Revista Ecos da Palavra

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Nestes últimos meses do ano escolhemos para a revista Ecos da Palavra, um tema inspirador de múltiplos sinônimos, “O tempo e a saudade são na verdade um relógio” Tempo, o ciclo, o momento, os meses, anos, minutos, séculos, a ocasião, o movimento dos ponteiros de um relógio. Com a saudade, a lembrança, a nostalgia, a melancolia, a magia, recordações como um feitiço presente em qualquer parte do universo. E inúmeros escritos/ as, poetas e poetisas, pintores da tela e da saudade, artistas responderam a este desafio e fizeram brilhar esta nossa revista. Neste número, Sigridi Borges novamente é nossa diagramadora. Boas leituras e muita inspiração entre a nostalgia e os relógios do tempo. Catarina Dinis Pinto Ecos da Palavra


ENTREVISTA COM CRISTIANE VENTRE PORCINI


Ecos da Palavra: Para começar fale um pouco sobre si? E o seu percurso de artista? Cristiane: Eu nasci em São Paulo, minha família é de origem italiana, meu avô era nascido na Itália. Eu era a caçula em casa.

Ecos da Palavra: Quando descobriu/desapontou o gosto e interesse pela pintura e escrita? Assim como a criar os seus próprios trabalhos? Cristiane: Comecei a desenhar bem cedo. Meu pai foi minha primeira inspiração, ele desenhava cowboys em seus cavalos. Fiz curso de desenho quando eu ainda era adolescente. Cursei Pedagogia e me dediquei ao magistério por mais de uma década. Em 2019 e 2021, participei de exposições coletivas junto à Associação Paulista de Belas Artes e ganhei Menção Honrosa com as telas “As Bailarinas” e “Casal dançando Valsa”. Fiz aulas com o artista plástico William Pereira. E em 2021, em julho e em outubro, minhas pinturas foram publicadas na revista online Innombrable, poesia e arte (México), Litera Livre de Literatura (Brasil) e a Revista Cristã Heart Flesh Literature Journal edição de novembro de 2021(EUA). .


Ecos da Palavra: A literatura e a pintura são como uma forma de ver o mundo ou o imaginário? Cristiane: Nas minhas pinturas retrato a cultura popular, o folclore e as danças típicas. Pintei, por exemplo, a festa do boi Bumbá, que acontece todos os anos no município de Parintins, no interior do Estado do Amazonas. E, na literatura, escrevo sobre minhas memórias, sobre a arte e, recentemente, me aventurei a escrever e a pintar sobre um tema histórico - o Bicentenário da Independência do Brasil.

Ecos da Palavra: Quando escreve ou pinta pensa no leitor/a? E influenciam o seu trabalho? Cristiane: Sim, eu penso no leitor, e busco sempre fazer o meu melhor para levar um trabalho que possa agradar, acrescentar algo de bom às pessoas.


Ecos da Palavra: Tem alguns artistas de preferência? Qual o que a marcou mais e por quê? Cristiane: Gosto dos pintores Degas e suas incríveis bailarinas, aprecio Monet e acho maravilhosos os trabalhos dos artistas brasileiros Romero Brito e Eduardo Kobra. É fantástico o trabalho do muralista Kobra. E também admiro o trabalho do artista William Pereira, por seu talento e impecável técnica empregada em suas telas. Na literatura, fiquei encantada quando li Dom Casmurro de Machado de Assis e o Crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz eu era bem menina quando fiz a leitura desses livros. Ecos da Palavra: Além da escrita e da pintura, tem outros interesses? Cristiane: Gosto muito de música. Ouço as músicas de Elton John, do conjunto ABBA, do cantor Paul Anka, e dos Beatles. E os cantores brasileiros Benito di Paula, Roberto Carlos, Caetano Veloso, Chico Buarque e Raul Seixas. E sou fã número 1 de Zizi Possi, Maria Bethânia, Alcione, além da saudosa Clara Nunes - tínhamos um LP na casa dos meus pais e tocávamos muito Clara Nunes. Também adoro músicas de orquestra e piano. Tenho um CD do pianista João Carlos Martins. E também não posso deixar de citar o saudoso Roberto Leal - que levou com tanta alegria a música portuguesa aos brasileiros.


Ecos da Palavra: Que projetos tem a curto prazo? Cristiane: Participo neste final de ano da exposição coletiva Miniarte organizada pela artista Clara Pechansky e da exposição coletiva virtual promovida pela prefeitura de Taubaté - SP.

Ecos da Palavra: Obrigada pela maravilhosa entrevista, permitindo que nos deixe conhecer um pouco mais sobre a artista Cristiane Ventre Porcini e agradecemos que deixe uma mensagem aos leitores/as da revista Ecos da Palavra. Cristiane: Agradeço à Revista Ecos da Palavra que tem dado espaço aos novos escritores e aos já experientes no campo da escrita. Espero que os leitores apreciem meu trabalho, que faço com muito carinho.


SELECIONADOS

Adriana Manduco

13

Alberto Arecchi

19

Alessandra Barcelar

24

Amália Morgado

25

Amelina Chaves

27

Ana Faísca Pinheiro

34

André Pereira dos Santos

39

Angelo Asson

40

Arthur Capelo

44

Augusto Filipe Gonçalves

48

Bernardo Rodrigues

49

Brenda Yasmim de Azevedo Ferreira

58

Caio Fraga

60

Camila Hardt

61

Camilla Agostini

76

Catarina de Oliveira

79

Cristiane Ventre Porcini

80

Daniela R. Giovani

85

Ediane Schettini

86


Elaene Suzete de Oliveira Pereira

87

Elizandra Sabino

88

Elton Sipp

89

Elymar Souza de Oliveira

101

Evelyn Roberta Gasparetto

104

F. Lestrabic

106

Felix Hilton

108

Fernando Manuel Bunga

117

Frida Risnic Rubin

118

Gabriel Lemos Rocha

126

Gabriely Kruger Dutra

127

Gedeane Costa

130

Gisela Peçanha

131

Gislene Oliveira

136

Hannah Carpeso

138

Hélio Guedes de Oliveira

139

Hevelyn Santos

141

Higor de Souza Mendes

143

Ingret de Sousa Sales

145

J.R.P. Lima

148


Jessica Silva

166

João Carlos Almeida

169

José Mateus Jacó Menezes

171

Juliana Moroni

173

Karine Dias Oliveira

178

Kelle Marinho

180

Kryssia Ettel Mendonça de Souza

185

Lara Machado

186

Liliana Pragana

187

Luana Silva Pereira

189

Lucas Souza

195

Luís Amorim

197

Luth Lemos

199

Marcela Rabelo

201

Marcelo Pedralina

202

Marcelo Vieira Graglia

203

Marcos Antonio Campos

205

Mardenia Maria

206

Margarida Correia

208

Maria Inês Casado de Oliveira Alcaniz

210


Marina Alexiou

214

Maroel Bispo

219

Michelle Gleyce da Silva Leite

220

Neide Oliveira

222

Patricia de Campos Occhiucci

224

Patrícia S. Muniz

226

Paulo Cezar Tórtora

227

Paulo Flores

228

Poliana Guerra

237

Rafael Rocha

240

Rafael Zanlorenzi

242

Ramon Carlos

245

Rita de Cássia Zuim Lavoyer

246

Robinson Silva Alves

248

Roque Aloisio Weschenfelder

250

Rosangela Mariano

251

Rosiane Maria Covaleski Iglesias

252

Rúben Marques

253

S3nsoria

254

Sandra Alves

260


Sandra Lee dos Santos Ribeiro

263

Sandra Ramos

272

Saul Cabral Gomes Júnior

274

Sergio Moreira

275

Silvana Carvalho

276

Sinval Farias

278

Sirlene Maria da Silva Ferreira

280

Tayza Azevedo

282

Thaís Thomaz Bovo

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Valéria Paz

285

Vera Barbosa

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Wagner Gomes

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Adriana Manduco é natural de Brasília-DF. É cristã, gestora em Administração, consultora financeira, perita grafotécnica e escritora romancista. Autora da trilogia: Como Num Piscar de Olhos. Autora da coletânea de contos: Eu, mulheres... Autora da crônica: Por que amo Brasília? Participante de várias antologias, publicações em revistas literárias, entre outros. Seu foco literário está no Romance de época voltado para ficção cristã. E-mail: adrianamanduco@yahoo.com.br https://www.facebook.com/adriana.manduco/

MARIANA CRIOULA Novembro, 1838 - Rio de Janeiro – Brasil A economia cafeeira desponta na região fluminense, Vale do Rio Paraíba. A mão de obra escrava corresponde a maioria da população da região. Grandes fazendas crescem e se multiplicam às custas do trabalho forçado de negros e negras, comprados no mercado de escravos, trazidos em navios negreiros sob condições totalmente desumanas. O crescimento financeiro deslumbra os grandes produtores de café que exigem cada vez mais de seus serviçais. Constantes e impiedosos castigos eram imputados aos serviçais, muitas vezes sem motivo algum. Grandes troncos, estrategicamente colocados no pátio das fazendas, serviam como mastro onde escravos eram amarrados e açoitados com um instrumento feito com tiras de couro, até quase a morte. O número de chicotadas era definido de acordo com o “delito” do homem ou mulher castigados. 13


Quando uma das mucamas cozinheiras errava o tempero da comida de seus senhores era castigada com bolo, uma espécie de palmatória de madeira, simplesmente com o objetivo de aleijar as mãos das escravas. Caso um escravo se rebelasse ou negligenciasse uma de suas tarefas no plantio do café, era colocado em seu pescoço um colar de metal com pontas salientes, que dificultavam o seu descanso durante a noite. Para o escravo fujão, ou que tentava roubar comida, era imposto o castigo da máscara de ferro que o impedia de se alimentar. Com isso, muitos morriam subnutridos. Em alguns casos, mesmo após os castigos, escravos eram colocados no vira-mundo: espécie de algemas de ferro que prendiam suas mãos e pés. Dia 05 de Novembro - Vila de Vassouras – Brasil Preocupados com as revoltas de Palmares, Haiti e Malês, os escravagistas tratavam seus escravos com muito mais rigor. Nas fazendas do capitão-mor, Manuel Francisco Xavier, não era diferente. No salão da casa grande, Francisca Xavier, sua esposa, conversa tranquila com Mariana Crioula, sua mucama. Mariana era considerada uma escrava dócil e 14


gentil, por isso, era admirada e protegida por sua senhora. No cafezal e sob um sol escaldante, negros fortes carregam sacas de café recém-colhidos dos inúmeros pés espalhados pela verde montanha. Da cozinha, um delicioso cheiro de broa de milho se espalha por todo o casarão. No galpão, Manuel Gongo, o escravo ferreiro, trabalha com outros seis escravos. Ao cair da tarde, a frágil calmaria é interrompida após um alto barulho de tiros vindos da senzala. Assustada, a senhora Francisca pergunta ao jardineiro: — O que houve? Esses barulhos foram tiros? Também temeroso o velho responde: — Sim, minha senhora! O capataz acaba de matar o escravo Camilo Sapateiro. — Mas, o que fez ele para merecer a morte? — Senhora, pelo que ouvi de um outro capataz, o escravo foi morto sem nenhum motivo aparente. Atenta, Mariana ouve o diálogo de sua senhora. A morte do pobre rapaz causou uma enorme revolta nos escravos da fazenda, crescendo o clima de ódio, sendo este o estopim para um grande levante. Por volta da meia-noite, um grupo de escravos, liderados por Manuel Congo, matam o capataz e arrombam as portas da senzala. Mucamas se juntam a eles, inclusive Mariana. 15


Antes do dia nascer a rebelião se espalhou pelas outras fazendas de Francisco Xavier: São Luís da Boa Vista, Cachoeira, Santa Tereza e Monte Alegre. Cerca de quatrocentos escravos, entre homens e mulheres, embrenharam-se na Serra da Estrela planejando a formação de um novo Quilombo. Manuel e Mariana logo tornam-se os líderes do levante e foram intitulados pelos outros escravos como rei e rainha. Mais que um casal, eles eram guerreiros natos. Juntos, lutavam pela liberdade! Quem poderia imaginar que uma escrava de aparência tão frágil e delicada fosse na verdade uma grande e visionária mulher?! Fixaram-se nas matas da Serra da Mantiqueira e iniciaram a montagem de um Quilombo. Com as ferramentas saqueadas das fazendas de Manuel Francisco Xavier, os escravos planejavam iniciar uma plantação para o sustento de todos. As armas serviriam para a proteção do Quilombo. Inconformados, os fazendeiros da região solicitaram à Guarda Nacional que partisse em busca dos fugitivos. Sob o comando de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, os soldados localizaram o grupo de escravos. Após a troca de tiros entre a Guarda Nacional e os rebelados, onde dois guardas morreram e outros dois caíram feridos, desencadeou um intenso massacre. 16


Todos os escravos recusavam a se entregarem, desobedecendo a ordem do comandante da Guarda. Cerca de vinte deles são mortos e outros tantos são alvejados por espingarda nas pernas para impedir a fuga. O restante dos escravos largou suas armas e saíram correndo, desesperados. Manuel e Mariana mantiveram-se firmes. Aos gritos, ela declarava: — Morrer sim… se entregar, jamais! Levados prisioneiros, somente dezesseis negros foram julgados: Manuel Congo, Pedro Dias, Vicente Moçambique, Antônio Magro, Justino Bengala, Belarmino, Miguel Crioulo, Canuto Moçambique, Afonso Angola, Adão Bengala, Mariana Crioula, Rita Crioula, Lourença Crioula, Joanna Mofumbe, Josefa Angola e Emília Conga. Mesmo após a tentativa de linchamento pela população, Mariana e todas as mulheres do grupo foram absolvidas, a pedido de sua dona, Francisca Xavier. Porém, como forma de castigo, ela foi obrigada a assistir a execução pública de seu companheiro, Manuel Congo, o único sentenciado a pena de morte em 04 de setembro de 1839. Manuel subiu ao cadafalso no Largo da Forca e foi enterrado como indigente. Outros sete homens receberam seiscentos e 17


cinquenta açoites e passaram três anos com um gonzo de ferro no pescoço. Entretanto, o Quilombo de Manoel Congo e Mariana Crioula era a evidência de que os escravos continuariam sua luta contra a escravidão. Mariana é lembrada por seu legado de garra e revolta contra a política de maus tratos, usada pelos Barões do Café. Somente em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, sendo o Brasil o último país do continente americano a abolir a escravidão. Com isso, cerca de setecentos mil escravos foram libertos de sua humilhante condição.

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Alberto Arecchi (1947) é um arquiteto italiano, mora na cidade de Pavia. Tem uma longa experiência em projetos de cooperação para o desenvolvimento em vários países africanos como especialista em tecnologias apropriadas para o planejamento de hábitat. Presidente da Associação Cultural Liutprand, edita estudos sobre a história local e as tradições, sem descurar as relações interculturais (site: https://www.liutprand.it). Escreve contos e poemas em italiano, português, espanhol e francês. alberto.arecchi@libero.it

REGRESSO A TOMBUCTU Em um pátio suburbano, uma cadeira por cima do morro. Estávamos fazendo o amor como num outro mundo. Teu peso sobre meu corpo, um anélito de paixão, deusa mandinga de um amor vivido no coração de uma noite. Você veio à minha cama, silenciosa como uma pantera, na escuridão sem lua iluminada por mil estrelas. Jovem negra flexuosa, no esplendor dos vinte anos orgulhosa da sua beleza e do seu corpo de mulher. Comprida foi a noite na brisa e no murmúrio da água 19


que doce fluía entre as palmeiras trazendo a vida aos jardins. Nos despertamos no calor dos raios dourados da alvorada, com o canto dos galos, unidos no nosso suor. Minha memória se confunde com a areia de mil praias, e o sabor de mil amores, de longa duração ou talvez apenas sonhados. Sangue da terra, sonhos das meninas ligam-me ao pó de terras distantes. Se jamais você quiser poderá chegar a Tombuctu, antiga cidade na costa do grande rio, com torres brancas e cúpulas douradas. Terra vermelha da África suspensa no vento, acima do mar, de matos e desertos. Terra vermelha como o sangue derramado que a areia seca absorve. Vidas perdidas, que não vão gerar outras vidas, porque foram absorvidas pelo nada de uma tragédia sem sentido. Os monstros insones da batalha nos olhavam das colinas. As crianças das bandas, armadas com metralhadoras, 20


tomaram de assalto as ruas da cidade. Vento de areia vermelha como sangue cega os olhos sufocando o hálito. No céu noturno não têm estrelas, um cheiro azedo reina nos lares. Três batidas na porta, alguém chamando. - Eles estão vindo! - Um grito assustador. Quebra o silêncio o rugido dos motores, gritos perturbados quebram as sombras. Homens ferozes com bandeiras negras vêm para tirar nossas vidas. Vamos voltar um dia para a cidade lendária. O ouro desvaneceu-se, mudo é o mercado, os muros brancos sentem o peso dos anos. Nas ondas do rio o reflexo das garças, silhuetas negras na última luz vermelha, imóveis, à espera da sua presa. Há um oásis no grande deserto que abriga aqueles que se rebelaram e não queriam mestre nenhum. O oásis é um grande jardim com datas, laranjas, romãs. Perfume de jasmim ao redor dos antigos túmulos. A água flui da rocha, congelada na luz ofuscante, entre os tufos das mimosas sensitivas, molhando uma mangueira. 21


Não vai ser fácil de andar até esse oásis, no coração do nada. Quantas caravanas foram perdidas! As areias estão cheias dos ossos daqueles que falharam. Prossiga sem hesitação, com as dunas no lado esquerdo. O curso do grande rio vai levar você para o porto entre os barcos que deslizam suavemente. As lagoas refletem o sol e o voo das garças. O corvo-marinho mostrar-lhe-á a direção. As mangas irão oferecer-lhe refrigério. A miragem no horizonte das cúpulas douradas de Tombuctu. A partir dos terraços brancos as mulheres olharão para ti, entre as pérgulas de jasmim. E depois de milhares de milhas, Depois da sede e do sol escaldante, encontrareis descanso na brisa da noite. O oásis vai-te acolher, enquanto o muezim chamar os fiéis à oração. Em Tombuctu também o rio um dia parou, cansado da sua corrida sem fim. Vento de areia, no sol nascente a partir do mato árido e seco. Seremos recebidos por amigos verdadeiros, como se tivéssemos um compromisso 22


por muito, muito tempo esperado. Vamos atualizar aquele ouro e fazer reviver as fontes derramando leite e mel e vamos plantar flores coloridas nos túmulos brancos. No horizonte, o sol de um novo dia perfura a escuridão que nos rodeia.

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Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, atua na área de Economia da Saúde. Publicou contos em revistas literárias do Brasil, Portugal, Argentina, Alemanha e Equador. Participou em 2019 como jurada do prêmio VIP de Literatura (Categoria Contos); colaborou na coletânea Mitos Modernos I, que recebeu o prêmio Le Blanc de Literatura e Arte Sequencial, como melhor antologia de 2018.

HELENA Meu encontro com Helena foi em um cinema de filmes clássicos. Não havia muita gente, assim, se deu ao luxo de escolher um bom lugar. Em uma das cenas românticas, levantei dissimuladamente o braço e pousei minha mão em seus ombros. Para minha surpresa, ela virou a cabeça e contemplou meu rosto. Sorriu e fechou os olhos lentamente. Assim morreu Helena, aos 81 anos, vendo sua película favorita pela enésima vez. Eu, um tanto comovida, peguei minha foice e parti para o próximo encontro.

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Amália Morgado é funcionária pública de ofício e poeta desde que aprendeu a escrever. Ama flores, as horas crepusculares e percorrer ruínas e fragmentos pelo mundo e dentro de si.

IMPALPÁVEL Será que existem fósseis imateriais? Decerto não. Ah, perguntas de horas mornas, nostálgicas... Mas o que será daquilo que agarro em ânsia Com os dedos trincados? Abro a mão como quem engole seco A esperança E nada tenho. (Talvez eu nunca o tenha possuído Por sequer um instante) As risadas largas, gosto tânico do café, Petit-four encerando de leve O céu da boca, Ou se desmanchando, entre as papilas Abertas e receptivas como flores. Vapores etílicos enlevam o olfato, Ambicionando a mente, elevando a voz E gargalhadas batem sem medo Como ondas na pedra, Levantando impetuosa espuma. Agora O mundo como era acabou E mesmo nosso parco legado cotidiano, Nada diz sobre o que realmente interessa. 25


Na caixa de papelão, deitada, Numa estante enferrujada, Há uma ficha onde pende um retrato. As traças comeram meus olhos, São agora vazados, dois buracos Sinistros, sem identidade. Minhas roupas sem mim não são nada. Eu era um suporte ao menos. Ao menos. São trapos moles, sem sustento, E cobrem o chão como cobras ressequidas. Os sapatos são pequenas caixinhas coloridas e Quem os levantar não saberá, jamais, Por onde passaram. Solos benditos e impuros não falam: Degradam. E não ouvem apelos De que devem resistir ao irresistível. Mentem, a cada hora passada, Suas formas originais. Estas se foram há tempos, Com suas testemunhas, Aqueles belos e estranhos Jazigos de carne, Deitados, como fetos frágeis, Sob as mantilhas finais De grossas camadas de pó E glórias desfeitas.

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A VELHA GAMELEIRA AMELINA CHAVES (Este é dedicado aos autênticos sertanejos Jackson Antunes e Téo Azevedo; Pelo trabalho de preservação das nossas raízes culturais.)

A velha árvore guardava lendas sobrenaturais. Causos fantasiados criados pela imaginação do Povo simples dos mais velhos moradores que envolvia a frondosa gameleira plantada no coração da promissora cidade que levava seu nome. Árvore parecia intocável pelo tempo; Morria no outono e brotava na primavera; momentos que mais parecia uma adolescente de vestido novo. Seu tronco grosso as vezes descascado. Não ofuscava sua graça. Nem tirava o verde forte de suas folhas e suas flores? Pequeninas; porém, enchia a praça de festa. Fazendo surgir milhares de abelhas em busca do néctar precioso. Assim a conheci, viçosa e cheia de vida, pois naquela época ainda existia o respeito pelas velhas árvores que passavam a ser consideradas patrimônio da comunidade. Quando também eu jovem estava pronta para viver a intensidade de um século em um só dia... Oh... Velha gameleira! Testemunha silenciosa do meu grande e proibido amor! Como me lembro de você, como parte de uma etapa mais importante de minha vida; quando vivia um amor cego que nasceu de uma forma tão imprevista. 27


Vale do Gurutuba... Quando faz calor é como o Saara; o vapor quente sobe da areia e o chão se torna um vulcão incandescente. Num desses dias em que o sol castigava o povo, saí para fazer compras no mercado; na época, um grande centro de compras. Sacos amontoados aos quatro cantos; numa fartura de dar inveja. Requeijão; rapadura dourada de dar água na boca. Maria adorava o rico farto ambiente. Quando voltava, sacola pesada, pés afundando na areia quente. Ao passar na praça, a sombra da velha árvore a chamava. Resolveu parar um pouco para descansar na sua sombra. Em certos momentos, ela imaginava que tudo é determinado pelo destino. Foi quando ela viu Júlio pela primeira vez. Ele apareceu na sua frente, saindo não se sabe de onde. Ao passar perto dela, perguntou: -Está cansada garota?? A palavra ‘garota” soou aos seus ouvidos como a canção mais bela já ouvida; sua voz era suave e, ao mesmo tempo, sensual. Ela respondeu, meio confusa: -É o calor que nos cansa... -Você mora perto? -Sim, bem perto. -É casada? -Sou.

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A força do rio, o calor do sol, a crença dos gurutubanos. Todo magnetismo, que emana deste povo queimado pelo sol, reunia-se ao olhar cálido do desconhecido. Ao fitá-lo, lembrou-se das palavras ditas pela velha e afamada benzedeira Zefa Papuda que morava nas bandas de baixo do rio Gurutuba. Ela dizia: - Veja, Maria, aquela Gameleira ali na praça? Ela é mal-assombrada. Debaixo dela, toda sexta-feira, as almas penadas “reunem pra mode conta suas diabruras”. Ela respondia com desdém: -Ora, isso é lenda. Não acredito. -Verdade, minha vó contava que já ouviu muitas vezes elas discutindo na calada da noite. Voltei-me ao presente; ao ouvir a voz do desconhecido. -Me desculpa se fui indiscreto. Você ficou pensativa de repente. -Não foi nada; apenas voltei ao passado. -Sabe de uma coisa? Gostaria de falar mais vezes como você. -Por que não? Toda manha passo por aqui; é só me esperar;.. Não sabia explicar o motivo de aceitar de imediato a proposta do desconhecido. Minha alma me dava a certeza de que ele me veria quantas vezes ele quisesse; desde o encontro dos nossos olhos, 29


senti-me presa por uma força estranha e misteriosa. -Maria, porque demorou tanto? Perguntou meu marido curioso. -Parei na praça para descansar. -Eu que viajo e você é quem fica cansada! -É o sol... - respondeu vagamente, pois seu pensamento estava longe. Bem fundo estava o desejo que formigava suas partes mais íntimas. -Vige santa, que homem mais bonito - falou entredentes enquanto lidava com as panelas. -Tá falando sozinha, Maria? O que você viu de tão bonito assim? -Foi um peixe no mercado. Uma beleza! O rio ainda é fonte de vida, Zé. Eu adoro o rio Gurutuba. Tenho medo de que ele seja destruído. Nasci aqui. Ele é parte de mim. -Também aprendi amar o rio. Suas enchentes o tornam vivo e poderoso, uma máquina gigante rasgando a terra. Ao longe, Maria ouviu o apito do trem na estação da ferrovia. Era esse que seu marido conduzia até a cidade de Monte Azul. O apito entrou no seu coração fazendo disparar sem trela, tocado pela corda mágica do desejo. -Zé, você viaja hoje à noite? -Ora, que pergunta besta! As pranchas já estão carregadas, só volto no final da semana, como sempre. 30


-Ah, gameleira-árvore... gameleira-cidade, como estão ligadas à sua vida. Testemunhas mudas dos mais belos momentos em nos quais realmente me despertei como mulher. Momentos em que meus seios rijos, empinados, buscava ansiosos as carícias de mãos ternas. E o rio? Presente com suas águas claras. Purificando nossos corpos. Quantas vezes, na calada da noite, mergulhamos nas suas águas trépidas, depois de rolarmos no colchão macio de suas areias, no mais intenso e louco amor... Hoje, muito tempo depois, retorno ao passado. Vejo que a tecnologia destruiu a simplicidade da natureza. Sinto que tudo está perdido na memória do tempo. Fico assustada ao recordar o estouvamento e a ousadia com que vivemos hoje, a ponto de perder os mais belos momentos. Encontros que se sucederam com a força do caudaloso rio Gurutuba. Tudo era tão simples. Assim que ficava sozinha e o silêncio tomava a noite, eu ficava atenta. Sabia, Júlio estava me esperando, meus ouvidos ligados aos sons que vinha da velha gameleira da praça. Na hora marcada, ouvia-se um assovio fino e longo. Então corria furtivamente e ganhava a praça e dois braços fortes e cálidos estavam lá à minha espera nas sombras da árvore. Era como se ela também abria seus braços para nos abrigar. Por quantas vezes, nos amamos perdidamente ali mesmo na praça. Em outras, descíamos para as areias 31


do rio que, carinhosamente, nos esperava como cúmplices. Enquanto a cidade dormia, nos sentíamos donos e senhores absolutos do rio das estrelas que nos olhavam do alto. Incrível!... Como o amor nasce e fenece implacavelmente. Assim foi. Júlio, que era viajante, fez uma viagem ao rio de nunca mais voltou. Jamais soube explicar o seu desaparecimento. Com certeza, não fugiu de mim, algo devia ter acontecido. Sofri muito , no princípio, mas o tempo foi acomodando as coisas. Foram caindo no esquecimento. Só as reminiscências permanecem vivas e guardadas como um tesouro precioso motivando a minha caminhada. E o tempo? Nada espera. Mudei-me para outra cidade. Anos depois, voltei para rever a antiga vila. Hoje, ao olhar seus recantos, fui tomada por uma imensa tristeza. Foi invadida pelo progresso, nem seu nome era o mesmo. E a velha gameleira (motivo de seu nome) não encontrei mais na antiga praça. Talvez a tenha confundido com outras árvores, que hoje eram muitas. Na minhas buscas, fui ao encontro do rio para aliviar o coração. Pensava em encontrá-lo Como deixei. Olhei tudo com grande surpresa. E a alma ferida, os olhos turvos pelas lágrimas, vi na minha frente o grande rio que não passava de um filete de água suja onde meia dúzia de lavadeiras tentavam, com dificuldade, lavar a roupa dos seus filhos. Uma 32


angústia terrível tomou meu coração. Caí de joelhos na areia quente e chorei de saudade e revolta ao ver tanta destruição. Queria ter o poder de, com minhas lágrimas, inundar o rio. Vê-lo correr novamente cheio de água cristalina como antes... -Água para as mulheres lavarem suas rendas brancas. -Água para os meninos mergulharem nas tardes quentes. -Água para encher os potes de barro das casas pobres. -Água para molhar as raízes das outras gameleiras para que cresçam frondosas e, nas noites escuras, continuem a reunir as almas penadas... -Água limpa para o povo, direito doado pelo Criador que nada pede em troca. Água, água para lavar a alma do pecado dos que buscam, na irrigação, meio de riquezas, sem se lembrarem de outros que tem na terra o único meio de sobrevivência... Cansada de olhar a natureza destruída, sai. Meus pés pesavam como chumbo, pois carregava nos ombros a imensa bagagem de sonhos perdidos e mais... O rio do meu coração e o tronco de uma velha gameleira. (Janaúba: numa noite de solidão-17 junho de 1949) 33


Ana Faísca Pinheiro, nasceu em 1985, em Almancil, Loulé. Casada, mãe de dois rapazes, licenciou-se em Educação Social; atualmente exerce funções de Diretora Técnica numa IPSS. Apaixonada pela leitura, descobriu o prazer da escrita com a participação no Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Permitiu-se soltar as suas palavras, participando na iniciativa “Escrita em Ação”, dinamizada por Analita Alves dos Santos e percebeu que é a escrever que se sente completa, feliz e realizada. Tem tentado a sua sorte com a participação noutros concursos literários, tendo também colaborado, como primeira experiência no mundo literário, numa coletânea de contos, enquanto autora de um conto, a ser lançada em breve. Também é uma das novas vozes que integra a revista literária PALAVRAR – Ler e Escrever é resistir, recentemente lançada para o mercado literário. Determinada em desbravar caminho no mundo da escrita e dos livros, tem como objetivo aliar a escrita à culinária, através da partilha de saberes e sabores, num blogue a ser lançado até ao fim do ano. Tem na mãe, filhos e marido, o maior suporte, força e foco para lutar pelos seus sonhos.

