Maria, bora dormir, que já tá tarde. E sua esposa o acompanhava, mesmo não estando com sono, mesmo querendo assistir um pouco mais de televisão. Deitava na cama ao lado dele e ficava esperando o sono chegar, escutava o ronco de Severo, mas já estava acostumada a escutar o ensurdecedor barulho. E ,assim, caia no sono, para no outro dia seguir a rotina. O único dia na semana que fugia um pouco dessa rotina era o domingo. Nesse dia, Severo não trabalhava e, diferente da manhã de sábado em que fazia compras, aproveitava para sair com amigos. Nessa parte do dia, Maria ia para a igreja assistir a missa. Os dois se encontravam na hora do almoço e passavam o resto da tarde juntos. Severo procurava defeitos nos afazeres de Maria e, depois do café pós-almoço, mandava a esposa ir com ele à sala assistir programas de televisão. Maria se sentia muito desconcertada, já que quando Severo via uma bela mulher passando na TV, logo dizia: - Olha que mulher boa. Essa sim seria uma boa esposa. Maria, sentia que não estava fazendo bem o seu papel. Que não estava fazendo bem a função que os pais a educaram desde cedo. Desde pequena aprendeu a lavar, a passar, a cozinhar. Estudou em um grupo escolar perto de
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sua casa e pela tarde sempre ajudava os pais no cuidado a uma pequena roça. Ajudava a regar os pequenos pés de feijão e de milho. Em relação a milho, adorava fazer canjica e pamonha. Sua mãe dizia que ela seria uma boa esposa e com a sorte de conseguir um homem bom. Quando Maria tinha apenas treze anos, sua mãe faleceu de doença cardíaca, então teve que largar os estudos para ajudar o pai na lida diária. Entretanto, seu pai fumava muito, já estava com os pulmões fracos. E, nesse período, apareceu Severo, um pouco mais velho que a donzela, mas que parecia ser honesto e trabalhador. Tomada pelos conselhos do pai, Maria casou aos dezoito anos e Severo já contava com trinta e um. Poucos meses depois seu pai falecera e ela já estava acostumada com a rotina do casamento. A conhecida Maria de Severo, aquela que morava na pequena Vila do Silêncio. Não tinha filhos, não conseguiu engravidar, procurou médicos, mas todos falavam que ela não tinha problema algum. Chegou ao ponto de pedir para o Marido ir fazer consultas. Severo ficou enfurecido e com um tapa forte no rosto da esposa a silenciou: - Se não tenho filhos a culpa é tua, abusada. Maria nunca mais ousou a tocar no assunto, Severo até que disse que não bateria mais na mulher. E ela aceitou, afinal, essa era a sina que ela foi ensinada desde cedo. Em frente a sua casa na pequena Vila morava a viúva Fátima e a sua jovem filha Judite. Fátima era uma mulher muito bonita, uma amiga bastante fiel, possuía olhos negros e fundos e seus cabelos eram sempre presos. Tinha apenas trinta anos, mas já não mais pensava em casar. Era uma costureira de mão cheia, o marido era eletricista e faleceu de um choque elétrico em uma outra localidade. Deixando Judite com apenas quatro anos. A jovem já contava com seus quinze anos e era muito bonita , tinha olhos verdes, cabelos castanhos longos e ondulados. Era bastante estudiosa, adorava ler livros
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românticos. Maria gostava muito de suas vizinhas e queria muito ensinar a moça a fazer crochês, mas ela não gostava. Não ligava muito para aprender atividades domésticas. Severo achava isso um absurdo. Nas poucas conversas que tinha com sua esposa, falava da vida infeliz que teria a jovem que não tinha uma figura masculina em casa para educá-la e ainda possuía tais pensamentos, além de ficar muito tempo mexendo no celular. De acordo com Severo, logo ela apareceria grávida e a desgraça seria feita. Maria, apenas escutava como sempre, e ia levando a mesma rotina dia após dia, saindo de casa apenas para ir a missa no domingo pela manhã. Dificilmente recebia visitas e essas eram de suas adoráveis vizinhas que vinham pedir um pouco de açúcar, café ou qualquer outra pequena quantidade de alimento. Essa era a vida que Maria estava levando, mas veio um acontecimento que ela não esperava: a pandemia de coronavírus de 2020. Maria tinha muito medo, assistia a notícias junto ao esposo. Acompanhou a doença chegando a várias partes do mundo. Várias partes que ela mesma só conhecia pela TV. Seu marido achava tudo uma bobagem, não acreditava em tais notícias. Ele comentava com a esposa que era apenas um “resfriadozinho” como outro qualquer. Todavia, Maria sentia que era algo mais sério.
No
primeiro domingo de Março, lá estava Maria sentada no terceiro banco do lado esquerdo da pequena capela da sua comunidade, assistia atentamente o sermão de Padre Sebastião, um padre negro e um pouco baixinho, que prendia a atenção dos fiéis com falas inovadoras. Padre Sebastião começou a falar que, provavelmente, as próximas missas estariam suspensas, uma vez que o número de casos de Covid-19 estavam se espalhando em regiões próximas. Várias senhorinhas ficaram muito emburradas, não queriam aceitar o fato de não terem mais celebrações religiosas. Maria, por sua vez, ficava triste, pois gostava muito de sair de casa. O padre continuou o discurso 41
afirmando que até mesmo muitos trabalhos não poderiam funcionar e muitas pessoas teriam de ficar em casa. Nesse instante, Maria estremeceu. E se Severo não fosse mais trabalhar? Ficaria em casa mais tempo com ele, tendo que aturar ainda mais as suas grosserias que a incomodavam tanto. A missa acabou, e ela chegou em casa pensativa, além de ter essa triste suposição do padre ainda teria que passar o restante da tarde com o marido. Se o que o padre falou se concretizasse, as suas tardes de domingo seriam muito maiores. Severo começou a reclamar do feijão que estava sem gosto e começou a se lamuriar: - Trabalho todo dia pra te dar sustento, comprar tudo do bom. Chego em casa lascado de cansaço e você não tempera um feijão direito no domingo. Ô mulher mal agradecida. Um dia eu vou embora e te deixar sozinha pra você vê o que é bom. Maria apenas baixava a cabeça, como sempre, e ficava calada, mas dessa vez, estava pensativa na fala do padre. E resolver desabafar com o marido: - Severo, o padre falou que aquela doença que está passando na TV pode chegar aqui e muitas coisas terão que deixar de funcionar e todos deverão ficar em casa. - Deixa de besteira, mulher. Respondeu Severo. - Agora foi que deu mesmo. Você vai ficar falando conversa de padre. Já não basta esse feijão vou ter que aturar essas besteiras. Maria então ficou calada e preferiu não tocar mais no assunto. E viveu mais essa dolorosa tarde de domingo ao lado do marido. Dez dias depois, conforme o padre falara, as coisas começaram a mudar, várias cidades aderiram à quarentena, os jornais mal falavam de outro assunto. Maria assistia TV e ficada cada vez com mais temor. As aulas da graciosa Judite foram suspensas por tempo indeterminado e Fátima a fez uma visita para contar sobre o ocorrido. Conversaram bastante, Fátima a aconselhou a sempre lavar bem as mãos e lhe presenteou com um 42
pequeno frasco de álcool em gel. - A bixinha da minha filha tá tão triste. Disse Fátima. - Ela gosta muito da escola, Maria. Parece que por enquanto vai ter é aula pelo celular. Se cuida Maria, parece que vão mandar um médico aqui pra zona rural. Vai ficar um na cidade e outro aqui pra ajudar a gente a enfrentar essa doença. Na conversa com Fátima, Maria se assustava cada vez mais. Ficou durante algum tempo pensativa, preparou o jantar e esperou Severo chegar. Quando esse chegou muito aborrecido foi logo dando a notícia que Maria mais temia, de que o seu trabalho havia sido suspenso e haveria fiscalização. O caso era realmente grave. - Tamo ajeitando uma manifestação contra essa parada. Disse Severo. - Eu e outros cabras. Maria ofereceu um pouco de álcool em gel ao seu esposo que achou tal atitude tolice e jogou o frasco pela janela, mas quando ele foi tomar banho, Maria saiu para buscar o pequeno frasco. No outro dia, Severo não foi mais para o trabalho. Não sabia quanto tempo ele ia ficar sem trabalhar. Diante disso, Maria começou a sentir fortes dores e pontadas na barriga, além de falta de ar. Mal conseguia realizar as tarefas domésticas. Recebeu a visita de Fátima que ficou de chamar o médico para visitá-la e fazer uma consulta. Severo achou que não era para tanto, mas a vizinha se prontificou a realizar o ato. Afinal, segunda ela, o médico já tinha tal função e poderia ser que Maria pudesse ter sido acometida pela nova doença. Na manhã seguinte, Camilo, o novo médico da localidade, chegava na pequena Vila do Silêncio. Camilo era um médico jovem, contava com vinte e oito anos, era um pouco alto, olhos fundos e esverdeados, cabelos negros e ondulados. Amava a profissão a que escolhera e sabia muito da sua responsabilidade perante ao difícil momento no país. 43
Chegando na Vila, Camilo resolveu procurar informações na primeira casa que avistou, uma pequena casa com uma pintura desbotada, a casa de Fátima. A graciosa Judite saiu para ver quem era o forasteiro. Então, Camilo lhe disse: -Bom dia. A moça sabe me informar onde mora Maria que habita por esses lados? -Há várias Marias que moram ao lado. Tem Maria de Custódio, Maria de Severo, Maria de seu Cosmo e Maria de Jorge açougueiro. -Procuro a Maria que está um pouco doente. Sou novo médico nesse município, fiquei responsável pela zona rural nesse período de pandemia. -Entendo. A Maria que você fala é a Maria de Severo. É essa casa ao lado da minha. Meio azulada. Depois de agradecer a Judite, o médico seguiu para a residência. Chegando lá, Severo abriu a porta, e pediu para o médico ir sentando para que pudessem conversar um pouco. Ao jovem profissional, disse: -Minha mulher é muito mole, dotô. Qualquer coisinha já fica adoentada. - Eu posso examiná-la? Disse Camilo. - Para poder saber melhor o seu estado. Severo, então, levou Camilo até o quarto onde Maria estava deitada. Maria ao ver o médico ficou um pouco intimidada, mas percebendo o seu doce olhar foi perdendo a vergonha. -Muito prazer, me chamo Camilo, como você já deve saber, estou aqui para ajudar todos vocês no enfrentamento à pandemia. Soube que você está um pouco doente. Pode me falar sobre isso? Antes que Maria pudesse começar a falar a primeira palavra, Severo tomou a fala: - Vê se tu passa um remédio bom pra ela dotô. Se ela já não faz comida boa quando tá sadia, imagina adoentada. Eu vou esperar na sala, qualquer coisa é só chamar. 44
Assim que Severo saiu, Camilo puxou uma cadeira ao lado da cama e se sentou, pegou uma caneta na mochila e Maria lhe disse: -Você tem uma máscara muito bonita. -Obrigado. Minha mãe que fez, trouxe umas máscaras aqui para você e seu marido também. Elas são essenciais. Maria começou a falar todos os sintomas que vinha sentindo desde aquele primeiro domingo de Março. Enquanto falava percebia que estava se abrindo com outra pessoa que estava disposta a lhe escutar e que como fazia tempo que não se consultava, já tinha esquecido de como era bom esse papo. Ao final de sua fala, Camilo constatou que a ansiedade era o problema de Maria. Era um problema não só dela, mas de muitas outras pessoas nesse período de incertezas. Passou um calmante, pediu para ela tomar suco de maracujá e chás. Pediu que ela ficasse tranquila, pois o amanhã seria um novo dia cheio de boas notícias. A triste mulher absorveu as palavras do jovem médico. Camilo se despediu, levantou-se e saiu do quarto. Ao chegar na sala, disse a Severo que entregou um medicamento a Maria e que havia explicado o problema a ela. E saiu pela Vila do Silêncio.
Maria tomou a medicação e seguiu as recomendações do médico. Severo passava muito tempo no quintal planejando o protesto que faria contra a paralisação, possuía alguns cartazes e até mesmo apitos. Dois dias depois, Maria já estava melhor, sempre que a ansiedade vinha ela pensava que logo todo o momento iria passar. Severo já estava com tudo pronto para a manifestação, mas só conseguiu reunir apenas três colegas de trabalho. Maria não concordava com a atitude de seu marido, todavia sabia que não adiantaria a sua opinião no caso. O mês de março já estava acabando, a quarentena estava no início e Severo não concordava com ela. Assim, mal tomou seu café e saiu para a manifestação que ele mesmo criou na cidade, 45
não quis nem colocar a máscara e deixou a pobre esposa apreensiva. Severo não voltou para almoçar e muito menos para jantar. A sua manifestação em frente à prefeitura municipal havia sido barrada por muitas pessoas da cidade que acharam uma loucura o seu ato, houve muita discussão e até agressões. Severo acabou sendo atingido por uma barra de ferro na nádega que lhe deu um corte horrível, perdeu muito sangue e foi levado ao hospital. No outro dia pela manhã, foi levado para casa com a ajuda de algumas pessoas e do Médico Camilo que se prontificou a cuidar do caso. Maria não entendia tudo muito bem, mas seu marido havia levado alguns pontos e como ele possuía diabetes levaria algum tempo para a ferida cicatrizar. O médico fez questão de ensinar - lhe passo a passo o modo como era para serem feitos os curativos. Já era o mês de abril e Maria cuidava do marido. Já não assistia mais a TV para evitar saber de tristes notícias. Cuidava da casa, como sempre, e do ferimento do esposo. Severo passava o dia todo praticamente deitado de barriga para baixo, mal conseguia se mexer, tinha muita dificuldade para se alimentar e para ir ao banheiro. Entretanto, continuava a menosprezar a sua esposa. Para ele, nada do que ela fazia estava bom, não fazia uma comida forte que o ajudasse a ficar melhor e não cuidava dele de forma correta. Quando não criticava a mulher, falava da sua manifestação frustrada. De acordo com ele, o país não poderia parar de modo algum. As pessoas precisariam trabalhar. Dia após dia, Maria se acostumava com a nova rotina de ficar mais tempo com o marido e de cuidar dele. Ao mesmo tempo que precisava sair todos os sábados pela manhã para fazer as compras. Maria tomava sempre todas as precauções, usava máscara, sempre levava álcool em gel. Não cumprimentava ninguém. Chegava em casa, tomava um bom banho e fazia seus afazeres domésticos. Severo, cada dia que passava, reclamava ainda mais da situação do país e das tarefas de sua esposa. Reclamava das compras 46
de Maria. Dizia que ela tinha esquecido de comprar mais carne ou devia ter comprado mais biscoitos. Já Maria, ficava calada como sempre, realizava a troca do curativo de Severo, ajudava ele a comer e a tomar banho, mas ele continuava a achar defeitos em tudo. Maria percebeu que o material para realizar o curativo estava quase no fim e decidiu ir à casa do médico pedir um pouco. Disse a seu marido e seguiu caminho. Camilo tinha alugado uma casa próxima à vila para poder realizar um melhor serviço na zona rural. A casa era bem simples, possuía uma pintura azul e tinha apenas uma pequena janela. Maria bateu a porta e Camilo a abriu. Pela primeira vez ela pode ver o médico sem máscara e pela primeira vez ver o sorriso dele. -Maria, em que posso ajudar? -É que eu preciso de alguns materiais para realizar o curativo de Severo. -Claro! Vou já pegar. Espere um pouco. Maria aguardou, recolheu o material e saiu um pouco envergonhada. Esqueceu de agradecer o jovem Camilo e se sentiu mal por isso. Chegando em casa, avistou o marido muito enfurecido. A triste mulher ainda não tinha começado a fazer o almoço e ele já estava faminto. E, assim, escutava mais uma vez as lamurias do marido. A noite chegou e com ela a reflexão. Maria se sentia mal por não ter agradecido a Camilo. Logo ele que a ajudou e também está ajudando seu esposo. Deitada na cama junto a Severo que já dormia e roncava alto, ela decidiu se levantar bem devagar para vasculhar a gaveta e encontrar um tapete de crochê que ela mesma fez para poder presentear o jovem trabalhador. Assim que encontrou, acordou o marido. -Inferno! Praga ruim! Ninguém pode dormir nessa casa. Volte logo pra essa cama, Maria. Eu tô mandando. E Maria obedeceu. 47
No outro dia, pela manhã, Maria disse a Severo que iria visitar o médico para lhe entregar um agrado pelos trabalhos que ele havia fazendo não só para eles, mas para todos os outros moradores. Severo agiu de modo indiferente e permitiu que a mulher fosse. Chegando lá, o médico já estava de saída para o trabalho. Já estava todo paramentado para realizar visitas. Maria entregou o embrulho a Camilo e agradeceu por tudo que ele havia feito. A pobre mulher falava com os olhos baixos e a voz um pouco envergonhada. Não esperou nem que ele falasse e já se virou para ir embora. -Espere, espere. Muito obrigado! Venha tomar um café comigo hoje a tarde. Maria não respondeu e saiu. Não se sentiu ofendida com o convite, mas nunca havia sido convidada por um homem solteiro. Chegando em casa, Severo estava deitado de barriga para baixo no sofá e a ferida estava descoberta. Já iria completar um mês que essa ferida não cicatrizava. Maria foi fazer o almoço pensando no convite do médico, com toda a certeza o seu marido não iria deixar ela ir tomar um café na casa de outro homem, mas Maria achava Camilo muito gentil e não conseguia ver problema algum em fazer essa visita. Na hora do almoço, a pobre mal tocou na comida, mas, pelo menos Severo não reclamou da refeição, reclamava apenas da dor que tinha ao ficar sentado, mesmo colocando almofadas na cadeira. Lavando a louça, Maria decidiu que iria tomar o café com o médico. Às dezesseis horas, Maria vestiu um vestido azul bem simples, colocou uma máscara de tecido rosa e avisou a Severo que iria visitar o padre. Não se lembrava mais da última vez que mentiu para o marido, talvez até nunca tivesse mentido. Entretanto, mentiu e foi. Quando chegou na casa de Camilo, que não era muito longe, pode ver o médico novamente sem máscara. Ele se mostrou muito feliz por Maria ter aceitado o convite. Pediu que antes que ela entrasse passasse um pouco de 48
álcool em gel nas mãos. -Sei que não deveria ter feito tal convite a você, uma vez que eu tenho que dar o exemplo. Nesse período, é de grande importância que cada um fique na sua casa. Mas eu senti que, quando você me presenteou ,o trabalho que venho fazendo está sendo bem visto pelos moradores. Maria achava a forma de Camilo de expressar muito bonita, parecia um ator de novela, ela pensava que isso não existia na realidade. Camilo a convidou para sentar em um sofá cinza e confortável na pequena sala. Ao invés de servir café, o jovem médico serviu chá. Então, começaram a conversar muito. O principal assunto era sobre a pandemia. Maria descobriu que Camilo já havia visitado muitos outros países e possuía muitos amigos. Ele começou a contar sobre como a pandemia afetava a vida dos outros, as particularidades de cada país no enfrentamento dessa doença. Maria sempre ouvia notícias do covid-19 no jornal, mas gostava de ouvir Camilo, uma vez que também poderia se expressar sem ser criticada. Ao pegar a xícara das mãos de Maria, os dedos de Camilo se encostaram aos dela. Poro com Poro, pele com pele. Maria rapidamente afastou a sua mão. Contudo, Camilo não havia entendido então pegou a mão de Maria com as suas mãos e disse-lhe. - Tens as mãos calejadas, mas isso apenas me mostra que você é uma mulher muito trabalhadora e não tem medo de ir à luta. Maria nunca havia passado por tal situação, nunca havia recebido um elogio ou palavra de carinho, e muito menos sobre suas mãos calejadas. Camilo se levantou e começou a procurar algo que estava em uma caixa próxima, retirou um dominó. - Fui presenteado por outro paciente hoje. O meu segundo presente. Fico feliz, isso mostra que estou indo bem. Mas não tenho com quem jogar. Você sabe?
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Fazia muito tempo que Maria não brincava de dominó. Fazia muito tempo que Maria não brincava de nada. Ela aceitou jogar, em meio a brincadeira, Camilo fazia várias perguntas a Maria. Estava disposto a conhecer mais essa mulher simpática e tranquila. Ficava um pouco surpreso com as respostas. Ficava pensativo com a vida monótona que ela levava. A mulher já contava quarenta anos e não possuía nenhuma ambição. - Você não tem vontade de viajar o mundo, Maria? -Viajar o mundo? -Sim. Revirar o mundo. Conhecer diversos lugares aqui do Brasil e de outros países. Sei que nesse momento é inviável, mas depois. Eu mesmo tenho vontade de ir para mais lugares. Sei que aqui no Ceará é muito bonito, mas me diga um lugar que você deseja ir. Maria nunca havia parado para pensar nisso, só levava sua vida, nunca ninguém lhe fez tal pergunta. Não respondeu e pelo andar da hora se despediu de Camilo e foi se retirando. - Sempre que quiser, pode vir jogar um dominó. É só tomar os cuidados certos. Disse Camilo. Maria foi para casa pensativa com toda a situação, refletiu muito sobre tudo. Refletia até sobre a questão de Camilo está morando sozinho, fazendo a própria comida e lavando a própria roupa. Viajar o mundo? Nunca isso lhe passou pela cabeça. Conhecia o mundo na sala de casa pela TV e agora via o mundo assustado por a doença. Chegou em casa, Severo já tinha jantado e já estava cochilando no sofá. Foi lavar a louça, seguindo a sua rotina. O tempo passava, Maria ficava cada vez mais assustada com a questão da pandemia, via o número de mortes crescerem no jornal. A ferida de Severo já havia completado dois meses e não cicatrizava. Ele ainda possuía dificuldades para se locomover, mas não cuidava corretamente do próprio
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ferimento. Não deixava Maria fazer o curativo, ele próprio que fazia pois achava que a mulher era imprestável até nisso. Continuava achando uma bobagem o isolamento social, mas estava de certo modo conformado, pois se não houvesse o isolamento não poderia trabalhar por causa do ferimento. O médico Camilo realizava um bom trabalho na região. Não havia nenhum caso suspeito, muito menos confirmado. Era um período muito difícil, mas todos confiavam nele. E mesmo com o passar do tempo ele sempre incentivou as pessoas a não relaxarem. Já era início de junho e Camilo fez uma visita a Severo para recomendar dicas sobre a questão de seu ferimento. Maria sempre visitava Camilo nas tardes de sexta-feira. Jogavam dominó, riam juntos e conversavam bastante. E Camilo, sempre que podia, realizava visitas na casa de Maria para ver como estava Severo. Até mesmo com todos os seus conhecimentos não entendia porque a ferida diminuía lentamente. Quase não havia melhora. Mas nas conversas com Maria ela sempre falava que o marido é cabeça dura, não fazia os curativos corretamente e realiza atividades que não podia fazer. O dias passavam, já se aproximava o São João e, infelizmente, seria diferente por conta da doença. Não poderia haver as famosas quadrilhas, danças, crianças correndo a brincar, fogueiras e muita comemoração. O isolamento social era preciso. Em uma tarde de sexta, véspera de São João, Maria levou a Camilo um bolo de milho que ela havia feito. Camilo ficou muito grato, gostava muito da mulher. Nas poucas palavras que ela soltava ele entendia como era sua vida. Entendia até o motivo de que, quando ia a sua casa, ela não trocava muitas palavras com ele. Camilo agradeceu: - Muito obrigado! Venha na segunda feira, véspera de São João, jantar comigo. Maria ficou espantada com o convite. Ela o visitava nas sextas pela tarde para
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jogar dominó, jogar conversa fora. Porém, o fato de sair de casa a noite para jantar com outro homem a fazia refletir. Ficou pensativa, mas o que haveria de mais isso? Camilo havia se mostrado um homem íntegro, nunca a desrespeitara, ele aguçava a sua curiosidade. Em meio a uma pandemia ele era um refúgio. Um refúgio que para ela chegou na hora em que mais precisava. Então, Maria aceitou. Não que as noites de fogueira de São João de sua vida fossem ruins. Todo ano Severo fazia uma fogueira e ela sentava ao lado dele em frente dela para tomar um café com bolo, gostava de ficar vendo a correria das crianças com festejos na Vila. Esse ano era diferente. Severo não podia montar a fogueira, teve que pedir a um conhecido para fazer uma bem pequena e simbólica. E ,com toda certeza, ele não iria aguentar ficar sentado muito tempo no lado de fora. Poderia ser uma noite diferente para Maria, uma vez que poderia conversar muito com Camilo que mal conhecia as festividades juninas do local e não poderia conhecê-las de certo modo ainda. Na segunda feira à noite, Maria disse que iria realizar uma visita ao padre. Contudo, Severo disse: -De novo ? Tu vive na casa desse padre, já basta toda semana, até hoje tem que ir pra lá. Maria tentou explicar que não gostaria de deixar o padre sozinho nessa noite, mas Severo não gostava da ideia. Queria que a esposa ficasse ao seu lado. Entretanto, como não queria se indispor com o padre, permitiu que sua esposa fosse. Maria ficou muito alegre, colocou um vestido florido belíssimo que a sua vizinha fez para ela no São João do ano passado, colocou uma máscara de cor amarela e foi. Chegando lá, Camilo estava vestindo uma camisa listrada e com um lago sorriso no rosto. Ele havia preparado um baião de dois, carne assada, milho cozido e várias outras delícias. Maria ficava surpresa com o talento culinário dele. Cada um se sentou nas extremidades da mesa e começaram a comer e a 52
ter um bom papo. Ao final da refeição, Maria se ofereceu para lavar a louça, mas Camilo não deixou, disse que depois dava um jeito em tudo. A chamou para assistir um DVD junto a ele na sala. Ela se sentou no sofá e pode ver um pouco da família de Camilo, o vídeo era de seu aniversário do ano passado. - Estou com saudades de todos. Quando a quarentena passar espero que todos estejam bem para que eu possa abraçá-los novamente. -Todos estarão, Camilo. -Se Deus quiser. -Eu acredito que depois desse período nada será como antes. Em relação ao mundo e as pessoas. -Como assim? Maria perguntou. - As pessoas passarão a dar mais valor aos seus afetos. A dar mais valor a um abraço, por exemplo. Essa parada está sendo a oportunidade de pessoas que viviam no modo automático pararem e refletirem sobre a sua vida. Além disso, noções básicas de higiene farão parte do cotidiano de todos. Maria também começou a refletir. E o jovem médico lhe disse: - Daqui a alguns dias estarei de partida. Outro médico ficará no meu lugar. Irei realizar o meu trabalho em uma área que possui muita contaminação, onde estão mais necessitados do meu trabalho. Maria ficou muito triste com a fala de Camilo. Durante aquele tempo criou um laço muito forte com ele. Não conseguia esconder a tristeza. O jovem trabalhador tentou acalmá-la: -Não se preocupe. Não há nenhuma data definida ainda. Eles retornaram ao papo até Maria perceber que já estava um pouco tarde. O médico se ofereceu a deixar Maria em casa, pois a noite poderia ser perigosa, mas ela disse que não precisava, agradeceu pelo jantar e foi saindo. -Maria. Camilo disse e Maria se virou. -Sua Máscara é muito bonita. Maria seguiu para casa. Chegando lá, Severo não estava dormindo, estava furioso. - Mulher ingrata! Isso é hora de chegar em casa ? Deixar o marido sozinho e 53
doente. Você é uma praga ruim... Maria tentou se desculpar. Porém, Severo continuou: -Me deixou sozinho com essa ferida latejando de dor que não me deixa bom. Mas eu sei como eu vou ficar melhor. Que nem minha vó me ensinou quando eu era pequeno. Lamba essa ferida aqui Maria. Maria olhou assustada para o marido. Ele nunca havia mandado ela realizar tal ato. - Bora, Maria. Lambe essa minha ferida. Severo, baixou as calças deitou de barriga para baixo e ordenava que a mulher lambesse sua ferida. Maria estava atônita. Parada olhando a cena e a ordem do Marido. - Lambe, coisa ruim. Eu tô mandando. Maria então foi até perto dele bem devagar, tirou sua máscara, encarou de perto a ferida. A ferida estava ali na sua frente, na nádega de seu esposo. A ferida era bastante vermelha, cheia de secreção amarelada, um cheiro ruim e forte. Maria estava começando a sentir gastura, fechou seus olhos muito trêmula e passou a sua língua devagar no ferimento. Um gosto ruim começou a invadir a sua boca, um gosto meio amargo e doloroso. Tirou a sua língua da ferida, e o gosto continuava na sua boca. Saiu correndo para o banheiro, sua língua estava coberta por aquela secreção amarelada. Então, começou a gargarejar muita água e a esfregar com muita força a sua mão na própria língua, mas o gosto não saia. Não teve jeito e quando percebeu o vômito já estava na sua garganta. Vomitou todo o jantar, todo o delicioso jantar que tivera com Camilo. O vômito saia por suas narinas, o gosto amargo ia mitigando. Começou a chorar, começou a chorar muito, tirou a sua roupa e ficou em baixo do chuveiro. Triste, desconsolada. Não era só o gosto amargo daquela ferida , era o gosto amargo da vida que ela levava a anos. Maria não
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aguentava mais os mandos e desmandos do esposo. Talvez, como Camilo havia dito, depois dessa pandemia ninguém seria o mesmo. E ela sabia que não era a mesma Maria. Ela já não era mais Maria de Severo, aliás, ela nunca foi dele e de ninguém. Nunca deveria ter deixado ele a tratar como um objeto. Maria se recompôs, vestiu uma roupa. Severo já estava dormindo no quarto. Já estava de madrugada. Maria o viu, fechou a porta do quarto e saiu. Deu uma longa olhada para os cômodos de sua casa, abriu a porta bem devagar e saiu dessa. Avistou as casas de seus vizinhos, uma bela olhada na casa de sua vizinha Fátima e seguiu caminho. Seguiu o caminho que já deveria ter seguido a muito tempo, sem olhar para trás. Maria não sabia se a pandemia iria durar mais tempo, mas ela sabia que ela ia acabar. Ela sabia que todos teriam que recomeçar e ela já estava recomeçando. Recomeçando uma vida nova, uma nova pessoa, Maria livre, Maria liberta, Maria dela mesma. Recomeçar uma vida em que ela possa ser feliz. Com o coração disparado, mas contente, saiu de uma vez por todas da Vila do Silêncio. No outro dia, Severo já não tinha um café fresco na mesa. Estranhou a ausência de Maria. Entretanto, achava que ela poderia estar na casa do padre, uma vez que ela estava a frequentando muito nos últimos tempos. As horas passaram e Severo não tinha almoço feito. Começou a ficar bravo, já estava pensando nas duras palavras que iria dizer a sua esposa. Já era noite, Severo estava faminto e furioso. Resolveu, então, ir à casa do padre que não ficava muito longe. Ao chegar lá, não encontrou Maria e logo perguntou ao padre. - Padre Sebastião, tu sabe onde tá a minha mulher? A minha Maria? - Ora, Severo. Não sei informar. E, infelizmente, não poderei te ajudar agora. É que ninguém tem notícias do médico Camilo, parece que ele foi embora hoje pela manhã, aquele irresponsável. Estou com uma enxaqueca terrível e ele ficou de me consultar. Agora, preciso dormir, fique bem. 55
Camila Cristina Crosgnac Fracalossi Camila Cristina Crosgnac Fracalossi (30 anos) é campineira de nascença, botucatuense de alma e paraense de coração. Aprendeu a escrever muito cedo e sempre desenhou palavras e coloriu folhas em branco com sua prosa e poesia. Médica veterinária de carreira e poeta de coração, perdeu temporariamente suas palavras pelos tortuosos caminhos do adultescer, mas encontrou-as novamente em novas aventuras e histórias a serem contadas. camilafracalossi.writer@gmail.com https://www.instagram.com/caaams/ https://www.facebook.com/cccfracalossi
Soneto de Vida e Morte Por Camila Cristina Crosgnac Fracalossi
Ó quem pudera trazer-me de volta Meu tempo doce e casto de inocência Clamo pela minha ingênua vida, À qual vulgarmente chamam infância
Sonhos de amor assolaram-me o peito Hoje percebo quão mal me fizeram. Sinto a morte deitada neste leito, Aguardando a irreversível hora.
O relógio continua sua disputa Corrida contra a minha lenta vida. Permanece na frente em sua labuta,
Esperando a badalada final. Sentimentos e versos degradados, De minha existência nenhum sinal. 56
Carlos Eugenio Vilarinho Fortes Carlos Eugenio Vilarinho Fortes – (Carlos Vilarinho). Advogado e poeta. Pai do Ícaro, do Martim, da Ana Clara e do Théo. Reside em Palmeira das Missões – RS. - Coletânea 501 Poetrix para ler antes do amanhecer. - Coletânea Fagulhas Poéticas, vol. II. - Antologia Poetrix 5. – Livros individuais: Meialua, ed. Viseu/2018, e Sentimentos Indecifráveis (2008 – Ingrapal). – Coluna quinzenal no jornal A Madrugada de Palmeira das Missões /RS. - Publicações no site Recanto das Letras – recantodasletras.com.br/autores/vila; no Twitter (@chevilarinho), no Instagram e no Facebook.
um dístico e três poemas avulsos – carlos vilarinho
cata vento cata o tempo só não cata o meu amor
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quem desdenharia das estrelas neste deserto sem fim o tamanho do céu aguça os afetos
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ana usava anáguas andava sobre as águas ana, alheia, cortou a veia cava ela que amava sonhava e que variava nem sempre perto nem sempre certo ali tão deserto ana gostava do inverso fiz-lhe um ou dois versos mas ana já era um universo
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para quem é da mesma matéria das estrelas vagar pela imensidão não é uma contingência
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Obrigado pela dança. Carlos Valois Andamos lado a lado, caminhando à beira do lago, evitando o olhar um do outro, o som de pássaros voando por sobre nossas cabeças me lembrando dos últimos anos. Poderíamos estar de mãos dadas, como os adolescentes que fomos certa vez, naquele mesmo parque, tantos anos antes. Poderíamos sorrir e cantar, alegrarmos um ao outro enquanto caminhávamos. Seguir, contentes em nosso caminho, da mesma maneira que nos acostumamos tantos anos antes, sem nunca perceber nossa sorte. Eu quase podia me ver ali, sentando-me no banco logo após o pedido, perdendo-me em pensamentos de champanhe e bolo, quase ignorando a pessoa sentada ao meu lado. Poderíamos gritar um com o outro, como naquela noite de abril. Culpar um ao outro pela falência, pelo bebê perdido, pela oportunidade jogada fora de estudar em Paris, Londres ou Cairo. Por tudo que deixamos de lado quando cruzamos os olhos pela primeira vez tantos anos antes. Por tudo que deixamos para trás quando nos recusamos a ignorar um ao outro. Poderíamos pegar em armas outra vez, convocar nossos aliados, nossos amigos, nossas famílias, dividi-los num campo de batalha quase simétrico. Guerrearíamos um contra o outro, como fizemos antes, ganhando aquela colina, cruzando aquele rio. Vencendo aquela batalha às custas de pessoas cujos nomes preferiríamos esquecer. E poderíamos, sentados uma última vez, ter uma conversa civil. Ignoraríamos os machucados, as dores que o tempo certamente haveria de apagar (ou se não apagar, pelo menos abrandar) e, dividindo um último cigarro, poderíamos nos juntar novamente, carne sobre carne, pele junto a pele, e nos arrependermos como da “última“ última vez, ou da vez anterior à esta… Por algum motivo, porém, estávamos satisfeitos em caminhar ali, à beira daquele lago que, tantas vezes, refletiu nossas ações e emoções um para com o outro, em completo silêncio. E, caminhando em frente, soube que chegaríamos ao final daquela trilha e, com um adeus cortês, seguiríamos nossos caminhos opostos com um sorriso no rosto.
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Carmo Bráz de Oliveira Autor de dois livros de poesias: “Por Amor (Recanto das Letras)” e “Mosaicos de Gelo (Becalete)”.Classificado no Concurso Nacional de Novos Poetas (2018 e 2019), Conexão Brasil 2019 - Concurso da Câmara Literária de Pomerode; FLIST 2019 (Festa Literária de Santa Tereza – Rio de Janeiro – Revista Phillos dedicada a Chico Buarque); Revista LiteraLivre; Revista Eco das Palavras; Antologias: “Ao Intento do Vento 2” da Academia Mineira de Belas Artes; Poesia Sem Fronteiras (Academia de Letras Sociedade dos Poetas Virtuais; “O Livro Mágico 3” (Editora Becalete).Membro da Academia de Ciências, Letras e Artes do Brasil (cadeira 306). Prêmios: Medalha Patrono das Letras de das Ciências– Comenda D.Pedro II;Comenda do Mérito Histórico Guanabara – Diploma de Mérito Cultural e Social; Prêmio Caneta de Ouro (FEBACLA). 1º Lugar (Poeta Local) do Prêmio Cataratas de Contos e Poesias (2019-2020) Página do Autor: https://www.recantodasletras.com.br/autores/carmobraz
Vidro Os estilhaços No chão jogados Cortantes sob os pés Descalços De tantos percalços Construídos Recolhidos Inatos Ingratos De sentimentos Forçados Desesperança De cacos que Já não se colam Pontiagudos Sons agudos Tímpanos destruídos Pensamentos isentos Carcomidos Em transe Sem argumentos Incompreensível 60
Impossível Impassível Ilusão da vida De viver De amar De querer Sem sonhar E esquecer Se conformar E esperar Para morrer. Autor: Carmo Bráz de Oliveira
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Cecília Maria Pereira Pestana Cecília Maria Pereira Pestana nasceu a 4 de Dezembro de 1957, em Torres Novas, distrito de Santarém. Filha de pais madeirenses e pai militar, passou a infância em Torres Novas, Lourenço Marques (Maputo), Águeda, e veio residir para a cidade do Funchal, Ilha da Madeira, aos 9 anos de idade. Amante de leitura de poesia desde jovem, apaixonou-se rapidamente pela escrita poética. Publicou esporadicamente poemas no Dário de Notícias da Madeira. Colaborou na “Revista Rugas”, revista regional direcionada à População Sénior. É coautora de cerca de 25 Antologias e Coletâneas Poéticas, entre elas, uma Coletânea de Cartas de Amor, Editora Chiado Books, e quatro E.Books de Natal. Participa com frequência em Saraus e eventos de Poesia. Publicou o seu primeiro livro de Poesia “A Voz do Poeta “, a 21 de Fevereiro de 2020. Tem o 12º Ano Técnico Profissional de Contabilidade, o qual, exerce na sua vida profissional. Além da paixão pela leitura e poesia, cultiva também a paixão pela cultura, e arte, nas suas mais diversas formas. É uma apaixonada por viagens.
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A minha janela Abro a janela de par em par… Respiro o puro ar… Inspiro a frescura da doce madrugada, Liberto a energia acumulada E deixo-me voar pra outro lugar… Dou azo ao meu pensamento Escorrego-me por entre a natureza Em tons de azul aurora, luz daquela hora. Sonho e danço na leveza Ao som da claridade de tanta beleza… O vento e os pássaros pairam Nos píncaros e no topo das árvores… Absorta e descontraída, minha mente levita Por entre a grandeza da Natureza. De repente, assustei-me, Sai um gato da janela ao lado… E eu embrenhada na hora dos sonhos Da alvorada recentemente encontrada, Ali fico entre o sono e o sonhar… Persinto minh´alma enrolada Em cantorias, sorrisos e alegrias, Por acordar mais um lindo dia... E por tudo ser, também… Poesia! E sempre que a minha janela se abre, Respiro a vida, a natureza, o mar, E a minha imaginação corre… Funchal, 28 de Novembro de 2020 Cecília Pestana
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Cílio Lindemberg Cílio Lindemberg é paraibano, natural de Campina Grande – PB. Tem formação em Letras – Inglês pela Universidade Estadual da Paraíba, e atua como escritor, tradutor e poeta. Interessa-se pela leitura de romances, contos e poemas, bem como pela escrita de suas próprias histórias e poesias. Aprecia filmes, desenhos animados e séries, sobretudo de mistério, além de música internacional. Ama estudar e praticar línguas estrangeiras, por exemplo, inglês, espanhol, francês e chinês. Uma Guerra a Dois Cílio Lindemberg Longe dessa catástrofe eu queria estar Ao teu lado, qualquer que fosse o lugar Único, nosso, escondido ou particular Onde, intrépidos, pudéssemos nos amar Sem permissão dessa pavorosa guerra Que roubar nos quer a preciosa vida, A qual, mesmo que tolhida, não se encerra, Mas resiste até quando acometida. Tão logo brilhe o sol e livre voem as aves Por toda a extensão celeste que lhes cabe Sairemos ansiosos e estupefatos, sabe, Celebrizando o fim das feridas mais graves...