UMA VIDA SEM TI Desfio-me nas lembranças amarguradas do meu ser. Embalo-me com desespero na cadeira de baloiço, debruçada na varanda por nós concebida. Nós! O “nós” já não existe, e agora só sobrei eu. Olho em redor. Tudo à minha volta me traz de novo a ti. A casa de madeira que desenhamos, a piscina, o jardim, a pequena horta, o nosso paraíso perdido, jamais será o mesmo sem ti. Amanhã cumprem-se cinco anos da tua partida. Cinco anos que ainda me parecem cinco minutos. Respiro fundo, tão fundo que a dor me invade o peito, corrói-me a alma e me esmaga de solidão. Lágrimas afloram-me aos olhos, enquanto sinto o desespero invadir-me. Não passa um dia que não pense em ti. Não passa um dia que não questione a tua partida precoce. Dizem que tudo acontece por um propósito, mas não há 34


propósito que me aquiete o coração e sossegue a alma. Acordo cedo. Na verdade, mal dormi, agitada num mar de lençóis frios que me agoniam as entranhas. Tomo um ducha rápido, visto o vestido branco esvoaçante, e saio. Pelo caminho passo no mercado da vila e compro flores. Camélias, brancas, as tuas preferidas. Ao avistar as grandes portadas do cemitério, apertas de par em par, a angústia invade-me. É-me doloroso verbalizar o quanto sofrimento encerro em mim, o quão massacrante é visitar-te neste sítio, onde tudo se finda, onde tudo se resume a pó. Percorro a calçada reluzente em silêncio. Limpo a face com a mão, segurando as lágrimas que teimam em cair. Agacho-me junto à campa e afago o teu rosto imortalizado em pedra. O teu sorriso contagiante aquece-me o coração. Distribuo as camélias pelas duas jarras bojudas, encho-as com água e componho os arranjos. Abandono-me ao choro descontrolado. Soluçante, deixo-me escorregar e quedo-me, deitada, no mármore frio. Relembro com saudade as juras de amor eterno, “até sermos velhinhos”, os sonhos, os projetos, a família que íamos construir. Agarro com fúria um pedaço de terra frouxa e atiro-o violentamente contra a tua fotografia, que continua a sorrir-me em grande plano. 35


A raiva me consome e a dor, profunda e dilacerante, rasga-me a pele. Em fragmentos, recebo na memória imagens daquele dia. Recordo como o médico, condescendente, me disse, “lamento, fizemos tudo o que podíamos, mas não foi possível salvar o seu marido”. Revivo as sessões em tribunal, intermináveis, o julgamento, o olhar nos olhos do homem que te roubou da minha existência; duras lembranças que permanecem no coração. “O tempo tudo cura”, “o tempo ameniza a dor”, “só a saudade fica”, frases feitas que me repetem até à exaustão. Cinco anos depois e a única certeza que tenho é de que que o relógio não pára. Cada segundo é uma eternidade, cada minuto uma desolação, cada hora um martírio. Sinto olhares cravados na nuca. Levanto a cabeça, passo a mão nos cabelos desgrenhados e reparo numa velhota, vestida de negro, olhando-me com espanto. Aproxima-se, afaga-me o rosto e estende-me uma mão trémula, carcomida pelo tempo. Sem oferecer resistência, sigo-a sem pestanejar. Para onde me leva? O que me quer?, são perguntas cujas respostas não me preocupam. Experiencio uma paz tranquilizante. Encontro-me num jardim verdejante onde, ao fundo, uma fonte gorgoleja, apaziguadora. Continuo guiada pela mão da velha senhora. Atravessamos o parque frondoso, até chegar a um lago. Indica-me, com 36


o olhar, um jovem, de costas, atirando seixos para a água. Enverga calças de ganga e um polo branco. Há algo na sua fisionomia que me intriga. Olho para o lado e a senhora desapareceu. Só resto eu e o homem misterioso. Um arrepio percorreme o corpo. Frio? Medo? Toda eu tremelico enquanto caminho para ti. Num repente, voltas-te e ficamos frente a frente. A tua rápida intervenção não permite que me estatele no chão, roxa de espanto e comoção. Renato!? — num misto de choro e agitação — Como!? Como é possível estares aqui, ao pé de mim!? Sinto a respiração ofegante quando se inclina para me beijar. Há minha volta tudo permanece estático, quase irreal. Será que morri e reencontrei o Renato? Não, não é possível. Não me recordo como aconteceu, como vim aqui parar. Toda eu me desfaço numa ânsia híbrida, plena de felicidade e estupefação. Contigo passo as horas mais felizes dos meus dias. Contemplamos o pôr-do-sol, dançamos abraçados, amamo-nos debaixo de um choupal, enquanto trocamos promessas de amor. — Meu amor, — sussurras-me ao ouvido— deixa-te guiar pelo destino. Liberta-te da tristeza a que te votaste. Recebe com gratidão e serenidade, não só o que a vida te dá, como também o que te tira. — Acaricias-me a face, limpando as lágrimas silenciosas. — Não esperes as respostas todas no imediato. Aos poucos vais conseguir perceber, e aceitar, a tua vida 37


sem mim. E um dia, quando formos velhinhos, reunirnos-emos de novo. Agora vai, segue o teu rumo. Eu estou em paz, e continuo a olhar por ti. Quando te sentires só, triste e desesperançada, lembra-te que estás sempre envolta no meu abraço… — Menina, menina, sente-se bem? — diz uma voz que não identifico prontamente, ao mesmo tempo que me toca, ao de leve, no ombro. Desperto estremunhada, já lusco-fusco, tremelicante, e reconheço o Sr. Fernando, o coveiro daquela área do cemitério. Demoro a abarcar os últimos acontecimentos. A cabeça num torvelinho não ajuda a raciocinar com clareza. O olhar errante, quedase de novo no sorriso radioso do Renato. Logo as lágrimas redobram, à recordação do passado que não volta, embora o teu sorriso tranquilo me pacifique o coração. Carrego no peito a saudade terrena, amparada no desejo do reencontro divino, no tempo que o relógio assim aprouver…

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Primavera. 15 de Maio de 1991. Nasceu André Pereira dos Santos. Julga ele que numa quarta-feira. Vivendo in media res desde então, descobriu o fascínio pelas artes ainda cedo, encontrando cais pela poesia e teatro. Começou a fazer teatro amador em 2009 com o Teatro Contra Senso. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e fez o curso de formação de atores no Evoé - Escola de Atores. Escrevendo poesia desde sempre, encontrou agora na prosa e no conto um refúgio para os tempos atuais. Email – dre.p.santos@gmail.com Facebook - https://www.facebook.com/andre.p.santos24/ Instagram - https://www.instagram.com/dre.p.santos

DEMORAS De relance, numa chance única entre as infinitas, reparo nas horas. Demoras. Tens demorado. Ou então é o tempo que secretamente se tem parado. Que jocosamente se tem aproveitado das minhas distrações perenes, voláteis, fúteis. Malabarismos de projeções inúteis que só encontram significância comparadas com esta ânsia absurda de alguma coisa que acuda o vazio. Uma brisa, um arrepio, uma lembrança. Não pedi nada às horas, muito menos uma ínfima ideia de esperança. Esta íntima correia que me cansa, e por isso me vence. Sempre. O céu e a terra são os mesmos de sempre, mesmo que as nuvens me hipnotizem com a diferença das suas formas. Em vão. Juntos, fomos todas as estações, colhemos da terra os raios solares veranis, encontrámos a eloquência do dialeto das chuvas e o significado do hálito evaporado dos dias gélidos. As folhas de Outono, as únicas que sabiam o nosso caminho. Agora, o céu e a terra não têm variantes suficientes, não têm máscaras suficientes, para não terem o rosto da saudade. De relance, numa chance única entre os infinitos, reparo nas horas. Demoras. Sei que demorarás, pelas estações do perpétuo. A saudade gere os ponteiros de uma hora que não passa. O relógio atrasa-se, troça da minha desgraça enquanto aguardo, enquanto lamento, pela hora tardia do esquecimento.

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Natural de São Paulo, Angelo Asson é escritor e designer. Por navegar nas duas áreas, produz seus livros de maneira independente, participando de todas as etapas, desde o projeto gráfico até a impressão e também a publicação em formato digital. Seu mais recente lançamento é o livro “Transbordamento – A palavra como companheira”, que reune seus escritos de 2020. São poesias e crônicas que refletem o período de isolamento a que fomos submetidos devido à pandemia. A produção é artesanal e tem a intenção de ser uma metáfora dos dias de confinamento. Angelo também edita a revista “13 dicas de escrita criativa”, direcionada para os novos escritores, com a finalidade de ajudá-los a estruturar uma narrativa e a criar seus personagens, além de tratar de outros temas importantes. Observador atento de pessoas, escreveu o livro de poesias “Coisas da vida… minha”, que aborda os sentimentos e as emoções humanas. Apaixonado pela Literatura de Cordel, criou os “Folhetos Paulistas”, uma série que traz cordéis, poesias, contos e crônicas, nos mesmos formatos dos livretos de origem portuguesa. Outra obra é a revista “Divagando em Vagão – Crônicas sobre Trilhos”, que mostra através das suas observações, o cotidiano do Metrô, em crônicas leves e divertidas. autorasson@gmail.com @angeloasson (instagram)

O TEMPO (RATOS DE GAIOLA) Próxima estação, Vida! Da escuridão à luz; do conforto à insegurança; da paz ao medo; do aconchego à porrada! Um mundo imenso e intenso se acresce ao nosso pequenino casulo materno. Um lugar barulhento, multicolorido, cheio de gente dos mais variados estilos e comportamentos, vozes, aromas, novidades e riscos. Por outro lado, um mundo repleto de possibilidades e oportunidades. Antes mesmo de lançarmos o nosso choro desesperado, nosso cronômetro biológico já tinha disparado a correr com precisão, num ritmo perfeito, tal qual um relógio suíço. Nosso primeiro presente: o

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tempo. Tempo para crescer, para aprender, para experienciar, para evoluir, para amar... Ele irá se somar ao respirar, ao pulsar cardíaco e a tantas outras coisas que não nos damos conta mas que tornam possível o milagre da vida. E vamos nos juntar a outras vidas, milhões, bilhões delas, pulsando num tiquetaquear frenético. Finalmente desembarcamos. E agora, qual o caminho a seguir? É preciso perguntar, sentir ou deixar que o destino nos leve? Uma coisa é certa: se você permitir que a vida te guie, ela vai te arrastar para onde ELA quiser, e pode ser um lugar onde você não se sinta confortável. Sinal que pegou o trem errado. Tempo perdido ou parte do aprendizado? E que mania nós temos de checar as horas. Muitas vezes o fazemos por mero hábito e, imediatamente, voltamos os olhos ao relógio pois já não lembramos que horas eram. Mera mania de olhar as horas, com pressa, com prazo, com preocupação de seres inseridos num sistema social onde tempo é dinheiro e você... ora, você, apenas mais um a olhar as horas – e a vida – passando e acumulando saudades.

*** Certa noite, insônia, acordei. 41


Meu primeiro movimento: puxar o celular para perto de mim e apertar o botão para que a luz acordasse também os números em meio à escuridão. Três e tantas da manhã, quase quatro. Aproveitei para escrever sobre o tempo, e foi justamente escrevendo este texto que notei que não havia memorizado as horas que acabara de ver. Isso se repete quando praticamos esportes, no trabalho, na rua... Cronometragens, prazos, pressa, pressa, pressa. O velho hábito de nos preocuparmos com o tempo. Para quem ainda não se deu conta, não é o tempo que passa, somos nós que passamos por ele. Ele sempre existiu. Somos meros passageiros desse trem chamado “Eternidade”. No fundo, é ele quem nos observa. Somos nós os ponteiros apressados, correndo, correndo, repetindo sempre as mesmas voltas num ritmo eterno, infinito, feito ratos numa roda de gaiola, correndo atrás de tempo. Ele não corre, permanece cinicamente estático, eterno observador, como que sentado num banco da estação a observar os passageiros que desaparecem na mesma velocidade em que surgem, todos a olhar as horas sem se darem conta de que não passa de um vício. E nunca é o suficiente. Dependentes, queremos sempre mais. Dez minutinhos para poder terminar aquele sonho agradável, tempo para terminar o serviço, para estudar, para se exercitar, para ficar junto à pessoa amada, para não chegar atrasado... 42


De repente, e contra a nossa vontade, a gente percebe que o nosso relógio parou. Na verdade, ele segue o seu caminhar infinito em outros relógios e em sua eternidade. Agora podemos nos sentar com calma, sem pressa, sem tarefas inadiáveis e divagar sobre o tempo, o tempo que passamos nessa estação chamada Vida. Até que o próximo trem nos abra suas portas como um convite para uma nova viagem. Uma nova aventura, com novas cores, pessoas, vozes, aromas, novidades e riscos. Um mundo bem diferente daquele no qual tivemos a oportunidade de desfrutar – bem ou mal – das horas que nos cabiam.

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Arthur Capelo é pseudónimo de Bernardo Sancho (2002), nascido em São Paulo e estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Não tem muito a constar na biografia porque da vida sabe pouco e de biografias, um pouco menos. Tal facto prova-se com o estranhamento causado por estar a escrever sobre si na terceira pessoa sem saber ao certo a razão por que o faz.

SOPRA-ME AS CINZAS DUM CIGARRO SEM LUME Então disseste que ias dormir. Que a noite era escura e que as luzes te assustavam quando as vias assim, de relance, entre um sonho e outro. Disseste que às vezes as ouvias, que diziam coisas imperceptíveis e bonitas, frases que acabavam em elipses e fugiam para além dos vales, mas que te apertavam o peito e te tiravam o sono. Se te perguntavam, despistavas, tinhas dificuldade em adormecer e só. Lembro-me da brisa noturna a bagunçar-te os cabelos. Louros, à luz da lua confundiam-se em imagens redondas e libertavam-te as orelhas, que espreitavam para fora e apreciavam a paisagem. Eras belo, nessas noites, quando os teus contornos frágeis eram suaves extensões da informalidade dos campos. A relva por baixo de ti acomodava-se como se fosses um travesseiro macio, e por vezes arrancavas um ramo de flor maior, comia-lhe as pétalas e fumava-lhe o caule a fazer dele um cigarro fosco. E na fumaça desenhavas a tua vida em versos. Na infância, perdeste um irmão, mas não sabes se o engoliste no ventre ou se foi ele que se perdeu por aí. Há vezes em que ele nasce 44


morto, outras em que quem morre és tu. Gostas muito quando ele faz aniversários e lhe dás, orgulhoso, um presente valioso e ele chora e berra porque queria o carrinho da montra. Quando ele atinge a maioridade, levas os seus amigos a um bar tranquilo e próximo de casa, onde lhe ensinas a praticar a dispersão. — É assim — dizes-lhe — que se foge, mano. E também o repreendes, quando ele foge demais: alertas-lhe o perigo do corpo e das suas limitações, que começam nas suas fronteiras: — Quando sentires o corpo além dele, senta-te, goza-o. O volante pode esperar, o bar não se irá perder. Ris-te tremendamente quando ele te liga, no fim duma tarde qualquer, a dizer que vê coisas, que sente cubos nos braços e formigares na testa e que nunca mais irá fumar na vida. Mas ele acalma-se, então, e diz-te que a ama, que se sente frágil, sim, mas que quando ela se tem deitada daquela maneira e o vento brinca a ondular-lhe a saia o seu peito aquece. Tu ouves-lhe um sorriso, e ele de repente versa pela primeira vez: acho que o crepúsculo me morre nos olhos. Dizes-lhe que então vá descobrir campânulas nos seus lábios, e ele vai. Quando se puser o sol, enfim, e a tua noite pouco a pouco começar a se espalhar pela tela do céu, dir-te-á que não somente encontrou flores, mas também, em si mesmo, aromas de alecrim e orvalhos iridescentes. 45


Depois, alegras-te a vê-lo na formatura. Tem ele o traje vestido e com as mãos balança-o e perde-o nos dos amigos, ri-se tanto, tanto, e tem uns brilhos nos olhos que já pensas que foste tu quem lhes deste. Mais à noite, no jantar, dizes à sua namorada, quando ele vai à casa de banho, as suas histórias de infância, aquela vez em que a bola entrou pela janela e foi direto à tarte, aquela em que o susto lhe molhou as calças num cinema cheio, a fotografia que tens dele com as fantasias e as máscaras. Mas há vezes em que quem morre és tu. Vês-lhe os pneus furados, o estrago à distância. Confortas-te na certeza de que estará tudo bem, que hoje em dia já ninguém morre em acidentes de carro, consolas-te no afago dos teus avisos, dos teus alarmes e reclamas ao céu a justiça quando tens nos braços o filho que por algum milagre ainda respira. És tu quem me contas, e a fumaça vai subindo até se perder nas alturas, misturando-se com as nuvens. Os patos riscam a superfície luminosa do riacho, a plenitude de uns olhos azuis são as margens de um calor castanho; a lágrima escorre sob o junco à beira. Disseste-o, então, e eu olhava-te, ali, com os pulsos à mostra e o relógio a dormir. Fechaste os olhos e deixaste que o raminho adormecesse em teu peito, entre os botões distantes da camisa. Sonhaste outra vez com as luzes. O teu rosto contorceu-se e a raiva 46


fechou-te lenta e violentamente a mão. Fizeste na relva os teus cabelos, e ela, então, pareceu fazer-se mais dura e imitou o teu corpo, subitamente enrijecido, os teus ouvidos já cobertos e seguros. Se tu olhasses, no fundo enegrecido distinguirias a dor. Perceber-te-ias para além dos teus contornos, como eu te venho tentando dizer — e dói-me que me tenhas esquecido em ti. Mas estou cansado, mano, e tu estás também. Hoje vou deixar-te a lágrima, que já não a aguento mais nos olhos, portanto está atento ao vento quando ele vier a rapar a colina. Se vieres amanhã, dá-me outra vez o relógio, mas desta vez ensina-me a ler-lhe as horas nos ponteiros e diz-me que os seus rodares não desembaçam as memórias, por mais que tentemos e queiramos muito; que o relógio continua a andar, que quem para somos nós. Já lhe mordeste a flor, e o campo espera-te. Se ficares, descansa, homem, fecha com sossego os olhos. Eu apago a luz quando sair.

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Augusto Filipe Gonçalves. Natural e residente em Penafiel. Jurista de profissão e escritor por vocação.. Autor do Livro: Sofia, A Visão Poética Filosófica. Co-autor da Revista Web Ecos da Palavra, Participa das antologias: Liberdade, Entre o Sono e o Sonho, Três Quartos de Um Amor, Quarentena, Enquanto Espero, Inventário dos Poetas e Alma de Mar.

O TEMPO E A SAUDADE SÃO NA VERDADE UM RELÓGIO O tempo é algo indefinido, Por isso tão divertido, Por isso tão preenchido,

Com tanto movimento, Com tanto sentimento, Que quando dermos por tal, Foi especial, As conquistas, vitórias e glórias,

Já são pertença do passado, Que recordamos com agrado. Nessa altura, Resta a doçura, A ternura da saudade,

Todavia, podemos ter sempre a alegria, Devemos ter a ousadia, De transformar doce saudade, Em ambiciosa realidade. 48


FIM ALHEIO – Bernardo Rodrigues Foi no meu aniversário de 12 anos que meu pai recebera a ligação do hospital. Não tinha aula nesse dia, acordei cedo toda elétrica para celebrar essa data, acreditando que ele estaria ali, esperando para me presentear. Eu já sabia o que minha mãe tinha comprado para mim; eles haviam feito o divórcio há 2 anos e eu fiquei morando com ela. Apesar de que adorava viver com minha mãe, encontrar e conviver, mesmo que fosse por poucas horas, ou minutos, com meu pai, havia aí uma sensação de alegria que não entendia na época. Meus sentimentos eram apontados da mesma forma para ambos, mas o jeito que ele me alegrava era diferente; produzia em mim essa vontade absurda de continuar vivendo, como se a morte estaria longe, inalcançável e intocável, que eu riria da ideia de que algum dia ela viria e alguém ou todos nós morreríamos. Mamãe era toda cuidadosa, observava se eu não estava comendo muito depressa, tornava-se infantil para brincar comigo durante pouco tempo, com receio de que isso afetasse a minha adolescência, e me tratava, muitas vezes, como já sendo “grandinha”; papai, por sua vez, tinha uma rebeldia educacional brilhante: transformava tudo em diversão, pegava a sopa que mamãe fazia e segurava a colher longe de mim até que eu respondesse algumas de suas perguntas brincalhonas; e se eu o questionasse acerca de uma 49


atividade de História, ele respondia representando o fato em si, como a descoberta do Brasil, levantava a mão até acima das sobrancelhas e gritava: “Terra à vista!” E pulava de seu navio imaginário e conversava ao vento com os índios, que eram as vassouras, e, tomando posse da terra, sentava-se na cadeira da mesa da sala, como se fosse o dono do país. Caso eu estivesse triste, seja porque tinha brigado com alguma amiga, seja porque mamãe me deixara de castigo, o conhecimento de que papai estava vindo me visitar, como se tudo perdesse a razão de existir, ou ao menos de me deixar infeliz, acontecia que eu ignorava o castigo, a briga, e já pensava em qual brincadeira eu faria quando ele chegasse. O que eu vi, quando acordei naquele dia, foi meu pai em pé, na porta da cozinha, com os braços direcionados às costas, escondendo algo. Meu rosto remexeu cada parte para produzir um largo sorriso. Ele disse bom dia e fez uma cara tristonha. Eu já conhecia esse disfarce mal feito dele, mas ignorei: a surpresa deveria ser completa. “Eu tive poucas opções, bonequinha”, ele falou. E então retirou as mãos de trás do corpo e fiquei decepcionada. O gatinho era meu, ganhara há dois meses. Eu não tinha lágrimas, porém a vontade de chorar veio e fiz de tudo para não demonstrá-la. Papai de súbito percebeu minha tristeza e veio me abraçar. Eu, 50


dramática como era, virei o corpo e cruzei os braços, de cara fechada. Deixei que ele fizesse o abraço comigo de costas, que desse para entender que ainda haveria chances de me presentear direito. O sussurro dele chegou aos meus ouvidos e a vontade de chorar sumiu, como se jamais existira em mim. “Talvez a mocinha possa encontrar algo lá fora, na área”, ele me segredou. Cheguei a empurrá-lo para correr ao lugar. Um vestido azul, com detalhes brancos na manga, assim como vira no comercial de um desenho animado, estava pendurado no varal, dentro de um plástico transparente gigante. Olhei para o meu pai, descrente da situação. E como soubesse o que meus olhos faiscantes de alegria perguntavam naquele momento: “Eu vi um desenho desse vestido no seu caderno. É claro que o real é bem mais bonito, não é? Você sempre foi uma desenhista ruim.” Quis pegar o vestido, vesti-lo, no entanto, a altura era um obstáculo intransponível, fruto da imaginação fértil para pegadinhas de meu pai. Levantei os braços e mostrei a ele que não conseguia alcançar. “De jeito nenhum, mocinha”, ele negou. “Acha que vai pegá-lo só porque fez um desenho e tá fazendo aniversário hoje? Não sou tão bonzinho assim. Me dê um abraço e um beijo.” Fiz, toda obediente da vontade de ter o vestido. A

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gratidão só veio à mente depois de usá-lo, um pouco egoísta por parte de uma garota de 12 anos, mas acho que papai entendia como eu me sentia naquela hora. Por fim ele pegou e me entregou. Saí correndo alegre para o quarto. Queria vestir logo, mostrar ao meu pai que eu também poderia ser uma princesa, mesmo sem aqueles sapos falantes, cavalheiros loiros e cavalos brancos. “Eu quero ver, hem, garota”, ele gritou lá de fora. Vesti delicadamente e fui caminhando lentamente, como se estivesse na passarela do céu e as nuvens servissem de chão. O telefone tocou, reconheci pelo barulho que era do meu pai. Abri a porta e saí. Procurei por ele e não o encontrei. Deveria estar aqui no corredor para me receber. Mamãe veio ao meu lado e disse que ele estava falando ao telefone. Então esperei. Papai voltou, andando devagar, perdido na ausência de pensamentos, uma lágrima escapava-lhe do rosto e nem sequer se importava com aquilo, visto que detestava chorar na minha frente. E, dentro do vestido, querendo ser agradecida, pensei: papai tá chorando; alguma coisa de muito ruim aconteceu com ele. Passou por mim e encostou a mão na minha cabeça. “Tá lindo, filha”, ele disse, sem pensar naquilo, sem olhar para mim, sem sentir a minha gratidão. Desejei abraçá-lo, porém mamãe foi mais rápida. O 52


obrigado soltava uma perninha para fora da minha boca, querendo sair. Para que o diria se papai nem ouviria? Fui guardar o vestido. Juntamos algumas coisas e entramos no carro. Fiquei olhando o rosto de meu pai pelo retrovisor interno. Mamãe encostava o braço esquerdo no ombro dele e o apertava. Senti ciúmes dela: eu também me sentia triste por ele, mesmo não sabendo o que tinha acontecido. Ousei me aproximar e passar os braços pelo pescoço dele. “Volte pra trás, menina!”, ele gritou. “Quer me ver perder a direção do carro?” Chateada, me recostei no banco traseiro. Chegamos ao hospital; o prédio de quatro andares, na esquina de uma via dupla, era o lugar onde minha avó estava internada. Descobrira o câncer há três meses quando a dor nos rins já havia se tornado frequente, depois, insuportável. Minha avó ficou menos alarmada do que meu pai; ele sentia mais por ela do que ela mesma tinha sentido. Como era complicado para eu entender isso nesses tempos. Papai saiu do carro, moveu-se em direção à entrada do prédio, e eu segurava a mão da minha mãe; estava de certo modo com receio de tocar em meu pai, talvez a dor estivesse percorrendo sua pele, fazendo-a tornar-se bem sensível e qualquer toque a deixaria dolorida. Eu olhava para ele, alto, de cabelos grisalhos, 53


a parte detrás da cabeleira tinha mais mechas brancas do que o restante, a mão forçando o controle do carro; queria andar pela sua mente, saber o que ele estava pensando naquele momento, se eu estaria em algum lugar, no meio de receios, preocupações, lembranças de filho com a mãe… mesmo que escondida, atrás de um bloco de recordações. Mamãe de vez em quando arrastava o rosto para trás e me entregava um sorriso motivacional, como se dissesse: “estamos passando por um problema, filhinha, mas rapidamente vamos voltar ao normal, é só um evento comum da vida”. Na recepção eu consegui ouvir a voz de meu pai, fraca mas esforçada, semelhante a estar abatido e tentar ser o mais otimista possível, sorrindo para as tristezas, virando a cara para o dia perdido, pensando em uma piada boa para rir no meio de lágrimas. O médico esperava sentado no banco do lado de fora, anotando alguma coisa na caderneta dele. Papai sentou-se ao lado dele e começaram a conversar. Por algum motivo, o qual me fizera ficar aborrecida, mamãe foi rumo ao bebedor, e eu, como estava apanhada pela mão dela, puxada bruscamente, tive que segui-la. Acredito que ela não desejava que eu escutasse a conversa deles; ele, o médico, decerto falava para meu pai o que tinha de ruim para ter que ligar e pedir nossa presença. Após uns minutos, meu pai se levantou e fez um gesto de mão para nós. Fomos até ele e o médico disse 54


que poderíamos entrar. Entramos. Os quartos dos hospitais sempre produziram em mim essa sensação de que podemos estar, amanhã, ou depois, ali, no lugar dos pacientes, deitados numa cama daquelas, com um fio no braço. Eu era uma atriz que tinha que se caracterizar, colocarse no lugar: estando no hospital, a paciente; no cemitério, a morta; no jardim, a flor. No final das contas, eu fazia a mesma coisa que papai. Sentia as paredes do recinto. Como se fossem partes do meu corpo. A minha avó transmitia a impressão de doente, a velhice fazia isso há muito tempo, mas agora se juntava de fato à doença, e a imagem sofrida que tínhamos dela era três vezes maior. Papai puxou uma cadeira para o lado da cama, sentou-se e apanhou a mão da vovó. Percebi que ela fazia força para apertar a mão, porém força era o que lhe faltava. Eles conversaram baixinho, de modo que não pude ouvir. A única coisa que ficou gravada da conversação foi uma lágrima de papai, e minha avó passando o dedo tremelicante para secá-la. Minha mãe deu um empurrãozinho nas minhas costas e falou para eu cumprimentar minha avó. Pedi a benção a ela e fiquei observando a cor da sua pele. Várias manchas espalhadas pelo rosto, pescoço e mãos. Algumas estavam feridas, de tanto coçar ou de perder o vigor por causa do tempo. Eu não me senti mal por ela. 55


Não que sou uma má pessoa, sem sentimentos, que a empatia não me afeta, é que, mesmo pequena e sem estar na idade da razão, eu entendia que ela já havia chegado no tempo de morrer. A doença seria apenas um motivo a mais para o que aconteceria em breve, como o empurrãozinho que mamãe me dera. Talvez também pudesse ser porque o sentimento que eu tinha pelo papai era maior do que eu tinha pela vovó; eu olhava para ele e me sentia triste, mas só por ele. Ficamos duas horas lá. Eu queria ir embora, não gostava daquele lugar. Sentamo-nos, mamãe e eu, no banco do lado de fora. Acho que ela estava pensando a mesma coisa: que nada poderia ser feito pelo papai. Era algo a que somente ele tinha acesso. Apenas nos restava ficar na exterioridade, tampando os buracos e afastando os elementos para que o evento não aumentasse. Ele, algumas vezes, fechava a cara para ignorar as lágrimas, e eu tinha vontade de abraçá-lo e dizer bem baixinho no ouvido dele, para que mamãe ou a vovó não escutasse: “O senhor não gosta de que alguém o veja chorando, eu sei. Então coloque o rosto no meu ombro e chore, pode chorar, não tem problema”. Quando ele saiu, contou-nos que passaria a noite com a vovó. Deu dinheiro para minha mãe para que voltássemos de táxi. Nenhuma palavra foi dirigida a mim. Ele sair sem falar comigo era como se eu não existisse. Ocorreu-me que mamãe havia entendido que 56


eu me sentiria deprimida por isso, então vi que ela fez um movimento com a cabeça, como se me apontasse ao papai. Ele balançou a mão em minha direção, dizendo tchau, com nada saindo de sua boca… fiquei muito mais triste. Eu costumava brincar antes de dormir, mas nesse dia eu fiquei acordada, olhando para cima, imaginando como papai estava naquele quarto, junto da vovó, talvez cuidando cada movimento dela, cada respiração profunda ou rasa; será que eu passei pelo menos uma vez na mente dele? Mamãe veio ao meu quarto e apagou a luz do abajur. Foram cinco semanas de preocupação e ida ao hospital. Voltei lá duas vezes apenas, pois tinha que estudar; mamãe acompanhou meu pai quase todas as vezes. Cheguei a pensar que eles poderiam se reconciliar novamente, mas era somente uma ideia absurda que temos quando as circunstâncias se encontram e julgamos fazerem parte de um destino esperançoso; uma paranoia, para dizer a verdade. Na quarta semana, vovó passou muito mal. Foi nessa semana que papai chorou bastante. Chorou tanto que na quinta, quando ela deu o último suspiro, meu pai queria molhar os olhos mas não havia mais água. Quem chorou fui eu. O sofrimento de meu pai plantou uma semente nos meus olhos, e ela cresceu num instante, evoluindo em líquidos, caindo, jorrando. Chorei não por vê-lo sofrer, e sim pela noção de que um dia eu estaria em seu lugar. 57


Brenda Yasmim de Azevedo Ferreira – 18 anos, gaúcha. Apenas gosto de escrever, vi uma oportunidade de treinar meu hobbie evoluindo na escrita, esse está em formato de poema. Qualquer comentário é acessível pois me ajuda a melhorar. brendayasmim.azra17@gmail.com

RELÓGIO DA VIDA

Acho que vivo de sonhos Olhos abertos ou fechados voo para longe Fugindo para outra realidade Onde consigo mudar o passado e reencontrar saudades

Amarga, guardada no meu consciente Sempre aparece Dançando entre sentimentos, por um tempo permanece Adora invadir meus sonhos, Flashes com fatos e ilusões, bagunçam minha mente Única devoção se apresenta como ficção Onde posso recomeçar sem errar novamente Vejo que hoje em dia tudo seria diferente Desperto com frustração Porém agradecida, são aprendizados do meu eu inconsequente 58


Tic-tac, cronometrando meu dia Ainda não inventei nada para revolucionar a minha vida

Acabo vencida pela preguiça Perdendo tempo aproveitando minha mente vazia O tempo se assemelha ao relógio Segue em frente e não volta atrás

Um relógio da vida, Batendo internamente Não infinitamente, uma hora vai parar Espero conseguir manifestados

realizar

Antes do meu tempo se esgotar.