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Claudio Marcio
Claudio Marcio Fernandes nasceu em São Paulo. É roteirista e contista. Participou das edições de números 19 e 20 da Revista LiteraLivre.
Vida de Escritor Passo todos os meus dias procurando histórias. Às vezes encontro e, quando encontro, escrevo, e, enquanto escrevo, vivo.
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Crato Reis E-Mail: cratoreis@gmail.com Crato Reis é o nome espiritual de Michelangelo Durazzo, considerado por ele a identidade da sua alma. É como um código interior para que ele possa acessar o seu Eu Superior. Considera, portanto, como sendo Crato Reis o autor deste conto, escrito por pura inspiração com o objetivo de levar o leitor a reflexões sobre valores e pensamentos preestabelecidos. Michelangelo Durazzo é cientista com doutoramento pela Universidade de São Paulo na área de tecnologia do combustível nuclear. Sempre atuando em ciência desde sua graduação em engenharia metalúrgica em 1980, após experiências místicas pessoais intuiu que havia algo mais na natureza além do que a ciência podia explicar, e iniciou sua jornada pessoal na busca de respostas.
A PRIMEIRA INICIAÇÃO Autor: Crato Reis
Ainda bem jovem, com pouco mais de dezoito anos, me interessava pelo misticismo. Após minha infância envolvida na fé católica, logo percebi que esse era um caminho que não me serviria para encontrar as respostas que procurava sobre o significado da vida. Um estudo minimamente profundo sobre a Bíblia me levou à conclusão que era um livro de palavras mortas, inconsistentes e não plausíveis, escrita a partir de poucos evangelhos escolhidos para atender ao interesse da igreja em dominar a mente dos homens e limitar sua liberdade. Comecei então a me interessar sobre Lamaísmo Tibetano, viagem astral e o poder da mente. Foi com a leitura de livros sobre esse assunto que tudo começou...
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Decidi, certa vez, tentar uma experiência de projeção astral com base nos ensinamentos, passo a passo, de um livro. O autor aconselhava a não tentar a experiência sem a presença de um mestre, pois uma perturbação do sono de alguém que estivesse em viagem astral poderia, com facilidade, tornar-se fatal. Na época não tinha um mestre e nem mesmo sabia o que era um. Portanto, com uma coragem que eu não pensava ter, decidi fazer sozinho a experiência. Viajei para a casa de praia onde costumava passar minhas férias. Ficava em Mongaguá, no litoral sul de São Paulo. Era um lugar tranquilo e a casa estaria vazia, local perfeito para a minha “tentativa”. Passei o dia na praia solitária, entrando esporadicamente no mar, que eu amava, preparando-me para a experiência. À noite, em jejum, acendi duas velas e deitei na cama, sob a luz tênue. Permaneci imóvel por longo tempo. Fechei meus olhos e deixei os pensamentos irem e virem, soltos. Aprendera a não lutar contra os pensamentos. Sabia que para me livrar deles, tinha que aceitá-los e esperar que se cansassem. Assim, a mente silenciava. Eu tinha consciência do ambiente em que me encontrava quando a mente calou. E então, de repente, houve um solavanco, e não senti mais meu corpo. Senti-me flutuando e vi meu corpo deitado, inerte, com os olhos fechados, abaixo de mim. Olhei ao redor e pude ver o ambiente do quarto à minha volta. Olhei novamente para baixo e percebi que minha pele estava com um tom acinzentado cadavérico. Nesse momento, flutuando sobre meu corpo inerte, não senti uma sensação de liberdade, mas sim um profundo pavor. Acreditei que estava morto. Quando o medo se apossou de mim, imediatamente fui “puxado” para baixo e, com um forte solavanco, senti-me voltando ao meu corpo. Em um segundo, plenamente consciente de tudo o que havia ocorrido, pulei da cama, num sobressalto.
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Demorei um longo tempo para me acalmar. Olhei para mim e me apalpei para ter certeza que estava mesmo vivo. Fui até o bar de casa e tomei uma grande dose de uísque. Senti as pernas fraquejarem e sentei no sofá da sala. Lentamente o pavor da morte foi se atenuando. Lembrei da recomendação do livro, para não fazer a experiência sozinho, sob risco de morte. E nesse dia decidi me afastar do misticismo e não executar qualquer tipo de experiência mística até encontrar um mestre. Por outro lado, a experiência comprovou que havia algo mais, oculto, além do mundo material, que eu precisava conhecer e entender.
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Após a memorável experiência, por muitos anos me afastei totalmente de tudo o que não fosse material e perfeitamente entendível. Preocupava-me apenas em construir um mundo de segurança e conforto. Formei-me na universidade e trabalhei com afinco para conquistar esse mundo para mim. Porém, quando estava já numa situação de vida confortável, com um trabalho estável e seguro, as perguntas voltaram a ecoar em minha mente: O que estou fazendo aqui? Para que vim a esse mundo? Eram perguntas que iam além da mente, chegavam à alma, e, por isso, precisavam necessariamente ser respondidas. E a procura recomeçou. Eu trabalhava num escritório confortável, sozinho na sala. Todos os dias sentia um aroma de incenso que vinha da sala vizinha, onde trabalhava um colega, o Portuga, também engenheiro como eu. Visitava frequentemente sua sala, que era cheia de cristais, dos mais variados tipos e cores, e incensos de vários aromas. Havia drusas de cristais e geodos de ametista. Gnomos, fadas e bruxinhas decoravam o ambiente. Ele discretamente fazia rituais em sua sala, desenhando símbolos desconhecidos e falando palavras estranhas. Eu acompanhava de longe, curioso e, de certa forma, esperançoso, pois tinha um 68
místico sentado na sala ao lado que poderia me ajudar a reencontrar meu lado místico, há muito escondido depois da assustadora experiência da projeção astral.Comecei propositadamente a deixar o Portuga perceber meu interesse pelos seus apetrechos místicos e pedi para acompanhar seus rituais. Ele não autorizou. Continuei insistindo até que um dia perdi a paciência, entrei na sua sala e abri meu coração. — Portuga, preciso encontrar um mestre e sei que você pode me ajudar. — Para quê você quer encontrar um mestre? — perguntou, não curioso, mas num tom de desafio. — Você tem tudo o que quer! Eu sabia que era um pequeno teste. Portuga procurava saber mais sobre a seriedade da minha procura. Respondi com serenidade e verdade. — Engano seu, Portuga. Tem muito que eu preciso aprender ainda. Coisas que a universidade não pode ensinar — fiz uma pequena pausa, lançando um olhar ao redor, pelos apetrechos místicos da sala. — Sei que este trabalho que temos é necessário para nossa manutenção, mas não é o objetivo de nossa vida. Minha alma precisa aprender sobre as coisas do mundo oculto, muito maior e mais complexo do que o mundo visível, com valores mais sublimes e importantes para a humanidade — parecia ser um discurso ensaiado, mas era sincero, e o Portuga percebeu isso. — E como você acha que um mestre pode ajudá-lo? — Portuga perguntou, num tom desafiador. Respondi conforme acreditava. — Ele conhece as coisas da alma e pode me ajudar a descobrir o sentido da vida. Sei que não é apenas acumular bens e constituir uma família. É muito mais que isso — e apelei para a compaixão do Portuga. — Sei que você pode me ajudar! Ele não disse sim, nem não. Ficou em silêncio, baixou a cabeça e pediu para eu sair da sala. Acreditei que não o havia convencido. Porém, passados uns dias, ao meio-dia de uma sexta-feira, ele entrou na minha sala e ordenou:
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— Você vai viajar hoje à noite, exatamente às vinte horas. Esteja na Rua Santa Cruz 622, na Vila Mariana. Leve apenas sua roupa do corpo e uma muda de roupas brancas, nada mais. Pensei em argumentar que não teria tempo para me preparar, pois ainda teria que ir em casa providenciar roupas e arrumar uma mochila. Porém, decidi me calar. Sabia que era outro pequeno teste para verificar minha disponibilidade e despojamento. Sairia imediatamente do trabalho para providenciar tudo. Apenas respondi, firme: — Assim será feito, Portuga! E agradeço pela oportunidade!
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Cheguei ao endereço na hora marcada. Havia um ônibus parado na frente do imóvel. Diversas pessoas guardavam suas bagagens. Portuga não estava. Fui abordado por uma mulher que organizava o que parecia ser uma excursão: — O Tony o mandou, não é? Tony devia ser um outro nome do Portuga, deduzi. — Sim! — respondi, curioso. — Para onde vamos? — Para as terras místicas de Minas Gerais... São Tomé das Letras! — a mulher respondeu com um sorriso maroto. Percebi que o Portuga havia combinado com cuidado, em detalhes, a minha viagem. — Pode subir e escolha um assento no ônibus! — ordenou a mulher. — Partiremos em alguns minutos! Éramos cerca de vinte passageiros. Tomaram seus lugares, conversando animadamente. Todos pareciam se conhecer a bastante tempo. Para meu alívio, fiquei sozinho no banco. Não conhecia ninguém e sentia-me deslocado. Conversavam sobre o que aconteceria. — Desta vez vai ser difícil, talvez a caverna da bruxa — dizia um. — Quem sabe será enfrentar o buraco — dizia outro. A ansiedade pairava no ar,
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mas todos pareciam dispostos a enfrentar o que quer que fosse. Eu apenas acompanhava as conversas em silêncio, já apreensivo. Durante a viagem descobri que se tratava de um grupo que estudava alquimia, de forma prática, enfrentado seus medos e dificuldades por meio de vivências que visavam a transformação pessoal, fazendo aflorar valores há muito escondidos na obscuridade da personalidade. E havia um Mestre, eu ouvia, que orquestrava cuidadosamente as vivências. Então existia um Mestre. O que eu procurava! — pensei. Portuga havia sido generoso. Depois de uma viagem de quase oito horas, parte em estrada de terra esburacada, chegamos defronte a um portão. O portão era enorme. Estava montado num grande arco com uns quatro metros de altura. No centro do portão, estava o Selo de Salomão – a estrela de seis pontas –, com um círculo em seu centro contendo doze raios. Suportando o grande arco, estavam duas colunas com dois dragões pintados, um em cada uma delas, olhando-se mutuamente. Sobre cada coluna havia um puma, com suas patas apoiadas sobre um pentagrama, a estrela de cinco pontas. Sobre outras duas colunas, mais altas e ao lado das colunas menores do lado interno, podia-se ver dois unicórnios. O portão se abriu e o ônibus entrou, passando por construções extraordinárias e exóticas. Não pude vê-las bem na escuridão da lua nova. Fui levado a um quarto com duas camas. Percebi que dormiria sozinho, separado da turma de alquimistas. Orientaram-me a acordar a tempo para o café da manhã, que aconteceria às sete horas num restaurante chamado Gosto Superior. Ainda apreensivo sobre o que aconteceria no próximo dia, demorei a dormir. Ao acordar, fui direto ao restaurante. O burburinho dos alquimistas era intenso. A conversa ainda girava a respeito das vivências que aconteceriam e o que eles teriam que enfrentar nessa etapa da alquimia. Eu continuava, ainda, deslocado, pois não conseguia acompanhar as conversas. Quando terminou o café fui conduzido por uma
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jovem e bela morena até um painel pintado à mão numa parede que mostrava o mapa de todo o local. — Meu nome é Sand — a jovem se apresentou. — Estamos na Fundação Harmonia. Temos infraestrutura para turismo, com acomodação, lazer e eventos turísticos e temáticos — explicou ela. — Temos uma cozinha que usa apenas fogão a lenha e não servimos carne. A alimentação é ovolactovegetariana. Ela continuou a apresentação do local, explicando que existiam três pousadas e um grande número de chalés para hospedagem, além de uma área de camping. Havia também uma extensa infraestrutura de lazer e entretenimento com piscina, sauna, salão de jogos, trilha ecológica, playground para as crianças e um grande salão onde ocorriam eventos artísticos. Havia uma infraestrutura gastronômica com dois restaurantes, uma grande cozinha com fogões a lenha e uma padaria. Havia um complexo de oficinas para a realização dos serviços de manutenção da infraestrutura, além de áreas de estacionamento. Mas o que me chamou a atenção foram diversas áreas assinaladas como “Teurgia”. Sabia que a Teurgia era o nível mais alto da Magia, cujo objetivo era o crescimento espiritual, elevando a consciência na direção das coisas divinas e sobre-humanas. Percebi logo que o local não era apenas um hotel. Era mais do que isso. E comecei com as perguntas: ⎯ O que são essas áreas assinaladas como Teurgia? ⎯ São nossas áreas sagradas, onde realizamos meditações e práticas teúrgicas. ⎯ Então, além de hotel, o que mais é aqui? Sand explicou que eram uma entidade filantrópica sem fins lucrativos, chamada Fundação Harmonia de Artes e Conhecimentos Transcendentais, onde residia uma comunidade de moradores dedicados ao trabalho altruísta em prol da expansão consciencial planetária. Vivenciavam uma proposta 72
ecumênica pautada pelo Existencialismo, onde cada um tem a liberdade e toda a responsabilidade para construir e aprimorar sua própria essência, obtendo com seu esforço e trabalho durante a vida um significado para sua existência. A atividade de hospedagem garantia a realização de cursos visando a expansão da consciência e obtenção de recursos para manutenção da comunidade e realização de eventos filantrópicos. Sand havia falado em obter um significado para a existência. Exatamente o que eu procurava. E ela terminou sua resposta com uma afirmação notável: ⎯ No universo harmônico existe a unificação do místico e do científico — disse, olhando-me diretamente nos olhos. Acredito que ela sabia que eu era engenheiro. O Portuga devia ter falado sobre mim. Continuei perguntando. ⎯ Mas qual é a religião que vocês seguem aqui na comunidade? ⎯ Todas… e nenhuma. Como já disse, a nossa proposta é ecumênica. Ou seja, busca a unidade entre as religiões. Somos ecléticos no que se refere à religião. Não acompanhamos dogmas, pois os dogmas são mutáveis. Acreditamos numa Energia Criativa, suprema e inteligente, que está em tudo, incluindo em todas as religiões. Muito mais abrangente e inteligente do que a religião da qual eu havia me afastado quando bem jovem. Estou no lugar certo! — pensei. — Você verá que nossas construções expressam as mais diferentes tradições — Sand encerrou as explicações. — Agora você está livre até a hora do almoço para andar por toda a Fundação, porém não responderei mais perguntas. Siga esse mapa e contemple as construções. Absorva, como puder, seus significados — orientou-me, encerrando o encontro. Antes dela ir mandei mais duas perguntas. — E vocês moram aqui, Sand? 73
— Sim, temos um grupo de residentes fixos, vivendo aqui como uma comunidade. ⎯ Se existem moradores na comunidade, deve haver um líder entre vocês. Isso é correto? — mandei a segunda pergunta. ⎯ Sim, claro que temos um líder. Nós o chamamos carinhosamente de Mestre. Foi ele quem iniciou a comunidade e é ele quem organiza as atividades que garantem nosso funcionamento. Ele é também o Teurgo, nosso líder espiritual. Agora eu tinha certeza que existia um Mestre. Mas ele me aceitaria? — questionei-me, esperando sinceramente que a resposta fosse sim. Andei por toda a Fundação Harmonia, contemplando as mais belas construções que já havia visto, porém sem entender completamente seus significados. Durante o almoço, os alquimistas estavam eufóricos. Notei que não comentavam nada perto de mim, deixando de falar quando eu estava por perto. Senti-me novamente excluído. Porém, por outro lado, a recepção de Sand explicando sobre a Fundação foi no sentido de incluir-me. Não entendia. Após o almoço Sand se aproximou: — Vá ao recanto dos pássaros às três da tarde, sem atraso — ela orientou. Aproveitei para perguntar. — Porque no almoço o pessoal evitou falar comigo, ou mesmo perto de mim? — Os alquimistas de etapas superiores não têm permissão para comentar suas vivências com alquimistas de etapas inferiores, ou com os não-iniciados — foi a resposta, nua e crua.
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Exatamente às três da tarde entrei no recanto dos pássaros. Eu sabia onde era, pois tinha estado lá nas minhas andanças pela Fundação. O local estava cuidadosamente decorado com símbolos místicos que eu não entendia. Sentado numa cadeira estava um homem alto e esguio, com cabelos negros, lisos e longos, e uma barba cuidadosamente aparada na forma de um grande cavanhaque. Logo que entrei no local vi que ele brilhava como o sol, emitindo uma luz invisível que somente podia ser sentida. Sua presença era imponente. Aproximei-me acanhado e, sem saber porque e como, fiz uma longa reverência que veio do fundo da minha alma. Sabia que era o Mestre. Ele apontou um tapete colocado no chão ao pé da cadeira. Sentei-me aos pés do Mestre. Olheio nos olhos e foi como se eu o reconhecesse de tempos imemoráveis. Um longo olhar de seus olhos castanhos penetraram diretamente na minha alma. Nesse momento eu soube que ele era o meu Mestre. — O que quer aqui, menino? — a sua austeridade me calou por um longo momento. Sabia que minha resposta seria decisiva, e também que nada seria fácil. — Não sei quem eu sou e porque vim a esse mundo. Procuro respostas. — Mas você tem uma vida confortável, controlada e assegurada. O que lhe falta? — o Mestre questionou. — Isso não é o bastante, Mestre. Há um vazio. Como o Mestre poderia saber sobre minha vida? — pensei, mas não perguntei. — Todas as nossas conquistas sem consciência são a luz das trevas e isso consequentemente irá nos aprisionar — explicou o Mestre. — Você se sente preparado para a busca? — perguntou. — Sim! — respondi com excessiva certeza. — O Ego não tem registro para a Luz. Ele apenas aumenta a sombra — disse o Mestre, num tom de amorosa reprimenda. — Experiência é uma
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estrutura de base do espírito. Aqueles que permanecem em zona de conforto estão presos no próprio medo. Experiência é a arte de espiralar. É sincero na sua busca? — insistiu o Mestre na pergunta. — Sim, Mestre! — respondi sinceramente. — Saiba que a lapidação é a arte de escoar a mentira e de ascensionar, o preparo para locar a Verdade — ensinou o Mestre. — Tudo que é certo acaba, é previsível. Por isso acaba — completou. O Mestre continuou com as perguntas: — Você é um erudito, formado numa famosa universidade. Porque, então, quer saber mais? — Porque sei que tenho que aprender contigo, Mestre. Sei disso há muito tempo, mas me acovardei frente ao desconhecido e abandonei minha busca. — A sabedoria contém erudição, mas a erudição não contém sabedoria — disse o Mestre, e fez mais uma pergunta: — Vejo então que é persistente. É isso? — Não sei se sou persistente, Mestre. Trata-se de uma necessidade inalienável. — A persistência é uma estrutura de vontade absoluta que está engajada dentro do ser humano. Ela é desenvolvida com as maiores dificuldades, portanto as pessoas que tem persistência estão no limiar de uma sabedoria enorme, incomensurável. Só os persistentes irão se tornar sábios um dia. Os piegas já estão mortos, basta apenas o coração parar de bater, pois não tem persistência — disse o Mestre, o que me animou. Ele perguntou mais uma vez: — Você já teve uma religião, correto? — Sim Mestre, há muito tempo, mas ela não me satisfez. — Saiba que o ponto máximo de uma religião é o autoconhecimento. E para obtê-lo terá que ser um guerreiro da Luz. O caminho da Magia é árduo,
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apesar de maravilhoso. Você tem sua profissão e está na sua zona de conforto. Tem mesmo certeza do que quer? — o Mestre engatou mais uma pergunta, como que querendo deixar claro que a escolha seria minha. — Sim, Mestre. — A dúvida é a ausência da fé. Saiba que Magia não é interesse, é disponibilidade. Profissão é interesse. Magia é devoção – ensinou o Mestre e finalizou a conversa. O Mestre, então, explicou-me o que aconteceria. — Somos definidos por nossas ações e não palavras. Você será levado de motocicleta para um local distante e deverá encontrar uma caverna. No interior da caverna existem cinco objetos. Deverá passar a noite lá e trazer-me os objetos antes do seu ônibus sair no final da tarde. Será numa caminhada de quinze quilômetros na volta. O Aruana, quem o levará, explicará como encontrar a caverna. Poderá levar um pequeno feixe de lenha, fósforos e um cantil com dois litros de água. Ficará em jejum até voltar. Sairá agora. O Mestre levantou-se e saiu do local, deixando-me atônito. Eu sabia que era uma prova. Havia se passado uma hora desde o início da conversa. O tempo estava muito nublado, portanto, eu teria pouco mais de duas horas de claridade para encontrar a caverna. Precisava me apressar.
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Estava tudo minuciosamente preparado. Me troquei e rapidamente, retirando as roupas brancas e vestindo uma roupa quente para enfrentar o frio da noite. Saí a procura do Aruana. Ele me esperava em frente ao restaurante, montado numa motocicleta vermelha própria para estradas de terra. Um feixe de lenha estava amarrado no bagageiro. Entregou-me um capacete e mandoume subir na moto. Não o conhecia pessoalmente, mas os rumores diziam que ele era valente e destemido. Preparei-me. 77
— Preste atenção na estrada, pois voltará a pé pelo mesmo caminho — ele disse. A estrada estava enlameada e por diversas vezes derrapamos e quase caímos no barro. Ele pilotava rapidamente, tentando ganhar o maior tempo possível para que eu aproveitasse o máximo da claridade que restava do dia. Fui marcando pontos de referência, alerta para a volta. A estrada era sinuosa, mas mudamos o caminho apenas uma vez, entrando à esquerda, o que facilitaria encontrar o percurso da volta. Atravessamos um vilarejo e continuamos subindo uma montanha. A certa altura, Aruana parou. — Vou até aqui — disse. — Você continuará a pé por essa trilha — indicou uma trilha que saia perpendicular à estradinha de terra e começava após um pequeno regato que acompanhava a estrada. — Quando chegar ao topo do morro, desça por cem metros, vire à esquerda e encontrará uma placa com os dizeres “Caverna da Bruxa”. Siga a indicação da placa e encontrará a entrada da caverna, descendo um buraco íngreme e profundo. Só isso? — pensei. Insisti, em busca de mais informações: — Mas, Aruana, é tão fácil achar? Ele riu, e apenas aconselhou: — Fique atento e se pensar em desistir, troque o “D” pelo “R” e resista. Aruana se foi e me vi sozinho, na mata, com um feixe de lenha, uma caixa de fósforos e um cantil. Escurecia rapidamente. O crepúsculo se acelerou quando o tempo ficou mais cinzento e começou a cair uma chuva fina. Mais essa? — reclamei, não sei com quem. Intrigado com as palavras do Aruana comecei a subida pela trilha rumo ao cume do morro. A certa altura, antes de atingir o cume, a trilha esvaiu-se. Havia um paredão com mata fechada e o que pareceu-me ser uma entrada na mata. A caverna! Fácil! — pensei. Confiante, apertei o passo e fui até onde
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estava a entrada da caverna. Ao chegar vi que se tratava de uma casa em ruínas, construída rente ao barranco, cuja antiga porta rodeada de mato alto parecia uma entrada. Não era a caverna. Olhei ao redor e vi apenas a trilha serpenteando o morro. Nada de caverna. Decidi voltar ao começo, no pé do morro, e subir novamente a trilha. A essa altura eu já estava apreensivo, pois a claridade minguava rapidamente. Fiz nova tentativa e cheguei ao cume. Comecei a descer e nada de encontrar placa indicando alguma caverna. Procurei por mais de uma hora e nada de caverna ou placa. Não tinha mais de meia hora de luz e, já desesperado, sabia que tinha que tomar uma decisão. Ou voltava para a Fundação nesse momento, aproveitando o restante da luz do dia para chegar até o vilarejo, e de lá caminhar à noite pela estrada; ou continuava procurando a caverna até encontrar. Pensei com calma. Eu não estava pronto para desistir. Seria abrir mão da possibilidade de aprender com o Mestre. Jamais! Eu estava decidido e não deixaria a oportunidade escapar, talvez a maior oportunidade que teria nesta vida. Não! Eu iria até o fim, acontecesse o que acontecesse... e aconteceu. Já no crepúsculo, quase sem luz, desisti de encontrar a caverna. Teria que me arranjar no mato mesmo. Sabia que se não encontrasse a caverna não poderia levar para o Mestre os cinco objetos que lá estavam, como ele havia determinado. Pretendia tentar novamente encontrá-la quando amanhecesse. Também, o Mestre havia dito que eu deveria “dormir” na caverna, o que a essa altura já era impossível cumprir. Porém, voltar eu não voltaria. Estava decidido. Uma vez tomada a decisão, acalmei-me e comecei a raciocinar. Tinha água, lenha e fósforos, que eu havia guardado cuidadosamente para que não se molhassem. Precisava de abrigo para passar a noite. Comecei a procurar com o resto da luz do dia disponível.
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Caminhei muito, passando diversas vezes pelo mesmo lugar, o que deixava claro que eu estava completamente perdido. Já quase sem luz encontrei uma pequena lagoa entranhada nas pedras. Era uma pedreira antiga, na certa, pois sabia que em São Tomé extraiam pedras que eram exploradas para vender. Olhei ao redor e vi, encostadas num barranco, duas telhas de zinco, pequenas, mas inteiras. Usei as telhas, apoiando-as no barranco, de um lado, e em dois galhos que eu retirei da mata. O espaço era pequeno, mas suficiente para armar minha pequena fogueira protegida da chuva e me acomodar com as pernas dobradas. Melhor do que nada! — pensei. E a noite escura da alma começou... Quando a noite chegou plenamente eu já estava com minha fogueirinha acesa. Se economizasse, a madeira duraria até o amanhecer. Sai para fora do abrigo e não consegui enxergar um palmo à frente do nariz. A escuridão era total. Do abrigo improvisado, a única luz que eu podia ver era o tênue reflexo das chamas da fogueira na superfície estática da pequena lagoa. Lentamente, os fantasmas começaram a chegar. Minha mente começou a gerar imagens de aranhas, cobras e escorpiões. Comecei a ver seres horrendos que subiam das águas do lago e pairavam sobre a superfície, em meio aos reflexos das chamas da fogueira. Lembrei-me das palavras do Mestre: “Aqueles que permanecem em zona de conforto estão presos no próprio medo. Experiência é a arte de espiralar”. Eu precisava dominar meu medo. Para isso o Mestre havia me colocado na noite escura. De repente um forte ruído na mata ao meu lado fez meu coração disparar. Num salto levantei-me do abrigo e pensei em correr... mas para onde? Estava sozinho. O pânico novamente me assolou. Olhei em volta, sob a chuva fina, sem distinguir nada. Uma onda de pavor nasceu na minha barriga e se espalhou pelo meu corpo inteiro. Tenho que me controlar — pensei. Mas era impossível. Fantasmas da infância começaram a aparecer. Olhava atrás de mim, por sobre meus ombros, e os via na minha sombra bruxuleante projetada pela luz da 80
pequena fogueira. Vi, mais uma vez, meu corpo acinzentado, morto como um zumbi, caminhando na minha direção, com os braços esticados, numa imagem apavorantemente real. Tinha perdido inteiramente o controle. Já não queria provar nada a ninguém, nem ao Mestre e nem a mim mesmo. Queria apenas sair dali, correndo, em busca de segurança e conforto. Mas havia somente a mata e seus barulhos insondáveis. Nesse ponto crucial uma força apareceu para manter o controle. Soube que precisava passar pela noite escura se quisesse seguir meu caminho para conhecer a face oculta do mundo, da magia e do Mestre. Essa era a força que eu precisava despertar para continuar minha jornada em busca do conhecimento da ciência oculta. Se o Mestre me colocou nessa situação era porque era necessário. A dúvida é a ausência da fé — ele havia me dito. Esse pensamento me acalmou. Havia uma grande diferença entre perigo e medo. Na ocasião, o medo era real... o perigo não.
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O Mestre caminhava pela noite ao redor da mata fechada da Fundação Harmonia. Acompanhava e sentia as experiências do possível discípulo. Era hora de interferir, caso o discípulo estivesse pronto para a magia.
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Uma onda de confiança me envolveu; além da minha mente, na alma. Senti uma presença protetora. Era o Mestre, como se estivesse ao meu lado fisicamente. Sua silhueta apresentou-se a mim, iluminada pela luz da fogueira. “A noite é apenas uma parte do dia. A vida é um pacote de desafios” — o Mestre falou em minha mente. Acalmei-me imediatamente, assumindo totalmente o controle, e refleti sobre essas palavras. A noite era apenas uma 81
parte do dia, e assim como eu me sentia protegido pela luz do dia, podia me sentir também protegido pelas trevas da noite. A vida é movimento contínuo, com altos e baixos, vitórias e derrotas. Quando alguém encontra seu caminho, não pode ter medo, e precisa ter determinação e coragem suficiente para dar os passos, certos ou errados. Nesse momento eu soube o objetivo da vivência. Precisava daquele mergulho na noite escura para encontrar a confiança em mim, na minha alma e na magia. Sou forte e decidido — pensei com convicção, tentando me convencer. Estava ali, na noite escura, atrás de um caminho de conhecimento. Após horas de tensão, o cansaço me venceu e adormeci no pequeno abrigo improvisado, aquecido pela fogueira. Acordei no crepúsculo da manhã. A chuva cessara e o clarão atrás da montanha anunciava que o sol não tardaria. A noite escura e o céu cinzento haviam ficado para trás. Uma doce e suave sensação de vitória inundou meu ser. Aprendi sobre a noite escura da alma — refleti sobre a experiência. Não se pode saber o que vai acontecer no próximo minuto, mas temos que andar para a frente, porque a vida é movimento. Cada momento é novo, e pode ser vivido com cobras e escorpiões, ou com uma força protetora. Mas a experiência ainda não havia terminado. Eu queria encontrar a caverna. Apaguei cuidadosamente a fogueira, lavei um pouco o rosto com a água do cantil e parti em busca da caverna. Perdido no mato, com dificuldade para encontrar o caminho, decidi descer o morro até encontrar o regato. Acompanhei o regato até encontrar a trilha onde tudo começou. Segui novamente a trilha, subindo o morro. Encontrei a casa em ruínas e, desta vez, não me desviei, continuando a subir o morro. Ao chegar ao cume, parei e olhei cuidadosamente ao redor. Vi um amontoado de mato mais alto um pouco à esquerda de onde eu estava. Desci até lá e vi um barranco alto, como um buraco largo no chão. Quando cheguei na borda do buraco, bem ao
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meu lado, pregada no tronco de uma pequena árvore, vi a placa indicando a entrada da caverna. A placa era pequena e estava um pouco escondida entre as folhagens. Não a havia encontrado na tarde anterior por não ter feito uma busca minuciosa, na pressa devido ao pouco tempo de luz disponível. Desci no buraco e encontrei a entrada da caverna. A entrada era estreita e dava num grande salão. Os morcegos guincharam, passando rente à minha cabeça. Comecei a procurar e encontrei os objetos. Não estavam escondidos. Estavam bem à vista. Recolhi os cinco objetos: uma pá e uma tesoura de jardineiro, uma trolha, um cinzel e uma sacola, provavelmente incluída para auxiliar a levar tudo de volta para a Fundação. Recolhi tudo e iniciei a caminhada de volta. Era cedo, antes das oito horas da manhã. Chegaria tranquilamente para o almoço, bem antes da hora máxima estipulada pelo Mestre. Tinha os objetos em meu poder, mas restava a dúvida sobre a validade da experiência, pois não havia dormido na caverna. Porém, estava satisfeito, pois sabia que tinha feito o melhor que podia. Quando cheguei, Sand me esperava na portaria. Recolheu a sacola com os objetos e mandou que eu tomasse um banho. O Mestre estaria à minha espera à uma da tarde no recanto dos pássaros. Eu estava ansioso para encontrálo. Quando cheguei ele já estava à minha espera. Tinha um sorriso no rosto, o que me animou. Comecei, afoito, a conversa, logo fazendo a pergunta que me angustiava: — Mestre, eu trouxe os objetos da caverna, mas não dormi lá dentro. Dormi no mato, num abrigo improvisado. Peguei os objetos pela manhã. A vivência foi válida? — Sim. Ainda mais válida, eu diria — respondeu o Mestre, rindo alto. E continuou:
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— Você enfrentou seus fantasmas com coragem e determinação. Abriu mão de seu conforto e enfrentou sua noite escura. Um verdadeiro discípulo sacrifica o conforto de um mundo já explicado pelo desafio de descobrir um mundo novo. Se assim quiser, poderá iniciar seus aprendizados sobre magia e alquimia ao meu lado. — Sim, Mestre. É o que eu mais quero — respondi, sem dúvida. — Posso fazer duas perguntas? O Mestre permitiu. — Num certo momento, quando estava quase em pânico, do nada, senti uma presença protetora que me acalmou. Graças a essa presença consegui atravessar a noite escura. Vi você. Isso é possível? — Entramos em conexão. Nesse momento estávamos juntos no seu abrigo, mas eu aqui, e você lá. Simples. Mas como? — pensei, mas não perguntei. Não por enquanto. Entenderia quando fosse a hora. E a outra pergunta? — o Mestre questionou. — O que significam os objetos que eu trouxe da caverna? — São as ferramentas do jardineiro e do construtor. Aprenderá sobre eles no tempo certo. Agora prepare-se para a sua viagem de volta. Frequente o local onde embarcou no ônibus para vir aqui. Lá conhecerá seus próximos passos. O Mestre levantou-se, se despediu com um aceno, e partiu.
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Voltei à minha rotina na cidade, mas diferente. Agora eu tinha vencido a noite escura e tinha um Mestre. Entrei na sala do Portuga e o abracei, agradecido. Não foram necessárias palavras. Continuei aprendendo com o
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Mestre, que muito me ensina e quem jamais esquecerei, nessa e nas próximas vidas.
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Edilma Silva Rainha
Edilma Silva Rainha, Professora, artista e escritora. Mora no interior de Sergipe, o menor Estado do Brasil. Contadora de Histórias no Canal do YouTube. E-mail: edilmatecnologa@hotmail.com
AS GÊMEAS DE QUATRO LETRAS Edilma Silva Rainha
As gêmeas Lusa e Sula têm cinco anos e moram no Condomínio DOCE VIDA com seus avós. Seu avô se chama Juca, mas todos o conhecem como Caju, pois quando era menino vivia atrepado nos cajueiros e por conta disso usa esse apelido desde a sua infância. Sua avó se chama Ana e é uma doceira de mão cheia. Lusa e Sula são curiosas e espertas. Elas estão na alfabetização e já perceberam que trocando as sílabas do nome do seu avô forma o seu apelido. Também que o nome da sua avó pronunciado ou escrito de trás para frente fica do mesmo jeitinho. Na escola, onde elas estudam, costumam sempre sentar-se e realizar as atividades juntinhas. Certa vez, a professora recortou quatro letrinhas numa cartolina, formou a palavra LUAS e pediu para que elas formassem uma nova palavra com as mesmas letrinhas. - Eu formei a palavra LUSA. Disse Sula. - Eu formei a palavra SULA. Disse Lusa. A professora sorriu e colocou novas letras na mesinha das meninas: O MAR
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- Eu formei a palavra AMOR. Disse Sula. - Eu formei a palavra ROMA. Disse Lusa. Mais outra vez a professora sorriu e fez uma proposta aos alunos: - Que tal um desafio para formar novas palavrinhas com somente quatro letras? Depois de instigar seus alunos, a professora entregou para todos um saquinho, contendo vários alfabetos móveis e depois falou: - Vocês terão que escolher quatro letrinhas e formar novas palavrinhas. Mas, antes terei que fazer uma mudança de lugares, só um pouquinho! Então, a professora colocou as meninas em mesas separadas, para que uma não influenciasse a outra na escolha das letras e na formação das palavras. Enquanto a professora atendia as outras crianças, as meninas abriram seus saquinhos e começaram a separar as letrinhas. Depois, quando cada uma formou as palavrinhas em cima de sua mesinha chamaram a professora quase que simultaneamente. A professora pediu para que elas não mexessem e fotogravou as palavrinhas de cada uma para não esquecer a ordem que elas colocaram. Na mesinha de Sula estavam as palavras: VIDA, LAVE, MACA, RUMO, LAGO, BOLO e LAMA. Enquanto que na mesinha de Lusa estavam as palavras: DAVI, VELA, CAMA, MURO, GALO, LOBO e MALA. - Eu formei sete palavras! Disse Sula entusiasmada. - Eu também formei sete! Disse Lusa, igualmente entusiasmada. Quando a professora conferiu a atividade das meninas ficou admirada como elas formaram as palavras, fazendo a permutação das mesmas letras, como se sentissem uma a outra, com a capacidade de se conectarem para as mesmas escolhas e sequência.
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Quando as gêmeas foram para casa, o seu Juca já as aguardava no portão do condomínio. Com um belo sorriso e um caloroso afago, daqueles que só um avô sabe dar, foi logo lhes dizendo: - Vovó Ana fez um bolo em forma de lobo para vocês, minhas queridas netinhas de quatro letrinhas!
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Emília Silva
Nasci em Portugal a 16 de Maio de 1999, sou natural de Alijó e autora do blogue “Um Poema, Um Desabafo”. Comecei a escrever poesia há 8 anos, e tenho como sonho editar o meu livro de poesia. Quem és tu? Quem és tu Por detrás desse olhar longínquo Que a pouco e pouco Se começa a apagar? Quem és tu Sorriso com altos e baixos Que se fixa em mim Quando ouso em falar? Quem és tu De cara enrugada E uma lágrima no canto da vista A espreitar? Quem és tu Ser quieto Que permaneces à janela A ver o tempo passar? Quem és tu Que vens até mim Entre os guinchos dessa cadeira? Quem és tu Tão criança à tua maneira? Quem és tu?
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Etelvina Tapado Sou a Etelvina Natural de Fanzeres Gosto de poesia Arte e natureza.
Inspiração Minha Inspiração tem dias que me deixa vazia na penumbra do meu sofá. Vou sonhando com a sua chegada..! Num rodopio de emoçõe s com a calma de um sorriso... Minha inspiração foi passear, vestida de transparência e sensualidade! Tão livre... Sonhadora de palavras doces, meigas, sensuais e sedutoras... Afinal tenho-te comigo voando no céu dos meus sonhos, correndo no jardim do meu desejo."
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Gedeane Joás Costa Gedeane Joás Costa, natural do Recife (PE), formada em Ciências Econômicas e em Licenciatura em Música. Pianista, professora, artista plástica e poetisa. Escreve poesias desde os seus nove anos de idade. Tem um blog de poesias que se chama Páginas Infinitas e um grupo no Facebook pelo qual publica suas poesias intitulado “Poesia e Arte, Gedeane Costa”. Participou de várias antologias e revistas literárias. Membro correspondente da Academia Literária Internacional Letras, Artes e Ciências (ALPAS 21). Menções honrosas em Concurso Literário Pague Menos e Revista Inversos.