59

os

bons

sonhos


Caio César Souza Mariano Fraga, ou simplesmente Caio Fraga, é formado em Engenharia Elétrica pela UFMG. Engenheiro por formação, músico e poeta por amor. Natural de Vitória, no Espírito Santo, residiu ainda em Belo Horizonte durante a faculdade e realizou intercâmbio de 1 ano na França, período em que morou em Lille, Amiens e Aix-en-Provence visitando, ainda, cerca de 20 países. Atualmente, possui uma página no instagram pelo pseudônimo @divagandopoesia, na qual posta frases, sonetos, músicas e poesias sobre a vida. Possui os sonhos ininterruptos de lançar canções de sua autoria, livros de poesias, aprender cada vez mais instrumentos musicais – por mais exóticos que pareçam –, viajar pelo mundo inteiro, se apaixonar e constituir uma família.

Soneto do Tempo O tempo passa e é maravilhoso. O tempo passa e ele muito constrói. Mas, o tempo vem e ele é impiedoso. O tempo vem e ele muito destrói.

Se tristes, ele demora a passar. Felizes, passa num piscar de olhar. E muitas mágoas faz-nos esquecer, Assim como boas memórias fazer. Eu sei que o tempo nunca parará E nós jamais o controlaremos. No fim, apenas ele restará. Desejo que o tempo, com seu poder, Venha sutilmente me consolar E minha pobre alma volte a viver. 60


Camila Hardt. Estudante de física, tatuadora, aspirante a poeta, residente da cidade de Rio Claro, interior de São Paulo. A tatuagem diz das superfícies e me basta, mas por necessidade quis entender o que existe por dentro da matéria. Aí resolvi estudar. Nunca descobri, mas sempre me encantei entre tantas e tantas impressões sobre a vida. Entendi que era a arte o negócio. Mas é da física que tiro inspiração. Da física dos meios, dos centros, dos processos, movimentos e eternidade.

Esta não é uma história científica, não me comprometo com o real das coisas. Me interesso mais no que ainda não aconteceu.

POR DENTRO DE UM ÁTOMO Diferentemente dos quadros, das imagens bonitas, das formas ideais, escrevo para chamar o silêncio. É uma produção feita como num ruído, que evoca o movimento sem que este próprio aconteça. Escrevo, por necessidade, sem imagem, que os dias e suas produções frenéticas não me bastam. Preciso criar outras formas de silenciar, então descubro a letra. A palavra é, sobretudo, uma forma de recriar o silêncio. Sinto uma sede infinita e no mundo parece que toda água é turva, já não atravessa meus poros. A pele seca e fria. Intervalos abruptos de temperatura. Será que evocamos a rapidez? Preciso gerar outras formas de desacelerar. É preciso a calma entre as estações, para que nossos ritmos se encaixem. Ao ritmo dos pássaros, das plantas, das nuvens. De alguma forma, acolher a própria voz. Então, quis experimentar fazer das coisas todas voz. Notá-las, como se fossem mensagem divina, vindo me guiar. São, todas as 61


coisas, uma forma de lembrar? E, por isso, parece que ter calma é essencial. Nossos ritmos não se encaixam aos automóveis. Ou, ainda, ao ritmo das correntes elétricas. Há um esforço sobre-humano para ultrapassarmos a velocidade da luz. Entretanto, já não nos atrevemos a pensar: por quê? Desejo a liberdade de ver sentido nas produções. Desejo a liberdade de parar e de fato acreditar nas transformações. Por que tanto nos movimentamos, se é tudo na direção dessa repetição? Ainda sim, tenho algo de brilhante que está até mesmo pra além do desejo. Simplesmente repousar neste silêncio, neste vazio, inominável e perpétuo. Habitar ali, de vez em quando é o que me dá força. Temos postergado nossa própria existência, como se fosse possível adiá-la. E, desde que percebi este incômodo que fere a própria vida, sinto meu corpo morrer. Criamos a própria morte, porque os dias já não mais passam como se fossem libertação. Cada passo a mais nos aproxima de nossa própria aniquilação. Fazer arte talvez seja um pouco como recriar a vida desde às entranhas. É preciso notar-se até as tripas. Perceber primeiro os movimentos de meu corpo, como sugere Bergson, para então coordenar estes movimentos ao mundo, como numa dança. Cósmica. Existem tantos que falam sobre isso, mas ainda 62


não há uma fórmula mágica de compreender como dançar. E aí está então nossa maior necessidade. Desenvolvermos uma nova forma de arte. É preciso que seja novo, pois tudo o que existe até aqui já não nos basta. É preciso que seja realmente novo, algo que possa ser uma espécie de martelada nas estruturas de concreto da cidade. Mais uma, entre tantas outras. Essa vida urbana precisa conter-se. Mais um dia. Escrevo em meio a tremores e espasmos. Contrário meu corpo. Meu coração palpita. Sinto meus órgãos num movimento constante de contração, sinto dor. Há quanto tempo me sinto assim? Faz quanto tempo esse incômodo, esse medo de morrer, esse romper-se integralmente. Será loucura? Escrevo para me lavar. Como se fosse alguma espécie de repensar. Se soltar de caminhos mentais. O pensamento é horizontal. E então sinto um fogo que nasce do meu ventre. Não se trata de mim. É Deus. Esse deus que habita minhas entranhas, que dorme por de baixo de minhas células. E aquece o colo. De repente percebo meu fígado. É preciso sentir com as tripas. O mundo. O universo. Isso que é Divino. Escrever é ainda alguma espécie de encarnação. A arte talvez seja uma espécie de dramaturgia. Mas não se trata de fingir. Se trata de viver a poesia. Viver o instante das coisas e escrever sobre o que me acontece. Agora. 63


É de fato uma espécie de dádiva sentir os órgãos. E, por isso, acredito que posso ressoar para o mundo, através das palavras, esse poder que há no ventre. No calor do nascimento. Não se trata de curar o passado. É preciso ouvir o corpo como quem escuta um tipo de música. Dançar. O corpo é nossa conexão imediata com o inesgotável. Não há fim para a vida. Há apenas passagem. Nosso corpo é passagem. Entregar-se ao caminho é nossa única opção. Ainda sim, é preciso explodir por dentro. Sentir o mundo, suas necessidades. E já sentimos. O mundo nos exige uma transmutação. Há, nas palavras, qualquer chance de explodir-se? É o poder da arte, esse queimar-se por dentro, com coragem, que nos transformará. Entregar-se como quem dança. Uma estranha leveza. Pousada numa nuvem. Um pensamento que parece tão solto que temeria prendêlo. Vai, pensamento, corre. Corre neste deserto feito de grãos. Únicos. Que são erosão. E às montanhas já bem longe, passa, atravessa-as. Já não são as montanhas, nem os grãos, mas as nuvens que falam. Que dançam. Sou nuvem? Pensamento-pássaro. Já não me lembro tanto. Passado o tempo de insanidade volto ao estado de amarga normalidade. Sinto falta da loucura quando só me lembro do real. 64


Amar alguém me causa essa necessidade de chamar um novo corpo, largar todas as coisas que já me ensinaram que era amor. Amar alguém pode ser o que for. É dor também e é bom permitir isso passar… mas exige-nos, sempre, uma reformulação quase total. É preciso permitir que o outro nos atravesse sem tantas defesas, assim como é preciso atravessar sem machucar. É difícil. Mas é bom também. Estou triste, vou ficar em silêncio. O amor é o espaço da angústia. É o caminho de se fazer passar o desconhecido. Somos atravessados pelo mistério da correspondência, o mistério da propagação da energia no vácuo. Como pode ressoar a matéria nessa distância? Como podem partes tão distintas estabelecerem contato? Será que somos mesmo um? A minha angústia não permite que passem apenas histórias já contadas. Não me interessam histórias de amores ideias, nem sequer de disputa ou competição. Não me interessa qualquer aprovação, afinal, nenhum amor jamais me bastou e, apesar de ser ainda um tanto jovem, sei que nunca me bastará. Não sou musa, nem sou tão bonita assim. Não tenho nada de profundamente especial, a não ser as minhas pequenas partes vibrantes. Meus átomos. Meu corpo trêmulo e frágil. É uma pena mesmo que tenham feito do amor essa história tão pequena que cabe num começo meio e fim. 65


O amor, esse espaço por onde nos atravessa a agonia de não saber, é o espaço do invisível também. A angústia talvez possa ser uma forma de, ainda, nos lembrarmos de algo como a aurora, de uma passagem rosada que causa o poente solar a cada novo dia e traz consigo a lua. Talvez a angústia, o silêncio, e esse espaço do amor, para que possa nos atravessar, talvez seja importante primeiro permitir que passem, os dias, o tempo, até mesmo a vida. É preciso permitir que a vida passe. E só assim saberemos até onde poderemos chegar. Eu preciso escrever, mas ao mesmo tempo penso nisso que é a possibilidade também de não escrever. A possibilidade de não lembrar. Deixar o pensamento solto, desprendido, sem conexão. Mas, não. Sinto o peso de uma pressão absoluta sobre meu estômago, como se estivesse nele algum tipo de ácido que corrói o corpo por dentro. Às vezes me cansa sentir dor. E busco uma maneira de curá-lo. Achei que estivesse numa promessa, num clique, num instante… mas acho que se trata menos disso. É mais como esse chá que bebo, que me esquenta através de algo físico, próprio do estado dos átomos, não do pensamento. É aqui que me encanta a física. A possibilidade de pensar o movimento das coisas. O estado das coisas. A forma das coisas. O cheiro, o gosto, o som. São as coisas que importam. E então posso me ligar a elas como numa dança? 66


Encontrei com o inesperado. Isso me foi uma espécie de choque, sim, foi surpreendente. Descobri que a observação de uma partícula causa, imediatamente, a mudança do estado dessa partícula. Então nem ao menos olhar para o mundo sem ter de pensar, ao menos em um segundo, "eu existo!", pode ser. É preciso que se considere sobretudo o pensamento. É preciso que se considere que não há mundo sem pensamento. É ousado dizer isso, mas isso é só uma poesia, então eu digo. Há sempre alguém que pensa, mas nunca eu. É possível ouvir a todo o instante. Basta deixá-lo passar. Onde começa meu cisma? Onde se inicia minha dor? Penso hoje que é próximo do estômago. Dizem que há algum chakra vital nessa região. Bom, isto é evidente, existir é um soco no estômago. Mas não só. Dizem que o mundo é triste por excelência. E que me apego demais aos sonhos, já me disseram. Sou, por vocação, criativa. E essa criação é produto dessa dor. Me peguei pensando assim, como faço para viver o presente e parar de sonhar tanto? Depois me escutei. Outro baque. Passei por tanto tempo buscando estar no presente e hoje reflito que não preciso mesmo estar todo o tempo presente. Nem sequer ter um equilíbrio nessas coisas. Não preciso nem ao menos não ser doente. 67


Não preciso nada. Nem de falar, nem de escrever, nem de viver. Não preciso. É próprio do delírio a nãopresença. Mas veja. Quero realmente criar. Preciso do silêncio, inevitável. Preciso do vazio, incorruptível. Preciso da ausência, que sempre, sempre surge. E a vida acontece dentro de mim, como faíscas brilhantes que me rasgam com o tempo. O tempo me fere. E não há nada que possa o parar. Aceito os socos da vida como quem luta. Evoco a força das garras da mastigação dos alimentos. O pulsar vital. Que faz um som inconfundível. É estranho sentir essa potência desejante que, por não caminhar através dum caminho delirante, me queima por dentro. Ainda vou inventar um jeito de fazer dessa queimadura um novo corpo, que saberá, melhor que eu, viver. Escuta-me, corpo. Escuta-me porque cansei de falar sozinha. Agora já passou da hora de fazer do meu corpo inteiro minha voz. Repare, não falo mais baixo. Repare, tenho calor, tenho quentura, tenho pulsão. Meu coração pulsa. Há uma trajetória, ancestral, como dizem, de aflição, de dor. E é o meu corpo a marca deste trágico. Não sou de tantos sorrisos. Não aprecio este apego às coisas fixas: quero mesmo é que passem. E essa passagem, sutil, do tempo, leva consigo partículas destrambelhadas e atordoadas sem direção. Pra onde vão? 68


Há, ainda, uma vigília perpétua de um Pai, de um Rei, um Soberano, que deseja permanecer. Há uma mulher no meio desta multidão. Ela, vestida de silêncio e força, habita um deserto infinito. Seu rosto, parte por parte, composto destes grãos. O vento soprado sobre seu manto destrói sua composição. Ela sorri. Quer mesmo é deixar de ser montanha. As dunas no deserto parecem-se com mulheres que dançam, não parecem? Homem. Aprende, Homem. Esta vontade de permanecer mais se assemelha aos prédios da cidade, ao concreto. E é preciso romper o concreto para que a terra volte a respirar. A selva é brutal. Assim como a vida. Mas onde mais viveríamos? Já não me encanta tanto assim a suspensão. Aos poucos me acelero. Meus ritmos, meu coração. Meu peito pulsa. Num ritmo indefinido. A realidade é excessiva. Em cada instante, vida. E mais e mais e mais . Desejo esses voos brutos. Não se trata de me suspender, os sonhos. Na realidade essas asas me afogam no denso do real, no mais denso. Como um pássaro quando bate as asas, com força, contra a correnteza dos ventos no céu. Às vezes me deparo com essa ansiedade em tornar-me útil. E nesse desamparo em perceber-me absolutamente vazia, esvazio-me ainda mais. Desejo 69


o silêncio profundo das noites mais distantes. Daqui ninguém pode me tirar. Ninguém me salvará de minhas próprias sombras, então, como habitar essa ânsia? Como habitar essa ausência de significado, este vão? Eu queria, como um pavão grande e gordo, me abrir para a vida, como quem abre-se completamente para o tesão. Não por rendimento, mas por amor. Este amor que me deixa quente. Este mesmo amor que me torna vã. Mas, veja, não é este romantismo que me sacia. Então parece que o mundo se inverteu e há uma espécie de homem me dizendo, torne-se útil, porque não há ninguém que assim te fará. Não há um Deus, homem, ou um Salvador. Faça com sua vida aquilo que quiser. E deram a isso o nome "liberdade". Mas não acredito nessa tal liberdade. Acredito mais no poente absolutamente previsível, que tem esse tom brilhante, por ser dançante. Esse deus dançante, numa sincronia plena, breve e óbvia, mas indefinível. Necessito criar estratégias. Preciso ser estratégica. Isso também é uma forma de resistir, ou, ainda, de abrir as asas como um pavão. Talvez seja o pavão uma espécie de dramaturgo? Interpretando a si próprio. Já não desejo mais libertar-me da vida. Hoje, desejo esse reencontro, no óbvio dos dias. Limpar-me de tudo que me chamaram liberdade. Hoje, desejo a comunhão. 70


Como criar-se? Como é possível criar a si? Já que depois de limpar-me sinto que não resta nada. Isto ecoa em mim, como um grito imenso, de dor e amor. Não vou mentir. A vida me assusta. A vida me excede. E às vezes não sei bem o que fazer com ela. Não sou um personagem. A verdade é que não tenho eixo principal. Sou passagem, eu sei, é tudo o que sou. Mas nessa sinto que até mesmo meus órgãos internos se confundem. Como poderemos reaprender a dançar? Se há um jeito bom de dançar, eu quero este. Quero dançar esta música que toca agora. Eu sou o trágico e é isso que preciso deixar claro. Clarear o trágico, torná-lo evidente. Mas é aí que está a grande brincadeira. A evidência é uma forma de mostrar, para mim mesma, aquilo que antes não percebia. A arte, o espaço do trágico, a evidência do óbvio, e uma forma de reverter em mim essas células doentias. Fazê-las parar e concordar, em sintonia, que o trágico e o ridículo são apenas o mundo da fantasia. Que a vida é imensa, a vida é maior que tudo, e quero vê-la crescer. Sem destino, sem direção. Veja, é um símbolo. Somos processos dessa grande vida. O trágico é uma forma de saber por onde não ir. É preciso torná-lo óbvio, sutilmente, sem medo. É um pequeno trágico, um sentimento, que nos torna cada vez menores. E, tudo bem, mas, porque não crescer, em vida? Amar a vida é querê-la grande. Quero gritá-lo, 71


desenhá-lo, para que você saiba, assim, deste trágico. A verdade é que sinto tanto cada pequena movimentação do mundo que duvido de toda e qualquer verdade, isso me torna uma cientista talvez não tão boa assim. Tenho para mim, melhor, a ciência do não saber. A filosofia? A arte? Nada disso? Mas me contento em imaginar o universo como um grande espelho. E é, totalmente evidente, a ideia de um universo infinito, quando nós próprios somos seres que caminham com todo o cosmos para sua própria expansão. Nos meus sonhos, nessa noite, o mundo também queimava. A terra também sofria com essas perdas. Estava na casa dos meus pais, onde estou agora, e olhava para o céu. Do céu caíam pequenos pedaços de fuligem, de coisas queimadas, em todos os lugares. No horizonte, uma espessa nuvem de fumaça compunha toda a superfície do mundo. Fumaça e fogo em todos os lugares. Meus sonhos também queimam. O futuro é incerto demais, é difícil até mesmo sonhar… Para além do plano dos sonhos, nesse plano vital onde compartilho a vida com outros universos singulares, ainda não entendo muito bem o lugar desse amor. Como posso amar num mundo em destruição? Tudo que amo é agora e tudo que posso fazer é amar profundamente enquanto ainda há tempo. Hoje não tenho vontade de escrever, mas ainda sim vou, para ver se arranco algo de mim. O mundo, 72


está mais difícil, não é tão simples assim bastar-se bancar-se. Tenho medo e preocupações demais com o futuro, mesmo assim me sinto no direito dessa escrita. Não para que seja um exemplo de vivência, nem para que seja ideal. Escrevo mesmo para que fique evidente destas sensações do nosso tempo. Os excessos de velocidade fazem mal à saúde e temos reduzido nossos sentidos. Eu quero o cheiro, o tato das superfícies rugosas. Me atrevo a explorar ainda novos sentidos quando converso com as moscas do quintal. Elas contêm uma óbvia mística. E nós, hoje, somos dependentes demais de tudo aquilo que não nos alimenta de verdade. Quando o sentimento me toma é que escrevo agora. A doença, o sentimento de morte súbita. Quantas vezes já morri? Render-se. Entregar-se à vida como quem afirma, para si, que é necessária uma outra vida. É assim que tenho renascido. E isso não é um ode ao fim. Na verdade, eu gosto mesmo é dos meios. Mas acontece que me sinto doente, muitas vezes. E é dessa doença que faz nascer em mim essa necessidade de morte. Matar esse ser que se reconstruiu em mim e tem medo de tudo o que pode a vida. Isso se dá através da solidão. Mas dessa solidão sem espera. Um sentimento profundo de " o agora me basta ". Há muitos atordoamentos no mundo. Há um 73


atordoamento complexo chamado homem. Este homem sente-se no direito de roubar o tempo. E não é um roubo que se dá a partir de uma exigência, mas a partir do amor. Há um tipo de afeto que parece que nos rouba o tempo. Desejamos cotidianamente motivos para não nos efetuarmos, motivos para nos repetirmos, alguma razão para aceitar a submissão. Mas, na realidade, já não desejo esse lugar. Meu amor pode, sim, habitar um outro campo. Novo, desconhecido, complexo. Que não exige nada, senão o próprio movimentar-se da vida. Talvez seja como algum tipo de fé. E por que, então, crescer? Por que desejo esse movimento da vida que não aceita qualquer diminuição? Para lucrar? Não. Principalmente por saber que trata-se deste jogo de forças. Que é, o movimento da vida, alguma coisa como “efetuar-se”, continuar, se aprofundar, ligar-se, separar-se, diferenciar-se. Não há muito o que fazer senão entregar-se para o destino, consciente de que cada pequena escolha me encaminhará para um tipo de futuro. E que somos, absolutamente, todos, essa mesma força, buscando movimento. Qual futuro realmente desejo e qual afeto me movimenta nessa direção? Crescer é solitário e exige coragem. E, em alguns momentos da vida, talvez só seja possível conservar esse sentimento imanente, de 74


conexão com todas as coisas, sentindo-se sozinho e ausente de toda e qualquer conexão. Para então perceber a impossibilidade disso. Aprender a observação de si. A escuta. Do corpo, dos gestos, dos sons. Isto que escrevo é um pouco como transformar eternamente o mundo. Há um encontro entre eu e eu mesma que faz valer a vida e faz valer o mundo. Algum dia, por alguma razão outra, acreditei em ausências. A fome seria por ausência, a sede, ou o amor. Eu como que precisei desse caminhar por um romantismo, não por uma sensação. Parei de me notar? Acabou que sinto esse afastamento do mundo, na tentativa de um encontro com um ideal, e ainda nem sequer conheci o mundo em si. Esse mundo não se acaba em mim. Há uma infinidade de encontros possíveis que ainda não conheci. Há um universo em construção. E não se trata de afirmar construí-lo. Talvez se trate, muito mais, de observar essa mesma construção. A arte talvez aconteça nesse espaço, nessa sensação. Como que numa dança, chamando a vida, dizendo, venha. Venha. O que vem agora?

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Camilla Agostini https://www.facebook.com/profile.php?id=100009270156496

CASA VAZIA Existem lembranças que, para serem visitadas, é preciso coragem. São como casas abandonadas, das quais você se aproxima em noite de tempestade. Com uma lamparina e uma mala nas mãos, você abre a porta e, com medo, entra. Às vezes parece difícil respirar lá dentro. É escuro e embolorado. Passo a passo você reconhece o lugar há tanto tempo deixado para trás. Você busca refúgio da tempestade, mas é um pouco triste estar de volta àquele lugar. Recostando-se em um velho piano, reconhece sobre ele uma caixa, de cujo conteúdo você não esqueceu. Lembranças escritas em cartas, cadernos, anotações e algumas fotografias. Você os retira de lá e se senta para ler uma ou outra linha ao acaso. Apesar dos anos, parece reconhecer todas. Uma carta, um pouco mais esquecida na lembrança, lhe surpreende e lhe leva a um encontro. São fantasmas que moram nas paredes daquela casa antiga. Você os desperta. Eles falam, conversam, brigam, tagarelam na sua cabeça. Eles são confusos, têm memórias fragmentadas dos acontecimentos, cheias de sentimentos difíceis. Você os sente presos no peito e chora sozinha na penumbra daquela 76


vazia. Mal se recorda do porquê de ter ido parar ali. Escuta a chuva e lembra-se da tempestade. Então, a consciência daqueles desgovernos que brotam na sua lembrança zanga com eles e tenta fazêlos calar. A tentativa é em vão. Memórias e sentimentos brigam, defendendo diferentes versões do que passou. Você também argumenta e cai na armadilha daquele encontro. É mais uma a tagarelar silenciosamente junto aos fantasmas dentro da sua cabeça. Dessas argumentações e desvarios criam-se coisas. A lembrança, a memória, o pensamento, os sentimentos contorcidos produzem absurdos tão tangíveis quanto cada coisa registrada naquelas fotografias nas quais você pode vê-las, mas não tocálas. Não são mais lembranças, mas criações absurdas, produzidas nesse encontro com fantasmas tagarelas, cheios de mágoa. Zangada, sua consciência se aparta da confusão e dá um basta. Recolhe os absurdos e – sem muita consciência – resolve levá-los consigo. A mala com a qual entrou na casa estava vazia, então os guarda dentro dela. Com ou sem tempestade lá fora, já não vale estar ali. Mas, antes de sair, você olha para trás e retorna aos papéis que encontrara na caixa sobre o piano. Devolve-os aos fantasmas, atirando-os com desgosto “Não me valem mais!”. Senta novamente ao piano, em despedida, e escreve lembranças que possam 77


um dia ser encontradas, como se produzisse provas daquele momento. Só esse papel deixa guardado na caixa que ficara vazia. Até o próximo encontro, quando os fantasmas terão organizado toda a papelada de volta na caixa. Também eles estarão lá, pelas paredes, à sua espera. Há quem não esteja pronto para esses encontros. Há quem esqueça o caminho de casa.

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Catarina de Oliveira. Professora das séries iniciais do ensino fundamental na prefeitura de São Gonçalo (RJ) e Professora de Apoio Educacional Especializado na prefeitura de Niterói ( RJ). Graduada em Letras e Mestre em Literatura Portuguesa pela UERJ/ FFP. YouTube: Contolândia https://youtube.com/channel/UCsL4djoiP9FgzmXBfBQ6lOg E-mail: catanimarte@gmail.com

SAUDADES Ah! Que saudades daquele tempo em que eu dizia: — Não tenho tempo! E agora com tanto tempo O relógio anda, a vida voa, nos invade e nos povoa E mesmo assim nos falta tempo. Mas enquanto houver ar para respirar Tempo ainda há! O ponteiro faz seu corre E pelas mãos Cada segundo escorre Um dia teremos de novo aquele tempo em que não iremos sufocar Os rostos serão descobertos E sem medo de asfixiar Estaremos paulatinamente mais pertos. 79


NA ERA DIGITAL - Cristiane Ventre Porcini Em 1969, um voo espacial (Apollo 11) com dois astronautas – Neil Armstrong e Buzz Aldrin pousava na Lua. Desde então muitas descobertas surgiram. O uso do computador possibilitou armazenar grandes quantidades de dados. As TVs de tubo deram lugar a televisores de LCD, mais tarde aparelhos com telas de plasma. E depois telas de LCD-LED. E constantemente surgem novidades. Os vídeos-cassetes foram substituídos por DVDs, e posteriormente pelo Blu-rays. E, atualmente, filmes e jogos tem altíssimas resoluções em HD. Pendrives e cartões de memória permitiram guardar quantidades maiores de dados substituindo os disquetes. O MP3, MP4 passaram a reproduzir músicas, vídeos, fotografias. E, hoje em dia, os tocadores de CD já foram descartados. Os Smartphones possuem um sistema operacional que permite que diversos aplicativos sejam instalados, desde programas de edição de texto, jogos e baixar arquivos e acessar sites tornou-se muito rápido. A conexão com Internet por redes sem fio tornouse uma realidade. 80


Os Notebooks facilitaram a organização de reuniões, palestras, e a vida de quem passa muito tempo longe de casa e do escritório. O Bluetooth surgiu como recurso de celulares e é empregado hoje em computadores e aparelhos. Através da Internet Banda Larga é possível uma conexão rápida da Internet, o que permite ao usuário baixar vídeos, músicas, assistir filmes e jogar nos computadores. Essas tecnologias mudaram a forma de acesso aos produtos, e qualquer item pode ser pesquisado, comprado e pago por meio da Internet. Os livros e as revistas já são largamente lidos na versão digital. Mas a preservação das bibliotecas físicas continua sendo de suma importância para a cultura da humanidade. Os desenhos e ilustrações, antes feitos passo a passo no papel, ganharam as técnicas modernas da arte digital. As exposições de artes plásticas também já podem ser visitadas virtualmente. Quais serão as novas tecnologias nas próximas décadas? Já há estudos de que em 2030 os robôs se tornarão mais comuns no dia-a-dia. Na medicina, já está se tornando cada vez mais comum o uso de instrumentos robóticos na realização de procedimentos cirúrgicos. Porém, essa tecnologia só 81


é possível ainda com a existência de um profissional habilitado para operacionalizá-la. A tecnologia artificial, que é a inteligência semelhante à humana exibida por sistemas de software, também passará a ser difundida. A era digital, portanto, já é realidade. Conecta o usuário com o mundo todo, otimizando o tempo, facilitando o trabalho e sendo acesso aos meios culturais. Ela influencia a sociedade, os negócios, muda a forma de pensar e de se comunicar. O teatro, as artes plásticas, a dança, ou a poesia precisam da era digital para continuarem a alcançar o público, e levar cultura a todos os lugares.

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Meu nome é Daniela Reginalda Giovani, tenho 42 anos. Mineira de Belo Horizonte, formada nos cursos de Publicidade e Propaganda e também em Jornalismo pelo Centro Universitário Newton Paiva. Vencedora do Prêmio cultural BDMG 2008 ..Atuo como redatora freelancer ,visando sempre escrever textos criativos.