ESDRÚXULA Gedeane Costa Esdrúxula poema em gotículas que crespuscula uma sopa de rúcula em refrigerador refrigera a dor... Não amarga sua vida procurando rimas para a dor suaviza as acentuações reverberando amor. Simples assim. Fim. http://paginasinfinitas.blogspot.com.br/
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Gisela Lopes Peçanha Natural de Niterói, RJ. Escritora, cantora. Premiada em diversos concursos literários de universidades federais brasileiras, a citar: Universidade Metodista de Piracicaba, SP (1º Lugar e menção honrosa, em 2015 e 2016); Universidade do Pampa, RS; Universidade de Brasília (menção honrosa); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (2º Lugar); UNIFEBE, SC; UNICAMP, SP; UERJ, Rio de Janeiro. Prêmio Rubem Alves - 1º Lugar - Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto SP, 2015. Menção honrosa - Prêmio Escriba de Contos 2019. Premiada: Prêmio VIP de Literatura, em 2017 e 2019. Semifinalista - Prêmio Uirapuru de Literatura 2019. Menção honrosa - Prêmio Moutonnée de Poesia 2020. Menção honrosa - 1º Concurso de Poesias Livres da Academia Internacional da União Cultural 2021. Conquistou quase 100 prêmios literários e publicou em 48 antologias, a nível nacional.
ERA (Gisela Lopes Peçanha)
Eu vi onde era: uma esfera. Um passo para o infinito Um sonho de uma nova era: Era. Eu percorri léguas Enxuguei mares Vi estrelas se apagarem: Despencarem. Vi a lua nua e prosa Despida das vergonhas e dos sonhos; E um sol tão só e frio Refrigerando jardins E congelando nuvens. Eu vi o fim do mundo. 92
Conchas se tornando areia Areias parindo conchas E um Deus louco recolhido — Engolindo um pranto profundo. Provei do fim de tudo. E das coisas. De onde brotaram teus sonhos? Quem foram teus ancestrais? Quem teceu tua seiva (e tua história) Que hoje, aqui jaz? E nesse labirinto (Lindo, velho e findo) Do nada dos fins e inícios Suspiro do éter que brota Origem da alma que dorme: Tornei-me sopro... Ferrugem.... Fagulha.
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Glauber Costa
Glauber Costa é baiano, residindo atualmente no Amazonas. É professor. Tendo publicado contos e crônicas em revistas e antologias literárias.
Publicou seu primeiro livro, "O homem com cabeça de urubu", em 2020, pela Filos Editora. O livro também se encontra disponível como publicação independente na Amazon.
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As meninas brincavam na calçada de imitar danças. Dançavam. Elas precisavam ficar muito perto umas das outras para não se perderem de vista. Ficavam lado a lado para nenhuma se perder da coreografia. Elas tinham sintonia. E riam. Da janela, eu mal conseguia vê-las. Mas notava, por seus vultos, os movimentos certeiros recheados de sorrisos. A fumaça se espalhava ao redor, para o alto e para os lados, seguindo o ritmo das meninas, com sua própria velocidade, esvoaçante, pairando, expandindo e misturando-se ao ar poeirento. Os passantes, seguindo para os afazeres da cidade, passavam pelos lados da brincadeira, sem esbarrar. Assim também seguiam, na rua, os carros, cautelosos, pela baixa visibilidade. Embora sempre tenha algum apressado, buzinando. Aliás, os barulhos advindos assim do invisível parecem mais audíveis. Como dizem: um sentido compensa o outro.
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Mas, apesar dessa habilidade da ausência, as surpresas e medos não nos abandonaram. Às cegas, é exigido um maior nível de coragem. Se alguém fumasse muito perto, e você tossisse, não teria meios de acusar o fumante, que mal via a fumaça de sua boca se juntar à névoa acinzentada e serena no ar. Em épocas mais brandas, era possível enxergar a distância entre duas ou até três casas. Mas o tempo tem ficado mais denso. À noite, evitamos até mesmo abrir a porta, pois mal conseguíamos enxergar um palmo à nossa frente. Ainda assim, eu gostava daquela brincadeira de deixar os meus olhos se acostumando à escuridão, em uma gradual descoberta do espaço. Em noites de insônia, abria mesmo a janela, para ao menos receber o vento. Evitar o fumaceiro em casa foi privilégio de outro tempo. Olhando o nada, eu pensava em minha mãe. Gostava de manter viva a imagem do rosto dela. Imagem que me acalantava e aquecia meu coração, com ternura e compaixão. Aproveitava as brechas do tempo brando para olhá-la, enquanto costurávamos juntas, gravando seu rosto. Gostava de lembrar da imagem de risadas gostosas que ela dava na conversa com as vizinhas. Mas a que mais tenho lembrado (como o remorso corrói!) é sua cara de espanto quando eu gritei em explosão a minha vontade juvenil e súbita de ir embora daquele lugar de cinzas flutuantes. Eu queria ver o dia nascer, como dizem ser em outros lugares ou mesmo como ela dizia ser em outros tempos. Mas ela esconde a sua saudade para não me ofender. E eu escondia a minha revolta com reciprocidade. Nem sempre foi assim, mas quando entendi a nossa condição se degradando, tive que aceitar lágrimas mais honestas banhando meu remorso incurável. Eu não pude ajudá-la de
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forma alguma. O tempo urgia. Eu tentava estudar o máximo que conseguia com a fumaça deslizando entre o livro e eu. Às vezes, dormia por cima dos cadernos e anotações, que mal enxergava, mas tinha que compreender. Já havia terminado a escola, mas precisava de emprego. Eu queria mesmo ajudar minha mãe, que escondeu a nossa pobreza de mim em nome da minha infância. Mas a fumaça, sentenciosa, não permitia que ela trabalhasse bem. A costura demorava e as pessoas ficando mais tempo em casa não tinham mais tantas condições de se vestir como queriam. Mal se enxergavam. Começamos a ter que fazer costuras para as famílias mais ricas. Foi em uma dessas casas de madame, que vi pela primeira vez a claridade. Tão límpida nunca vi igual. Era tudo tão nítido, que eu pude entender um pouco certas relações entre textura e aparência. Toquei o azulejo, depois as minhas próprias roupas e seus farrapos. Que medo me deu ao me enxergar assim naquelas condições, dentro de uma casa tão limpa. Quase corri, e teria mesmo fugido dali, se a Dona da casa não tivesse me segurado em seu sorriso de lado. Voltei para casa humilhada, adentrando mais e mais fundo na fumaça, ou assim era o meu desejo, de esconder-me. Em casa, eu vi minha mãe sentada, envergada, tentando enxergar suas linhas, e olhei as nossas próprias roupas. Aquele delírio bateu forte em mim. Passei semanas costurando uma roupa que parecesse com a da Dona da casa iluminada, mas as imagens fugiam de mim. Escapavam para dentro da fumaça densa desses dias. Chorei, debruçada sobre os panos retalhados, ao som das cantigas das meninas na calçada.
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Diante da janela, com severidade, olhava a dança do ar encorpado lá fora. Ficava assim até a luz do sol esbarrar na nuvem ao redor da cidade e mostrar sinais de que o dia iria começar. Mas, naquela noite, a luz demorava.
A escuridão ao redor se insinuava, como uma presença crescente e não o contrário. Como se minha única saída fosse aceitá-la crescente, em definitivo, como a minha mãe havia aceitado. A angústia crescente, sufocante, foi cessando, quando vi os primeiros raios luminosos, mas não era do sol. No ápice de pensamentos opressivos, é possível ter alucinações, que só poderiam ser fruto do ódio, naquela ocasião. Mas luz não sumiu da minha visão, ao contrário, crescia, trêmula. Levantei da cama e fui até a janela ver. Era uma chama alta, e não estava longe. Barulhos estranhos pareciam advir da direção do fogo. Pareciam berros, sons de pássaros ou murmúrios humanos, tudo ao mesmo tempo.
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Quis sair, mas hesitei. Cheguei a pegar a lanterna, que pouco ajudaria, mas me serviria de guia, passo a passo. Fiquei olhando o fogo até conseguir ouvir sua crepitação. Concentrada, não pude evitar o grande susto de um som de coruja cortando o ar por cima da nossa casa. Tremi. O seu chirriado repentino e alto acelerou meu coração, fazendo meus ouvidos confundir com um berro humano direcionado para mim. De olhos muito abertos para o horizonte vazio, resolvi fechar a janela, mas outro susto me tomou, quando quase toquei um pássaro, que estava pousado na janela. Era uma coruja, que me encarava no escuro, antes de alçar o seu voo para as trevas.
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Eu não partilhava os meus delírios noturnos com a mamãe. Ela já tinha muitas preocupações. Quando acordei para abrir a janela, ainda pensando nos sustos da noite, vi a minha mãe pegando uma sacola de pão das mãos da vizinha. A situação estava muito ruim. A fumaça imensa, deitada ao lado de todos, como se a nos observar de perto, ou mesmo sugar nosso sangue, parecia bem acomodada, impossível de expulsar. Ao longe, tentei enxergar e não vi o fogo da madrugada. Ao invés disso, via gente aparecer e sumir a depender da distância. Um dos que surgiram vinha da direção do fogo ausente. Fiquei esperando que chegasse mais perto. Era Seu Gerônimo, vestido com um uniforme verde, muito sujo de cinzas. Seu Gerônimo é nosso vizinho da esquina. Um homem muito humilde, pai de uma das meninas dançarinas da calçada. Pensei em perguntar sobre o fogo, mas ele andava, andava, e nunca chegava perto da janela. Fui lá fora e comecei
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a andar. Quis ir na direção da miragem. Não sabia se iria mesmo tão longe. E se fosse perigoso? Em zigue-zague, acabei percorrendo caminhos desconhecidos dentro da fumaceira. Ao longo do caminho, vi mais homens com o mesmo uniforme verde de Seu Gerônimo. Distraída com isso, achei ter visto uma chama, que me escapou da vista. Insisti. Ai de mim. Na minha perseguição, acabei vendo mesmo um fogo, mas era diferente de tudo o que vi. Ele mal iluminava e mudava de lugar com velocidade. Quanto mais eu ia em sua direção, mais difícil parecia encontrá-lo, mesmo vendo-o sempre. Cansei. Apoiei o braço no que achei ser um muro, mas era, na verdade, uma árvore. Comecei a andar em círculos, descobrindo que, na verdade, estava dentro da mata. Comecei a tentar sair de lá. Quanto mais eu andava, mas árvores surgiam em meio à fumaça. Me desesperei. Chamei, depois gritei, para ver se alguém estava por perto. Ninguém.
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Comecei a andar mais rápido, mesmo sem saber se era na direção certa. Zumbido invadiam o meu ouvido. Eram sons de insetos e aves se intensificando, respondendo aos meus temores. Enquanto caminhava, notava movimentos rápidos por perto. Como ninguém respondia, deduzi ser algum bicho e rezei para que não fosse nenhum predador. Prendi a respiração ofegante, quando ouvi um rugido. Parei. Paralisei-me. Barulhos de pisadas em galhos secos se aproximavam lentamente. Naquele momento, algum instinto me alertava que eu poderia correr ou ficar, que daria na mesma. Me dei por perdida. Até que ouvi outra vez o som da coruja da madruga. Um calafrio percorreu a minha espinha. O rugido e os passos sumiram e uma gargalhada muito próxima me fez cair para trás. Quem gargalhou aproximou-se de mim, mas só pude enxergar metade do homem. Uma perna, um braço, parte do rosto com um sorriso insano e um fumo caído no beiço. Corri dali com todas as forças que eu tinha. Abri caminho na fumaça, com a sensação de ainda ser perseguida. Por sorte, era a direção certa e comecei a ver pessoas, que se assustavam com alguém correndo, por ali, do nada. Olhei para trás e vi a coruja vindo comigo, lá no alto. Parei e ela passou direto, emitindo o grito medonho. Corri para dentro de casa. Minha mãe me viu entrar apressada e quis saber o que houve. Mas despistei-a com alguma desculpa. Os sustos daquele dia me fizeram sonhar, sem dormir direito, até a coruja passar no nascer do sol, quando meu sono enfim pesou sobre mim.
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Acordei tarde, com minha mãe no meu quarto falando comigo. Ela me achou febril, mas eu não sentia a febre. Obedeci com o resguardo para tranquilizala. Passei o dia no quarto. Prestando mais atenção ao longe, conseguia distinguir os sons dos pássaros dos ruídos da cidade. Gostava de fazer isso para relaxar. Mas naquele dia, os barulhos me chegaram em uma gradação sonora tão intensa, que pareciam estar dentro do meu quarto. Tive que levar as mãos aos ouvidos. Fiquei procurando ao redor e nada. Até que vi a coruja batendo as asas entre o telhada e o guarda-roupa. Corri para abrir a janela e deixar o caminho livre para sua fuga, mas ela ainda se debateu muito, antes de vir em minha direção, pousando em minha cabeça, e eu não vi mais nada. Quando acordei, ouvi bem perto do ouvido, o chirriar, mas ela não estava lá. Já era noite e eu me sentia muito cansada. Levei as mãos à cabeça e toquei as feridas que as garras da ave tinham deixado. Doía.
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Não mostrei a mamãe. Aquilo era inusitado demais para revelar. A dor de cabeça aumentou, então eu mesmo cuidei dela e dos ferimentos, sem complicações. Passei a noite acordada, com a forte impressão que ficava de tudo aquilo. A imagem do homem que gargalhava na mata voltava à minha cabeça, mas eu não conseguia lembrar com precisão de suas feições. Apenas da expressão risonha. Seria ali a origem do fogo? Pensando nisso, forcei a visão para olhar. Apertei os olhos até que apareceu o fogo tremulante. Eu precisava me livrar daquela assombração. Pensei em bater na porta do Seu Gerônimo, mas já era madrugada. Senti um arrepio antes de sair. Mas precisava ir. Fui depressa, sem barulhos, para não acordar a mamãe.
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Corri pela rua, ouvindo a coruja, mas não dava para enxergá-la. Acelerei o passo. Quando fui me aproximando do fogo, distinguir homens saindo da fumaça. Eles usavam o uniforme verde, que eu vi Seu Gerônimo vestir. Me escondi entre as brumas, até que eles passaram. Indo em direção ao fogo, achei que estava mais longe do que no dia anterior. Cansada da distância, quase desisti. Quando pisei em um fumo. Aquele homem da mata estaria por ali? Bem poderia ser o fumo de algum dos trabalhadores, mas não dava para ter certeza. O fumo estava fora da mata. Ele talvez fosse morador da cidade ou tenha se aproximado durante a noite. No caminho, vi árvores cortadas, derrubadas e volumes e mais volumes de cinzas pelo chão. Só quando o calor chegou a mim, vi, de frente, o fogo. A floresta ardia.
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O fogo era forte, intenso, liberando fumaças espessas. Iluminado por parte do corpo, vi novamente o homem pela metade. Ele não gargalhava, mas tinha um olhar sinistro. - Quem,
quem...? – tentei formular a pergunta.
- Olá!
– ele movia com exagero as sobrancelhas.
- Sou
Maria, moro aqui. Você fez esse fogo?
- Hahaha!
Eu? Não, minha senhora... Maria. Foram os homens que expulsei daqui.
- Os
de farda verde?
- Sim, eles mesmo! Mas eles sempre voltam. E a minha casa só diminui
em brasas. - Você
mora aqui?
- Você
não? Hahaha!
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O fogo se espalhava rápido e se propagava em nossa direção. Comecei a me afastar, mas o homem permanecia parado. - Cuidado! - Eu
– tentei adverti-lo.
sempre morro, todos os dias, minha amiga. Até a floresta acabar!
E o fogo avançou tão subitamente que engoliu o homem como uma fera. Corri desesperada. Na cidade, não me controlava e tentava avisar a quem eu encontrava no meio da fumaça sobre o incêndio. Mas, quando vi, estava falando com os homens de uniforme verde, que me encararam com cara de nada. Gelei. Seu Gerônimo estava entre eles. Também absorto, mas caminhando, como os outros, em minha direção. Corri para casa e, estranhamente, as minhas passadas pareciam mais leves, como se pudesse levitar em meio à fumaça. Fechei a porta atrás de mim, e um som estridente de coruja me atingiu o ouvido. Estava amanhecendo. Cheguei ao quarto, antes de mamãe acordar.
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Sonhei com uma bruxa. Eu ia para a mata ver o fogo e ela estava lá. Tive medo de que nós duas fôssemos consumidas pelas chamas, enquanto ela falava comigo. Olhei melhor e uma coruja estava pousada no seu ombro. O que ela dizia não consegui me lembrar completamente, mas parecia zangada. Acordei com penas sobre mim. Procurei a coruja. Teria dormindo em cima dela e esmagado? Mas não havia nenhuma ave ali. Ao longe, através da janela aberta, apesar de toda a baixa visibilidade, vi, ainda sonolenta, uma silhueta se mover, em formato de mulher com ave no ombro. Ou seria uma miragem? Eu precisava fazer alguma coisa. Fui até a janela e vi a mata ficando cada vez mais longe. As crianças, na calçada, brincavam dentro da 104
fumaça. As pessoas andavam lá fora, respirando aquele veneno. Por que simplesmente não apagavam o fogo? Ouvi uma tosse alta de mamãe e decidi. Em um rompante, decidi que iria apagá-lo. Sai de casa em sua direção. Eu seguia tão rápida e leve, como se meu corpo mal pesasse. Estaria ainda sonhando? Era fácil me mover. Tive vontade de voar. Mais, tive uma lembrança de um sonho em que eu voava de verdade por cima da cidade, e, lá em cima, não existia a fumaça, e, ao longe, não via fumaça, tudo límpido, apenas lá em baixo a nossa cidade enfumaçava. Da minha boca saiu um chirriar. No sonho?
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Cheguei onde estava o fogo e já era tudo cinzas. No lugar dele, um corpo jazia. Seria o homem da gargalhada? A bruxa? Abaixei e, a princípio achei ser um animal, por causa dos pelos. Mas ao virar, vi um rosto de gente. A criatura sangrava. Olhei mais adiante e poucas árvores restavam. Eu tinha que fazer algo. A fumaça só crescia, se desenvolvia, pesada sobre as cabeças de todos, que se movimentavam como podiam. Lá em casa não conseguíamos mais comprar pão. Talvez só pessoas como a Dona da casa límpida estivessem bem com a fumaça crescendo, a mata queimando. Uma lamúria quase humana veio do resto de mata que ainda havia. Fechei os olhos e pulei. Quando abri estava no chão. Eu queria voar. Precisava voar. Se eu pudesse ser a coruja da história, venceria aquela miséria. As meninas poderiam dançar e sorrir em um ar de cores vivas, veríamos as imagens uns dos outros. Poderia escolher as minhas roupas, ajustá-las, pois estariam visíveis e o ar poderia ser sorvido por todos. - Agora
não. Só à noite, no sonho...
Era o homem da gargalhada. Apareceu apenas a metade do corpo por trás de uma das últimas árvores. -À
noite, nos salve. Salve os nossos fantasmas.
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Voltei para casa e ansiei pela noite. Deitei e esperei o sono, mas a ansiedade não me deixava dormir. Fui até a janela e vi as chamas. As últimas árvores estavam ardendo em brasas. Olhei para o alto, esperando ver a coruja passar. Ela não vinha. Fiquei na espreita, vendo quando iriam passar os homens de verde. O sol já começava a tocar a redoma de fumaça, quando eles começaram a aparecer, um por um. 106
Subindo pela casa, vinha alguém. Uma mão enrugada escalava minha janela. Esfreguei os olhos e as mãos sumiram. Lá longe, vi a metade de um homem perto das chamas. Os homens de verde andavam como zumbis. Eu não poderia fazer nada de mal ao Seu Gerônimo. Era um homem bom. Pensava isso, enquanto empoleirava a janela. Fiquei esperando, ensaiando o salto ou a decolagem. Não sabia mais o que era delírio e o que era real. A fumaça entrava pelas minhas narinas durante o meu suspiro decidido. Tossi, ouvindo o som da minha própria tosse com uma tosse de velha. Ou talvez fosse minha mãe. Aquilo tinha que parar. Pulei. Saltei em direção aos homens. Fechei os olhos e planei no ar em suas direções. Gritei com força, fazendo-os cair um por um, já mortos, secos de vida. Quando o último caiu, eu pude ouvir os passarinhos matinais bem pertinho dos meus ouvidos, encostados no chão.