“Já se passou uma eternidade, a espera por um amor que lhe prometera voltar logo, assim que o relógio inglês (aquele que nunca se atrasa) tocasse. Por que então ele não toca?” Daniela R. Giovani

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Ediane Brito Andrade Schettini. Professora de Língua Portuguesa, especialista em Língua Brasileira de Sinais, mestra em Estudos de Linguagens, pela Universidade do Estado da Bahia. Casada com Diego Schettini. Mãe de Elza e de Bernardo. Sou apaixonada pelas palavras e por suas múltiplas significações. Escrever, para mim, é descortinar a alma. É devolver ao mundo um pouco do que ele me oferece e que transborda em meu ser. Instagram:@edianeschettini Email:edianyandrade@yahoo.com.br

RELÓGIO UNIVERSAL A tua partida me trouxe uma saudade que não aprendi a medir. No começo, pensei que me acostumaria, que o tempo ajudaria a passar. Ledo engano! Pobre iludida que sou, não sabia que o tempo e a saudade são amigos. Eles andam juntos em longas jornadas por vidas infindas! Os dias passavam e a saudade crescia, de maneira incomensurável. Pegava-me sentada em uma calçada, olhando para a linha tênue do horizonte, lembrando-me do tempo em que aqui estavas. Maldito Tempo! Por que não me contou que era tão próximo da saudade? Por que não me preparou para uma vida sem ela, que me embalou em noites insones? Por que não me preparou para viver correndo atrás dos ponteiros do relógio universal que não para? Senti-me tão ingênua quando descobri que o relógio universal tem dois ponteiros: tempo e saudade! Vontade me vem, todos os dias, de sentir teu abraço, de sentir teus lábios beijando minha testa! Ah, Tempo, me disseram que você faria a saudade menor! Ah, saudade, porque aceitas que o tempo te domine?! 86


Elaene Suzete de Oliveira Pereira. Pseudônimo PRETA. Pedro Leopoldo MG. Natural de Morro do Ferro – MG 2021- Prêmio Alvorada ; Antologia Novo Decameron; Concurso Editora InVerso de Contos e Crônicas Mais Vozes; Coletânea Preconceito Julgamentos e Generalizações; Revista literária Ecos da Palavra; Lendas Urbanas; Mais Vozes V.1 https://www.facebook.com/pretasuzete/

TEMPO VAZIO Perdi o tesão para lutar contra a tortura, Da solidão, no quarto, sem janelas da esperança.

Não tenho mais a noção do tempo Que tenho e que tive a liberdade de ser. Não quero mais tempo vazio, de mim, Inútil preenchê-lo com frases e rascunho, De vida ociosa de sentimentos, Não quero mais tempo! Caminhar sem um destino, sem uma espera, Apenas um ciclo que parece irreal. O outono interno que se apossa de mim,

Desfolhando meus segredos e medos. Na morosidade dos ponteiros, Do relógio, do descontentamento. Tempo? Quero minhas horas insanas de desfastio.

Esse é o meu feitio. 87


Elizandra Sabino nasceu em São Pedro de Turvo/SP e mora em Ourinhos/SP. É professora na Secretaria Estadual do Estado de São Paulo. Cursou Letras/Inglês nas Faculdades Integradas de Ourinhos (FIO) e Pedagogia na Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Concluiu Pós-Graduação, especializando-se em Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e Gestão Escolar pela Universidade do Oeste Paulista (UNOESTE).

TEMPO DE PAUSA O relógio badala na torre do tempo Passeia, o dia a esmo pela cidade Suspendo minhas incertas certezas Para tocar as horas por um instante E vejo os minutos se encadeando Sem interrupção pelos caminhos Incontornáveis dessa efêmera vida Onde tudo se esquece e se acaba No halo luminoso dos segundos desfeitos E nesse interim Entre o nascer e o pôr do sol A pequenina rolinha de penas eriçadas Apanha mais um graveto pelo chão E empreende voo para o alto da pilastra É tempo de pausa ... 88


Elton Sipp. Escrever é como terapia, é conversar com meus próprios medos, coragens, fantasmas, experiências, aspirações e sonhos. Viver é compartilhar experiências, histórias e aprendizados. facebook.com/eltonsipp instagram.com/eltonsipp

A SENHORA E O VELHO FIEL Ela pegou, bem devagar, a cadeira dobrável, o chapéu de aba grande, colocou na cabeça e saiu pela porta da frente da pequena casa de três quartos onde ela mora desde o casamento. Caminhou passo a passo, com toda a velocidade que uma senhora de 82 anos consegue enquanto carrega sua cadeira e o lanche. Caminha em direção ao farol da praia, não muito longe da sua casa. São apenas quatro quadras. Aquele farol está ali desde muito antes de ela ter nascido. Na época havia um operador, hoje ele está automatizado. Sobre isso ela devaneia um pouco enquanto caminha, sobre como tudo está automatizado. Deu de ombros. Não faz diferença agora. Pouca coisa importa agora. Desde que seu marido morreu, à sete dias, pouca coisa importa. E os dias são sempre iguais. Ela consegue ter um pouco de privacidade pois sua filha mais jovem mora na casa ao lado da sua. Aos poucos ela chega no farol ao lado da praia. Abre a cadeira, coloca a cesta com o lanche no chão, à sombra dela e da cadeira. Não é um dia muito ensolarado, mesmo que seja bastante claro. Os raios quase conseguem passar pelas nuvens finas que 89


encobrem o céu hoje. O farol fica em uma pequena península que entra no mar por mais ou menos 50 metros. Todos os habitantes locais conhecem o farol por Velho Fiel. Dos dois lados praias quase tão brancas como a neve. Apesar de já fazer o calor típico do fim da primavera e começo de verão, as praias ainda estão vazias, ainda não há turistas. Apenas alguns locais fazendo seu exercício ou caminhada de sábado. - Velho Fiel, meu amigo farol. Eu te conheço desde criança e você conhece todos os meus segredos de garotinha e de adolescente. Há tempos você deixou de ser meu confidente e hoje eu estou aqui pra conversar um pouco com você. Quando chegamos a uma certa idade é difícil encontrar gente mais velha e mais experiente para conversar. E eu sinto que preciso de alguém assim. Uma lágrima começa a brotar no olho da senhora. Uma lágrima que não cai. Fica ali pronta para cair, mas fica no olho. - Eu quero contar algumas histórias, meu Velho. Ela fala baixinho com o farol, como se fosse um confidente. E lembra de algumas histórias...

... Lembra do Ricardo, Velho Fiel? Aquele rapaz que conheci quando eu tinha 20 anos enquanto eu 90


trabalhava de garçonete no antigo Armazém da Praia, na praça. Ele era muito bonito. Moreno, cabelos um pouco longos, sedosos. Eu nunca soube se os olhos dele eram verdes ou azuis – uma hora pareciam uma coisa e outra hora pareciam outra. Ele trabalhava em um dos barcos de pesca do porto, saiam sempre cedo, muito cedo, e voltavam na metade da tarde com os pescados para o armazém e pra outros pontos aqui da cidade. No barco era só um pescador, mas na conversa ele parecia saber um pouco de tudo. Ele era muito inteligente para aquela idade, sabia coisas que nós, quando jovens, nem imaginávamos. Eu nunca soube de onde ele veio, ele apareceu em um barco uma manhã. Eu devia ter uns 12 anos na época que o encontraram. A cidade toda ficou em polvorosa quando foi encontrado um garoto no barco. Ele não sabia de onde vinha, se tinha pais ou não. Ele não lembrava de nada, nem mesmo lembrava como chegou no barco. O capitão adotou ele e o criou como se fosse filho – as coisas não são mais como eram, hoje seria tudo diferente. Tudo muito mais burocrático. Os jovens de hoje dizem que estão automatizando tudo, mas esse tipo de coisa que poderia ser mais rápido é uma burocracia só. Enfim, eu nem sei porque comecei a falar sobre isso. O Riccardo era inteligente e eu gostava de ouvir ele falar. Eu também adorava conversar com ele. Fazia 91


me sentir importante – ele prestava atenção quando alguém falava com ele, você lembra? Eu me sentia à vontade, era como se o conhecesse por anos. Não sei dizer bem, mas eu acredito que estávamos apaixonados. Da forma como todos falam da paixão ou tentam explicar ela, aquilo deve ter sido uma paixão ou algo parecido, eu não sei dizer bem. Só sei dizer que ele me fazia ficar à vontade, tranquila e ao mesmo tempo vibrante, empolgada e entusiasmada. Nunca mais me senti dessa forma com nenhuma outra pessoa, nem mesmo com Marc, mas acho que isso é normal. Cada pessoa com quem nos conectamos nos faz sentir de formas diferentes e isso é a forma única de sentir a energia uns dos outros. Nenhuma sensação ou sentimento me parece melhor ou pior, são todos importantes – é o que me faz ter histórias para contar. Não acha Velho Fiel? Alguns dias depois ele apareceu e disse que partiria para uma grande viagem ao redor do mundo e que esse sempre foi o sonho dele. Ele me convidou, todo empolgado, todo excitado, todo animado. Fazia planos sobre as aventuras que viveríamos pelos mares e terras que fossemos percorrer. Ele me deixou animada – e assustada. Muito assustada, pois eu só conhecia a nossa cidade e um pouco aqui ao redor, eu nunca havia saído daqui. Eu pedi uma noite para pensar. Mas ele não pôde esperar. Ele disse que o navio partiria no dia 92


seguinte, mas eu não o encontrei para partirmos juntos na nossa aventura gloriosa. Fiquei arrasada, por meses. Eu estava dando o maior salto no escuro da minha vida e foi como se minhas pernas não pudessem pular. Me senti impotente. Foi a primeira vez que me senti impotente de verdade. Aquela pancada doeu muito, muito mesmo. Eu sentia em mim a vontade de ir, mas fiquei com medo e me segurei para não dizer que sim na hora. Depois já era tarde.

... A lágrima se manteve lá, determinada a não cair. A verdade é que a senhora não quer deixar a lágrima cair e tenta segurar ela o maior tempo possível. Ela olha para a sua direita e vê um casal de mãos dadas e seu cachorro, caminhando pela praia. É uma bela cena. Ela respira fundo. Como se estivesse libertando algum animal que viveu uma vida inteira em uma gaiola. Com isso ela sente uma sensação de paz, de tranquilidade. De serenidade. Então se ajeita de forma um pouco mais confortável na sua cadeira e encosta o braço da cadeira no farol, como se fosse para se aconchegar em alguém. E continua a falar, em pensamento, com o farol...

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Então Velho Fiel, você lembra da Clarice? Aquela minha amiga dos anos de ensino da igreja. A mãe dela fazia os melhores doces. Ela sempre levava, toda quinta, alguns dos doces da mãe dela e a gente passava aqui, depois das aulas, para comer. Escondidas de todos os outros. Ela morreu há uns seis anos, sinto falta dela, sinto falta de como ela contava pra mim coisas que ela não contava para mais ninguém. Assim como eu fazia para ela. Depois que nós resolvemos aquela briga que nos deixou separadas por anos, pudemos voltar a ser grandes amigas. Foi por poucos meses, mas valeu a pena. Chega uma certa idade que o orgulho passam a não ter mais importância. Fomos tão bobas por tantos anos da nossa vida e eu nem lembro bem qual era o motivo do começo da nossa briga. Na verdade eu lembro sim, eu só queria esquecer de vez... Lembro de quando éramos jovens. Ela tinha a mesma mão que a mãe dela para fazer os melhores doces. Os melhores doces que eu já comi na minha vida. Menos as tortas de limão, eram péssimas, sempre foi o único doce que eu sabia fazer melhor do que ela. E isso nos divertia muito. Sonhamos com uma linda padaria que atenderia toda a cidade. Com os melhores doces, os melhores pães e o melhor café de toda a região. Parece que quando somos jovens precisamos dessas metas de ser 94


melhor em tudo o que tentamos fazer. Quando amadurecemos percebemos que ser muito bom em duas ou três coisas é suficiente. A bem da verdade, ser muito bom em mais do que duas ou três coisas é praticamente impossível em nossas vidas tão curtas. Começamos a buscar tudo o que precisávamos para aquela padaria ser um sucesso estrondoso. Utensílios, o local perfeito, os equipamentos... tudo o que era importante. Então a minha mãe sofreu aquele acidente. E precisou de mim. Eu precisei fazer uma escolha muito difícil. Era a minha mãe e aquele acidente fez ela ficar sem o movimento das pernas. Ela precisava de mim. E a Clarice precisava de mim para a padaria. Mas eu não podia fazer as duas coisas. Eu não via como poderia fazer as duas coisas. Ela me acusou de ser fraca e eu acusei ela de ser insensível e de não me entender. A grande verdade é que fomos fracas e insensíveis nós duas. Hoje eu sei que poderíamos ter tentado aquele projeto e ele poderia ter sido tão bom quanto imaginamos ou ainda melhor. Mas aquela briga durou por mais de quarenta anos. Como fomos estúpidas. Clarice, eu sinto falta dos seus doces. E sinto ainda mais falta da minha melhor amiga...

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Dessa vez a lágrima rola pelo rosto da senhora. Lembrar do passado, essa sensação de nostalgia, nos faz sentir saudades muito intensas. Muito mesmo. É perto do meio dia e o estômago lembra ela de que a fome chega também para as senhorinhas de idade. Ela pega a cesta, tira o sanduíche e a pequena garrafa térmica com chá. Aquele sempre foi um dos melhores almoços que ela poderia querer. Desde garota. Mastiga devagar, enquanto o tempo passa lento e as ondas batem devagar nas pedras da pequena península do farol. Às vezes olhar para as ondas traz paz, às vezes traz saudades. Mas naquele dia as pequenas ondas estão trazendo alguma outra coisa que ela ainda não sabe definir, algo que ela não sabe descrever ainda. É difícil sentir alguma coisa que não sabemos descrever, mas com o passar dos anos ficamos mais à vontade com isso e nos permitimos sentir coisas mesmo que não sabemos explicar. Talvez isso seja maturidade? Talvez. Ela então decide contar mais uma história para o Velho Fiel.

... Do Marc você lembra sem dúvida... A gente vinha aqui todos os finais de semana. Bom, pelo menos todos 96


os que tinham alguns minutos sem chuva. Dois anos antes de minha mãe falecer nos conhecemos. O que eu sentia e ainda sinto por ele é o que as pessoas devem chamar de amor. Eu sinto a falta dele, ele foi meu tudo. Nos conhecemos por acaso, na feira, eu derrubei um tomate nele. O que foi até engraçado porque sempre foi ele o desastrado. Não foi uma paixão arrebatadora e eu não tinha tempo pra me apaixonar naquela época. A verdade é que eu não queria me apaixonar, eu tinha medos e pouco tempo – eram os verdadeiros motivos, mas eu dava qualquer tipo de desculpa esfarrapada para não olhar para isso. Então ele foi me chamando para sair, até que eu fui. Conversamos, nos entendemos, saímos mais algumas vezes. A gente quase sempre vinha aqui, era nosso porto seguro. Velho Fiel, você conhece nossa história melhor do que qualquer pessoa. Quando estávamos brigados, quando estávamos bem, quando as coisas estavam evoluindo, quando pareciam estar andando para trás. Cuidar da minha mãe aquele tempo me cansou. O Marc me chamava para sair, para viajarmos, para conhecer lugares, para experimentarmos coisas. Mas eu dizia que não queria, que não estava preocupada com isso na época ou que não tinha tempo. Eu me acomodei, Velho Fiel. Eu me acomodei e fiquei lá, naquele canto, naquela casa e naquela vida 97


que vivemos. Eu sei que o Marc queria fazer muito mais do que fez e ele não conseguiu fazer porque eu fui um estorvo. Eu não quis. Me arrependo disso agora. Me arrependo de tanta coisa. De tudo que deixei de fazer e gostaria muito de ter feito, de pelo menos ter tentado. E pior, das coisas que outras pessoas, especialmente o Marc, deixaram de fazer porque eu desisti ou porque eu fui medrosa. Nossa vida foi ótima, trabalhamos, construímos coisas, aprendemos um pouco sobre como viver, criamos duas filhas e um filho maravilhosos que são muito felizes e estão bem. Mas eu sei que poderia ter feito muito mais do que isso. E sei que poderíamos ter feito tudo isso que a gente fez e ainda tentar todas as outras coisas das quais eu desisti antes de começar ou tive medo de tentar só porque eu não tinha a certeza do que ia acontecer. A gente se acha tão inteligente e a gente não sabe de nada. Ou escolhemos essas coisas estúpidas, às vezes só por medo ou pela sensação de segurança. Ela continuou como uma espécie de prece para o Marc. Marc, onde estiver, receba as minhas desculpas. Você sempre foi tão animado e cheio de vida, a vida toda, mesmo lutando contra a porcaria daquele câncer agora no final da sua vida. Você foi até o fim. Me desculpe por não ter apoiado as tuas ideias um pouco mais. 98


Velho Fiel, lá no começo eu fui tão boba e estava tão cheia de mim que eu não percebia que estava sendo um peso. Eu não consegui perceber que era por minha causa. Que pessoas se doaram por mim. Com o tempo o Marc foi desistindo de dar ideias ou de sugerir lugares para ir. Ele deve ter cansado de insistir. Eu não sei bem, mas eu sinto como se fosse a culpada. Se eu pudesse voltar atrás teria feito as coisas diferente. Mas acho que a vida é isso mesmo, entender o que fizemos e viver com os resultados das escolhas que fazemos ou que deixamos de fazer. A minha vida, a nossa vida teria sido diferente. Mas eu não posso voltar lá e fazer alguma coisa. Eu preciso aceitar que eu escolhi isso. Dói, machuca minha alma. Mas é a verdade. Eu vim para conversar com você, Velho Fiel... Você me entende desde garotinha e eu precisava falar com alguém sobre tudo isso. A conversa é entre você e eu. E só eu falo. Mas se eu pudesse deixar uma mensagem para alguém eu deixaria essa mensagem de pelo menos tentar realizar seus sonhos, para não ser corroído pelo arrependimento quando já não é mais possível fazer as coisas.

... - Vovó! Vovó, você está aí!? Estamos procurando 99


você o dia todo. Onde é que você se meteu? Você está bem vó? A neta dela grita enquanto corre pela calçada até o Velho Fiel. E quando chega perto da sua avó encontra ela chorando. - Vó, está tudo bem com você? - Sim, querida, está tudo bem comigo sim. - O que você está fazendo aqui? – A neta pergunta ainda cheia da adrenalina da correria de procurarem pela avó. - Eu precisava de um lugar para pensar um pouco, querida. Eu só precisava sentir o vento do mar mais uma vez e deixar ele levar essa dor. Eu sinto falta do seu avô. - Nós também, vovó. Nós também. A neta acreditou, sem dúvida, que sua avó sentia o luto pelo seu amado. Afinal, é apenas uma semana. Todos sentem o luto. A grande verdade é que o luto da sua avó não é apenas pelo marido, o luto é por todos os sonhos que ela deixou de realizar na sua breve vida aqui na terra. O luto da velha senhora é o arrependimento da sua vida cheia de não realizações, de sonhos frustrados e de possibilidades abandonadas. O luto é pelas histórias não escritas. Pelas experiências não vividas.

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ELYMAR SOUZA DE OLIVEIRA. Graduado em Licenciatura em Física pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB, Mestre em Física pela Universidade Federal da Bahia - UFBA . Escritor do Livro: "Poesias Entre Caminhos - Despertar". Considero-me assim, um Assíduo Leitor e Aspirante a Escritor de Poesias, Histórias e Contos.

PASSAGEM O Mais Belo Tempo…. Dentre Os Ventos E As Tempestades Superior Ao Riso, Encoberto Pelas Vontades Mais Antigas Até… Que A Própria Saudade! O Coração Do Ouro Aos Destemidos Passageiros, Subtraindo A Passagem! Tesouro Aclamado…. Em Cópias Verdes Ares Olhos Despertos, Infinitos Em Olhares Querer Poder Querer Tudo Aquilo Que Se Quer A Vida A Não Se Viver, A Sorte Por Não Se Acreditar, Ser Forte O Suficiente Para Crer E Então, Realizar…. O Destino Dos Sonhos Reais.... Dentre Espaços A Céu Aberto 101


Cálido Em Coloração, A Emprestar-se, Por Vívida Emoção Em Frente Ao Fronte Semblante Sereno A Conjurar, A Vasta Noite Trincar E Espelhar Sob A Neblina, Uma Gota Em Foco, Ante A Visão Destoar.... Tranquila Imaginação As Asas Dadas…. Dando As Asas…. A Quem Nunca Desejou Voar Temos, Porventura, A Nossa Proteção, Ato Destinado E Em Ação A Abdicar, Ferozmente Dos Versos Diante A Solidão Lutar…. Lutar…. Lutar…. A Conclusão Do Desejo Imerso No Presentear, A Inclusão A Reintegrar, Compartilhar E Seguir, Sem Nem Mesmo…. Saber Quando Deve-se Agir, Caminhar E Partir.... Mas Ainda É Tempo, Recomeço 102


As Pessoas Podem Simplesmente Trilhar…. Trilhos Novos, Por Velhas Estações.... O Eterno Então, A Se Cristalizar Prosas Em Memorias, Momentos Em Deflagrados, Nos Vastos Espaços, Em Gentil Passo Dado…. Em Singelo Abraço, Que Se Sente Arraigado Ressentido…. Desbotado Nas Lágrimas Das Vitórias Estendida Em Tristes Laços, Incompreendidos…. Deveras Estreitos…. Opacos No Momento Esmero No Largo Esmeril Do Tempo…. Firmado E Consolidado…. Em Histórias Esquecidas, Apesar Das Mais Maravilhas Traduzidas E Transplantadas…. Passageiras E Eternas…. No Riscar Dos Riscos Por Decidir…. Lembrar! 103


Evelyn Roberta Gasparetto, brasileira, advogada, 44 anos, residente em São Paulo/SP. https://www.facebook.com/gasparettoevelyn evelyn.gasparett@uol.com.br

O MEIO DA NOITE O meio da noite é estranho, para não dizer, esquisito. Ele causa para cada um de nós uma sensação diferente e particular, e o mais interessante, é que é um particular para cada dia; é como se fosse um ato personalíssimo de uma única vez, como se a cada noite você fosse uma pessoa diferente, que optasse, sem seguir um padrão, por um tipo de comportamento. Em simples análise, temos que o meio da noite pode ser um sacrifício, uma pena, um nada, ou ainda, um alívio, dependendo daquilo que estiver passando pela cabeça sem consciência. Em qualquer uma das situações, o que acontece é que seus olhos pouco se abrem, você se situa no local, levanta levemente da cama, coloca com pouquíssima destreza o chinelo e sai cambaleando pelo quarto, passando pela borda da cama, trombando com quase todos os móveis, até se deparar com a porta do banheiro. Durante esse curto espaço de tempo, percorrendo esse breve trajeto, a cabeça gira até entender se o sonho era bom ou não, se foi uma pena ter acordado, ou se realmente foi um presente essa pausa na movimentação do inconsciente. 104


Tendo sido de pesar, pela interrupção de algo agradável, o retorno será breve, com a vontade de quero mais, de lamento por aquilo que parecia tão real ter acabado, passando a ser o meio da noite não só esquisito como desgostoso. Há ainda o simples ir e voltar, sem que nada tenha vindo à memória, não havendo resquício de lembrança alguma, tornando o meio da noite somente estranho, pela pura falta de equilíbrio em algo tão comum como o andar, uma perna depois da outra. Como é difícil! Existe ainda a interrupção de alívio, diante de um sonho ruim e agitado, fazendo com que o tempo de retorno à cama, possa ser maior do que o de costume, para justificar se foi um filme, um dia agitado, um telefonema inesperado ou uma leitura indesejada. Pode ainda ter sido uma mensagem mal falada ou, até mesmo, uma discussão dentro de casa. O que se sabe é que não importa qual seja a justificativa para o caminhar noturno inesperado, de onde vier o despertar, o destino encontrará no roteiro desenhado e mais do que decorado pelo recém desperto, obstáculos pontiagudos e cruéis, que o farão bater em quase todas as madeiras e metais existentes pelo caminho, podendo deixar o meio da noite não só esquisito como também com bastante dor.

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F. Lestrabic é um poeta gaúcho que busca expressar o cotidiano de forma diversificada e através de um olhar bastante característico, o qual se faz com lirismo, sensibilidade e crítica. Alguns de seus poemas estão publicados em antologias, no entanto sua obra é vasta e esperamos que venha a público para podermos apreciá-la nas suas mais distintas facetas .Instagram: @lestrabic Email: jfloguer@gmail.com

A saudade fez casa no tempo e deixou em mim desassossegadas lembranças. Suas mãos aflitas e inconsoláveis

apertam-me por dentro... pedindo ajuda. Eu tenho tentado de todas as formas, mas não tenho encontrado alívio para essa dor. O tempo vai lento..., no seu passo, insensível às distâncias que aumentam 106


e vejo o abraço, já antigo, afastando-se no horizonte..., perdendo a cor.

E essas ausências, de tão sólidas e presentes, passaram a habitar os vazios aposentos esquecidos

em meu interior. Como um alento, mantenho, em todos,

cortinas e janelas bem abertas, e no centro, onde pus um jarro, espera, com água sempre fresca, uma flor. 107


Félix Hilton. Sociólogo, Professor, Escritor e Poeta com Cadeira 103 e Patrono Cairo Trindade, na AVPLP que reúne poetas dos países de língua portuguesa, assumida em outubro de 2020, formado em Sociologia na Região do ABC em 1987 – Dedica-se à Educação desde a época, escreve sobre os temas: Romance, Comédia, Aventura, Ficção, Teatro entre outros. Participa de uma série de Antologias e de três livros por ter ficado em primeiros lugares, além de dezenas de poesias em livros e revistas. Tem ainda e-books no Clube dos autores e na AG book. sergiocarvalhobean@gmail.com

VIA DE UMA SÓ MÃO Dionísio mantinha seu mau humor mesmo chegando o Natal, depois de ter discutido com a família sobre a escolha do passeio de final de ano. Tanto lugar para ir, tanta praia bonita e vocês vão à Itanhaém, ruim até para falar...esbravejava. Aura: Mas, as crianças querem conhecer a praia histórica onde tem uma ponte em homenagem ao Padre Manoel da Nóbrega, se aquieta homem, dizem que é muito bonito. -Tô mais para Bertioga, Santos, se é para um padre, melhor que seja logo para um santo. Vocês são tudo futriqueiros, depois dizem que eu quem sô mal humorado. Aura: Já alugamos uma belíssima casa com piscina, e lá tem aquela nossa amiga Girene, boa de festa e boa de samba, tá animada a menina, tem que ver. Dió: Pelo menos isso, aquela sabe festejar, mas só vou para não ter que me aturar sozinho, quero partilhar meu humor com vocês. 108


Pois se prepare, pega o mínimo de roupas lá o calor tá de arrasar, quero deixar minha silhueta nas areias da praia, eternizar igual esse tal de padre. Dois dias depois, cinco da manhã os dois carros lotados, bicicletas no suporte com toda segurança, lanche, e muita paciência, pois mesmo de manhã iriam pegar um pouco de trânsito. Jennifer: Mãe, tô com um baita de um sono, vou deitar no ombro do tio e quero acordar com o cheiro do mar e o barulho das ondas. Maicon: Eu também, nem para ir à escola acordo tão cedo, mas para passear nem vou reclamar, toca o barco quero ver lindas gatas desfilando sob o sol. Dió: Ocê num tem nem quatorze anos rapaz, se aquieta, por enquanto só olhar, daqui a pouco pai solta o cabrito, mais alguns natais. Lídia: Eu já tenho dezessete. Dió: Rapaz já está pronto aos dezessete, por aí, mas filha minha cozinho o galo até que dá, vai na paciência que tá longe ainda. Lídia: Credo, pai, deixa que a natureza cuida, sabe que tenho boa educação, mas vai que acho um príncipe montado em um cavalo. Dió: Derrubo um e outro, dô um pau nos dois. Risadas para um pai sem jeito; e a estrada à frente aponta para os lugares mais lindos do mundo: “Praias”. 109


Aos poucos o silêncio e depois rostos em ombros e leves suspiros de um sono ainda necessário, Marcos o motorista está atento e Dió ficou em silêncio, Aura só ria por dentro das conversas, mas agora olhava a paisagem e de vez em quando comentava. Som ambiente de músicas pops, e atrás deles os outros dois carros, viagem tranquila. Primeiro pedágio, a ansiedade de logo ver o mar toma conta do motorista principalmente, segundo assalto e em seguida a grande descida, os ouvidos dos que estão acordados tampam, brincam com a surdez acordando por instantes alguns dos que dormem, mas os chicletes logo resolvem o problema. A beleza dos túneis dá agilidade à língua de Dió, que elogia a obra como se falasse de seu time do coração, dá lhe Corinthians gritava ele, como se fosse obra dele. Proibiram Dió de vir com roupa do time, vai que a praia tá cheia de flamenguista, não queriam ter momentos de tristeza, só festa. Perto das sete horas, e o mar estava à frente da “caravana”, iriam direto para a casa esvaziar os carros, tomar um breve lanche e, depois da praia, estariam a apenas cem metros das águas, uma ótima localização. Encontram a casa limpinha como rezava o contrato, os três banheiros funcionavam perfeitamente, a piscina estava com as águas tratadas, tudo para 110


alguns dias de alegria do natal. Dió: Essas coisas de natal só me atraem pela comida, de resto quero que se lixe, mas como somos uma família vou fazer de conta que é um festão importante, mas quero saber é do churrasquinho e da cerveja. Jennifer: Só você mesmo pai, mas é isso aí respeita e se diverte. Café tomado, roupas leves e bronzeador, cesta térmica com bebidas em geral e muita vontade de sentir o cheiro do mar todos logo avistam as pedras que compõem a praia de Cibratel. Dió: Nome estranho para uma praia, mas que é linda é. Para aquecer vão logo para a tal ponte. Lá chegando veem que realmente é um lugar muito lindo, ao longe as penínsulas diminutas avançam para o mar, nas pedras sempre muitos turistas, em algumas delas chegam andando, outras a nado. Praia lotada já às oito da manhã. Fotos de toda a família com as paisagens de fundo, todas muito lindas, olhavam em celulares diferentes e partilhavam as mais bonitas, algumas, com caras e bocas, descartavam logo sob protesto de quem as fazia. Na ponte frases que contavam um pouco sobre a colonização, até Dió tirava fotos, quando chegou naquela que anunciava a morte do colonizador padre 111


pediu para que tirassem a foto e se posicionou dizendo: “ Ainda bem que morreu o cabra” Carla que tirou a foto nem olhou, o brilho do sol não permitia ver detalhes, entregou o celular a Dió e correu pela ponte. Todos olhavam o rebater das águas sobre as pedras que chegavam bem perto da ponte, o mar estava agitado. De repente sem avisar uma onda joga águas sobre eles, e depois de muitas risadas voltam a caminhar até o final onde sobre a maior das pedras há muitas pessoas tirando fotos. Curiosidade matada Dió grita: Praia, aguarde estou chegando. Em fileira indiana todos vão devagar e ainda fazem fotos até que chegam à praia tão esperada, ao lado sabiam que existia a praia dos Sonhos, próxima parada. Águas quentes como o esperado, revezavam um casal de cada vez ficar cuidando dos pertences, e os outros tantos tinham seus momentos de frescor e agitação. Bolas, salva vidas, tudo era motivo de brincadeiras. Quase treze horas e nada de se apartarem das águas e jogos, mas Dió que cuidava dos pertencesachava que não ia sobrar para ele- resolve ver as fotos aproveitando a sombra do guarda sol. Em algumas fotos apareciam os enfeites de natal, que aliás estava muito bonito, apesar de achar 112


besteira, para ele era coisa de comércio para vender admirava os trabalhos que faziam. Ao ver a foto tirada sobre a ponte observa algo estranho, amplia a foto e na data de morte do tal padre uma data recente, na verdade dois dias depois e rabiscado sob a data escrito Dió, Branco, pálido, Aura percebe e o acode, chama pelo Marcos que vem rapidamente. Dió: É só o sol, já tô ficando melhor. Depois de um copo de água fresca, ele vai retomando as forças, não fala nada para ninguém do que viu, só podia ser preocupação demais. Sem dar atenção, mas com a fome batendo, chamou quem já quisesse ir para casa a fim de preparar as carnes e acender o fogo da paixão, era como ele chamava, pois amava churrasco. Chegando à casa, tranca-se no banheiro e revê a foto, estava lá dia 26 de dezembro de 2021 e o apelido dele, nem o nome era. Como podia? Ia mesmo morrer dois dias depois, que loucura era aquela. Seja o que for, não falou nada para ninguém, tinha medo da morte, mas se estava marcada médico nenhum resolveria, nisso ele acreditava. Aos poucos foram se achegando, o cheiro do churrasco já dando apetite a todos, as peles avermelhadas, mas nem tanto devido ao protetor, as marcas de biquínis e a alegria nos olhos de cada um. Dió, mesmo sem perceber, faz um brinde ao 113


Natal que estava chegando, bebe pouca cerveja, mas come como se fosse a sua última refeição. Os familiares estranharam, mas o natal tem dessas coisas, as horas são de muita alegria, Dió pede para cantarem músicas de natal, promete um presente para os filhos e dois sobrinhos do coração, torcedores como ele do timão. Com o passar das horas, percebem que ele mudara muito, chegaram a questionar se ele estava bem. Dió: Nunca me senti tão bem, aqui é mesmo a entrada do paraíso. Após o churrasco, alguns cochilos e palavras doces demais por parte dele, o entardecer foi bem diferente do que esperavam, geralmente Dió iria esbravejar falando mal do lugar e irritar a alguns deles com suas ideias sobre políticas ou futebol. Um sobre o outro deitados na sala que era bastante grande cantavam hinos de natal, mas sob a exigência de no final capricharem no de seu timão. Nem queriam mais voltar à praia, o ponto turístico do momento estava ali, sorridente a cantar músicas que jamais pensaram em ouvir de seus lábios. A noite foram ao Shopping de Praia Grande, olhavam os enfeites, luzes que davam à cidade uma alegria que se espelhava em todos. Cada um com seu presente em mãos, outra estranheza, pois ele não mediu gastos, estava muito mão aberta. 114


O dia seguinte seria a ceia de natal, alguns cuidariam das compras, outros dos enfeites e a criançada, da diversão. Aura estava estranhando, mas amava o novo homem que nascera tão repentinamente, queria insistir em saber o que estava ocorrendo, mas o silêncio e a apreciação dos momentos eram mais eficazes, fosse o que fosse logo ela saberia. Festança de primeira, muita música e alegria, danças e pouca bebida, tudo muito novo. Passado o Natal Dió sabia que estava chegando sua hora, falava com cada um palavras que jamais pensavam em ouvir. Amanheceu o dia 26 com o corpo de Dió quieto sendo observado sob lágrimas por todos. O que era uma grande festa tornara-se em tristeza, diziam: -Ele mudou demais de repente, o que será que aconteceu? Maicon entra na sala de choro e tristeza e mostra o celular do pai com a data e o nome dele. A tristeza é amenizada pela alegria de saber que ele foi tão forte ao enfrentar a morte anunciada, mas não partilhada para que não sentissem piedade. Ninguém entendeu o que aconteceu, como foi que aquela data e nome apareceram ali, mas deram a chance de Dió partir com o coração leve e isto os alegrava, mesmo em meio à tristeza de sua partida. 115


O natal muda as pessoas, às vezes de forma mais drástica como aconteceu conosco, devemos buscar estas mudanças sempre. Todos se abraçaram e prepararam o funeral com o coração mais leve e uma lição dada por Dió: “Devemos lutar pelo que pensamos, mas deixar-se invadir pelo que aqueles a quem amamos pensam também”.

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Fernando Manuel Bunga: é um haicaísta angolano nascido aos 04 de outubro de 1997, residente e natural da província de Uíge, estudante do 3º ano do curso de Ensino de Linguística Portuguesa pelo Instituto Superior de Ciências de Educação ISCED-UÍGE. Escreve poema ocidental desde 2018 e haicai tradicional desde março de 2021, integra desde julho de 2021 o Zen do Haicai, grupo voltado ao estudo, prática e divulgação do haicai tradicional. E-mail: fernandobunga8@gmail.com

HAICAIS Enorme embondeiro* – O canto suave dos pássaros sobre os seus galhos

Primeiro mês do ano – A crepitação do milho assado nas lenhas As lentes embaçadas na ponta do nariz da avó – Denso nevoeiro Bolo de fubá – Na oração de gratidão alguém abre um olho

A sombra do rapaz que apanha o figo no chão – Sol da manhã *Baobá 117


Frida Risnic Rubin. Nasci em São Paulo; Cursei Fonoaudiologia na PUC SP. Cursei Processamento de Dados no Mackenzie SP . Trabalhei com computador de grande porte como Programadora de Computador e Analista de Sistemas em instituições da área financeira. Atualmente moro em Curitiba. Sou casada, tenho filhos e netos. Ao escrever, liberto um lado meu da gaiola e me entrego por inteiro.

AJUSTANDO OS PONTEIROS NO RELÓGIO DO TEMPO O dia na noite termina. E em cada amanhecer um milagre acontece; da escuridão se faz a luz e um novo dia renasce. Nesse nasce, acaba, renasce os ponteiros do relógio giram para após percorrer 360 graus se encontrar no mesmo ponto. Os movimentos de rotação e translação da Terra bem como as viagens de ida e retorno da alma se processam simultaneamente. Vai e volta. Um círculo não tem início, meio ou fim. Saudade é o resgate da presença e do instante que se foi, que ficou bem longe mas permaneceu no coração com gostinho de quero mais. O milagre de trazer para perto o que tão separado no tempo estava, de forma que o Passado e o Presente se encontrem no mesmo ponto exatamente acontece quando integrando a emoção com a lógica conseguimos deter na memória o que realmente importou. Por vezes o que se passou em um minuto tem sentido infinitamente maior do que se passou em alguns meses ou anos. 118


Distantes no tempo, os acontecimentos vivenciados na minha primeira infância refluem nítidos para a memória pipocando em episódios e passagens. Quando olho para trás me custa acreditar que já se passaram mais de sessenta anos desde então. Deslumbrada ao conhecer um circo com toda sua magia e fascinação, gargalhava do palhaço com calça listrada, camisa estampada e gravata borboleta; lambuzada de algodão doce assistia encantada os cães adestrados e ao salto mortal do trapezista. Me divertia com amigos, a correr, jogar bola, bambolê, pular corda, amarelinha, esconde-esconde. Na praia, castelos suntuosos e bolos deliciosos de areia que com a onda do mar se desfaziam, e então começava a guerra de espirra-espirra. Ingressei na escola por volta dos 6 anos, iniciando a alfabetização... bons tempos! A gente cresce e a inocência e a proteção que recebíamos dão lugar aos novos desafios e responsabilidades. Na arte de conquistar minha autonomia com sensibilidade passei por milhões de passos. Certo dia, conheci um Homem que me despertou os sentimentos de pensar e enxergar mais do que um palmo na frente do nariz, além de um Presente comecei a vislumbrar um Futuro com ele carinhosamente incluído ao meu lado. 119


De figuras ímpares, à medida que nos conhecemos e apaixonamos passamos a formar um par. Foi então que todo o conhecimento de Matemática que eu havia adquirido passou por uma revolução sem precedentes, tornando meus números poéticos com exponenciais de emoção. Vou contar devagarinho o porque de quando a gente ama 1 +1 é maior que apenas 2, e também porque dois menos um é igual a zero. EU E ELE Sonhando com felicidade integral e diferencial traçamos planos para o futuro em coordenadas com linhas retas, curvas, senoidais, No conjunto de sentimentos e vivências encontramos congruências e divergências. Momentos reais, complexos, imaginários, fracionários, primos , derivados, finitos e infinitos. Caminhamos por linhas paralelas, intersecções, tangentes, pontos oblíquos, obtusos, concomitâncias, pelo possível e impossível Nesse percurso, somamos e multiplicamos esforços, nos fundimos e nos confundimos, perdemos os limites próprios e não nos achamos mais em um mesmo. Progredimos geometricamente nos arranjos e matrizes da convivência, sempre olhando para o vetor que aponta na mesma direção, jogando no mesmo 120


time vivemos realizações, inseguranças e toda a segurança que a fortaleza binária pode dar. Aprendemos a somar ao amor, a multiplicar dentro dele e a subtrair erros e extrair raízes do que não agrega. Trabalhamos duramente para driblar as inumeráveis ciladas do dia a dia, superamos as sinuosas dificuldades, vencemos oportunidades disfarçadas de batalha. Ao celebrar nossas diferenças vivemos tristezas e decepções quando descobrimos que só o amor não basta. Perante os problemas considerando que tudo é relativo, e nada é absoluto aprendemos a desconsiderar, reconsiderar e considerar Expandimos a nossa percepção para os nossos denominadores comuns, nossos máximos e mínimos. A vida a dois é uma relação biunívoca. Lado a lado juntos e solidários, um apoiando o outro, voltamos sempre para o mesmo ponto, evoluídos. Com outra perspectiva, com outra percepção, outro olhar, novas soluções, mas num mesmo ponto. numa outra dimensão, sempre estando cientes que ainda temos a aprender construímos uma família unida. A infância é uma criança, e eu sou o brinquedo dela, e mantendo o brilho no olhar, a minha criança

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interior, o lúdico em mim renasce através das gerações que me sucedem. Ao me tornar mãe descobri uma segunda infância, e curti novas sensações. Ficava rouca de tanto gritar torcendo pelos filhos que participavam dos campeonatos de futebol e judô. Cuidava da prole com olhar atento enquanto estavam na folia da piscina, empinando pipa, subindo no escorregador, plantando bananeira, se equilibrando na gangorra e mais tarde na prancha de surf, sempre pronta a enxugar uma lágrima e assoprar os inevitáveis machucadinhos. Nas estorinhas da hora de dormir voando com eles nas asas da imaginação. No raiar do dia, porém, já com os pés no chão empresto conhecimentos sólidos e rumo certo, dando os alicerces e ferramentas para enfrentar a vida. Nas páginas amareladas do Livro Da Existência algumas tem cores suaves, outras escritas com tinta escura. Voltei a ser uma criança desamparada quando meu pai faleceu. Senti tanta falta dele que eu, muito além do vulnerável, entrei em pânico. Com a vista embaçada em lágrimas palavras irrompiam como um cruel furacão de dor em minha cabeça, que velozmente passa e consigo arrasta e leva o que deveria ficar. Tentei segurá-lo, tentei alcançá-lo, 122


mas ele correu de mim e suas asas migraram depressa a lugares distantes que não percorri. Sem dó vi meu chão se abrir. Desanimada as forças me faltaram e me pareceu ter perdido minhas referências. Mais que o peito para chorar e dos braços amigos que estavam a me abrigar eu precisava de um consolo que não fosse tolo, que não fosse pouco, que não fosse um jogo. Eu precisava de um consolo que é um beijo sem pensamento, que é um verso que anda solto, que era um mundo, naquele momento. Com o tempo, senhor da razão, o consolo foi chegando de mansinho, pois as saudades batendo forte me fizeram perceber que as lembranças de meu pai são eternas e nunca irão se evaporar, mesmo que esteja longe de seus olhos e do tempo desprendida. Meu pai freou meus erros, deu potência a meus sonhos e foi, é e sempre será a bússola que soube me mostrar a mais bela direção da vida na sua forma positiva de encarar as coisas, honestidade, amor, senso de humor e solidariedade. Seu exemplo de vida é minha inspiração para no papel de mãe educar meus filhos. Agora vieram os netos, e novamente acorda a criança cheia de alegria que habita em mim. Sentada no chão, montando quebra cabeças, pintando o 7 e os ajudando a estimular a criatividade para compensar a falta de tempo em função das 123


intermináveis atividades extra curriculares e do uso excessivo de tecnologia como celular, TV, vídeo game de hoje em dia. A qualidade da convivência no tempo que estamos juntos faz o pequeno momento se tornar grande. E nessa troca afetiva eu rejuvenesço e nos nutrimos de amor. Eu vim ao mundo muito curiosa; sempre tive muito apetite em minha vontade de conhecer e evoluir com consciência e comprometimento, porque sem isso não somos nada Eu gerei belos frutos, venci obstáculos, enfrentei derrotas, provei o gosto salgado das lágrimas por dolorosas perdas, tive incríveis satisfações. No tempo que passei ao lado dos que amo conseguimos transformar as pedras do caminho em degraus, saboreei palavras de amor, gargalhadas e tantos outros momentos lindos. Com o passar dos anos tento me tornar cada vez melhor. Imagino que a nossa permanência nesse planeta represente uma mera etapa para outra mais evoluída. Mesmo que eu esteja equivocada e nada além das saudades pelas emoções que causamos exista após a nossa morte, na hora de eu levar meu cheque mate terei a intima satisfação de saber que em todas as etapas eu cada vez mais evoluída acertei os ponteiros do relógio biológico afinados no mesmo ponto, e por

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maior que tenha sido a passagem do tempo tive sempre o privilégio de querer e poder vivenciar e reviver sob nova dimensão o que me foi tão bonito e especial.

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Gabriel Lemos Rocha é um advogado e escritor capixaba, morador do pequeno município de Castelo – Espírito Santo. Após viver alguns anos na capital do ES, voltou para sua cidade natal para viver uma vida mais tranquila e mais simples. O jovem, nascido em 1995, possui alguns livros escritos e ainda não publicados e acumula a participação em diversas antologias poéticas.

LEMBRANÇAS “Tic-toc”, faz o relógio E muito forte vai ficando, A saudade que me dói o peito E a dor que vai me matando. Quanto mais o tempo passa, Mais corroído fica o coração E mais dolorida a minha alma Por essa dor que age sem perdão. E as lembranças que ficaram, Vão ganhando imortalidade E ficando em minha mente Por toda a eternidade. “Tic- toc”, faz o relógio E muito forte vão ficando, Essas lembranças imortais E esse amor que segue queimando. 126


Gabriely Dutra. Autobiografia: Psicóloga em Formação pela Universidade Federal Fluminense - UFF/Niterói. Pesquisadora/extensionista no campo da Deficiência e pesquisadora do tema da Subjetividade. Militante feminista e anticapacitista pelo Diretório Acadêmico da Psicologia e pelo Setorial das Pessoas com Deficiência Daniel Vale/PSOL Email: gabrielydutra@id.uff.br https://www.facebook.com/gabriely.krugerdutra/

VIVER NO AFETO Entre quatro paredes uma janela, do outro lado a porta, na minha frente, uma televisão. Nada disso importa. Olho pela janela o céu azul, um sol radiante, escuto uma criança rindo, rindo muito Nada disso importa.

Nada é mais importante do que minha cama, pois nela nesse momento sinto minha respiração ofegante. Viro de um lado, viro pro outro, 127


sinto minha intensidade subir para o peito. Meu peito dói. Isso é importante. Tento me acalmar, meu corpo não deixa, pede para sentir... A dor no peito, a respiração ofegante. Intensidade, difícil de lidar, lágrimas caem no meu rosto. Isso é importante. Meu corpo expressa cada afeto. Fico arrepiada, choro, coração dispara, respiração ofegante. O peito dói, intensidade. Isso é importante.

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Olho de fora, olho pro meu interior. É saudade, é saudade, sinto alguém’s, Sinto a energia do abraço, do carinho, dos afetos, de estar junto. Isso é importante. Respiro fundo sinto alguém’s, me acalmo, foco só em uma coisa. Vou te sentir longe, perto, onde estiver. Isso é importante. Vou te encontrar em algum momento, abraçar. materializar o que sinto. O tempo passa… Isso é importante.

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Gedeane Joás Costa, natural de Recife (PE), formada em Ciências Econômicas e em Licenciatura em Música. Pianista, professora, artista plástica, ama escrever poesias desde os seus nove anos de idade. Menção honrosa em concursos de poesia, participações em diversas revistas literárias. É membro correspondente da Academia Internacional de Artes, Letras e Ciências (ALPAS 21). blog: https://paginasinfinitas.blogspot.com/

TIC TAC O tic-tac não pára não dei corda mas ela anda nas cordas do meu coração infla a cada instante reverbera como som do violão às vezes, doce e cria asas passa horas na imaginação só não passa o tempo às vezes, é maldade quem tem dentro do peito a tal da saudade. Infeliz mesmo é quem não a tem pode parecer mal mas faz um bem principalmente que a saudade vem é da lembrança de alguém. Tempo vai, tempo vem, tempo voa... Só se tem saudade é de coisa boa e que não tem cura para ninguém. 130


Gisela Lopes Peçanha é natural de Niterói, RJ. Escritora, cantora. Premiada em diversos concursos literários de Universidades Federais Brasileiras, a citar: Universidade Metodista de Piracicaba, SP (1º Lugar, em 2015 e 2016); Universidade do Pampa, RS; Universidade de Brasília (menção honrosa, 2020); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (2º Lugar, 2018); Finalista: UNIFEBE, SC; UNICAMP, SP; UERJ, RJ - 2020. Prêmio Rubem Alves - 1º Lugar - Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto SP, 2015. Prêmio Machado de Assis - Menção Honrosa - Concurso Internacional Confraria Brasil – Portugal, 2015. Terceiro Lugar – Concurso Literário Internacional Castro Alves – Academia Rio-Grandina de Letras – 2021 (Rio-Grande, RS). Conquistou mais de 115 prêmios literários. Publicou em 65 antologias, a nível nacional. Membro da CAL - Comissão de Autores Literários – 2021. Acadêmica efetiva Titular da cadeira de número 36 RJ Patrona: Hilda Hilst - Academia Internacional da União Cultural. Contato: giselamusik@yahoo.com.br Facebook: Gisela Peçanha

OLHOS DE BOTÃO, CABELOS DE ALGODÃO — Mãe, o robô chegou! — Bradou, eufórica, a menina que mal aguentava o peso do pacote. — Abre, Miuska! — Incentivou a mãe, também ululante, diante da cena de farta alegria. E sentaram-se as duas, a rasgar o papel: tais quais duas coleguinhas infantes. — Olha, mãe! Ela é linda! Então surgiu (diante daqueles olhos arregalados e brilhantes) um robô feminino de 1 metro e trinta, com tranças e rosto perfeito... como se humana fosse. Uma quase menininha, nascida e vinda direto da fábrica. Era uma tarde de puro deleite. Sem irmãos para brincar, a menina tinha três robôs: o primeiro, falava e cantava; o segundo, andava; e o terceiro, recém 131


chegado, tinha a forma de uma garotinha (parecida com ela) que: falava, cantava, andava, e demonstrava alguma reação quando era tocada. Havia sido o robô mais caro, de última geração. Assim ficaram, por horas a fio, sentadas no tapete da imensa sala – dando tratos à bola, a fazer o robô funcionar direitinho. Foi quando, a interpelar momentaneamente o colorido de tal festejo, surgiu a bisavó Nina. Vinha ela com seus cabelos totalmente brancos, enxergando pouco, ossos doloridos, mas tudo era o preço oneroso pelos seus quase cem anos de vida. Chegava com seus passos lentos, trazendo uma bandeja trepidante com chá quente, e nada mais se ouvia além do bater forte de um relógio centenário (como ela). Fora uma grande pintora de bonecas Marioskas. Nasceu muito pobre, e só conheceu o que é a riqueza, quando a neta mais nova casou-se com um grande magnata da indústria cibernética; mas, o luxo, jamais lhe encheu os olhos. Bisa Nina já havia presenteado Miuska com dezenas de bonecas Marioskas pintadas por ela, mas a menina não dava o menor valor. Alegava que é muito estúpido brincar com bonecas de madeira, quando se pode ter um robô quase humano! E, de verdade, isso entristecia a bisa; pois, por conhecer a pobreza (e não ter tido brinquedos, quando criança), não compreendia esses tempos modernos. E vazios. 132


Após servir o chá, a velha senhora sentou-se em sua cadeira feita de pinho, sob o olhar da netinha. — Miuska, a bisa está fazendo uma boneca linda para você! — Disse, com os olhos vibrando. — Boneca de madeira não quero, bisa... — Refutou a menina, abraçada ao robô. — Não é de madeira não, meu amor. É de pano. E a menina olhou com uma expressão de puro desdém para aquela mulher enrugada, já tão machucada pela vida. – ‘’Uma boneca de pano, quando tenho bonecas que andam e falam’’... – Pensava. — Não quero, bisa. — Sentenciou, rispidamente. A anciã levantou-se, chorosa, e se encaminhou ao seu quarto. Apagou a luz e cobriu-se. Nevava na montanha, e dentro de seu coração também. Passado algum tempo, percebeu um pequenino vulto na penumbra, vindo em sua direção. Arregalou os olhos e enxergou Miuska, diante dela. — Bisa, quero ver a boneca de pano. — Disse a menina, meigamente, mostrando-se muito arrependida. A senhora levantou-se e abriu o baú, pegando a boneca que ainda não estava pronta: apenas o corpinho estava feito. Miuska pediu para colocar cabelos de algodão branquinho, e que os dois olhos fossem feitos com botões pretos: para que a boneca se parecesse com a 133


bisa (que não conteve a emoção, diante da demonstração de tão doce afeto). A menina foi dormir em seu quarto, mas a anciã trabalhou a noite toda, a terminar de confeccionar a boneca e deixá-la toda pronta. Fez um vestidinho com um retalho que tinha sobrado do que ela mesma usava, e desenhou rugas e óculos sobre o rosto de pano macio. Depois fez um cabelo de algodão em coque, e colocou os dois botões pretos, como sendo os olhinhos. Então, saudosa, lembrou-se de sua infância e de seu pai lenhador que, amorosamente, fazia bonecas com talos que sobravam do eucalipto cortado. Sua mãe, costureira, ornava aqueles tocos com sobras de panos dos vestidos que fazia para as ricas damas da cidade. Os olhos, eram de botão. E os cabelos, de palha: tingida de amarelo, da cor do cabelo da menina Nina. Certo dia, porém – durante uma grande nevasca – todas as bonecas foram jogadas ao fogo, na lareira; pois toda a lenha havia acabado, e seu pai estava muito doente e precisando de calor, temendo de febre. Neste dia, Nina compreendeu que sua infância havia terminado. Para sempre. Exausta com tantas lembranças, e por ter confeccionado a boneca a madrugada toda, deitou-se. Ajeitou-a na mesa de cabeceira, para que Miuska a visse assim que entrasse no quarto, logo que raiasse o 134


dia. Então fechou as janelas de seus olhos fundos, lembrando, feliz, do sorriso da bisneta... e, assim, adormeceu. Profundamente. Muitos anos depois, mais uma noite aconteceu e, como quase sempre, era uma noite congelante. Miuska chegou cansada do trabalho e preparou um chá fervente; mas antes, deu um beijo em seu marido que trabalhava na mesa da sala. Logo após, foi ver a filha de cinco anos que já dormia: abraçada a uma boneca de pano, com olhos de botão e os cabelos de algodão – que, agora, já estavam bem amarelados e faltando vários tufos. A neve caía. A lareira aquecia. O estalar da madeira incandescente, soltava pequeníssimas fagulhas festeiras. Os ponteiros do relógio batiam incansáveis, valentes, trazendo a certeza de que o tempo, é o vento... E, na velha garagem da casa, junto a várias caixas de ferramentas antigas e montoeiras de lenha, via-se três sucatas de lata enferrujada retorcida: jogadas em um canto qualquer. Que há muito não falavam, não cantavam nem andavam; muito menos tinham história ou vida.

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Gislene da Silva Oliveira – Mestra em Linguagens e Saberes na Amazônia (UFPACampus de Bragança), Especialista em Língua Portuguesa (UFRJ), Licenciada plena em Língua Portuguesa (UFPA-Campus de Bragança), professora de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado do Pará (Seduc-PA), possui textos publicados na Antologia Gotas Literárias e revistas Ecos da Palavra, Literalivre, Nova Amazônia e Cultural Traços. Amante da literatura, da vida, da amizade e do amor. E-mail 100gisoliveira@gmail.com

SONHO A saudade marca o despertar. Acordo-me no meio da noite e te busco na tênue névoa do sono. Chamo teu nome, ergo-me de súbito do leito e abraço o vazio. Na ilusão do amante, aspiro profundamente o perfume suspenso no ar que julgo ser teu. Moldo tua imagem nas retinas e te projeto com

precisão no lusco-fusco do luar que invade as frestas da janela. E já te vejo de sorriso aberto, abrindo os braços, acolhendo-me nos seios, beijando-me os cabelos. 136


No tempo do amar, envolvo teu corpo no meu e, subitamente, deitamo-nos, descompassando nossos corações e dividindo em nossas bocas o mesmo ar que respiramos. Então nossos corpos se possuem, inteiram-se, fundindo-se num só. Nossos rostos brilham dentro da noite, desconexamos as palavras e inventamos uma nova língua do amor e dos amantes. Enlaçado em tuas pernas, mergulho nos espirais do torpor. Durante este despencar profundo, rogo para que quando volte do mergulho, o relógio da saudade me permita o encontro com tua mão amiga para que o sonho se perpetue no tempo do infinito.

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Hannah Carpeso é carioca. Especialista em Educação e Bioética.Viveu o magistério e consultorias em Organismos Internacionais. Aos 14anos rascunhou: “O Lápis que escrevia sonhos” publicado em 2015 pela Chiado Editora. Em 2017 publicou seu 1º romance “Ser um cartão postal à porta de sua casa”. Pela Capitolina Editora. Hannah afirma: “Um dia um lápis escreveu um sonho e enviou ao mundo o um Cartão Postal” Seus contos e poemas foram agraciados em concursos literários publicados por várias editoras.

O LUTO OU A FESTA SÃO PONTEIROS CORREDORES Engraçado essa história de sofrer e de alegrar; Brigar por felicidade; deixar o tempo passar. O presente espremido entre o ontem e o amanhã, Passa tão despercebido... Perdido. Ora mágoa, esperança, o presente é um segundo; A saudade infinita. Eita! Caminho errante! Passo à frente... Passo atrás. Pensa no que vai chegar Busca o que ficou pra trás O luto ou a festa são ponteiros corredores. Horas compassadas em segundos Parece às vezes ter pressa, Aproveitadas liberam sonhos. Num tempo que não contesta Relógio é só um registro Do tempo que segue e desaparece. Saudade não segue o tempo. É ponteiro que permanece quieto. 138


Hélio Guedes de Oliveira. Acadêmico e Diretor da Academia Brasileira de Poesia (ABP), membro efetivo da Academia Internacional da União Cultural, tendo poemas, contos e crônicas publicados em antologias, revistas e blogs especializados no Brasil e no exterior, dicionarista redator e responsável pela consolidação do conteúdo das edições do Dicionário do Petróleo em Língua Portuguesa (Brasil, Portugal, Angola e Moçambique) pela PUC-Rio / Editora Lexikon. Professor Titular da Escola de Engenharia da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) entre 1975 e 2010 e professor de cursos técnicos de pósgraduação em várias faculdades brasileiras. e-mail: falecomhelioguedes@gmail.com

VIVER LENTAMENTE Agora, os tempos de viver lentamente Como na placidez de um lagarto,

Vivo e alongado preguiçosamente E sentido no beijo escondido de um quarto E em horas marcadas sem ponteiros, Quem sabe, assim longe e perdidas,

Na lembrança de tempos mensageiros De distantes sonhos e despedidas. Lentamente, como em morna guia, Perceptível e esguia de livre enguia,

Tendo o tênue e leve fio das teias, Nas gotas em passagem pelas veias. 139


Sim, lentamente, como o quase nada, Bem lá no fundo, como água escondida Em pedra rolada, bem perfumada E virada devagar, viva e surpreendida. Viver sem pressa e sem querer, Sem chegar a lugar nenhum, como

Se não existisse nada a nascer Sem pistas, desejos ou assomo. Tudo bem devagar como fumaça Esquecida e esparramada no telhado,

No embaço azul transparente da vidraça, No correr da chuva, lento e espalhado. Viver lentamente, lentamente... Sem ânsia no olhar dos marcadores

Na saudade do sempre ausente Em esperança da volta dos velhos amores.

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Sou Hevelyn Sabrina Silva Santos, tenho 20 anos de idade e moro na cidade de Sumaré, interior de São Paulo. Sou professora de filosofia no ensino básico e realizo pesquisa acadêmica na Universidade Estadual de Feira de Santana, Especialização em Filosofia Contemporânea. Desde a pré-adolescência encontrei as palavras como amigas de desabafo, nelas escrevo meus sentimentos, sensações e experiências. Assim, atualmente, me arrisco no mundo dos poemas, contos e cartas convidando todos a conhecerem um pouco deste meu mundo. E-mail: hevesabrina@gmail.com

CARTA PARA A AMADA

Minha cara amada,

Meses se passaram e eu continuo aqui, preso e afastado de ti. E não, não digo dessa prisão feita de cimento e coberta com uma tinta triste e falsa, mas sim da prisão que minha própria mente resolveu construir. Eu não consigo explicar o tamanho da expansão que há dentro de mim. Neste momento estou apenas flutuando em um espaço que parecia tão pequeno quando estávamos juntos, mas hoje, representa a distância que fomos obrigados a aceitar. Apesar de desejar dia e noite sentir, nem que seja por alguns instantes, o perfume de sua pele, ou de imaginar-me observando horas e horas cada detalhe que o tempo criteriosamente desenhou em seu rosto e corpo, eu te peço; não venha me ver neste lugar. Eu 141


imploro…. Ainda assim, saiba que você permanece comigo. Quando parece que estou me aproximando da porta do inferno, e que necessito de uma ajuda divina para me socorrer, recordo de nossos momentos juntos. É a sua imagem santa que me afasta deste terror. Meu amor, por mais que você também sinta saudades, eu peço que siga a vida e procure saborear prazeres. Procure um homem que possa te proporcionar experiências que eu, neste momento, não posso te dar. Viva por mim. Viva…. Sinta o cheiro do ar puro, o salgado da água do mar que insiste em entrar na nossa boca a cada mergulho, meu amor, eu imploro…. Viva …

E quando a sua consciência tentar te sabotar, não deixando que você saia da zona de conforto, enfrentea, não permita que ela faça isso. E quanto a mim? Estarei todas as noites lendo as Elegias de Duíno para que você durma tranquilamente repousada em meu peito, assim como naquelas férias. Eu te amo, eu sempre te amarei

Do seu, Luke.