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De olhos abertos, vi tudo muito claro, sem fumaça. Agora mamãe poderia comprar pão, as meninas poderiam dançar, até mesmo diante de um espelho. Agora o homem da mata não morreria queimado. Seria inteiro. Vi tudo límpido como na casa da madame. Não, era límpido como quando sobrevoei a cidade em sonho. Mas onde eu estava? No céu? No chão? No sonho? Não mais importava. Eu sorria, gargalhava, ouvindo o som mágico e vivo da mata renascendo em flor ao redor de mim.
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Graziela Tosta Barros de Carvalho Graziela Tosta Barros de Carvalho nasceu em 1997, em Ribeirão Preto (SP). É estudante de psicologia na Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). Cursou alguns anos de letras na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e no Centro Universitário Barão de Mauá. Escreve no blog “Palavras, café e amor”. Instagram: @palavrascafeeamor. Publicou nas antologias “Aspirações” e “Seguir o Sol”, ambas da Psiu Editora e na “Fenômenos da minha natureza” da Ao Vento Editorial. Além disso, participou da revista Ecos da Palavra n. 2 e n.3.
Aos poemas livres e brancos e às mulheres que desejam Graziela Tosta Barros de Carvalho O machismo destrói vontades. Retira o desejo, porque mulheres que desejam são uma ameaça ao poder dos homens sobre elas. As mulheres são submetidas a se enquadrarem como o poeta em um poema clássico. Sua expressão mais íntima, deve ser reduzida às redondilhas, aos sonetos, a contagem de sílabas, às rimas ricas. Mulheres que desejam, quebram a estrutura fixa do discurso, da literatura do poder.
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Assumem com coragem suas próprias vontades sem importarem-se ao possível estigma, de louca, puta ou vagabunda. Palavras usadas para desvalorizar o valor das mulheres que desejam.
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HaradaFLV Sou Flávio dos Santos, atendo pelo pseudo de HaradaFLV. Gosto muito de ler de histórias em quadrinhos, principalmente as voltadas para os super heróis (Marvel e DC são as minhas favoritas). Também gosto de jogar videogame, assistir filmes e séries. Para mim a importância da leitura não é apenas para aprimorar a escrita e a comunicação, e sim expandir o limite da mente e descobrir o que podemos contribuir para o mundo.
A Carta Por HaradaFLV Meu nome é Carla Oliveira, 16 anos, e hoje é um dia sombrio. Hoje é o enterro do meu tio Francisco de 58 anos. Ele era professor de história, pois era apaixonado pela história humana. Eu sempre gostava de ouvir suas histórias, principalmente as que envolviam o império grego/ romano. Desde as expansões de um império pelo Alexandre, o Grande a má condução de um reino e sua queda por Nero. No dia seguinte após eu em conjunto com os familiares e amigos próximos e despedimos, fui até a casa do Cisco (como eu costumava chamar) para guardar alguns bens e doar outros para a caridade. Em sua prateleira onde ficavam seus livros, observei que dois livros estavam fora de ordem e, ao retirar um dos livros para organizar, notei que havia uma carta. Imediatamente peguei e li. Nela dizia: “Cara Carla, ou Carlinha como costumamos nos chamar. Se encontrou essa carta e porque não estou mais presente no mundo material. Mas quero que saiba que sempre teremos um lugar na história da humanidade. Não precisa estar escrito em livros para ser importante, mas sim ter aquele lugar especial no coração de quem amamos. Não desista de seus sonhos, mesmo que apareça adversidades que a primeira vista parece impossível. Lembrese que sempre terá pessoas para te ajudar e torcer por você. Eu, não sei onde estarei depois dessa partida, mas estarei sempre torcendo por você. Com carinho, Cisco”. Eu caí em prantos. Porém, a vida continua. As vezes achamos que nossas ações não tem valor ou que nossa existência é insignificante. Mas sempre terá pessoas importantes em nossos caminhos, que oferecerá apoio quando necessitamos, fará rir em momentos de tristeza e nos ouvirá quando mais precisarmos falar. Sempre valorize esses momentos. E eu valorizei cada momento com o você tio. Obrigado por fazer parte de minha jornada, Cisco. Sentirei sua falta...
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Hélio Guedes de Oliveira Pseudônimo: Hélio Guedes 1. Membro da Academia Brasileira de Poesia (ABL), cadeira nº 3 (Álvaro de Moraes), poemas, contos e crônicas publicados em várias antologias de Revistas e blogs especializados, dicionarista lusófono (Brasil, Portugal, Angola e Moçambique) pela PUC-Rio/Editora Lexikon. 2. e-mail: falecomhelioguedes@gmail.com
NADA Nada é perfeito, Com exceção do equilíbrio. Nada é fundamental, Com exceção da verdade. Nada é exato, Com exceção do certo. Nada é eterno, Com exceção do imponderável. Mas se nada é Perfeito, Fundamental, Exato e Eterno, Como temos o Equilíbrio, A verdade, O certo e O imponderável? Simples, Tudo é transitório, Com exceção do nada absoluto. 112
IVONE GOMES DE ASSIS IVONE GOMES DE ASSIS, escritora brasileira e Designer Gráfico. Mestre em Teoria Literária. Faz o quadro “Ponto de Leitura”, na FM 107,5. Contadora de Histórias. Autora de várias obras, sendo as três últimas: “A ficção sob os escombros da história: estudo sobre ‘Guerra em surdina’, Boris Schnaiderman” (2021); “O menino que venceu o medo”; “Bonezinho vai à Marte”. Teve sua obra “O medo do escuro” como objeto de pesquisa na UneB-Barreiras, 2019. Coordenadora da Revista Letrilha. Instagram @ivoneescritorabr
Temperança Ivone Gomes de Assis Dor que fere, bálsamo que acalenta! A desmedida não está no silêncio em si, mas na intensidade das perguntas e respostas: Quando palavra calada, Quando grito mudo, Quando riso oculto... Sabedoria e imprudência entalhada na forma. Numa mescla descomedida de risos e ais, o tudo é nada, nessa ausência de ação. A voz quer alcance, sutileza, entonação, adentra-se nas falas, nas cartas e outras mais. O crédito amigo gera o enlace, todavia, a brutalidade destrói a paz, No anonimato, a lágrima molha a face do menino-homem sofrido, assaz. A paz é som, é calor, é temperança. A angústia é insipidez, é cegueira, é dor. O bem-querer é vida, é segurança, mas, nesta vida, somos caça e caçador.
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O homem tolo se emudece. O estúpido se engrandece. Se há poder, há guerra e usura, Se não há paz, vigora a loucura. Humilhação, ato obsceno de destruição. Silêncio, arma aniquiladora e bipolar, O traidor se faz indiferente à situação, O incauto, aprisiona o querer e o falar. De um lado o silêncio machuca, Do outro a mentira assola. Triste, feito passarinho em gaiola é o homem em conflito, obtuso, fugaz; Já o sábio, zela pela prudência e a paz.
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Joel Barceleiro
Joel Barceleiro, nascido aos 22 de Abril, natural de Angola-Luanda, Bacharel em Economia, especialidade Auditoria na Universidade Kimpa Vita, Uíge. Escritor e poeta. Autor do e-book digital de poemas “Diário de pobre solitário”, participou e variadas revistas digitais, antologias, em Angola e no mundo.
PENSAMENTOS SOLTOS Joel Denilson A. Barceleiro Palavras jogadas ao ar Sufocado e quase sem respirar Ouvindo o coração bombear Querendo sair do peito para falar Mas sem ninguém para conversar. Órfão de pensamentos Escondendo tristes momentos Pintando com sangue o céu cinzento Com esperança de um futuro lento. Lançado ao desespero Um prato malpassado e sem tempero Lutando por aquilo que mais quero Tentando mostrar que já fui sincero Pois cliente manda, cliente “kero”.
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Jorge Eduardo JORGE EDUARDO MAGALHÃES Nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Romancista, contista, autor teatral e cronista do Portal Solidário Notícias. Doutor em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense; membro da Academia Luso-Brasileira de Letras, Cadeira 03, Patronímica de António Correia de Oliveira.
Pela janela Pela janela olhava a quadra da escola de samba em frente à sua casa. Estava quase na hora de sair com a mãe para ir ao culto. Não queria ir, mas tinha que acompanhar a mãe, evangélica fanática, pois caso recusasse a mãe chegava até a dizer que estava com o diabo no corpo. Não aguentava mais aquela saia que tampava até a canela aquela blusa de mangas compridas que era obrigada a usar em pleno verão de quarenta graus, seus cabelos compridos até a cintura e nenhuma maquiagem, pois a sua religião proibia de usar. Pela janela pensava em sua vida, no mês que vem faria quarenta anos, nunca tivera um homem em sua vida, vivera a vida inteira em função da mãe controladora e fanática religiosa que de sempre lhe jogava na cara o fato de nunca ter casado e nem ter lhe dado netos. Não queria nenhum namorado da igreja fanático, bitolado. Pela janela esperava aparecer na quadra da escola de samba aquela homem alto, negro, bonito com a camisa da diretoria da agremiação. Sonhava em desfilar na avenida ao som do samba enredo empolgante junto com seu amado que nem sabia o nome. Foi despertada de seu devaneio por sua mãe que disse estarem atrasadas para o culto. Pela janela viu seu amado entrando na quadra. Pensou em dizer não à sua mãe, em dizer que não queria mais aquela vida. Pensou em ir à escola de samba e perguntar como fazia para desfilar. Mas, ficou entalado em sua garganta, não teve coragem de falar. Fechou a janela e saiu com a mãe para ir ao culto.
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Joyce Nascimento Joyce Nascimento é natural do Rio de Janeiro. Formada em Letras, atualmente estuda Especialização em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Literatura Infantil e Juvenil na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Têm poesias publicadas em antologias, jornal, revistas e blog. Organizadora de sarau e oficinas de escrita. É uma das colaboradoras do site Corvo Literário e a gerenciadora e voz por trás do canal de podcast Literatura já! Facebook: https://www.facebook.com/literatura.ja Instagram: https://www.instagram.com/nasci_joyce/
Joyce Nascimento O cálice e a música Sobre a mesa o cálice transborda Um cheiro de vinho misturado em alegria Há quem goste do tinto Outros de vinho seco Para mim tanto faz Na prateleira, discos de vinil Com o cálice na mão ao som de Moraes Moreira ouço: “Assim vou lhe chamar Assim você vai ser Só somente só Assim vou lhe chamar Assim você vai ser” É tempo de recordar Reviver o bom som Entre goladas e giros Dois passos para lá Dois para cá Agora ao som de Wilson Simonal 117
“Nem vem que não tem Nem vem de escada que o incêndio é no porão Tira o tamanco, tem sinteco no chão Eu nesse embalo vou botar pra quebrar Sacudim, sacundá, sacundim, gundim, gundá!” Hoje é dia de MPB! Dançar Girar Cantar O cálice não para de transbordar E as horas voam sem parar no “Sacudim, sacundá, sacundim, gundim, gundá!”
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Kao Pseudônimo: Kaos Biografia: Amante de fantasia e ficção científica. Lê e escreve por hobby. Sonhava ser astronauta. Canhoto raiz, natural de Brasília, gaúcho de coração. E-mail: sorihelaguirre@gmail.com
Soldado anônimo Pseudônimo: Kaos Não diga que sabe como é, pois não sabe. Por acaso sabe porque os sinos tocam? Porque ao soar das metralhas os corpos caem ao chão como frutas maduras. Quem começou essa guerra nunca colocou os pés em uma trincheira. Enquanto suja suas mãos de tinta, as minhas estão banhadas de sangue. Você nunca ouviu a sinistra melodia dos canhões, rompendo o silêncio da noite tenebrosa, preparando o campo de batalha. Outrossim, não sentiu seus pés congelarem por inteiro, em um interminável quarto de hora. Você nunca viu e nunca verá meu caro, os olhos do inimigo implorando piedade. Olhos de um que homem tirou a vida daqueles que você mais estimava. Nunca saberá como é sua família receber uma bandeira e uma medalha ao invés de um abraço, eles nunca mais verão o seu sorriso, e nem sentirão seu coração bater. E por fim nunca entenderá que quando cai do cavalo ensangue, deixei esta vida, ávido por mais sangue e entrei na morte bêbado de glória. Não diga que sabe como é, pois não sabe.
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Karine Dias Oliveira Nova Friburgo/ Rio de Janeiro Professora. Pós-graduada em: Gestão Escolar, Supervisão Escolar e Orientação
Educacional;
Psicopedagogia
Institucional;
Educação
Ambiental. Amante da leitura e escrita, tenho por hábito escrever histórias infantis (ilustrando-as), contos, trovas, poesias, crônicas, etc. A escrita é a minha paz, meu refúgio e inspiração pra vida. Um sonho: ter as minhas produções publicadas em material, totalmente, próprio! E-mail: kadioliveira@yahoo.com.br FOTO AUTORAL: “CÉU E MONTANHA”
BRASIL- Nova Friburgo/ Rio de Janeiro (Bairro de Olaria). Paisagem admirada da minha casa: montanhas, esse céu azul e a igreja de São Roque. 120
Lara Machado Lara Machado é uma poetisa iniciante. Descobriu na escrita uma forma de libertação interior. Acredita que os sentimentos merecem ser registrados, pois são eles que dão cores aos momentos. As cores Vivi muitos anos de solidão Pude conhecer cada detalhe meu Achei a felicidade escondida em mim Acreditei que poderia permanecer só Evitando frustrações e desenganos Mas um dia você apareceu de repente Calmo como a suave brisa do entardecer E intenso como as agitadas ondas do mar Percebi que todo risco trazido pelo amor São compensados pelas cores do seu sorriso
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Luciano Izidoro de Borba Luciano Izidoro de Borba, nascido em Minas Gerais, é servidor público estadual. Possui mestrado na área de educação; e graduação em Administração, Economia e História. É apreciador de poemas, especialmente textos em versos, tendo alguns poemas publicados em antologias. e-mail: lidborba@gmail.com
Luz Fulgurante Estrada da vida estelar Passos lentos do caminhante Enigma cósmico a cintilar Desafio de cada errante Luz fulgurante do céu Alvorada para o cego Sapiência descerra véu Disciplina elimina ego Resplendor da Providência Vitalidade para o doente Expansão da consciência Purificação em cada mente Renovação em todo campo Extermínio de cada guerra Iluminação do santo Paz na Terra!
Autor: Luciano Izidoro de Borba
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Luís Amorim
Email: luisamorimeditions@gmail.com https://www.facebook.com/luisamorimeditions/ A senhora da solidariedade
Levava esperança E trazia lembrança A senhora da solidariedade Com agir de tanta vontade No dever cumprido Que era bem sentido E lhe dava sentido De vida com objectivo Em prol do respectivo Preceito de tarefa valorosa À comunidade orgulhosa Que carinhosamente abraçava E pela qual se emocionava No tanto em romaria Que bem lhe parecia No mais que se via E não era por demais Antes pelos sinais Que sentia motivação No continuar acção Com muita aplicação. Era tal a solidariedade 123
De abrangente variedade No entregue diário Tudo por necessário Que em consequência Seguidores por abrangência Apareceram na incidência De um colectivo forte Cada vez mais ao norte De levar outra sorte A quem tinha urgência Numa vida em decência Com a dignidade merecida Que nunca esquecida Deveria ser concebida Como noção do saber Em fazer o bem a valer Por seu nobre dever.
Autor: Luís Amorim
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Marcelo Gomes Jorge Feres Nascido em 06/07/1957, na cidade de Niterói, RJ. Graduado em Administração pela EBAP, Rio de Janeiro, em 1979; graduado e pósgraduado em Direito pela UNESA, Rio de Janeiro, em 2005; licenciado em História na UNICESUMAR (EAD), Maringá (PR), em 2019; publicou 17 livros de conteúdo poético-filosófico e participa de várias antologias desde 1987. E-mail: marcelo.gomes.jorge.feres@gmail.com
A BICICLETA DO DIABO No dia 17 de setembro de 1944, na operação militar chamada Market Garden, um soldado paraquedista inglês fora laçado, juntamente com sua bicicleta, sobre a cidade de Nimegue, nos Países Baixos. Seu nome era Charles Wesley. Tinha dezenove anos e era noivo de uma tal Jessica Smith. Fazia parte de uma tropa treinada para avançar em terrenos acidentados utilizando a ajuda de bicicletas; era um Paratrooper. Sua missão: matar alemães e seus aliados e ajudar a ocupar pontes, ou a destruí-las, na preparação da invasão da Alemanha pelas tropas Aliadas. Charles trazia um retrato de sua amada noiva embutido em um broche atado a uma corrente de ouro, ao redor de seu pescoço. Quase chegando ao solo, em sua descida de paraquedas, e na qual vislumbrara lindas paisagens, ficara preso aos galhos de uma árvore - quando esta corrente de ouro enroscara em seus galhos -, e ocorreu do peso de sua bicicleta, que havia de modo inexplicável ficado presa a seus pés, levado o infeliz soldado a morrer enforcado. Em julho de 1948, já finda a Segunda Guerra, algumas centenas de holandeses fundaram uma cooperativa agropecuária em uma antiga fazenda, em Paranapanema, no estado de São Paulo, no sudeste do Brasil. Entre esses imigrantes, havia um, de nome Kaspar Gastman, que trouxera ao Brasil, consigo, uma bicicleta desmontável que, segundo ele mesmo contava, havia encontrado abandonada em um campo de batalha, durante a segunda guerra mundial. Conta-se ainda hoje, na região de Paranapanema, que, em uma noite de sexta-feira, noite de lua cheia, no ano de 1950, houve uma aposta feita em uma mesa de pôquer em um bar da cidade, na qual um imigrante holandês apostou uma rara e cara bicicleta, da segunda guerra, contra uma noite de amor com a mulher de um tal Chico. Conta-se, ainda, que o tal Chico perdeu no jogo de pôquer a sua mulher, por uma noite, e que cumpriu com a sua palavra, entregando a mulher a outro homem, mas que, no dia seguinte, uma vez já paga a aposta e cumprida a sua palavra dada, matou a facadas a própria 125
mulher e, ainda, que teria matado também a facadas um imigrante holandês e, depois, que teria se matado também, bebendo veneno de rato. Renato é filho de Matias. Matias enriquecera lá pelas bandas do sul. Dizem que trabalhava com compra e venda de coisas antigas. Mas o fato é que Matias enriquecera e seu filho, Renato, gozava, agora, no início dos anos setenta, da ótima situação financeira da família. Morava, a família, na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul do Rio de Janeiro. Mistério, mesmo, era a origem daquela bicicleta. Chamava a atenção de todos por sua aparência e por sua peculiar antiguidade. Vendê-la, Matias dizia que jamais a venderia. Com muita relutância, emprestava-a, às vezes, a Renato, seu filho, mas sempre sob a promessa, deste, de tomar o máximo cuidado com a bicicleta e de, havendo o que houvesse, sempre devolvê-la. Matias era, sim, por demais ciumento com aquela bicicleta. E foi por causa dos ciúmes de Matias que Renato morrera. Não a entregara ao bandido que quis tomá-la dele quando, ao cair da noite, Renato dava volta à Lagoa, pedalando e chamando a atenção de todos pela elegância em que, juntos, ele e aquela bicicleta - linda! - se apresentavam, em uma espécie de ritual de beleza e leveza que se estabelecia nas pedaladas do jovem. Mas Renato morrera e, segundo as duas testemunhas que se apresentaram à polícia, a bicicleta fora roubada e levada pelo ladrão homicida. Armando tinha cinco anos de idade quando vira aquela bicicleta pela primeira vez. E se apaixonara por ela. Perdidamente. Foi em uma manhã ensolarada quando, junto com seu irmão mais velho, pescavam no Lago de Javari, em Miguel Pereira, no estado do Rio de Janeiro. Um homem que trajava um uniforme azul escuro passara pedalando. Que bicicleta linda! Armando jamais a esqueceria. Dez anos mais tarde, recordava-se daquela manhã em Javari. Acordara, anestesiado, no hospital municipal de Miguel Pereira. Havia, sim, reencontrado a sua tão desejada bicicleta, tantos anos depois – reencontrou-a, adquiriu-a, e fora atropelado quando a pedalava. Ele estava se dirigindo à R. W., para comprar um balde para uso de concreto. Estava descendo, sem freios, pela rua de paralelepípedos que desembocava na estrada de asfalto, bem em frente à R. W., quando, da rua perpendicular, saiu aquele carro, sem avisos e sem advertências, e Armando simplesmente colidiu com ele, sendo arremessado por cima do carro. Quebrara a vértebra. Ficara tetraplégico, e por todo o restante tempo, de sua presente existência, jamais andaria novamente, nem a pé e nem de bicicleta. Rute sempre sonhara em morar em Geribá, mesmo que fosse em uma rua não muito próxima da beira-mar. E sonhos podem se tornar realidade – bastando, para tal, sonhá-los e, claro, realizá-los. E foi em 2005, depois de muito esforço pessoal, seu e de toda a sua família – de seu marido, Paulo e, também de seus dois filhos, Laura e Tomé – que Rute pôde morar, com a família, em Búzios – neste lindo balneário do estado do Rio de Janeiro. 126
E já havia dois anos que eles lá moravam em uma simples, mas acolhedora casa feita de pedra, madeira e vidro – justamente a casa que Rute sempre idealizara por toda a sua vida. Ah! Sonhos dourados! Como é bom tê-los! Como é bom vivenciá-los! Mas foi em uma manhã de sexta-feira, manhã fria e nublada em que chuviscava uma chuva triste, que a campainha soou na casa de Rute e de sua família. A esta hora, hoje?! Quem seria? Rute foi atender à porta, mas sentiase apreensiva. - Rute! Bom dia! Sou eu, Rubens, seu vizinho da casa da frente! A porta de entrada da casa de Rute ficava a cerca de vinte metros do portão que se abria para a rua, e o Rubens gritara assim que ouviu Rute abrir a porta da frente. Sabia que era ela, pois sempre era ela quem vinha atender ao portão a qualquer um que soasse a campainha. - Bom dia, Rubens! A que devo esta honra, a esta hora da manhã?! - É o seguinte, Rute: não sei se vocês repararam, mas desde ontem de manhã que alguém esqueceu uma bicicleta aqui do lado de fora, em frente a sua casa. Por acaso a bicicleta é de alguém daí? - Não! Daqui, não é! Estou vendo as duas bicicletas dos meninos, bem aqui! E Rute abriu um pouco mais o portão e deu uma olhadela - O Rubens estava de bermuda amarela e chinelo. A bicicleta? Bem, parecia ser bem antiga, embora parecesse bem cuidada e em bom estado. - Não... não é daqui, não. - Bem, Rute, é o seguinte: vou pegar esta bicicleta. Se, acaso, aparecer alguém procurando por ela, diz que está lá em casa, e que a peguei só para guardar, ok? - Tudo bem, Rubens! Bom dia para você! Que achado! Uma BSA! Parecia ser da década de 50! Uma BSA, Birmingham Small Arms! Uma Paratroopers! Linda! Linda! Veterana da segunda guerra! Com certeza! O Rubens sempre fora apaixonado por bicicletas antigas! Ainda mais uma veterana da segunda guerra! Que coincidência! E o que seriam aqueles vestígios de antiga incrustação - CW & JS? E quem abandonaria uma raridade dessas, assim, do nada? E foi assim que o Rubens morreu, andando de bicicleta, em uma manhã chuvosa de sexta-feira. Caíra e quebrara o pescoço. Rute, ao saber do ocorrido, naquele mesmo dia, achou por bem não comentar com quem quer que fosse a sua conversa, sem testemunhas, com o falecido. Parecia temer. Poderia ser a próxima a cair de uma bicicleta... Hoje, em 2020, Afonso sempre que passa defronte a loja de bicicletas usadas, em Juiz de Fora, sente uma estranha atração e um quase irresistível desejo – o de adquirir e possuir aquela bicicleta. Que coisa estranha! Parece, até mesmo, que sua pele toda se arrepia. Ele até sente calafrios. Os pelos de 127
seus braços se eriçam. Mas algo dentro dele parece adverti-lo – Cuidado, amigo! Não te abeires deste precipício! Esquece estas vertigens que agora sentes! Muitos já sentiram o mesmo! Mas, esquece-os! Pois, às vezes, o desejo incontido, pelo consumismo, traz escondido, no recôndito da alma, muitos possíveis perigos! Quem poderia, ao certo, saber, meu amigo, de onde surgem nossos arrepios, esses que surgem furtivos, repentinamente, e sem qualquer aparente motivo, porém advertindo-nos sobre algo estranho presente em nós mesmos?