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Higor de Souza Mendes, natural de Jacundá-PA, estudante de Bacharelado em Filosofia, atualmente reside em Sumaré-SP. Facebook: Higor Souza Mendes E-mail: higorsouzamendes07@live.com

RELÓGIO INFINITO

Da eternidade és guardião Da juventude inimigo Faz o relógio tic tac Quando percebo já se foram os dias Procura atrasá-lo Tentativas em vão Ele não retorna

É e será Os momentos já se foram Restaram-me as lembranças

A saudade inflama o peito Memórias e aliança 143


Aliança entre o passado E o presente momento A sensação do beijo roubado Retorna em um breve instante Não há como lutar Rendo-me aos vossos pés Basta-me contemplá-lo Tempo inefável Sou apenas um tic

Um breve tac No universo uma estrela Finito no infinito

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O QUE É SER BRASILEIRO? Ingret de Sousa Sales Vez ou outra me deparo com essa indagação, que paira sobre meus pensamentos quando quero julgar alguém que se autodenomina patriota. Eu com minha visão particular de mundo, quase insuficiente para compreender a complexidade que este país configura, sigo firme nos meus julgamentos, que são resultados de uma força maior, diria até sentimental, que faz com que eu sinta que pertenço a um todo gigante e indefinido. Essa sensação de encaixe será que se dá devido aos meus gostos pelas produções nacionais, tanto cinematográficas como musicais e literárias? Mas aí me pergunto: Apenas isso define essa identidade patriota? No mesmo momento reflito que não devemos assumir isso apenas por gostar do filme Cidade de Deus, apreciar Machado e ouvir Marisa Monte. Mas o que eu não esperava dos outros, era o fato de que quando eles assumem esse título, jamais tenham lido Machado, ridicularizam o cinema nacional e nunca pararam para ouvir MPB. Nisso, estou me referindo a aqueles que escolheram não apreciar e não dar espaço nas suas vidas para esses fragmentos culturais brasileiros. Quando penso na grande massa que compõe este país, me convenço a acreditar fielmente, que eles 145


sabem ser brasileiros, ainda que não percebam, ainda que seja automático, embora seja por sobrevivência. O meu avô que muito plantou e se sustentou exclusivamente da terra; meus pais que nunca puderam estudar, mas aprenderam a serem cidadãos e executar uma profissão pela linguagem do trabalho; as várias Donas Marias que criaram seus dez filhos, às vezes sozinhas, numa época de escassez e seca; os inúmeros estudantes de escolas públicas que hoje ocupam espaços na universidade sendo alunos ou professores. Esses sim, por mais que não digam, por mais que não se intitulem, sabem serem filhos desta nação. É maluco acreditar que ser brasileiro é ser sofrido, isso não é uma regra predeterminada, mas é o que ocorre desde que o Brasil de hoje era o de 1500 para trás. Estou apreciando de modo doentio e frio o caráter sofrido dos patriotas verdadeiros? Calma, jamais faria tal atrocidade. Apenas estou elencando que o espírito brasileiro foi alimentado pela obrigação de ser resistente às mais diversas situações absurdas existentes. Nem era minha intenção fazer rima, até porque aqui não é poema, não sei se é denúncia, ou só crítica. Talvez seja um coração cheio, de tanto ver mentiras e pseudo amores à pátria, mas talvez não seja nada... Agir por populismo sem nem conhecer o básico da 146


sua história, parece ser um convite à decadência, ou um mergulho no caos. Apesar de ter dito que julgo uns alguéns vez ou outra, não tenho valores para isso. Realmente vim aqui tentando definir o que é ser brasileiro, mas não consegui, e nem vou. Quanto mais penso, menos definições encontro. Talvez seja mais fácil definir como não ser um brasileiro de verdade, isso é tão simples, vejo muitos exemplos todos os dias na TV, nos jornais, nos rádios, nas redes sociais e na presidência do Brasil. Fortaleza - CE, 28 de out. de 2021.

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JRPLima. Professor de História que ama seus animais de estimação e, nas horas vagas, aventura-se pelo multiverso. Apaixonado pela Terra Média, adotei Tolkien como meu mestre, um exemplo a ser seguido. Ao meu ver, os livros são como pequenos portais para universos imensos, basta abri-los para viajar. Sou nordestino, de Natal/RN. Você pode entrar em contato através do Instagram @limaricardo91 ou e-mail profricardolima91@gmail.com

A TORMORINA O vento soprou por entre as folhas carmim, que bailaram, espalhando o aroma adocicado pelo ar. Aquela foi a primeira semana da primavera, a mais florida das estações. Ao longe, os pássaros gorjeiam e os pequenos animais terrestres apresentavam à floresta as suas novas ninhadas. Entre os galhos mais altos das árvores mais antigas se encontram as pequenas casas dos Tormorinos. Fixadas, ou simplesmente esculpidas há muito tempo, eram as marcas da existência daquele diminuto povo. Agitação, música, comidas e flores... muitas flores vermelhas, as pétalas de Tormorah que ornamentavam a comunidade naquela manhã. Pois era primavera e aniversário da pequena Vila. Os Tormorinos animados e sempre prontos para festa, espalharam-se pelos galhos, pontes e terraços nas copas das árvores. Os seus cabelos vermelhos alaranjados se confundiam por entre a folhagem no alto da floresta. Os pequeninos seres bebiam, cantavam, dançavam e festejavam a vida. Aqui e ali os Tormorinos enroscavam suas caudas felpudas em 148


namoricos momentâneos, era tudo alegria e comemoração. Maya era uma criança Tormorina que se destacava devido seus cabelos escuros. Em meio a multidão, com um sorriso de orelha a orelha, ela corria com um desejo no coração, queria aproveitar a primavera. Essa era a época do ano perfeita para aqueles que queriam avistar o Povo Grande. O que se sabe era que eles vinham até os Jardins em busca das deliciosas Frutas Vermelhas de Tormorah. E Maya não desperdiçaria a oportunidade, contrariando os pedidos de sua mãe. — Maya, não vá longe menina. Estamos na época dos frutos e o Povo Grande pode estar por aí – advertiu a mãe, enquanto a criança corria. — Pode deixar mamá – Respondeu a pequena peralta, afastando-se. — Você não toma jeito menina – Constatou a mãe, preocupada. Mas assim era pequena, a mais aventureira entre os aventureiros. E logo se viu uma Tormorina de cabelos escuros deixando a Vila, com o único pensamento na cabeça ela, precisava ver o tal Povo Grande. Sabia que precisava descobrir se eles eram tão perigosos como lhes contavam as histórias narradas pelo seu avô. Ela não descansaria até resolver este mistério. *** 149


Bennériam, a estrela do manhã, inclinou-se em direção ao oeste, demarcando o avançar das horas. Acima do chão, nas copas das árvores, a pequenina observava curiosa a respeito dos forasteiros que estavam nos Jardins de Tormorah, a floresta vermelha. Havia algo inteiramente novo para os seus olhinhos, Maya estava admirada. O quão grande esse povo poderia ser e como eram assustadores. O que será que eles queriam com os frutos vermelhos... de toda forma, as indagações perambulavam em sua cabeça infantil e ela se perdeu em sua mente. Foi assim que sem perceber ela se desequilibrou, caindo do galho onde estava escondida. Desespero, foi o que ela sentiu naquele momento. Não sentiu dor, pois o acidente não lhe causou dano algum. Acostumada a cair, Maya sabia bem como evitar os machucados. E foi uma questão de sorte existir uma carroça, logo abaixo, com alguns trapos e lona que acabaram por amortecer a queda. No entanto, a pequenina acabara de notar que se metera em uma encrenca sem tamanho, pois estava na carroça do Povo Grande. O tombo fez barulho, e mesmo que a Tormorina tentasse escapar não conseguia ser rápida o suficiente. — O que é aquilo? – apontou um homem calvo. — Parece um esquilo sem pelos. – Respondeu o outro homem. 150


— O quê? Eu não sou um esquilo. Onde já se viu... onde já se viu isso, confundir um Tormorino com um esquilo – Maya protestou. – Tudo bem, os esquilos são bonitinhos, mas... eu não sou um esquilo. - Garantiu ela. — Logo se ver que não é, - concordou o homem calvo, – você fala e usa essas roupinhas bonitinhas, você não é o Esquilo mesmo. — Sabe Humberto... eu acho que nós podemos levar essa coisinha com a gente. – Sugeriu o outro homem – Podemos até conseguir algumas moedas de ouro por ela. — Olhe, eu não sei que negócio é esse de "moedas de ouro" eu só sei que não vou com vocês. Minha mãe deve estar me esperando para jantar, eu tenho que ir. – Avisou a menina tentando escapar. — Vem aqui, seu duendezinho de nada, você agora é nosso e vai conosco. – O homem calvo correu e agarrou a pequenina. — Para com isso, me solta... me solta... Socorro. – Gritava Maya, enquanto tentava escapar. Os dois homens gargalharam, enquanto o sujeito calvo segurava em suas mãos a pequena Tormorina. Sem demora, o outro homem trouxe uma gaiola pequena e enferrujada, e então eles colocaram Maya dentro da estrutura. A menina tremia de medo, enquanto observava o homem calvo colocar um cadeado na portinhola de sua jaula. Aquilo só podia 151


ser um pesadelo. Não, isso não estava acontecendo de verdade, a criança não acreditava no que acabara de se meter. Seria Maya transformada em comida do Povo Grande? Será que as histórias de seu avô eram verdadeiras? Ela não sabia, só sabia que sua mãe tinha razão. Maya não deveria ter se arriscado tanto. — Agora, escute aqui... coisinha. Faça silêncio, não queremos atrair ladrões não é mesmo? – Disse o homem calvo, enquanto posicionava a gaiolinha em cima da carroça. — Aí não… não… por favor, me deixe sair daqui. Por favor, eu não fiz nada. Eu preciso voltar para casa, por favor. – A pequenina clamou em desespero, e pensou em sua mãe que essa hora deveria estar desesperada. De sua gaiola Maya observava. Enquanto o Povo Grande guardava alguns caixotes na carroça, ela não tinha coragem de os encarar, pois temia ser servida como patê em pãezinhos salgados, tal como contavam as histórias de seu avô. A pequenina então chorou, mas entendia que nem todo o seu pranto surtiria efeito. E então à noite se estendeu sobre as terras ermas. Elunys, a lua da estação, surgiu iluminando os céus em tons cálidos que contrastavam com a luz de Saphira, a lua do inverno, em seus últimos dias no céu. Os sons naturais do vento e das aves de rapina formavam uma canção noturna. E apenas os astros testemunharam enquanto a carroça deixava os Jardins Vermelhos, rumo ao 152


ocidente. *** Algum tempo passou e por muitas vezes Maya viu Bennériam dar lugar a Elunys no salão do firmamento. Mesmo muito cansada, a menina não conseguia dormir, parecia impossível repousar durante aquela viagem. As refeições eram raras, a fome era sua companheira. No entanto, os dias se seguiram e logo Maya viu a paisagem mudar, ela logo se viu em meio à enormes casas e muitas delas maiores que as árvores do Jardim Vermelho de Tormorah, sua floresta, seu lar. Estava em meio a Cidade dos Homens, no ocidente. Era tudo feito em pedras brancas, as paredes, os telhados e até o calçamento. A pequenina estranhou o fato de o solo ser branco e não conseguiu notar qualquer acúmulo de areia. As árvores eram raras por ali, ela também estranhou o cheiro do local parecia que o Povo Grande apreciava odores ruins, nada era como na floresta. Então ela viu o Povo Grande se aproximar. Eles pareciam observar algo extremamente exótico e belo. Maya era uma novidade na região, os Tormorinos não se aventuravam fora do Jardins de Tormorah, muito menos nas cidades dos humanos. Portanto, a floresta vermelha ocultava a sua existência. A surpresa era visível nas faces contemplativas e admiradas da população da cidade do ocidente. 153


— É um duende, como nas histórias? – Perguntou uma jovem que por perto passou. — Nossa, como ela é pequenininha mamãe. – Disse uma criança surpresa, enquanto puxava a mãe para mais perto. — Vindo das terras ermas, um ser dos Jardins vermelhos, um Pequenino, um duende – Gritava o homem calvo, em meio a uma multidão, em meio a feira da cidade. Não demorou muito até as pessoas ofertarem coisas em troca da "duendezinha", mas o homem calvo foi categórico, não iria se desfazer dela por pouca coisa. Aquela criaturinha deveria valer muitas moedas de ouro, pensava ele. E foi assim que se viu os homens rechonchudos, e bem vestidos, se aproximarem e disputarem o ser exótico da Floresta de Tormorah. A criança, aos olhos do Povo Grande do ocidente, não passava de um animal, a ser vendido e comprado, enjaulado, engaiolado para ser exposto, como um pássaro raro. A multidão que se formou em volta da carroça disputava, aos berros, a posse da Tormorina. Por fim, um deles saiu vitorioso. Apenas um deles levou o prêmio para casa. Um dos tais rechonchudos bem vestidos saiu carregando o cativeiro da pequenina, e deixando as mãos do homem calvo cheias de moedas de ouro. Maya observou tudo de maneira preocupada, seu destino agora era incerto e sua saudades não

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cabia mais no peito. A criança chorou, sua tristeza inundava seu olhar e corria sobre sua face, até que ela dormiu. *** — É meu? – perguntou uma voz infantil surpresa. — Sim, minha querida. É seu, – afirmou uma voz adulta calma – um presentinho para lhe fazer companhia nas horas tediosas. Maya despertou em meio a esse curso diálogo, percebendo que havia caído no sono devido ao extremo cansaço. Para sua infelicidade, ainda estava presa, mas agora em um local confortável, não mais em uma gaiola suja e enferrujada. Então, curiosa como era, decidiu sair do ambiente onde estava. Caminhou para fora da casinha, sim estava em uma bela casinha de madeira, para contemplar o recinto, e percebeu que seu novo cativeiro era dourado. Maya passou a perambular pela grande gaiola dourada. A menina encontrou um ambiente limpo, espaçoso e cheio de coisinhas decorativas. Ela percebeu que se tratava de réplicas, cópias de animais, carroças e árvores, tudo feito em madeira, e pintado para parecer real. A criança se alegrou, a visão era animadora mesmo sabendo que tudo ali era falso exceto ela. Ainda assim, Maya teve um pequeno momento de alegria até lembrar que estava presa. A saudade de casa voltou a martelar seu peito. A 155


Tormorina sempre teve um espírito aventureiro, sempre quis saber mais, conhecer mais, viver mais. Porém sabia que nada conheceria se estivesse trancada. Nada viveria se estivesse presa, ainda que sua prisão fosse dourada. Agora tudo que ela mais queria era ir embora, ela até aceitaria viver para sempre na sua vila, apenas lá. O que não suportaria era findar seus dias como uma prisioneira. Maya sabia que daria tudo para sentir o abraço apertado de sua mãe novamente. Como gostaria de ouvir as histórias do seu avô de novo, como sentia falta dos beijos de boa noite de seu pai, e dos barulhos dos seus irmãos brincando, e de toda agitação da Vila dos Tormorinos. Como seu lar fazia falta, a pequenina se viu perdida nas lembranças e não percebeu que estava sendo observada. Dois olhos castanhos e extremamente alegres pairavam no ar. A pequena prisioneira levantou-se lentamente, nenhum movimento brusco foi feito. Até que disparou e buscou o refúgio da casinha de madeira. Estava com medo é claro, quanto tempo mais ficaria nessa situação, Será que algum dia sairia dali ou acabaria virando comida do Povo Grande, será que um dia voltaria para casa, será que um dia encontraria a sua mãe novamente, muitas perguntas surgiram em sua mente, muitas indagações a atormentavam e Maya não possuía nenhuma dessas respostas. 156


Do outro lado das hastes douradas, uma menina observou. E toda sua felicidade não cabia mais dentro de si, havia um sorriso enorme em seu rosto. Ela sabia que naquele momento precisava falar, a pequenina precisava conhecê-la, então um pensamento lhe veio em mente, seria de bom tom e educado da parte dela se apresentar primeiro. A menininha do Povo Grande respirou fundo e então falou. — Olá pequenina, você está bem? – A criança iniciou a conversa com um belo sorriso na voz – é eu sou a Lívia, mas pode me chamar de Lív, todos aqui chamam – a garotinha continuou, enquanto observava por entre as hastes douradas. Mas só teve silêncio com respostas. Foi então que tomou uma outra iniciativa e depositou, dentro da gaiola, algumas frutinhas vermelhas. – Tome acho que você deve estar com fome, não é mesmo? Então, precisa se alimentar, mamãe sempre fala que saco vazio não para em pé. — Mamá diz que se você não come acaba ficando tão miúda quando uma pulga – informou a pequenina, saindo lentamente de dentro da casinha da qual estava escondida. — É mesmo? Mamãe fala que se você não tomar banho direito os ratos irão te arrastar para fora da cama e te levar para dentro do buraco – acrescentar Lívia. 157


— Nossa, a mamá disse que se você não tomar banho direito vai nascer brotos nos seus pés – lembrou-se Maya com um leve sorrisinho no rosto. E foi dessa forma que aos poucos as duas crianças se aproximaram. De maneira natural ingênua, lembrando-se de suas mães, seus exemplos, suas vidas, Maya a Tormorina aos poucos entendeu que a menina que ali estava não era uma ameaça, mas sim alguém que podia confiar. Lívia, a criança humana, encontrou na Tormorina uma amiga e companheira, com quem dividir seus momentos. E assim seguiram-se os próximos dias. *** Não podemos dizer que foi uma amizade comum, daquelas feita em torno de simples brincadeiras infantis, aqui nasceu entre Lívia e Maya. Entre as duas cresceu uma forte ligação. Algo intenso cresceu entre a humana e a Tormorina. Estavam cada vez mais próximas, e conforme a primavera avançava sua conexão se fortalecia. Brincadeiras incontáveis preenchiam as tardes frescas, tendo como seus principais cenários o quarto da criança e os jardins. Mas não era uma surpresa encontrá-las perambulando pelos corredores e passagens ocultas do grande castelo da família de Lívia, elas estavam sempre ali à espreita.

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As noites eram tão animadas quantos dias. E se pela manhã ela se perdia em brincadeiras, durante a noite se perdiam em diversas histórias contadas em baixo dos lençóis. Por várias vezes Lívia falou das aventuras fantásticas dos humanos, enquanto Maya apresentava suas versões sobre tudo que conhecia a respeito daquele Povo Grande. Tais informações arrancavam gargalhadas da doce Lívia. E durante todas as noites, a Tormorina falou sobre as belezas da floresta vermelha, o Jardim de Tormorah, seu lá. Também falava da saudade que sentia de casa, falava de seus sonhos e em como gostaria de viajar e conhecer o mundo. Foi aí que Livia percebeu que, apesar da imensa amizade e dos momentos que passavam juntas, das alegrias vividas ali, a Tormorina não estava feliz. Seja pela saudade da mãe, da família. Seja pela não realização de um sonho, a Tormorina não poderia permanecer ali, presa. Lívia estava decidida. Ela só não sabia bem como, nem quando, mas tinha certeza. Ela precisava ajudar a pequenina voltar para casa, para o seu lar. *** O plano era simples, aos olhos da criança. Maya não poderia escapar por terra, então escapasse pelo ar, e Lívia já sabia como, ela deveria mandar a Tormorina para as nuvens para o céu. Para realizar tal feito, Lívia 159


pediu a seu pai que lhe trouxesse um balão de estrelas. A garotinha insistiu que Maya precisava conhecer os balões com antecedência, para não se assustar durante o espetáculo que aconteceria em algumas semanas. A Noite da Estrela era um evento que marcava o início do Ano Novo. E cada cidade e reino possuía o seu jeito de comemorar seu, seu ritual característico. Em Drastella, os cidadãos caminhavam até a praia a fim de assistir o espetáculo das luzes. Os veleiros, ancorados no Mar do Fogo Ocidental, liberam centenas de pequenos balões que se elevam ao céu, alimentados por uma chama própria. Seus materiais de cores diferentes davam origem a vários pontos de luz nos céus noturnos. E assim, eles subiam até se perderem no firmamento. Então Lord Linsbell decidiu trazer o balão aquela tarde. Seja pela insistência, pelo Jeitinho carinhoso da menina ou por confiar nela, o fato era que os pequeninos da floresta não entendiam ou conheciam os costumes dos humanos. Por isso, o homem voltara para casa, trazendo consigo um belo balão de estrelas. Sorriu ao ver os olhos da garotinha brilhar, mal sabia ele que por trás daquele pedido existiam intenções ocultas. Aquela tarde fora como uma velha tartaruga, caminhando lentamente. Mas o crepúsculo chegou e Lívia decidiu relatar a Maya todos os seus planos. A 160


criança Tormorina preocupou-se, o medo e receio queriam invadir seu coração. Porém a amizade requer confiança e Maya confiava em Lívia. Contudo, um aperto no coração fora o que a Tormorina sentiu ao perceber que deveria deixar a amiga, talvez jamais voltaria a vê-la. Maya não conteve as lágrimas, e observou enquanto os olhos da menina humana davam vazão aos seus sentimentos, era uma despedida. *** Então à noite se foi em um novo alvorecer surgira. Assim que os primeiros raios da manhã iluminaram o céu, as meninas se viram no pátio do castelo. Lá estavam elas, duas meninas, duas amigas, uma humana e uma Tormorina e traziam consigo o balão de estrelas e um certinho atrelado a ele. Havia, também, uma bolsinha minúscula repleta de mantimentos e um frio enorme em suas barrigas era chegada a hora, aquele era o momento. — Aqui, pegue isso — falou Lívia entregando o pequeno embrulho a Maya. — Obrigado, Liv. — Havia tristeza na voz e no olhar da Tormorina. — Agora vamos, antes que apareça alguém — Ordenou Lívia, com uma angústia que não cabia no peito. 161


— Você tem certeza disso? — Sim Maya, pois não é justo que você viva presa aqui, — disse a garotinha enquanto deixava as lágrimas rolarem — eu amo você, mas morreria se nunca mais pudesse ver a minha mamãe. — Você tem razão, sinto falta da Mama — ponderou a Tormorina. — Eu sentirei sua falta, minha amiga — Lívia abraçou a pequenina. — Nunca vou te esquecer. — Afirmou Maya. — Agora vá, antes que me arrependa e nunca mais te deixe partir — Lívia sorriu em meio ao pranto. — Mas… é que eu tenho medo, nunca voei antes. – Informou Maya. — Não tenha, essa é a sua única chance. Agarre ela e não deixe escapar. Você pode ser pequenininha, mas é grande por dentro — sorriu Lívia, enquanto encorajava a amiga. — Muito obrigado. — Promete que iremos nos corresponder — pediu a garotinha humana. —Não existem mensageiros nos Jardins Vermelhos, não um corajoso o suficiente para vir a essas bandas. — Afirmou Maya. Então elas sorriram, sabendo que era a última vez que contemplariam a face uma da outra. Mas a amizade e a gratidão existiriam para sempre em ambos os corações. Lívia jamais se esqueceria da companhia

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e a irmandade que encontrou na Tormorina. Maya por sua vez teria mais para lembrar, além da amizade, a pequenina se lembraria para sempre da ajuda oferecida pela criança humana. Foi através dela que a Tormorina conseguiu a liberdade. Maya havia passado os últimos meses na cidade de Drastella, a maior cidade ocidental. Seus dias e suas noites, bem como seu coração, foram divididos com uma garotinha humana, Lívia com seus cabelos cacheados e alegria que existiriam para sempre em seus pensamentos. Agora eram como irmãs, e jamais a deixaria de verdade. Assim pensou a Tormorina, enquanto o balão de estrelas a elevou aos céus. Aos céus, quantos Tormorinos já chegaram aos céus, refletia Maya enquanto o balão subia cada vez mais alto. O vento dos Navegantes, vindo do litoral, era responsável por trazer os marinheiros de volta para casa e, com sorte, levaria Maya de volta para a dela. Voltar para o lar era tudo o que se passava na mente de Maya, nas últimas horas. Apesar da saudade que ela iria sentir por Lívia, ver seus irmãos, pais e avós era algo inteiramente irresistível. De dentro do pequeno cesto, a Tormorina viu o castelo, onde viveu os últimos meses, apequenar-se. Ela viu a Cidade Branca revelar cada recanto aos seus olhos curiosos. Maya contemplou a Torre Branca Iluminare figurando como uma estrela em terra, como um grande Farol Drastelliano. Então as horas passaram 163


e Bennériam, a estrela da manhã, se colocou alto no céu. Maya sentiu fome e comeu um pouco do que havia no embrulho passado por Lívia. O tempo continuou a passar e a Tormorina vagou pelos ares, levada pelo vento como um barquinho de papel que se perde nas ondas do mar. O céu se tingiu em tons de laranja e púrpura, e as nuvens formavam texturas diversas. Era uma visão magnífica, tudo aquilo que Maya sempre quis estava ao seu redor. Aventura, conhecimento de mundo e uma vida cheia de descobertas. Foi então que o espírito aventureiro renascera em seu âmago. Ai percebeu que estava livre, percebera que poderia ir até em casa, percebeu que poderia voltar até a amiga, perceber ainda mais, ela poderia ver o mundo com os próprios olhos, tocálo com as próprias mãos e percorrê-lo com os próprios pés. Assim o faria, pois era uma Tormorina Livre. ***

O que aconteceu de fato com Maya, após ter superado os limites de Drastella, é um mistério. Acredita-se que ela voltou ao Jardim Vermelho de Tormorah, sim ela voltou. No entanto, não se sabe como foi percorrido esse caminho e muito menos quantas vezes ela o fez. Desde aqueles dias não era 164


raro encontrar um bardo, um trovador que soubesse decor e salteado alguma canção acerca de um duendezinho aventureiro, uma Tormorina que se foi pelo mundo. Portanto, podemos dizer que Maya viveu suas aventuras, mas também encontrou o caminho de casa, de novo e de novo. Pois o verdadeiro aventureiro sabe desbravar o mundo, sem esquecer suas raízes, sem perder o caminho de volta para casa. *** FIM

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Jessica Silva

jpcs_5@outlook.com

Naquele tempo, não entendia quem ou o que eu era. Era tão estranho. Eu era uma estranha no meu corpo e nos corpos que conhecia. Por anos, foi uma sucessão de tentativas atrapalhadas e falhas de comunicação. Logo nos primeiros anos da adolescência, fui obrigada a entrar em um jogo que não era meu. Obrigada, digo, no literal. Talvez estivesse em um palco pronta para apresentar, sem roteiro, sem roupa, sem referências, sem palco. Até que um dia desses dias passados, conheci o desejo que os corpos são capazes de despertar, pior, do colapso que acontecia no meu estômago, no meu corpo, nas minhas mãos, e que instantaneamente me paralisava. Me colapsava. Era tão intenso que as vezes me doía. Não me aproximava mais de quem pudesse me despertar isso. Eu escondi e não contei pra ninguém. Fiz meu segredo o que era o contrário do que me confidenciavam. Vivi por muito sem deixar essa sensação permanecer no meu corpo. Até que te conheci. Faz tanto tempo. Nem me lembro ao certo como foi, me lembro apenas que gostava de passar as aulas com você, conversando e querendo estar ali, com você. Me lembro de uma vez que consegui um emprego qualquer, tive tanto medo, que no segundo dia, por 166


algum motivo, consegui que você me acompanhasse até lá. Você foi. No caminho, dentre assuntos e banalidades, você disse. Foi difícil, eu lembro. Foi difícil pra você. Falava algo como a igreja, confusão, sentimentos, eu e você. Foi a primeira vez que me falaram isso. Eu me lembro de como foi difícil pra você. Te admirei tanto. Enquanto ouvia você falar, reconhecia aquela sensação escondida. Enquanto ouvia você falar, sentia vontade de te dizer que não entendia muito bem disso, não entendia muito bem sobre os sentimentos, mas queria tentar, queria aprender. Com você. Quem sabe até te contar aquele segredo, tentar deixar você me tocar. Eu tentar te tocar. Te tocar. Mas fora de mim, no meu corpo, cuidado! Não me toque, não tente me tocar. Eu não posso tocar em você. Olha, quase não posso olhar para você. Eu não sei o que é isso. Impossível te explicar. Hoje eu não me lembro mais o que fiz para sair de lá. Mas tenho a sensação que te magoei. Naquele dia, não fui trabalhar. Nem nos outros. Sei que os anos passaram e a vida é engraçada em seus caminhos, gosto de pensar assim, nessa possibilidade do mistério. A gente voltou a se encontrar um tempo depois, não me lembro como foi, era algo como algum evento que você precisava de alguém pra tocar? Não sei. Não importa. A partir daí, passei a me perguntar quem era você ali. O espaço era sempre muito cheio da sua voz. O espaço era todo 167


tomado da sua presença quando você estava lá. Como ninguém percebia? Como ninguém faltava com o fôlego? Como conseguiam te olhar sem quase derreter por dentro? Eu não fazia ideia. Até que um dia veio na cabeça te falar. Você disse que a gente tinha de pagar pra ver. Eu topei. A gente pagou. A gente viu. Eu vi. Eu vi que não fazia ideia. Estava ali, nua, tocando em você. Só ali. Mas era demais pra mim. Mais do que era permitido sentir. Meu comportamento era de alguém recuado, pronto para escapar dali. Lembro que um dia você dormiu em casa e eu precisava te acordar. Entrei e saí umas 5 vezes do quarto. Até que na última vez, te toquei, pedi pra acordar, e em uma tentativa falha de esconder o que estava sentindo, te deixei lá, sozinha, e a partir daí te deixei cada vez mais. Até a despedida, não me lembro como foi, lembro só de uma música, que você disse pra guardar, mapa-múndi era o nome? Algo assim? Não me lembro. Após o diagnóstico tardio de autismo, me senti leve por entender que esse ‘segredo’ não é um segredo. Sou eu. Sinto as coisas assim. Elas podem ser intensas mesmo. E na grande maioria das vezes são. E ok. Tá tudo bem. Tem algumas coisas que marcam, mesmo que já tenha passado o tempo delas, estão ali. E vez ou outra aparecem pra gente pensar. À toa. E quando a gente lembra, alivia e para de doer. Essa é uma carta sem remetente. 168


João Carlos Pinto de Almeida, nascido no Porto em maio de 1969. Paralelamente à frequência do ensino oficial, estudei piano com a prof.ª Maria da Conceição Caiano, tendo completado o Curso Complementar de Piano. Em 1987 entrei na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde obtive a licenciatura em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores *. A evidente vocação para o ensino, particularmente da música, e a influência do prof. João Pinheiro, levou-me à candidatura e admissão à Escola Superior de Música de Lisboa (Formação Musical), curso que terminei no Porto, na Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo *. Sou Mestre em Estudos da Criança / Educação Musical pela Universidade do Minho, tendo defendido a tese, “O Repertório Musical Português no Curso Básico do Ensino Especializado [da Música]”, orientada pela Professora Doutora Maria Helena Vieira. Obtive a profissionalização em Ensino da Educação Musical no Ensino Básico pelo Instituto Piaget (Escola Superior de Educação, polo de Gaia). Tenho lecionado Música (sobretudo Formação Musical, Iniciação Musical, Classe de Conjunto (Coro) e Piano) e Informática em Portugal e já lecionei estas disciplinas em Angola. Publiquei o livro “100 contos 100 palavras” em fevereiro de 2019, pela Chiado Books. que motivou a criação de uma página no Facebook: https://www.facebook.com/jfmcpa. * Nome legal da Escola e do Curso.