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Marcos A Campos Marcos A Campos nasceu em Natal. Formado em Letras, Administração e Ciências Contábeis, todos pela UFRN. Membro do IHGRN, UBE-RN. Poeta e contista laureado em dezenas de certames nacionais. Publicou os livros: “Um Bêbado Sonhador”, “Babel” e “Algodão Doce” todos pela Caravela Selo Cultural.
ANJOS TORTOS (Marcos Antonio Campos) Jim Morrison Ex Doors Ex pó Expoente Imagine John Lennon Morto por alguém Tão doente Numa curva em “S” Ayrton sai de cena James Dean Morto tão teen Para quem Kurt Cobain Jesus doesn’t want me for a sunbeam As guitarras Jimmy, Hendrix A voz Jane, Joplin Elis Jazz Na rocha, Glauber Nos seixos, Raul Sem alternativa Elvis drogado Marilyn Monroe desejada Madalena perdoada Nara os separa Clara os une Todos mortos Todos anjos tortos
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Moisés Gomes da Silva O Pregador Nortista; E-mail.: moisesprobmx@gmail.com; Moisés Gomes da Silva mora em Campo Grande -MS, é natural de Porto Velho – RO, tem 6 livros publicados pela Amazon; faz parte da Academia de Letras Alpas-21 do RS e AIL do PE; é Mestre em Teologia Livre e Bacharelando em Turismo. “A Donzela e o Anel” Por que conhecendo-te agora, Meu coração por ti enamora? Por que vendo-te a vejo E por ti morro de desejo Linda donzela dos longos E sedosos cabelos encantadores, Seu sorriso brilhante como lagos Passeia em minh'alma cheia de amores. Ó linda senhorita das faces claras! Meu coração arde em chamas no peito, Que gélido desfalece em noites pálidas. Por que o destino é tão duro e cruel?! Por que tivera eu que conhecer-te?! Ó linda rosa plumeria aceites este anel!...
O Pregador Nortista
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Nuno Silva Nuno Silva é poeta, jornalista e artista visual. editora.note@gmail.com
Contra muros Nuno Silva Não há ponto final quando ainda existe força. Mantenha seu querer vivo. Acenda a luz da alma e descubra em dias cinzas cores vivas escondidas. Invente um novo mundo por trás de falsos muros que te cercam e te cancelam. Imagine!
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Paulo Luís Ferreira Cidade: São Bernardo do Campo - SP Facebook: paulolaspalmas@yahoo.com.br Email: pluis.177@globomail.com Paulo Luís Ferreira é natural de Recife/Pe. Fotógrafo de profissão. Graduado em: História e Geografia. Têm contos publicados pelas Revistas Literárias: Tantas Letras, Coverge e Elemental Editorial; Revistas Virtuais: LiteraLivre e Literalmente Intrigante. Têm contos publicados na Big Time Editora. E em diversas Antologias pela Editora Jogo de Palavras. Menção Honrosa, Prêmio Bunkyo de Literatura; e pela Editora Costelas Felinas. É autor do Romance, “Um Suco de Laranja Sem Açúcar com Hortelã”; e dois de contos, “Século XXI”, disponível em Clube de Autores. E “Acampamento das Almas” Disponível em AutoGrafia Editoração. Contato com o autor: pluis.177@globomail.com e https://www.facebook.com/pauloluis.ferreira.5
Festa de Santa Luzia: Crônica de uma Tragédia Anunciada Por: Paulo Luís Ferreira São Bernardo do Campo/SP Correu o boato em Serra do Alto de que Petrônio de Augusto ia à festa na casa de Mariano de Tibúrcio. A notícia ganhou pernas e invadiu todo o arraial. E o pior que se soube: Petrônio prometeu que ia dançar com a mulher e a filha do dono da festa. Bastou Mariano ficar sabendo, para o sangue lhe correr quente pelas veias e subir prá cabeça. Logo de chofre disse: “Nunca fui homem de sair por aí caçando briga, mas também num rejeito parada.” E esparramou por tudo quanto foi canto de lugar, que era prá chegar nos propósitos dos ouvidos de Petrônio de Augusto de que ficasse sabendo que em seu terreiro ele num pisava. Quando Petrônio passou a saber a coisa começou feder a desgraça, pois quase que ninguém vai a festa que o Petrônio cria desavença com gente da casa. Os pensares iam e vinham em busca da razão, de saber e falar, permitindo a todos a alegre liberdade de comentar o que quisesse, como quisesse, procurar, indagar, achar isso ou aquilo, tudo se dizia em Serras do Alto. O povo logo tomou as rédeas da história, enfiando os fatos contados 132
pela memória e guardando. Os mais chegados a Petrônio sabiam do modo que ele era: não era homem de muitas alegrias, mas falador, de língua solta, falava o que bem queria e sempre muito arreliento, criador de encrencas por quase nada. Alto e robusto, do tipo claro avermelhado, olhos esverdeados. E como se diz, tinha uns desacertos na cabeça. Como é dito por aquelas bandas: fardo que trazia de outras encarnações, pagador de outras vidas. Petrúquio de Aquino que conheceu ele desde menino é que sabia contar direito o desatino que é a vida de Petrônio. Quer dizer tinha sinas prá cumprir. Já, Mariano de Tibúrcio, era quieto, bom filho, bom pai de família. Era um homem miúdo, mas bom de serviço. Era também uma sina que carregava viver sempre numa meia miséria, embora sempre com o que do de-comer. Um dia cismou de trabalhar diferente, de modo a ver se mudava um pouco de vida. Largou de banda o trato com a terra, inventou de cuidar de abelhas, fazer mel e cera. Hum, cum, cum!.. Foi dessa vez que se deu o mal: um enxame de abelhas traiçoeiras pregou-lhe o ferrão nos olhos. Quase que o cegando completamente dos dois olhos. Foi dona Amélia, sua mãe, quem lhe acudiu na hora certa. Fez promessa com Santa Luzia para que lhe salvasse nem que fosse um olho. Foi assim que Mariano ficou com um olho apagado, outro aceso. D’aquele dia diante teve de cumprir a promessa: fazer uma festa todo dia 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, a gloriosa protetora das vistas. Promessa pedida, promessa alcançada! Mandou avisar, mundo, remundo e todo mundo prá festa. Essa era especial fazia dez anos da graça alcançada. O convite foi feito casa por casa, sítio por sítio, de a-cavalo e de a-pé. Os recados de boca em boca corria aos de redor sobre a festança. E festa em casa de Mariano tinha rega-bofe de tudo: buchada de bode, sarapatel, cachaça de quartinha prôs homens e garapa de cana pra meninada; bolo de mandioca, milho assado, milho cosido e forró até o sol raiar com cantador de coco, sanfona e zabumba que não era de faltar. Foi Mariano convidar pessoalmente, de corpo presente, Petrúquio de Aquino, Quintino de Moura e Pedro dos Cajus; Crispim do Triângulo disse que num ia. — Num vou, em festa que Petrônio bota o pé eu não vou! — Mas hôme num vai acontecer nada, não; que eu não vou deixar, seu Crispim! — Num vou, num vou mesmo... Boa romaria faz quem em sua casa fica em paz! — Deixe seu Marianin, eu levo meu menino, ele já bate bem um triângulo. E pode deixar que também levo meu compadre, João de Maria, pra 133
me ajudar a puxar o fole – disse, Zé de Lia, um dos sanfoneiros. Eram todos foliões de Santo Reis. E convite dos mais importantes não podia faltar: o Padre Olavo, que era pra rezar o terço e ensaiar a ladainha da novena. Não houve moça donzela que não tenha preparado um vestido cintado, broches, água de cheiro e sapato de sarto alto e bico fino; nem mulher que não brigasse com o empeiticado do marido prá deixar elas irem também. Nem houve rapaz solteiro que não arrumasse sua camisa de manga comprida, com o botão atacando até o gogo do pescoço, e brilhantina para os cabelos. Tião de Marçal comprou até chapéu novo. No dia exato da festa, Mariano acordou cedo, fazia só meia hora do primeiro canto dos galos. O dia amanheceu ensolarado como era de sempre. Começou por varrer todo o terreiro, prá depois enfeitar com as bandeirolas, mas antes já soltou uns foguetes que era prá acordar todo povo da roça, anunciado que o dia ia ser comprido. E deixando avisado que naquele dia e noite o mundo todo ia ser ali, no seu terreiro. Dona Josefa, sua mulher, e dona Amélia, a mãe, já estavam preparando o andorzinho com o retrato de Santa Luzia com o olhar caído em tom de piedade; na mão esquerda um raminho verde de oliveira; na mão direita um prato com dois olhos de vidro, claros e vivos; ao derredor dos pés, cercado de flores: acácias, cravos, rosas e fitas multicoloridas de azuis, brancos, amarelas e encarnadas. O dia ia passando, os comentários crescendo. Aquele dia 13 já começava a se pintar de história. Petrônio de Augusto num era homem de tratar e num fazer. Quem dele não ouvira falar? Ser causador de muitos tiroteios, com dezenas de mortes nas costas, era de igual maneira os pistoleiros dos oestes americanos, dizia uns. Acostumado a acabar com baile por simples repelão que alguma mulher lhe passasse, ou qualquer disse-medisse. Já Mariano de Tibúrcio é do tipo de valente que num alardeia. É sem fanfarronice. Sangue de Tiburtino, infiticado igual de cobra, frio. Era só mexer com ele. Dona Josefa, sua mulher, nova e bonita prá danar, mãe de Luzia, de mesmo nome e beleza de santa. Que, por aqui num se sabe d’onde é que vem esse costume de igualar boniteza de santa com a lindeza das mulheres. Estavam todas prá lá e prá cá arrumando o que ainda faltava para arrumar: o terreiro liso passado e repassado na vassoura de assa-peixe, coberto na frente da casa com folhas de bananeira verde e folha de eucalipto para dá cheiro à festa. Um bando de candeias só esperando ser acesas. As mulheres cuidavam 134
de tudo. Quando já começavam a correr os boatos pelo mundão de Deus: Petrônio já vinha vindo estrada adentro com sua cambada, mas num era não. A tarde vinha se debruçando, caindo lenta. Petrônio de Augusto também tinha as posses dele: nessas horas tava dando do de-comer a seus porcos, suas galinhas, mas logo, logo ia botar suas calças, vestir suas botinas, carregar sua pistola, afiar o facão, tomar de-banho, passar uma brilhantina cheirosa, pentear os cabelos prá trás; tava só esperando a boca-da-noite chegar. A noite já tinha engolido o dia, quando Mariano pipocou mais três dúzias de foguetes relampejantes que era para estrelar os céus, prá depois irem caindo rápidos e abertos, sumindo no espaço, uma beleza. A noite se mostrava fresca. A fogueira monstruosa no meio do pátio, as labaredas indo prô alto do céu, tinindo, estralando de lenha queimada, e o alarido do povaréu já chegado. A cada instante aparecia mais e mais gente no finito da estrada. E as conversas no terreiro só se falava no Petrônio, do seu corpo fechado. Disso todo mundo sabia: nem tiro de escopeta podia com ele. Até lembravam de quando deram dois tiros no tampo da cara dele, mas que passou raspando, indo fazer um rombo na parede, por ele só passou o vento da bala. Daí em diante já vinha chegando os sanfoneiros e cantores de coco, aquela era uma grande reunião de tanto repentista. Bem antes de começar o arrasta-pé os músicos forrozeiros esquentavam os instrumentos: Zezinho de Zefinha e João de Maria afinavam as sanfonas, Do Carmo limava o triângulo e esticava o couro da zabumba, Amaro chacoalhava o maracá, Zé de Riba o ganzá. Ao começar os primeiros acordes, as moçoilas já dançavam no meio do salão de terra batida, com a plateia assistindo sem comentários o rebolar delas, mostrando os fundilhos da calcinha por baixo da saia rodada. E já se ouvia o vozerio do ladairo que se aproximava lentamente entoando as orações, os ora-prô-nóbis e as invocações de respostas curtas e repetidas. Era a procissão que se organizava para dar a volta pelo povoado. Era o prenúncio da festa. Nisso um tropel de animais afobados foi maior que o barulho das zabumbas: trac-a-troc, trac-a-troc, trac-a-troc... Parecia ser muitos pela latomia dos cachorros, e eram mais de vinte. De longe avistados, os cavalos marchadores de anca mole, num tipo de dança. Vinha que vinha comendo poeira, afoitos. Até que chegaram, apearam e amarraram a cavalhada empareada um com os outros num lado da casa. Já entraram no pisando do xaxado. 135
Mariano aproveitou o rebuliço para soltar mais um tanto de fogos. As rezas já se principiava e a procissão ia sair. Foi daí a pouco que a notícia correu: o homem vinha vindo. O rebuliço foi geral, mas o sanfoneiro não quis parar de tocar não, emburrou detrás da sanfona. O do triângulo aprumou o ritmo. Mas por um tempo não se pensou em Petrônio. Até chegar outro boato, quando o corre-corre atrapalhou as gentes lerdas! O tinhoso podia chegar dando tiros a torto e a direito, de desmiolado que era. Antes disso se assuceder o terceiro boato correu depressa. Ele vinha vindo dessa vez, e era verdade. O homem trazia uma cambada mais ele. Aí sim: o povo frifriou. Os músicos dando fé logo parou. As mulheres trataram logo de pegar os meninos e sumir com eles dali, Josefa arrastou os filhos pelos braços terreiro a-fora atrás de Mariano. Mas sem encontrá-lo, pois já estava amuquecado, na espreita, para o que desse e viesse. Quando é fé Petrônio mostra a certeza da chegada no alarido que trazia. E o pior mesmo: ele num vinha sozinho, parecia que tinha era um cangaço. A festa se desnorteou. O povo se bulia igualmente formiga, pois a iminência era de que ali iria ocorrer a peleja de Deus e o Diabo no terreiro de Santa Luzia! O mistifório de gente era grande. De longe ainda, mas já se ouvia o tropel: trac-a-troc, trac-a-troc, trac-a-troc se aproximando cada vez mais, quando apareceram na ponta da estrada empoeirada: Dandão dum lado, Bentivi do outro, no meio, o homem montado num alazão chapeado a quatropé, já sem muita pressa. Pressentiram o espírito da festa de longe. Quando gritaram para acordar a afoiteza, mas é como lá se diz: “formiga quando quer se perder”, cria asas. Vinha vindo os três cavaleiros da frente desfrutando do vento, mas segurando os chapéus, se contorcendo conforme a andança da cavalariça, trac-a-troc, trac-a-troc... Ao adentrarem o terreiro deram três voltas na fogueira, de chicotes para o alto, açoitando o ar. Acalmaram-se e se aproximaram. Os sopros dos cavalos cansados de tanto desatino chegaram à frente da casa, no cercado, próprio para os animais. Petrônio em pose impressionante, espigado na sela, assim, meio tombado prá trás, deu umas esfregas no cavalo, prá-lá, prá-cá, prá-colá, fazendo o alazão rodopiar nos cascos. E arrastando as esporas e batendo na coxa direita com o rebenque, foi logo dizendo: — Buenas eu agora me espáio! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de táio!