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OS TEMPOS IDOS João Carlos Almeida Sinto, lentamente, as diferenças: como era e como sou, como eram os outros e como são, como eram os locais e como são… Sinto, quase sempre, saudades desses tempos. Gosto, às vezes, de revisitar o passado. Pode ser, apenas, em sonhos. Consigo rever-me quando tinha menos idade, quando era criança. Havia coisas e sonhos formidáveis! Quem revisitou o tempo da juventude dos pais? Seria maravilhoso. Como teria sido a juventude dos avós? Gostaria de ter vivido todos esses tempos e lugares! Agora dou mais valor aos pormenores, o que é maravilhoso, mas nesses outros tempos o tempo corria agradavelmente devagar.

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(NÃO) HÁ VOLTA José Mateus Jacó Menezes - A passagem, por favor – disse ele estendendo-me a mão, agora não tem mais volta. - Ah, sim, desculpe, aqui está. - Procure um lugar para sentar, nós vamos sair daqui a pouco. Não respondi, mas, fiz o que ele pediu. Agora não tem mais volta. Um mal estar, uma sensação ruim, uma queimação em meu peito uma vontade de sair correndo toma conta de mim, contrariando tudo isso, continuo caminhando até achar um bom lugar para sentar. Olho em volta, a poucas pessoas já dentro do ônibus. Será que eu estou fazendo a coisa certa? Talvez seja o único jeito, mas, não quero deixar tudo pra trás. Vão ser só alguns anos, só alguns anos lá. Subitamente um medo me domina, do futuro, de deixar tudo para trás, as pessoas, os lugares, talvez eu não saiba oque eu estou fazendo ou talvez eu saiba, só sei que não posso simplesmente sair correndo e desistir de tudo, não agora. Agora não tem mais volta. 171


Ainda me lembro das últimas palavras que ela me disse “quando sentir saudade, saiba a cada segundo que se passar estaremos mais perto de nos reencontrarmos” Olho pro meu relógio, 20h23min, e então vejo os segundos. E não me sinto bem com isso. O tempo agora é meu pior inimigo, tudo que eu menos quero é pensar no futuro. Lentamente o ônibus começa a encher, e lentamente meu desespero aumenta, será que eu saio correndo? Ainda dá tempo, afinal sempre a uma volta. Talvez isso seja mesmo uma burrada. Tento me levantar, porém algo me impede de sair do lugar, finalmente a ficha caiu e estou indo para outro local, totalmente diferente de tudo que eu conheço, e pior, poderia nunca mais voltar, iria abandonar tudo por uma aventura que podia nem dar certo. Minha respiração fica ofegante, meu corpo todo queima, entretanto, minhas mãos nunca estiveram tão gélidas. Eu não posso ir. O ônibus começa a andar, de início um pouco lento, mas logo a velocidade vai se intensificando, é agora ou nunca, já me decidi, sendo a decisão errada ou certa é isso que eu vou fazer. Espero que ela possa me perdoar. 172


Juliana Moroni nasceu em São Carlos, Estado de São Paulo, Brasil. Doutora em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professora, pesquisadora, poeta e contista. Publicou artigos e capítulos de livros com temática em pesquisa filosófica, bem como poemas e contos em revistas literárias, coletânea e blogs. https://fragmentosilusoes.blogspot.com/

RELÓGIO GIRANDO EM SENTIDO ANTI-HORÁRIO Pegou uma taça de vinho, sentou-se no sofá carcomido pelo tempo de sua ausência. O pó que cobria o assento se espalhou pela atmosfera tranquila da sala. A penumbra trazia um ar de mistério que ela sempre havia cultivado em si, bem como um aspecto de solidão, ampliada pelas memórias que a inundavam na sua volta à fazenda Antônia Terino, nome de sua avó. Ela estava ansiosa. Havia voltado justamente para reencontrar o seu passado. Ainda sentia a dor no peito da bala que a havia perfurado, em um assalto à mão armada, em frente ao seu apartamento, na cidade onde trabalhava durante a semana. A operação ainda lhe custava a dor de ser agredida em uma sociedade sedimentada na violência e no sadismo de políticos algozes. Levantou-se e caminhou até a janela que direcionava o olhar para os fundos da casa. Lá havia um corredor natural de árvores, um caminho poético e belo, iluminado durante o dia pela luz do sol e, agora, 173


pela luz da lua. Diziam metaforicamente que era o portal multidimensional entre mundos subjetivos que se emaranhavam em espectros, às vezes confusos, de inúmeras e profusas existências. A suavidade daquela imagem trouxe à sua mente a paz que ela tanto almejava, mesmo que ainda momentânea, presa à conexões passadas. Bateram na porta. O relógio girando em sentido anti-horário. Ela ouvia vozes que vinham da varanda. A ansiedade acelerava no peito um coração extenuado, cansado de medo. Eram eles, pensou ela. Viajaram de muito longe, trazendo nas almas resgates de histórias, lembranças atordoadas no cotidiano de sons indistinguíveis, em cidades por onde correm vidas em trilhos de metrôs. A porta se abre, num misto de pressa e apreensão. Rostos sorridentes, pálidos de exaustão a observam, encantados. O tempo estampado nos caminhos curvilíneos que percorrem as peles ressecadas nas andanças do esperançar. Ela solta um suspiro prolongado daqueles em que a saudade se comunica em forma de alento divino. Os olhos de pupilas dilatadas pedem a “palavra”, brilham feito estrela solitária, queimam a distância que é subtraída em segundos, feito a eternidade que costura laços em pequenos mundos. A lua afaga o rosto delicado, embevecido de ternura. As mãos se tocam lentamente, ainda receosas 174


de serem usurpadas pelo tempo. Os corpos se encontram em abraços longos, encurtando lonjuras, semeando amor onde havia ruptura. A porta permanece aberta, como se estivesse observando o encontro de passados abandonados em dimensões sem tempo, de histórias dilaceradas pelos acontecimentos inesperados, escritos pelo acaso. Já não se sentia mais cansada. A dor no peito havia sido levada pelo reencontro tão aguardado. Uma águia sobrevoava a casa, voava em círculos, desaparecendo no corredor de árvores, nos fundos da casa. O caseiro da fazenda que passava pelo lugar parou e olhou, intuitivamente percebeu algo diferente. A casa abandonada, há décadas, parte de suas paredes já demolidas pelo tempo. A parte intacta era a varanda e a porta, envelhecida. Os antigos donos já eram falecidos. Jéssica era a última que ali havia estado, morta com um tiro no peito, há cinquenta anos. Ele sabia toda a história da família Terino porque seus pais tinham sido os antigos caseiros da fazenda, hoje abandonada por causa de uma briga na justiça entre os herdeiros que se arrastava por anos a fio. Daniel olhava desgostosamente, contrariado, aquela terra de grande proporção, abandonada, enquanto milhares de pessoas sofriam com a fome, sem terem absolutamente nada para comer. Terra que poderia ser cultivada, porém, parecia estar nas mãos de 175


pessoas erradas. Nos tempos dos antigos donos, havia fartura, trabalho e distribuição gratuita de alimentos que ali eram cultivados. A fazenda era um Oásis em um país marcado por desigualdades. Havia outra perspectiva de mundo, hoje substituída pela visão estreita de vida dos herdeiros, cujo lema era acumular riquezas, ter posses, mesmo que sejam terras improdutivas, fazer fortuna em cima da miséria alheia. Neoliberalismo, louvor ao individualismo, um punhado de milionários, milhares de miseráveis. Daniel, disperso em seus pensamentos, recobrou a atenção e percebeu que a porta, curiosamente, encontrava-se aberta. Talvez alguém tivesse entrado ali durante o dia. A luz da lua incidia na varanda, proporcionando uma atmosfera melancólica e suave. Nunca tinha visto aquela casa por esta perspectiva, de certa forma, bonita. Diziam que ela era malassombrada, o que ele achava superstição, fora da realidade. Na frente da casa havia florido um girassol. Há anos o girassol floria ali, solitário, com seu amarelo luz, voltado para o sol durante o dia, trazia vida e desenterrava histórias da velha casa abandonada. Daniel olhou novamente a casa, antes de seguir seu percurso. O silêncio de passados distantes perturbavam a sua mente. Não sentia medo, mas uma sensação de que algo pendente se encerraria ali, naquele momento. 176


Olhou para a lua e para a varanda, continuou caminhando e avistou o corredor de árvores. Sentiu a vida fluir diferentemente. Continuou na sua realidade enquanto compartilhava, sem saber, realidades diferentes em dimensões múltiplas onde o tempo e o espaço existem de formas diferentes.

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Karine Dias Oliveira. Natural da cidade de Nova Friburgo/ Rio de Janeiro. Professora. Pós-graduada em: Gestão Escolar, Supervisão Escolar e Orientação Educacional; Psicopedagogia Institucional; Educação Ambiental. Escritora de histórias infantis (ilustrando-as), contos, microcontos, trovas, poesias, crônicas, etc., mas ainda não tenho livros publicados. Selecionada em inúmeras publicações, vencedora de Concursos Literários (além de menções honrosas e especiais).

“TIC-TACS”

A filosofia dos ponteiros é a trajetória das lembranças Que viajam ao som dos “tic-tacs” da marcação cerrada... Onde o jardim da saudade enfeita a soleira Em busca da harmonia entre pretérito e futuro Ao espiar as passagens Ao sorrir com encantamento Ao confrontar os capítulos e desdobrar páginas.

Entre os intervalos dos sentimentos O tempo não pára... O relógio indica a necessidade das experiências Não se envaidece com paredes nobres

Não compadece mediante as carências 178


Muito menos... deformam-se sobre as avarezas... Assim, o tempo e a saudade ditam os compassos mais íntimos.

As emoções relatam ciclos Sobre períodos e transições Que na cadência dos tais ponteiros... Movimentam vivências em estações Que evoluem ao amanhecer E revelam sonhos no crepúsculo Quando há impressão de que o relógio fará a saudade adormecer!

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Kelle Marinho- 49 anos- Uberlândia-MG. Formada em Economia na Universidade Federal de Uberlândia. Escrevo desde a adolescência, mas só vim publicar no site Recanto das Letras em 2020. Fui bem recebida pelos recantistas. Escrever é fundamental para minha saúde mental, principalmente por conta da pandemia. Espero que meus textos façam bem a quem os lê. E-mail: kmarinhofaria@hotmail.com

COSTUMES Sabrina repousa os óculos sobre a mesa, os olhos estão cansados. Passara muito tempo trabalhando no escritório. Nos últimos dias chegava às nove da manhã e só ia para seu apartamento às oito da noite. Enquanto arrumava sua mesa de trabalho, lembrou-se que era sexta-feira e que o fim de semana prometia na companhia do namorado. Havia três fins de semana que não se viam devido a compromissos de trabalho. Ambos eram workaholic, mas ele a superava. Os sábados e domingos sem se verem eram por conta do trabalho dele. Mas finalmente se acertaram de passarem um fim de semana juntos na praia. Foi para o apartamento pensando nos momentos agradáveis que estavam por vir. Fez mentalmente suas malas. Não poderia se esquecer do biquíni novo. E nem do chapéu que ganhara da mãe de William, seu namorado. Assim, chegou no apartamento quase nove horas da noite. Pediu comida a delivery e foi para o banho. Continuou debaixo do chuveiro fazendo planos para o dia seguinte. Vestida em um roupão, deitou-se no sofá a espera que o porteiro interfonasse para que recebes 180


se o seu jantar. Mas foi ouvido o toque de seu celular. Era William. Atendeu com voz tranquila e romântica. Seus lábios estavam arqueados para cima num belo sorriso, enquanto ouvia William atentamente, e em um átimo de segundos seus lábios se declinaram assim como sua testa franziu. Mudando o tom de voz, ela esboçou uma recusa à fala dele. Como assim, ele teria que trabalhar nas próximas quarenta e oito horas. Já ficaram afastados três semanas, num total de 144 horas. Deu um ultimato, ou ficariam juntos o fim de semana ou estava tudo terminado. O rapaz tanto se empenhou no discurso que acabou convencendo-a de que seria o último fim de semana que trabalharia. Finalmente, por amor, aceita. Disse a ele que a saudade apertara nesses últimos dias. Na manhã de sábado, Sabrina se levanta triste, sem saber o que fazer. Toma apenas café, e depois no silêncio de seu apartamento pensa em voltar para cama e dormir até mais tarde. Mas um pensamento a toma de repente. Lembrase de uns tios no interior do estado que não vê há anos. E da prima Maria Flor com quem passara bons momentos na infância. Toma o celular e busca notícias pelos parentes. E fica sabendo que o primo Neco, que mora próximo ao seu apartamento, vai para os lados do sítio dos tios. 181


Sem parar para pensar, liga para o primo e pede carona. Duas horas mais tarde está no banco carona viajando para o interior. Ah, como pôde viver longe daquelas paisagens. Maria Flor deveria estar uma linda moça. Assim que passaram pela porteira avistaram ao longe os tios e a prima na lida da roça. Neco chegou buzinando do alto da colina. Lá embaixo o tio ensombrou o rosto com as mãos para ver quem se aproximava. Reconhecendo o carro do sobrinho, correm em direção à casa. Sabrina ao sair do carro não é reconhecida. A moça havia crescido bastante, tanto que o tio precisou erguer a cabeça para falar com ela. - Não me reconhece, tio? Sou eu, Sabrina. - Sabrina, mas como você cresceu! Maria Flor vem contente abraçá-la. A tia fez sinal para que entrassem. Tia Elvira foi atiçando a lenha para requentar o almoço. E Sabrina se fartou da comida da roça. O frango com quiabo e polenta era a comida dos deuses. E Neco despediu-se indo para a casa dos pais logo ali nas vizinhanças. A família tirou o resto do dia livre para conversarem. Depois veio o lanche. A broa de fubá, o pão de queijo mineiro e o café coado no coador de pano.

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À noite, o cri-cri dos grilos fizeram que Sabrina tivesse um sono mais cedo do que de costume. A cama foi oferecida com alvos lençóis sobre o colchão de palha. Dormiu muito bem. De madrugada acordou com ruídos que pareciam vir da cozinha. Levantou-se e foi ver. Eram os tios e a prima. Espantaram ao vê-la de pé. - Sabrina, você deveria estar na cama! - Eu ouvi uns ruídos e vim ver o que era. Parece que estão de saída. - Bem nos desculpe, deixamos um bilhete para você em cima da mesa. Temos que ir para a roça. Precisamos capinar o mato ou ele toma conta da plantação! - disse o tio se desculpando. - Eu deixei o café na chapa do fogão pra mantê-lo quentinho. E o almoço também! - Então vão almoçar lá na roça? - Sim - Então quero ir também! - Mas você não tem o costume de ir a roça, é melhor ficar aqui – disse o tio em tom de súplica. - Mesmo assim, quero ir! Sem mais argumentos os tios permitiram. Cada qual levou uma marmita em uma das mãos e na outra a enxada apoiada nos ombros. Não permitiram, no entanto, que Sabrina levasse uma enxada. A moça viu atrativos em tudo, no riacho, nas árvores, nas flores, e até nas pedras. Enquanto isso, os tios e a prima capinavam com destreza. 183


Até que a prima veio se sentar com ela embaixo de uma árvore. Levava consigo a marmita, e num ato corriqueiro Maria Flor destampou a marmita e começou a comer. - Mas você já vai almoçar? - Sim, estou faminta! - Mas quantas horas deve ser agora? - Aqui a gente almoça quando tem fome! - Mas deve ser muito cedo. Maria Flor olha para a posição do sol e diz: - Nove horas, como eu disse, cada um se alimenta quando tem fome. Sabrina entendeu a liberdade daquelas pessoas, eram livres de convenções. Sentiu-se imensamente grata por estar ali, nem se lembrou do celular que ficara na casa e nem de William que poderia ter ligado.

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Kryssia Ettel Mendonça de Souza. Pseudônimo: Ettel. Um tanto socióloga, um outro tanto professora de idiomas. Amante das línguas e das letras e poesias e artigos científicos, com firme crença de que só a interpretação de texto salva. kryssiaettel@gmail.com

EM MEMÓRIA

A vida é feito gota d´água Nasce alta, leve, transparente Vem encorpando, ganhando força e fazendo história. Vai descendo, pesada pelos anos que carrega.

Encurvando pelo peso da experiência. Ou não. Triste é o término de toda a gota: Dissipar-se, bater no chão, escorrer E toda sua trajetória vai deslizar pelo bueiro da memória alheia.

Adeus, vô.

julho de 2013 185


Lara Machado é uma jovem que ama escrever, para ela escrever é parte do que é e essa parte necessita de leitura.

SAUDADE POR VIVER A saudade é pelo passado

Cada momento teve dificuldades Nossa memória seletiva só diz alegrias O passado parece feito de sonhos E alguém nos fez sonhar mais Esse alguém não está mais conosco

O tempo continua passando misterioso Sonhamos com um futuro melhor E tudo se resume em um relógio Momentos especiais passamos sem contar Momentos ruins pareceram longos A vida é uma linha do tempo torta E descidas e subidas fazem parte Alguém deve sentir nossa falta E um sorriso brota suavemente Somos importantes para alguém Ou já fomos algo raro e especial E o melhor vai ser conhecer mais gente Para sacudirem nossa linha ainda mais 186


COMBOIO DA BEIRA ALTA Liliana Pragana Foi há 18 anos que embarquei no comboio que me levaria numa das viagens mais determinantes da minha vida. Ainda recordo, como soava o alarme de partida. Abeirada à entrada do comboio, aproveitava para dizer um último adeus, entre um olhar embaciado e uma voz embriagada.

Deixava para trás parte da minha alma. Pensei que não fosse fácil viver apenas com metade de mim, mas facilmente, percebemos que conseguimos guardar a outra metade para cada novo encontro.

Fecho os olhos e revivo: -as paisagens montanhosas, que tem sempre um gosto gélido, tão próprio; -o cheiro da terra, trás à memória a imensidão de gargalhadas que entoavam no céu; -as flores, que jaziam por ali, colhidas num campo selvagem com cheiro a nostalgia. 187


Tanto amor que não cabe apenas num só coração.

No comboio que me trouxe, apenas couberam as lembranças de tantos momentos felizes. Deixei para trás parte de mim. Deixei quem me deu a vida. É certo, que quero aproveitar cada momento que me restar, de cada pequeno reencontro. Acredito, que mais tarde, o lugar que me ensinou a andar me ensine novamente a dar os últimos passos. Nesse momento, vou saber reconhecer o meu lar e o alarme de partida do comboio.

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Luana Silva Pereira mora em Campina Grande – PB, é estudante de Letras – Língua Portuguesa (UEPB), apaixonada por futebol, praticante de Muay Thai, e aspirante à escritora. Aos 13 anos iniciou sua relação com aquela que a acompanharia ao longo de sua trajetória. O contato com a escrita se intensificou ao ingressar ao ensino superior, ainda no ano de 2017. Hoje, prestes a concluir a graduação, segue contando histórias que, ao longo do tempo, foram ganhando títulos e espaço em sua vida. Como contista, mas sendo escritora também de romances, a jovem estreou na editora InVerso com seu trabalho futebolístico “Antes do Apito Final”, uma verdadeira partida que precisa ser prorrogada.

03h26min Estava imersa nas minhas leituras quando o alarme disparou. Prometi para mim mesma que não dormiria tão tarde aquela noite. Então, eu tinha que cumprir com meus compromissos, especialmente os do dia seguinte. Desliguei o abajur, que fica ao lado da minha cama, em cima de uma pequena cômoda junto de alguns objetos pessoais; nada que incluísse aparelhos tecnológicos, e não por me achar “antiquada”, apenas não acho conveniente deixar algo assim, que pouca intimidade tem comigo, junto de coisas tão inestimáveis. Não era nem 20h00min da noite quando me preparei para dormir. Lembro de ter olhado para o relógio antes de fechar os olhos. E que relação maravilhosa eu mantinha com aquele velho cobertor roxo com o qual me cobrira naquele instante. Com a cama então, melhor nem comentar. Desliguei tudo o que me tirava da cama naquele momento, e me deleitei em meu sono, isto até às 3h26min, a hora exata que ela 189


costumava chegar. Aquela era mais uma noite de espera, mais uma parte daquela semana sem resultados e cheia de questões: como sabemos que é chegada a hora? E será que eu vou conseguir me despedir dela assim? E que marco isso vai ter na minha vida? Questões como essas mereciam ser acompanhadas de um bom e forte café, mas talvez o café também não faça mais parte disso. E lá estava eu de pé, às exatas 03h30min. Resolvo passear pela casa, observando tudo, enxergando aquilo como parte do que fui, porque um dia eu dormi menina e acordei mulher. E se tudo isso representa o que eu fui, como faço para representar o que eu serei de hoje em diante? Talvez seja hora de fazer umas mudanças por aqui; mudar o velho sofá do primeiro ano de casamento, ou quem sabe passar com uma onda de inovação pela cozinha, mudar tudo por lá, e esses quadros e arranjos? Certamente não fazem mais parte da minha realidade. E o que eu devo incluir nessa nova fase? Uns quadros de pintores importantes, de grandes clássicos? E devo beber chá e tomar sopa todos os dias? Lembro-me como se fosse ontem do dia em que precisei mobiliar toda essa casa. O finado João me ajudou, afinal; éramos recém-casados, estávamos em perfeita sintonia, e estivemos assim por longos 20 anos, quando, infelizmente, precisei deixá-lo partir, e em cima do leito, me deixando com os meus 38 anos e 190


um monte de coisa de jovem na cabeça, ainda me disse: “essa é só a sua primeira grande decisão, pois depois disso você verá muitas outras coisas partirem, e precisa deixar que isso aconteça, porque é um processo natural”. E não é que ele tinha razão? Eu confesso que não entendi a fala do meu Heitor em seu leito de morte, ele gostava quando o chamava assim: Heitor, apesar do seu nome ser escrito com “c”, Hector, e ser João Hector. Mas hoje, talvez, eu compreenda melhor. Estou sentada, mais uma vez, nessa tampa de privada do meu banheiro, enquanto sou levada a relembrar de todas as vezes em que a recebi em minha casa, sempre às 3h26min. As noites em que brigávamos eram, sem dúvidas, as mais difíceis. Nenhuma ideia trocada, nenhuma dor aliviada, o tempo parecia não andar. Ainda arriscava me deitar, mexer para um lado, para o outro, NÃO MEXER. Mas de nada adiantava, pois ela estava decidida! Não me daria trégua. Mas eu sempre tive sua companhia, disso não podia reclamar. Ela podia demorar um, dois, três e até mais dias, mas nunca deixava de aparecer, e sempre me dava dois sinais de sua chegada: dor e espinhas. Logo mais estaríamos juntas novamente, como duas e boas velhas amigas. Bom, não sei se me acostumo sem ela, apesar de saber que temos facilidade em nos adaptar à novas realidades. Hoje um novo ciclo se inicia em minha vida e, infelizmente, desse ela não participa, bem como não 191


participou da minha infância. Confesso que irei sentir sua falta; falta das 03h26min, das nossas briguinhas, das longas reflexões feitas quando dormir não era possível, pois ela era estava revoltada, queria atenção, e lá estava eu oferecendo a minha; sonolenta, com um olho mais baixo, uma meia no pé e a outra perdida pelo caminho, um rabo de cavalo e algumas lágrimas guardadas no canto do olho. Com certeza irei sentir falta das passeadas noturnas pela casa, especialmente pelo banheiro. Na verdade, irei sentir falta de tudo, dessa fase, desses momentos, de tudo o que me liga ao meu eterno momento de mocinha. Ela sabe que sempre fui “melosa” e “manhosa”, pois me conhece bem. E sabe também que eu não poderia deixar que partisse assim, sem ao menos me despedir. E é tão curioso o que vivo agora, porque eu, por muitas vezes, desejei que ela se fosse de uma vez, e que não voltasse mais. No entanto, nesse momento, eu só queria que fosse o contrário. Queria que ela ficasse comigo para sempre. Ela me deu algumas folgas, e eu agradeço, pois foi quando guardei os meus bens mais preciosos dentro de mim: meus filhos. Ah, mas disso ela já deve saber, porque esteve lá, esperando que eles viessem ao mundo, para só assim voltar a me acompanhar, pois, de fato, nunca me deixou. Só ficava esperando o momento certo para apontar novamente. E aprontar também. Mas agora eu não queria que se fosse, não 192


totalmente, quem sabe não possa me fazer uma visita? Qualquer hora, por engano, ou não, qualquer coisa que não seja sua total ausência me parece bom, pois nós construímos uma história juntas, e será que eu preciso deixar essa partir também? Bom, são tantas coisas, e eu realmente não tenho respostas para elas. Mas sei que agora preciso dormir, o relógio já marcou 5h00min, de 8h00min tenho a consulta, e eu acho que o médico irá falar sobre ela, então sugiro que minha companheira fique por perto, sabe como é: suspeitas só se confirmam depois do laudo médico. Já era manhã, e eu caminhei até o consultório do doutor, minha filha quis me acompanhar. Elisa tem seus 24 anos; é uma jovem tão linda, parece muito com o pai, tem os olhos dele. Ela tenta conversar comigo sobre essas coisas da idade, mas eu sempre tenho uma piada na ponta da língua. Após longas horas de espera eis que o médico novinho resolve me chamar para conversar em sua sala. Confesso que fiz algumas especulações de cara, ele era tão novinho. Mas não quis ser preconceituosa, então guardei os meus comentários só para mim, como já fiz em muitos momentos da minha vida. Nós saímos do consultório umas 11h15min, e já com o laudo médico em mãos, ou seja, tinha em mãos a oficialização do nosso “término”. Às exatas 10h00min tivemos o nosso resultado, que confirmava: 03h26min nunca mais. 193


Eu prefiro chamar de “término”, sabe? Acho tão feio o nome que te dão, minha amiga, “menopausa”. Não que término me pareça mais apropriado, acho que nem existe um termo mais apropriado para isso, mas término me passa uma ideia de certeza, que não ocorre em relação à “pausa”. Na pausa eu acho que a qualquer momento posso dar “play” e fazer tudo voltar novamente, no término não, definitivamente nós dissemos “adeus”. Mais certo o término! Na verdade, de certa você nunca teve nada; atrasava, dava dor de cabeça, sempre dormia no ponto e não me deixava dormir. Mas hoje trancarei o banheiro mais cedo, e não acordarei antes das 5h00min. Hoje, minha velha amiga, hoje não vai ter 03h26min, nem 3h30min, e nem sua chegada. Hoje somos só eu e as minhas recordações. Mas não pense que irei te esquecer tão fácil, quando finalmente o relógio marcar a nossa hora, eu estarei de olhos bem abertos só para dizer: “agora posso dormir”. Menstruação não mais!

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CICLOS - SENTIMENTOS DE ANA Lucas Souza Mais um dia amanheceu, a menina Ana desperta pensativa. Uma manhã tão linda, mas não o suficiente para lhe trazer alegria. Ela levanta da cama e abre a janela. Observa seu jardim com suas flores tão belas. Uma mistura de sentimentos lhe invade de repente. Feliz pelo jardim, mas triste por aquela que lhe ajudou a construir não estar mais presente. Tão pequena e carregando uma saudade doloridamente incalculável. Olha para o sol, dá um sorriso e tenta esquecer os pensamentos que tem lhe machucado. Tudo passou tão rápido, é um ciclo inevitável. Sentimentos tempestuosos se contrastam com o dia calmo e ensolarado. Nem sempre é fácil esquecer o passado, ele sempre volta com as mesmas dores de antes. Nos impedindo de seguir adiante. Um jardim que tanto era alimento para sua felicidade. Agora se transformou num palco de lembranças e saudade. Tudo passa, o que fica são as boas lembranças. A certeza que tudo valeu a pena, os sonhos e a esperança. 195


Ana vai até o quintal ver suas plantas. Lembra de sua mãe toda manhã regando a caliandra. Ela dá um sorriso, mas ao mesmo tempo tenta de tudo esquecer. Lindo sol, lindo jardim, mas não é o suficiente para aquecer seu coração prestes a enlouquecer. Recebe uma ligação de sua amiga Sofia lhe chamando para brincar. Apesar do vazio que tem vivido, sabe o quanto é bom ter amigos para lhe apoiar. Mais uma manhã, mais um dia na vida de Ana, mais uma luta para vencer. Tenta manter vivo seu sonho de ser bióloga, imaginando que das estrelas sua mãe poderá lhe proteger.

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Luís Amorim facebook.com/luisamorimeditions

TEMPO PARA A LIBERDADE Em casa estava como usual era na maior parte do seu tempo ao presente, sozinho, recostado no sofá, sossegado e distante face à enorme turbulência do tempo que o levou a uma extensa reclusão, assistindo pela televisão pública ao aniversário da revolução e aplaudindo novamente o triunfo da liberdade tal como no dia em que aliviado saíra da prisão junto com muitas outras pessoas, que como ele lutaram por uma das causas mais nobres. Sabia que as memórias dos anos em que estivera afastado da vida em comum teriam de ser iniciadas como documento essencial para o estudo e a compreensão de um período histórico do viver em sociedade, mas ainda não percebia por onde havia de lhes dar início. Com essa incerteza, regressou em pensamento ao dia um da sua liberdade, na qual junto com os seus pertences, levava igualmente da estreita cela para o saudável respirado e livre ar, os manuscritos de enorme criatividade em forma de preenchidos e sentidos diários, onde cada página era libertador espelho de um só dia com as suas imensas diárias reflexões, pensamentos, frases, um poema ou conto de natureza rápida. Tudo bem identificado com o respectivo dia em reclusão, começado no um e sem197


pre em crescimento até incógnito desfecho pois que desconhecia quando iria sair. Mas uma vez nesse instante recordado ao rumar para fora da prisão, anteviu que bastar-lhe-ia consultar a última página para saber quantos dias estivera cheio de privações e bastante distanciado de uma vida livre e partilhada com os seus e demais sociais entes. Desse modo, o regresso ao presente fez-se necessário para enfim poder iniciar escrita, uma vez que já entendia como iria redigir as suas memórias, então vividas em tempo de reclusão. Retrocedendo ao dia primeiro quando fora apartado da sociedade apenas por lutar de forma pacífica pela liberdade, transcreveria no imediato todo o conteúdo escrito no dia em concreto para memória futura, não por uma paciente soma diária, mas sim numa libertadora contagem decrescente, indicando sempre a cada momento, quanto tempo em dias faltariam para ser colocado finalmente em liberdade.