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Fez bonito, cheio de imponência. Pulou do alto da montaria. Caindo de pé. Dava pra sentir o peso da arma no cinturão, meio prá baixo, no ponto da mão. Dandão e Bentivi imitaram o chefe, os olhos vermelho de cachaça, Petrônio, então, gritou bem alto, com sua voz rouca: — Êta belezura de festa minha gente! Que Deus Nosso Senhor esteja nesta casa! Ele era mesmo desse jeito, às vezes, alegrão! Foi quando Mariano veio se achegando dos fundos, uma mão segurando o chapéu, a outra por perto da garrucha de dois tiros, e disse sem rodeio bem de frente prô homem: — Petrônio de Augusto, dizem que vosmecê tem o corpo fechado, mas isso é por parte do capeta. E eu tenho um olho aceso por conta de Santa Luzia, entonce infeliz, cê num pisa no meu terreiro não, que cê fica estendido nele... Nisso vem se chegando dois camaradas de Mariano, cada um com um pedaço de pau e uma foice em cada mão. E se defrontaram prá os cabras de Petrônio. Petrônio num deu nem trela para os cabras que se achegaram. Mas no resguardo se fez de bem-educado, e se expressou dessa forma: — Ô meu senhor dono da casa, o senhor falou bem bonito, mas se aquete seu Marianin, eu num vim prá briga, não. Tô aqui com espírito de brincante, pois fiquei sabendo que era festa prá Santa Luzia que, se prá vosmecê lhe deu a luz dum olho, prá mim ela alumia os caminhos, e que portanto muito boa é prá mim, vim aqui só da minha parte de devoto. Por isso lhe peço que sem má querença aceite meu respeito e possa, com meus camaradas adentrar sua casa e com cês participar dessa festa tão belíssima, porque eu também trouxe uma coroa de flores e um pacote de vela, dois pacote de rojão e um lacrimoso, pois que tenho também uma promessa devida. Aceite, porque é de muito gosto e devoção. Com essas adocicadas palavras, o povo não tinha mais do que desconfiar, e logo começou a voltar aos poucos, os músicos um tanto desconfiados, principiaram a tocar. A noite se passou de madrugada adentro e, com o sol já raiando, a sujeira da festa no chão, eles todos juntos numa camaradagem só tomando café quente com leite de cabra, biscoito de goma, broa de milho, manguzá e cuscuz no leite de coco, mais Mariano de Tibúrcio e Petrônio de Augusto, tudo na paz dos homens. Ficando Deus e o Diabo apartados num canto. 137
E todo esse afrontamento ficou só na memória de cada um.
https://www.facebook.com/pauloluis.ferreira.5
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Paulo Roberto de Oliveira Caruso Paulo Roberto de Oliveira Caruso é carioca nascido a 19 de julho de 1975. Servidor público do Estado do Rio de Janeiro, formado pela Universidade Federal Fluminense em Administração e Direito, estudante de Letras na mesma UFF. Especializado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Atual Presidente da Academia Brasileira de Trova e membro de outras Casas no Brasil e no exterior. Lançou seu primeiro livro solo em 2019: Sonetos Diversos. Contato de Facebook: Oliveira Caruso
O meu alazinho (Oliveira Caruso) É na redondilha menor que eu escrevo meus versos errantes, que buscam seguir certeiros ao peito da gente a me ler. E tal redondilha em versos retinhos põe em linhas tortas meus ditos amados como um cavalinho a dar seus galopes na relva frondosa. Segue o meu bichinho, vai livre no campo, vai livro na aurora, e segue o dourar do rico horizonte à beira do mar e então, de repente, põe-se a admirar o fulgor nas águas, nas águas do mar. Em quintas quintanas, o meu alazinho; o teu alazão...
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Perpétua Amorim Franca - SP
Sob judice Perpétua Amorim Eu não matei a poesia Ela foi se afastando de mim Ao mesmo tempo, que isolada do mundo, Eu temia o seu abraço. Eu não matei a poesia. Só afugentei os versos Por temer a dor. Condenada A viver na realidade Desviando de cruzes alheias Marcadas por estrelas e rimas Que morreram com a minha poesia.
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Raquel Lopes Raquel Lopes Pernambucana, Brasileira. É pianista, estudante de filosofia, escritora, poeta. Autodidata pela Escola da Vida, tem livros de poesia prosa poética e infantis publicados no site Amazon e Clube de Autores. Participa de antologias e concursos no Brasil e em outros países. Membro da UBE, da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e da Academia Mundial de Cultura e Literatura. Recebeu os certificados de Destaque Cultural e Destaque Social 2019 pela OMDDH. É Embaixadora da Paz e Comendadora da Justiça da Paz pela Organização Mundial dos Defensores dos Direitos Humanos. Ama tudo que envolva artes, música e literatura.
A Gratidão usa Sapato A gratidão é o único tesouro dos humildes. - William Shakespeare
Reclamar da vida não é uma escolha útil a se fazer, pois há os que só insistem em se perder, pelo mundo do mal desconhecido. Talvez não estejas sendo ouvido, e nem queiras começar um novo ciclo, derramar por vez os potes do desgosto escondido. Viva o que é para ser vivido. Escolha conscientemente o seu caminho. Os pés descalços por não poder comprar um sapato, a comida é mais lucro do que gasto. A fome tem olhos fantásticos, sem sapatos, os pés machucam mais rápido, sem fome, os dias passam em confabulo com a anistia da vaidade da mente. Era um dia comumente, recebi um par de sapatos de presente, a compaixão de um desconhecido, por enxergar o que se esconde atrás do silencioso gemido. Olhei os seus olhos claros, o mar hoje estava tão calmo. Levantei aos céus minhas mãos, por tal encontro da adição, mais é mais quando os pedidos são respondidos, obra de ocasião, sem frustração.
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Calcei os sapatos e não proferi nenhuma palavra, atrapalhariam minha profusa água, dancei com o límpido riso nos lábios, dancei por ser a própria gratidão o triunfo do que realmente é amado.
( Inspirado numa matéria sobre a dança de gratidão de uma jovem africana ao receber pela primeira vez um par de sapatos)
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Renato Soares de Lima Renato Soares de Lima, moro em Porto Alegre, engenheiro civil, formado na UFRGS, aposentado, natural da cidade de Rio Grande / RS / Brasil. Participei de concursos literários, publiquei contos nos jornais de Porto Alegre e nos Cadernos Literários da UFRGS, antologias e publicações na internet. Meu autor preferido: Rubem Braga. A Última Encerra Autor: Renato Soares de Lima
renato.lima1951@hotmail.com
Ele falou com tanta convicção que tive a sensação de vislumbrar os raios de sol penetrando por entre a cortina do quarto: “tá um final de tarde bem friozinho, acho bom recolher o plantel logo para o galpão, senão os cordeirinhos vão sentir muito frio”... seus olhos miravam o potreiro ao longe, apreciando o amarelado que se estendia sobre o pasto... final de tarde na campanha é bucólico, principalmente no inverno... as aves indo para o pouso noturno... bandos de maçaricos sobrevoando, em perfeita formação, a nossa casa... Meu pai foi criado naqueles mundos, quando as cercas eram em menor quantidade e, a liberdade, ampliava-se nas patas de um cavalo, tão somente. Contou-me, muitas vezes, a viagem que ele e meu tio fizeram, quando jovens, até India Muerta, cidadezinha uruguaia onde tinham alguns parentes. Na minha imaginação juvenil aquele fato se projetava, e igualava, às cavalgadas dos filmes de faroeste que assistia no cinema de meu bairro. Uma viagem de centenas de quilômetros, dormindo em galpões ou sobre os arreios em pleno descampado, improvisando uma pequena fogueira de bostas para aquecê-los durante a noite, pois, na maioria das vezes, não havia nenhum sinal de lenha. Hoje, me recrimino por não ter explorado com mais afinco todo o desenrolar daquela aventura (as minhas não lhe davam espaço). Um tempo em que os caminhos gaúchos se desenrolavam através das grandes propriedades. 143
Tive oportunidade de ainda apreciar um dos últimos marcos daqueles tempos: as duas figueiras no meio da invernada. Uma já tombada, mas que resistiu bravamente antes de se dissolver por entre o pasto. Na outra, ainda gurizote, tive a oportunidade de subir e me sentir um índio guarani vigiando todo o entorno. A história contava que ali havia morado um dos últimos escravos, então já alforriado. Lembro-me de minha contrariedade inicial ao ter que permanecer, durante meus dois meses de férias, na fazenda. Invejava meus amigos que iam para a praia, irmanados na amizade e na busca de amores tão desejados. Porém, como tudo na vida, pouco a pouco, fui pegando gosto pela coisa. A imensidão da paisagem, fazendo com que sentisse, pela primeira vez, minha pequenez frente à natureza. A capacidade de captar cada pequeno sinal que aquele ambiente transmitia, a simplicidade em meio ao silêncio, as conversas no avarandado, ao entardecer. Acidentes acontecem em qualquer lugar: até no Paraíso, Adão deve ter machucado a costela recém soldada ao tropeçar e ir de encontro a uma árvore. Pois, com meu pai, não foi diferente, naquele pequeno éden pampeano. Uma égua empinou-se dentro do galpão, derrubando-o ao chão. Além disso, pisou-lhe com a pata bem sobre a testa. Depois de alguns dias, no entanto, recuperou-se. Anos depois, com a idade avançada, meu pai ficou impossibilitado de ir para a fazenda, o que lhe tirou uma boa parte do sabor da vida. A cidade não era seu ambiente natural, sentia falta dos grandes espaços, o olhar mirando, sem empecilho, o horizonte. E a vida sempre pegando um atalho: o coice que tinha sofrido na fronte veio a se manifestar na forma de um tumor benigno que, devido as suas dimensões, necessitaria de uma cirurgia. “Tá um final de tarde bem friozinho, acho bom recolher o plantel logo para o galpão, senão os cordeirinhos vão sentir muito frio”. Provavelmente, não estivesse 144
identificando perfeitamente que brete era aquele no qual o conduziam. As laterais, ao invés das grossas tábuas, eram brancas. E o entardecer, repentinamente, explodira em luzes vibrantes vindas do teto. Por fim, a última porteira se cerrou. Os médicos e enfermeiros que o conduziram para a sala de cirurgia provavelmente não perceberam que ele transitava por outras paragens: as paredes agora se estendiam em longas planícies, os sons distantes de relinchos e mugidos (inadequados?)
abafavam qualquer
gemido... Enquanto isto, encerrava suas ovelhas pela última vez...
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Ricardo Moncorvo Tonet Ricardo Moncorvo Tonet, engenheiro agrônomo, com diversas publicações na área técnica e com um livro de poesias publicado – Palavras Vivas e algumas premiações em concursos literários em poesia e trovas e responsável pelo blog ENTRELINHAS.
JANELA As velhas paredes caiadas, marcas de um passado... simples memórias trancadas na velha casa. Janela cerrada, nada chega..., nada parte. No jardim verdejante, quase descuidado, a vida passa. Lá dentro, no escuro do quarto, apenas uma alma descansa esperando - quem sabe você destrancar as janelas. RICARDO MONCORVO TONE 146
Rogerio Luz Rogerio Luz (Rio de Janeiro, 1936), professor universitário aposentado da UFRJ, é poeta, artista plástico e ensaísta, com artigos e livros publicados na área de crítica e teoria da arte. Menção honrosa - Prêmio Casa de Rui Barbosa – com ensaio sobre Cornelio Penna, 2005. Publicou as seguintes coletâneas de poemas: Diverso entre contrários. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004; Correio Sentimental. São Paulo: Giz Editorial, 2006; Escritas.(Primeiro prêmio de poesia do Concurso Literário da UFG). Goiânia: Editora UFG, 2011; As Palavras. São Paulo: Scortecci Editora, 2013; Notícias do Tempo Presente. São Paulo: AllPrint Editora, 2014;Os Nomes (Prêmio de Poesia do Governo do Estado de Minas Gerais) Rio de Janeiro: Editora Circuito, 2014; Os Óleos Essenciais. Marabá: Literacidade, 2016. E um livro de contos: Aeroplano. Belém: Editora Folheando, 2020 (Prêmio Uirapuru). rogerluz36@yahoo.com.br
amor de perdição
concordo: a vida é sonho entrançado a pesadelos – a trança de teus cabelos
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Rosalina LP Fialho O Canto da Sereia (Rosalina LP Fialho) Quando o oceano suavemente valseia, Ouço o canto hipnótico da sereia. Seduzindo o desavisado navegador Levando pro fundo do mar o seu amor. Fazendo - lhe enamorar, Com seu canto ao luar. Enfeitiçado pelo canto da sereia, E o amor em seu peito incendeia. O marinheiro por ela se apaixonou, E no mar ele se adentrou. Sem saber mergulhar, Com a sereia foi se encontrar. Com você a me conduzir, Deixei seu canto me seduzir. Pelos oceanos sem fim, Mas quero seu amor só pra mim. E esta sedução me encanta, Como a poesia que acalanta O meu pobre versejar, Que lindo é este cirandar.
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Rosangela Mariano
Rosangela Mariano é formada em Letras (Português/Literaturas) na Unisinos - RS. Pela Editora Litteris, selo Quártica, RJ, publica o primeiro livro infantil A rosa que se transformou em estrela (2005). Em anos seguintes, os livros infantis O peixinho Pirulim, Sapatinhos Azuis, O Lencinho são editados pela Litteris Editora. No ano de 2015, lança o livro de poesias Dia a Dia se Faz Poesia, por essa mesma Editora (RJ). Faz parte do site Artistas Gaúchos. E-mail: marihanescritora@gmail.com
Vi anjos no jardim Rosangela Mariano
Vi anjos no jardim enquanto, lá no alto, as montanhas, riachos e a lua choravam cristais e águas...
Vi anjos no jardim enquanto, bem distante, cruzavam-se estradas 149
e lagos... em recortes de dor e nublavam-se os olhos do amor...
Vi anjos no jardim enquanto, em lutas de espadas e rosas, sonhos azuis transcendiam quintais e muros... e floresciam singelos jasmins...
Vi anjos no jardim enquanto a esperança plantava sementes... e margaridas e lírios encharcavam a Terra abençoando todos nós!
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Sigridi Borges Professora de Matemática e escritora, nascida em São Paulo. Iniciou na escrita em 2013 quando descobriu que as letras eram mais que simples sementes plantadas nas folhas de papel: eram um sentimento. Autora do livro infantil “Algarismos em Sonetos”, (Scortecci – 2016), participa de diversas antologias e revistas literárias no Brasil, na Argentina e em Portugal. Diagramadora e uma das produtoras da Revista SerEsta, literária, on-line e gratuita. Casada, duas filhas, ama orquídeas, cinema, teatro e viajar com a família. Coleciona dadinhos.
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Sirineu Bezerra de Oliveira
Sirineu Bezerra de Oliveira um jovem Cearense da cidade de Sobral estudante de Filosofia que se aventura no mundo da Poesia.
Sociedade Me vejo em um labirinto social Repleto de incertezas Banhado por inúmeras desigualdades. O futuro passou a ser previsto Como tempos nebulosos. É impossível fugir dessa realidade A canibalização tornou se inevitável. O fim agonizante nos espera.
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Sonia Regina Rocha Rodrigues Sonia Regina Rocha Rodrigues é escritora e médica. É autora dos livros de contos "Dias de Verão", (1998), É suave a noite (2014), Coisas de médicos, poetas, doidos e afins (2014) e um de programação neurolinguística "O Que Você Diz a Seu Filho? – (1999) http://soniareginarocharodrigues.blogspot.com.br/ https://www.facebook.com/soniareginarocharodrigues/?ref=bookmarks
Horas intermináveis Sonia Regina Rocha Rodrigues Ah, musas, usem minha voz clamem e profetizem as esperanças e agonias dos simples mortais. No início deste inédito confinamento domiciliar aproximei-me da janela. Surpreso, vi o jardim abrindo-se diante de mim. Inclinei-me em direção à luz disposto a fazer fotossíntese ou mesmo criar raízes caso isso fosse exigido de mim. Essa desgraça nos acometeu no início da Primavera que se adornava com flores, perfumes e cores. Esse jardim floresce todos os anos? Vi também aranhas, besouros e abelhas. Será que eles estiveram sempre por ali? Os dias foram passando, passarinhos estranhos foram se achegando. Eu observo como eles escolhem seus nichos harmonizando-se uns com os outros. Cada espécie tem seu arbusto favorito. 153
Catam frutas e insetos em horários específicos. Veio a chuva e se foi. Ventos veio e se foi sem afastar as nuvens que flutuam acima de nós.
Entediado, eu tentei, bem que tentei desenhos aquarelas, rabiscos desastrados tão eloquentes em certos detalhes ausentes. Como se governado por um jardineiro invisível a natureza muda constantemente. diante de meus novos olhos. Preencho o vazio de minha alma Contemplando esse maltratado jardim.
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Valdeci Santana
Olá. Sou Valdeci Santana, escritor da cidade de Batatais, no interior de São Paulo. Autor dos livros: AS PALAVRA E O HOMEM DE BIGODE QUADRADO, um romance que fala da bela história de amizade entre dois garotinhos alemães, durante a segunda guerra mundial. Narra os passos do alto escalão nazista, assim como a tragédia imposta ao povo judeu. DIA VERMELHO. Romance que fala sobre a vida das mulheres no Afeganistão, passando pelas invasões da Rússia e Talibã. O cotidiano revirado de maneira bem direta. A PRIMA ROSA. Romance que se passa em Salvador no século XIX. O REI DA GRÉCIA. Um livro que conta a história da inclusão negra no cenário politico do pós-abolição de maneira jamais contada. Definitivamente recomendado a todo brasileiro.
Valdeci Santana O ARTISTA E O LOUCO Dois personagens. Duas vidas que talvez nem se entrelaçassem, mas, embora eu não tenha a menor pretensão de trazer o fim destas laudas cá para o inicio, por certo o leitor haverá de compreender bem a analogia que proponho. Os feitos destas duas figuras certamente jamais se apagarão com o tempo, pois estão eternizados na memória mundial. Os chamarei pela singela alcunha de “artista” e o “louco”. Já antecipo minha defesa, diante do tribunal dos críticos, que é compreensível encontrarmos mais artista no louco ou vice-versa, ou não, fica a entendimento de quem por ventura ler estas rasuras. O artista nasceu num pequeno vilarejo. Um dos seis filhos de um alfandegário que lhe propunha rígida disciplina. Era criança extrovertida, 155
bastante asseada para os costumes da época. Exímio apreciador das artes. Recebeu aulas de canto e até se apresentou com o coral de sua igreja. Nesta época cogitou se tornar padre. Um típico “bom garoto”. Já o louco era uma criança atarracada, um dos sete filhos de um alcoólatra falido, que o vicio levou precocemente ao túmulo. Era completamente irritadiço, esquecido e sem qualquer refinamento. Foi a contra vontade que entrou para as aulas de musica. Um jovem de temperamento difícil que frequentemente se desentendia com o pai. Um típico “garoto problema”. O artista era um menino pródigo que sonhava ingressar na escola de Belas Artes de seu país, aplicando em sua mocidade, todas as suas economias em tal sonho. Chegou a vender aquarelas em pontos turísticos, na tentativa de financiar o sonho de ser um renomado pintor. O que foi em vão, pois, foi rejeitado. Foi quando se alistou de maneira voluntária no exercito, para servir como mensageiro em frente de batalhas, sendo condecorado por bravura, chegando até a receber a Cruz de Ferro, como uma merecida homenagem. O louco era estabanado, aéreo e com boa aptidão para destruir tudo que tocava. Era um solteirão que dormia em lugares bagunçados e sujos, mal se banhava e possuía um hábito nojento de cuspir a todo o momento e em todo lugar. Assim como o pai, possuía invejável apetite etílico e sua cabeleira estava sempre desgrenhada. Já o artista, era avesso às bebidas e cigarros. Também se tornara vegetariano. Era apaixonado pela sétima arte, sobretudo o filme Branca de Neve e os Sete Anões. Amante dos animais e de leitor apaixonado escrevera um livro, que mais tarde seria um Best Seller. Seus cabelos andavam sempre impecavelmente bem penteados. Na primeira apresentação relevante ao publico, o trabalho do louco foi tido propriamente como uma maluquice. Embora altamente impactante, alguns reconheciam. Mas, no geral, assustador. Quanto ao artista, levou o publico ao delírio na primeira vez que lhe falou efetivamente. Seus discursos falavam de um futuro mágico. O louco, obviamente, não era compreendido e em depressão tentou suicídio. No entanto, cerca de vinte mil pessoas compareceram ao seu funeral, quando a pneumonia, associada à cirrose resolveu o levar. Já o artista, passou seus últimos instantes, entocado, como um rato e é bem certo que seu cadáver se espalhou entre tantos outros anônimos. O louco, paciente leitor, era ninguém menos que Ludwig van Beethoven. Já o artista. Adolf Hitler.
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