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O TEMPO E A SAUDADE SÃO UM RELÓGIO Luth Lemos

Silêncio! Sim, antes de tudo Há sempre um nada. E silêncio havia antes do alarme tocar. Trim! Trim! Trim! Abro os olhos, começo a existir Ou seria acordar? Vou ao banheiro De frente para o espelho Parado a olhar Ouço o relógio Os cabelos brancos já posso observar Os dentes já não são mais os mesmos. Mas nem eu o sou! Quem se importa? Ouço o relógio! Tomo meu café Quente e amargo como sempre. Já estou de pé! Sento-me na cadeira E ali por um minuto Viajo por décadas

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Ou seria por uma vida inteira? Ouço o relógio! Lembro-me criança Correndo, brincando Tanta coisa já não é Hoje não corro mais Muito me dói o pé Sinto o relógio! Lembro-me dos abraços que se foram Dos cheiros que não sinto mais Os olhos se afogam Em água salgada Será que meu barco Atracou no cais? Sinto o relógio! Preso em um minuto do tempo Sinto saudade de um tempo vivido Teria esse tempo morrido? Ou estaria ele aqui, vivo comigo? Se a saudade aumenta com o tempo Seria o relógio o medidor Desse doído sentimento?

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Marcela Rabelo é estudante de Ciências Contábeis e vive em Barra Mansa, é paulista e tem 25 anos. Dedica boa parte do seu tempo à leitura e tem prazer em escrever como hobby. Escreve desde os 16 anos, embora não tenha publicações. Atualmente escreve para concursos literários. Sempre que possível, registra seu cotidiano e viagens em fotografias. Encara a arte de escrever e fotografar como uma forma de se autodesenvolver e mostrar ao mundo como se sente. E-mail: souzarabelom@gmail.com Facebook: marcela.desouzarabelo

AS BADALADAS DO ABISMO ENTRE NÓS

Batem as badaladas do relógio lá fora. Bate meu coração aqui dentro num ritmo lento. Bate a saudade. Bate a vontade. Bate tão forte na janela da minha alma Que é capaz do mundo inteiro ouvir O grito da sua ausência. No campo o tempo goteja, O silêncio canta como um bem-te-vi encanta. Admito que chega a dar inveja; Na cidade o tempo escorre, a pressa consome. Só não consome a tua falta Como pode ser? Confesso que nesse relógio da vida Queria eu ser o pássaro para bem te ver. 201


DOMINGO – Marcelo Pedralina Domingo, E eu aqui pensando Como tudo era feliz E como tudo era normal Desde o latido do cachorro, Correndo pela praça, Até a pequena menina Tomando sorvete Com os óculos da mãe Fixados no rosto Maravilhava-me Com a paisagem urbana De dias de correria E a maneira Que você se preocupava Procurando uma boa roupa Para se vestir Talvez, para isso Sirvam os domingos: Descansar o corpo, Abraçar o passado E, cumprimentar o futuro 202


Marcelo Vieira Graglia. Paulista nascido em Guaratinguetá, é professor e pesquisador na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pesquisa e escreve sobre as novas tecnologias e suas transformações e impactos na sociedade. Seus interesses envolvem também o campo da história, memória e patrimônio. Foi um dos criadores do evento Poesia na PUC e publica suas letras e poemas no blog Encalhes Poéticos.

A SERPENTE Minha senhora, há muito tempo não nos víamos Derrotados, cabisbaixos Oblíquos, esdrúxulos, desgarrados Implorando misérias, favores e concessões

Eles se refastelam com o banquete de enganos Se aprazem com o conjunto disperso de informações A esperança tornou-se rara especiaria Luz fugidia num céu de nuvens

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Pelos vitrais de nossas catedrais Imagens antigas, impávidas, inexpressivas Testemunham a nossa decadência O leite derramado Haveria uma passagem subterrânea Um graal escondido nos porões? Não, seus soldados estão dispersos Seus exércitos, desmobilizados

A covardia é irmã do medo Parida no meio do povo por uma serpente Que se esgueirou pelos becos e pelos bairros Pela boca dos que maldisseram seus reis Seu castelo está cercado, senhora Os campos secos, a colheita perdida A esperança tornou-se rara especiaria Luz fugidia num céu de nuvens 204


Marcos Antonio Campos nasceu em Natal. Formado em Letras, Administração de Empresas e Ciências Contábeis, todos pela UFRN. Membro do IHGRN, da UBE-RN e da ATRN. Publicou os livros de poesia: “Um Bêbado Sonhador”, “Babel”, “Absinto” e os livros de contos: “Algodão Doce” e “Atropelando Papai Noel” Todos pela Caravela Selo Cultural. Está presente em mais de 3 dezenas de coletâneas . Possui textos premiados em diversos concursos nacionais.

HORAS AO AVESSO Ontem eu acariciava o tempo Era jovem e saudade era apenas os pés de um menino Que ainda não havia caminhado muito Hoje, depois que caminhei Para o outro lado da memória Sou apenas os passos do passado De minha própria história Não posso escavar o tempo A procura de meus fósseis Nem procurar entender minhas razões Não encontrei meu golem, nem a mística cabala O tempo e a saudade Não me permitem Consertar meus erros Pois estão dentro de um relógio Do qual eu não possuo a chave, mas posso inverter as âmbulas E começar tudo de novo. 205


Mardenia Maria de Sousa Magalhães nasceu em 27 de setembro de 1980 na cidade de Pires Ferreira na época distrito de Ipu- Ceará, graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú Sobral- CE É pós-graduada em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade FAEL Lapa-PR. Reside e leciona como professora municipal e atua como contadora de narrativas na cidade de Caucaia- CE. Os livros "Sinta a CALIDEZ dos poemas e Nó poético" em e-book na Amazon.com são seus livros de poemas lançados no ano de 2017. Participou em algumas Antologias e saraus poéticos. Conquistou o 2.º lugar no Concurso Internacional Poesias em Árvores 2018 pela Revista Inversos com o poema "Tu". Recebeu a premiação com a medalha e certificado Graciliano Ramos na Academia Maceioense de Letras 2018 em Maceió –AL. Tornou-se membro da ACILBRAS ( Academia de Ciências, Artes e Letras do Brasil ) com a Cadeira n• 155 , é membro efetivo da ABL (Academia Brasileira de Literatura) cadeira n• 53 e é membro da SBPA ( Sociedade Brasileira dos Poetas Aldravianistas). Foi premiada com o Prêmio Melhores Contadores de Histórias Cearenses 2019, recebeu o prêmio Monteiro Lobato 2019 LITERARTE pelo Livro Infantil “ O incrível poder de comer verduras” e no dia 28 de março de 2020 tirou o primeiro lugar na categoria Melhor livro Infantil no Concurso Cultural I PRÊMIO BOOK BRASIL 2020 pelo mesmo livro. Foi empossada em 14 de Setembro de 2019 como membro da Academia Francesa Luminescense de Devoção às Artes e Letras- Sucursal Brasil. Conquistou o 5• lugar no VI Concurso de Sonetos Nilza Castro 2020 pelo poema “ Lamúrias “ . Lançou em Dezembro de 2020 o Livro Infantil “ O Circo Alegre e Diferente “ com grande repercussão em âmbito pedagógico por abordar o tema da inclusão social. É membro correspondente da Academia Caxambuense de Letras desde 23 de janeiro de 2021. Facebook : https://www.facebook.com/mardenia.mary

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ESSA TAL DE SAUDADE Dizem que ela tortura Irriga olhos com lágrimas Ecoa forte e murmura Goteja sangue sem cura Obriga a sofrer suas vítimas Dói semelhante à ferida Inflama o peito de amor Aborrece minha vida Surra o corpo com ardor Definha-me por maldade Incomoda o coração Essa tal de saudade

Balança minha emoção.

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Margarida Correia é natural de Lisboa, tendo nascido em 1975. Mãe, licenciada em Gestão e especialista informática de profissão. É viciada no poder dos livros. A palavra escrita, a folha branca e o carvão são a extensão da mão. Apaixonada pela poesia, é nela que encontra o equilíbrio dos dias. Participou com um poema de sua autoria na antologia de poesia «Alma de Mar», Volume I - Tomo II, da Chiado Books. Participou também com um conto de sua autoria numa coletânea, a ser publicada brevemente. Contacto: margaridacor@gmail.com

MEIO-DIA Vi-te chegar e tornámo-nos espaço, onde a translação eterna do amor contava impulsos no caule da espera. Nas mãos, a promessa de sóis pintados em palavras enfeitava os passos que dávamos na via láctea do deserto dos olhares. O anunciado ocaso repleto de desfocadas imagens, vestidas nas fomes dos átomos, células únicas em redor de uma corda plena de nós.

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Despertámo-nos ao alcance daquilo que nos espantava: os mares abertos ao rasto da poeira dos cometas. E eram beijos os relógios que pousávamos nos pulsos. No entanto, naquela rotação que não nos demovia do caminho, vimo-nos partir e tornámo-nos tempo, onde a translação eterna da saudade foi conquistando o vazio preso entre os grãos de areia nas ampulhetas, correndo, atropelando-se, apressada, de lá para cá ou de cá para lá. Mas, se a saudade tem hora marcada, de onde virá este tic-tac que corre nas veias, sussurrando a vertigem de acertarmos os ponteiros, numa cadência que há de vir, sem testemunho de sombras,

a sul.

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Maria Inês Casado de Oliveira Alcaniz. Professora de História formada pela UNIFAI-PUC SP, especialista em Gestão de Patrimônio e Cultura pela mesma instituição e Arte, Arte Sacra e Bens Culturais pelo MAS (Museu de Arte Sacra de São Paulo) USP. Casada, mãe de 4 filhos e dois netos, atualmente afastada das salas de aula mas sempre e contato com a educação.

A saudade é um sentimento histórico, que permeia a humanidade desde sua m A verdade sobre a saudade é que ela é protagonista de poesias maravilhosas, de histórias contadas em todas as formas de comunicação, seja de forma romântica ou trágica, serena ou desesperada A saudade é um dos maiores sentimentos huais remota organização. Seja pela necessidade de sair em busca de outras moradas, seja pelo prazer de conhecer novos lugares e possibilidades, pelas escolhas pessoais ou perda definitiva de alguém que se ama, porque envolve nossa memória afetiva. Nesse sentido, sentir saudade é inerente à construção de nossas histórias pessoais. Lembrar de momentos especiais de nossas vidas, reviver experiências vividas faz com que nossa existência seja única e especial. Quando crianças aprendemos que a separação faz parte do crescimento, e se perdemos alguém próximo, ou mesmo um bichinho de estimação teremos que conviver com a ausência e consequentemente com a saudades. Conforme vamos crescendo e amadurecendo, estruturamos nossas lembranças, elaboramos nossas 210


memórias, separando cuidadosamente o que deve ser vivido e revivido muitas vezes. Para que isso seja possível, utilizamos uma enorme quantidade de tecnologias como fotos, filmes, vídeos, sons, músicas, objetos e até lugares especiais para armazenar tudo que nos permita manter uma lembrança. Quando formamos nossas famílias, as tradições familiares passam a fazer sentido, e são retomadas e reformadas para seguir adiante, e ao transmiti-las para nossos filhos damos continuidade as memórias de nossos pais e avós. Uma comida preparada de uma forma especial, uma toalha de mesa, pratos talheres, a colcha da cama, o brinquedo preferido, se transformam em objetos de memória e cada contato que temos com essas “coisas” nos permite viajar no tempo. É nesse contexto que tempo e memória se fundem. Temos uma compulsão por contar o tempo com precisão de milésimo de segundos para garantir que nada escapará de nosso controle e supervisão, no entanto, é justamente quando nos distraímos que o tempo se mostra soberano. Ao olhar para o passado podemos perceber nossas vitórias e fracassos, nossas conquistas e realizações, nossas dores físicas e afetivas, com as quais convivemos e que nos transformaram. As rugas na face, as cicatrizes no corpo nos remetem a momentos 211


importantes, como o nascimento de um filho, um tombo na infância, uma distração com os amigos e assim por diante. Aprendemos que fazer escolhas faz parte de tudo o que somos, de quem deve nos acompanhar, de quem efetivamente nos ajudou, esteve junto, amou, e de quem acompanhamos, estivemos juntos e amamos. Assim como estivemos acompanhados em nossas vidas, por nossos parentes mais próximos, irmãos, pais, avós, tios e primos, aprendemos que nenhum deles estaria conosco eternamente, pelo menos não fisicamente, mas que poderíamos mantê-los vivos em nossas melhores lembranças, e com isso conviver com a saudade deixada por suas partidas, fossem elas temporárias ou definitivas. Quantas vezes desejamos parar o tempo no primeiro passo de nossos filhos, ou na hora que abraçamos nossos pais na formatura, na viagem de férias na praia quando choveu e ficamos contando histórias e rindo todos juntos. Em outras vezes gostaríamos de poder acelerar o tempo para acabar com o sofrimento ou a dor de alguém importante para nós. Mas, a verdade é que nunca conseguimos parar o tempo para aproveitar os bons momentos nem, muito menos, fazê-lo andar depressa nos difíceis. Desta forma, quando envelhecemos e nos damos conta de que aquele olhar preocupado com a hora do 212


trabalho, de acordar, comer, vestir, sair e chegar, escapou entre os nossos dedos. Assim é a saudade de tudo e todos, do nosso passado e presente que nos permite viajar no tempo, naquele que não volta mais, mas que está vivo em nossa trajetória de vida e quem sabe no legado que deixaremos. No relógio da vida o tempo vai e vem, mas nunca para.

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Marina Alexiou é mestre em Filosofia pela PUC/SP e estudiosa das Artes. Escritora de prosas poéticas desde 2009, participou do livro “Coimbra em Palavras, lançado em Portugal em 2018. Gosta de colecionar belas imagens, pois elas a levam para o seu mundo simbólico inspirando a sua escrita.

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“Era um caçador que um dia decidiu converter-se em Natureza Assim conseguiu...a união das duas águas doces que em breve se lançam juntas no mar.” Roberto Calasso

Um dia ele que, por amor àquela Ninfa Se transformou num rio para poder abrigá-la, Das cicatrizes do mar. Das móveis e eternas ondas, Cercadas pelo útero da atmosfera. Onde o colar de pérolas da espuma Consagra o tempo e a saudade De uma vida de buscas irrazoáveis. Nascente e caçador, um embate erótico De fusão das águas, Concedida pelo acaso da Graça maior... Nesse grande sonho, Enquanto o barco do seu espírito Sai do porto, Ela passa ao largo. A contar as horas, não imagina Que um dia, há muito, fora ninfa, água, mar... Que busca o seu olhar saudoso sem saber por quê. A dizer: Não me mande embora... Não me deixe... Sou eu! < Alfeu e Aretusa > 215


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SAN MARCO

O seu interior majestático Convida a uma volta ao tempo interno da alma E à sua pequenez e grandiosidade, Que tendem a se equiparar. Ela brilha com as súplicas transversais das suas torres e ornamentos. O céu é seu cúmplice nesse apelo ao peregrino Que chega, e é instantaneamente tragado Pela beleza e esplendor, Envolto nos seus braços que a todos contém. As suas colunas são como portais de um paraíso Surgido de um desejo que não se conhecia inteiramente... Os anjos que lhe habitam, insistem no seu chamado E acolhem todos os medos, sonhos e espantos Encontrados nesse caminho terrenal. Quão singelo é o murmúrio dessa canção Entre a edificação laboriosa desse poder divino, Convivendo com a mudança dos tempos. Que, um dia, foram dedicados à encarnação dessa solidez Se fazendo eternamente terna e delicada Aos olhos daqueles que são piedosos...

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Maroel Bispo é escritor, poeta e psicólogo, residente em Feira de Santana, Bahia, Brasil. É licenciado em Letras, gosta muito de ler e escrever poemas e admira a escrita de Clarice Lispector. É autor de três livros. E-mail: psimaroelbispo@gmail.com

PURA SAUDADE Chegou, enfim, o tempo da partida. Tempo de não mais poder te ver. Na face cálida, o sonho em negrume, A realidade, se derrete, ninguém a perceber. Ele ouve o tic-tac do relógio o lembrar: Está chegando a hora, a hora de ela ir. Olhares para além dos pensamentos, Vozes que decretam seu devir. E dessa paixão escarlate, o que restou? Gotas de pura, pura saudade. Decidido, ele adentra no vão da solitude, Abraça a tristeza e aceita a verdade.

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Michelle Gleyce da Silva Leite é alagoana, católica e gosta de poesia. contato: michelle.gleyce@hotmail.com

INSTRUÇÃO amar também é saber dizer adeus mesmo que seu coração se inquiete nas noites diurnas e as lembranças lhe conceda dor, deixe ir. chorar não te torna fraco. quando se ama, a bagunça incorreta na alma se expressa em lágrimas.

sentir saudades é o mesmo que exceder no sanitário pensando, enquanto o ansiolítico é seu único encontro. então quando o ácido do suco do limão

for superior o doce da torta, se tiver disposição, ocupe seu tempo para não se afogar no choro, porque só Alice conseguiu se salvar da inundação.

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se mesmo assim não passar, quando chegar a hora, enterre - o.

seja o técnico de necropsia desse sentimento. abra e veja todas as partes que o constitui, sinta - os em suas mãos e preserve os órgãos - só os que serve -, então feche.

cubra o corpo de crisântemos brancos e, caso não se sinta bem, não precisa velar, apenas enterre e deixe o resto com o tempo. se libertar também é uma forma de amar

[especialmente] de se amar porque sofrer devido ao que já aconteceu é um grande indício para se dizer adeus.

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Neide Pereira de Oliveira, natural de Vitória – ES, fisioterapeuta e analista de sistemas possui poemas publicados em concursos e antologias, tais como, Sarau Brasil 2020 Vivara Editora, Poesia Agora Editora Trevo, Revista Entreverbo Edições 37, 38, 39 e 40, Revista Traço Cultural Edições 2 e 3, Revista Ecos da Palavra Edição 6, Voo Livre Revista Literária Ano 2 Nº 13, Concurso Wellington Brandão de Poesia da Agenda Editora, e Concurso Nacional de Poesias da Revista Brasília. Concilia suas atividades profissionais com suas paixões que são a poesia, a fotografia, o esporte, a natureza e a cultura capixaba. @neidenpo

FIOS TROCADOS Esse falso facho de esperança, Repousa em minhas lembranças,

Flutuando no turvo rio de promessas descabidas, Da janela de minh'alma trafegam palavras perdidas No espaço entre dentes e lábios. O horizonte fixa-se em minha memória Como uma tela em branco na busca De uma fonte de reconciliação consigo mesmo, São espasmos corpóreos, abalando fortemente Da cabeça aos pés, tornando-me refém

Vacilante na intranquila posição de me Manter erguida no que sou eu. 222


Cambaleio enuviada nos versos que evaporam Atmosfericamente pelas minhas narinas, Queria aspirar uma inspiração infinda Cantarolar sentimentos versificados, ritmados, Animados, não desta inanimada forma que eu trago. São velhos os meus tempos de lembranças, Desfigurados neste material hostil, chamado pensamento, Cinzas de recordações, arroxeadas desilusões, Assim alfineto a palheta viril do meu coração Pincelado das cores primárias que se deformam. Nasci ao anverso do verbo Que ousou me criar, Inadvertidamente de fios trocados,

Agora repouso sem berço esplendido, Na cálida pátria das palavras, Que insisto dizer-me minhas.

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Patricia de Campos Occhiucci. Professora, poeta, escritora e psicóloga, natural de Santo André, reside no interior de São Paulo, na cidade de Mogi Guaçu. Participou de algumas publicações da Psiu Editora, como as antologias “Seguir o Sol”, “Dona de Mim”, “Meu Coração Agora É Todo Carnaval” e “Aqui no meu mundinho”. Contribuiu em publicações da editora Ases da Literatura de Portugal, Editorial Eco Literário, Elemental Editoração e Artner. Também de lançamentos das revistas Tremembé, Alcatéia, SerEsta e Ecos da Palavra. É colaboradora da revista eletrônica BlahPsi, que traz mini-artigos sobre assuntos diversos relacionados à Psicologia. E-mail: patyarez@gmail.com Instagram: @patyocchiucci

NADA É NOSSO

Tudo é emprestado, o que está fora Também quem está ao nosso lado. A pessoa ocupa esse papel agora

Amanhã poderá ter ido, substituído. O que está em posse, pela escritura Passar, então, para outro beneficiário. A vida fazer questão de dar abertura

Para aprender que aqui é temporário. O tempo, contável, dura o infinito Depende de quanta pressão, decisão Pode dar medo ou esperança, acredito. 224


Prefira não contá-lo, e sim, vivê-lo! Porque, às vezes, o amor despercebido Não volta atrás, vai-se embora no vento E a saudade invade, trazendo sentido De que nossa história é feita de momentos... Ah, esse relógio que nunca se apieda Trabalha, avança, alheio aos seus motivos O passado não muda, nem se arremeda É fator inerente da criação, um punitivo. Ou, remédio para os males e desacertos Que saudade do tempo, do tempo da saudade Onde amor existia, no coração dava conserto. Nada é nosso camarada, só o que somos Alma, aprendizado, lembrança, conexões. Tempo professor, em todas as nossas versões.

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Patricia S. Muniz.*Preta mulher periférica, que sempre encontrou na escritapalavra o seu modo de ser e estar no mundo. Psicóloga e pesquisadora dos afetos enquanto potência de vida favelada. Amante da natureza, poesia e de tudo que faz sentir. Contatos: Instagram @p_tyms / E-mail: psipatriciasm@gmail.com

SAUDADE AZUL A saudade hoje tem cor Azul E chegou pela janela A janela Azul Delicada Simples Clássica E Poética. Ela é poesia Daquelas que precisam ser digeridas lentamente Tal qual a bela dor que só uma boa poesia consegue trazer E ser. A saudade tem nome Tem cor Tem localização Mas por hora ela só tá aqui mesmo Em meu coração 226


Paulo Cezar Tórtora nasceu na cidade serrana de Petrópolis (RJ). É engenheiro, professor, com premiação em vários concursos literários. É autor dos livros “Sonetos, Haicais e Outros Ais” (ed. Costelas Felinas, SP, 2017) e “Raio de Sol e Outras Centelhas Poéticas” (ed. Litteris, RJ, 2019). É membro efetivo do Círculo Literário do Clube Naval do RJ e presidente da AML – Academia Madureirense de Letras (RJ).

RELÓGIO ANTIGO

Ecoa pela casa, compassado, o som do carrilhão, como um lamento, perdendo-se nas brumas do relento ressoa como um cântico velado. O pêndulo sombrio, imaculado, pendendo da parede, sonolento, no seu compasso triste e modorrento tiquetaqueia as horas com enfado. Tal qual este relógio é minha vida, que flui como vogasse, alma-perdida, no mar da nostalgia que me invade. Ao som da badalada persistente desfio o tempo, solitariamente, trazendo no meu peito esta saudade. 227


O SONHO DE CRONOS PELAS 7 MARAVILHAS DO MUNDO (PÓS PANDÊMICO) Paulo Flores - Venham! Venham! Corram! Vejam, as portas se abriram! Eram milhares de centenas de muitos, que amontoados em seus retiros, aguardavam o fim do claustro. Aquele um de exausto convívio forçado, convívio este um dia optado, posto à prova num intenso longo momento, que se findava. Ali estava a ansiada porta fronteira escancarada, sedutora a aqueles todos uns boquiabertos com suas retinas dilatadas aos olhos arregalados. Por momentos a cena se congela num tempo símile a aquele percorrido por ponteiros estagnados. Nada, absolutamente nada, acontecia. Somente o eco das anunciantes palavras clamadas, percorrendo os ambientes num looping, decrescente fermata, aguardando o magnânimo e maestral corte do supremo absoluto regente Cronos, que ainda deitado a rede se esquecia de si mesmo. Quem ali pausado ousaria acorda-lo ou teria o ímpeto presunçoso de cutucar o tempo com vara curta? Quem ali daqueles poria a cara a tapa, com a face desmascarada, com o limpo semblante, num impetuoso gesto de despertar um deus do Olimpo de seus quem 228


sabe sonhos, quiçá premonitórios de um póspandêmico também por ele aguardado, esse após apóstrofe de isolamento entre aspas. De súbito, embalado em rede ao eco vigente, através do espaço latente estagnado, sonorosas imagens vindas dum mítico uai-fai atemporal, abusado, intrometido, transbordam interferências de acontecidos de ontem, de hoje, prum amanhã de agora, imediato futuro presente. Orbes tidas de vagos plenos momentos disparam-se em flashes, por sobre os muitos ali congelados, numa apresentação atípica dum net-seriado típico. O senhor do tempo em estado sonho REM, num profundo inconsciente, remexe seus baús como quem atira para o alto memórias roupas usadas, esgarçadas, rotas, empoeiradas, numa abrupta e alucinante busca descrente, difusa em meio a um freudiano universo intáctil. Voam ternos abraçados em vestidos, camisas em tailleurs, chapéus cocos penetrados por cartolas, máscaras coladas num passional beijo viral, em meio a meias inteiras enroladas dentro de sapatos sobre pisados por sujas polainas, anidropodotecas enlameadas pelo barro da história. Quanto mais mexe, remexe, dá um nó mitigante que mais dói do que alivia, trazendo neste sonho laive peças suscintas da dor, passado resumido por títeres e fantoches de figurinos de época, estilizados, criados por hábeis estilistas, designers no fazer do vestir a 229


todos com a camisa de força do pseudo querer. Roupa da moda de sempre, que veste da cabeça aos pés, de alto à baixo, da nobre coroa a fétida descarnada sandália havaiana. Baú sem fundo, vis vestimentas impostas ao povo do sempre. Numa eterna reprise dos piores momentos da humanidade, Cronos, lógico, principia no START, revê a si mesmo castrando seu próprio pai e devorando seus próprios filhos pra não ser por eles, quem sabe ptonisamente, também castrado e devorado, na roda viva do poder, justificando assim seu existir essencial, derradeiro, o tirano único salvador fundamental construtor da perfeita sociedade, do desenvolvimento, da ordem e do progresso. Num virtual ápologo Koyaanisqatsi idas e vindas perpetuam o hoje sempre dos povos, num não se saber se foi ou se será ou não se saber o porquê do não ter sido, assim restando o não saber se algum dia poderá vir a ser. Passam os civilizados Sumérios sumindo pelos civilizados Amoritas criando civilizadas Babilônias com seus civilizados Nabucos surgindo nas sombras dum civilizado Egito de Gizés pirâmides – RIP - Queóps, Quéfren e Mequerinos. Petras ruinas do que civilizados esculpiram na rosa rocha em monte santo, como uma messalina highlander vai trocando de mãos à espera da catástrofe salvadora, talvez um anseio em tornar-se um Taj Mahal e ser o templo do amor eterno. 230


Cronos treme! Treme como um duplo terremoto e o estagnado ambiente tirita, sacode com a bela imagem pairada de Reia, essa irmã-esposa enganosa traíra, dissimulada mãe de Zeus o envenenador do tempo que o faz regurgitar sua própria prole para sentar-se em seu trono em Olímpia, magnânimo, que então a todos perdoa. Perpetuado, precioso colosso em ouro e marfim, cravejado de esmeraldas e rubis, porém queimado divide, na sua imensa glória e poder, o top ranking com um mero e afogado titã, também colosso em Rhodes que ali imenso se servia a iluminar o caminho, pois navegar é preciso. De muros e muralhas, divisores de águas, cerceadores de tribos e castas o mundo está cheio. Seja China ou Israel, seja Berlim ou Celta-Melilla, ou Grécia e Turquia, ou entre Coreias, ou que importa, sempre à restringir, coibir, isolar, impedir, tolher, sempre e sempre a preservar o que é meu é meu, mas o que é seu muito me interessa. Pois que fique cada macaco no seu galho, mas como sua grama é mais verde, escreveu e não leu o pau comeu, como ladrão que rouba ladrão e fere com o ferro que foi ferido, se sacudindo por não poder rir por último reinando em terra de cego, sendo a caça que caçou debaixo da tempestade que semeou. Águas divisórias, com ou sem pontes levadiças não segregam nem separam o joio do trigo. Velas ao mar, caravelas direcionadas por sextantes e astrolábios, 231


homo invaque desbravam oceanos e como agulha no palheiro são encontrados, pelo imã da cobiça e da ambição de Colombos e Pizzaros, Cabrais e Américos e também Magalhães, novos mundos onde tombam civilizações, tombam Incas e Maias, tombam Astecas e Toltecas, sobrando somente pedras sobre as pedras de Machu Pichus ou Chichém Itzás, vírus transoceânico, de espécie similar plantado ao vento da conquista, semeado por tempestades de cobiças, devastando os isolados povos irmãos que desconheciam a ira da ganância de seus sapiens semelhantessores . Amores do passado no presente refletem velhos temas tão banais, enterrados em mausoléus de Mausolo, mausoléus de Halicarnasso, ali enquanto carne amado por Artemísia e ali depois da carne, cinzas, tomado, bebido por Artemísia. Egos mortais, em um querer imortal do não querer morrer, erguem-se em suntuosas construções, onde lá perpetuam seus amores e perpetram suas idolatrias. Artemísia em suntuosa cova tem como Ártemis, a deusa Diana, em seu Éfeso templo a casa morada eterna, como temas tão banais dos amores mortais. Tanto amor, mas tanto, que na tristeza da dor da perda não se vê a dor dos outros e seus edificados sentimentos tombam como as civilizadas civilizações nas mãos da natureza. Luminoso progresso que cresce ambicioso e omisso, em rede, ligando mercados de necessidades e ganância por terra e por água, caminhos hídricos. 232


Reinos com suas elites criadas pelas castas da ambição permitida pela omissão da maioria, essa, sempre sujeitada e escravizada, a ignóbil maioria rechaçada por si mesmo por sempre querer ser o sujeitador, o escravizador. Onde está a luz? Como iluminar as mentes dos omissos explorados? Melhor não! Melhor iluminar os caminhos do mercado, as rotas, os trajetos, sem os trejeitos de Rhodes, erigir e edificar metas, portos, iluminados faróis para abrir as portas de uma Alexandria. Portas! Sempre portas, abertas permitem o fluxo, locomover-se na opção do entrar ou sair, o livre arbítrio. No livre arbítrio do não livre arbítrio, a civilizada civilização do panem et circenses cresce, o pão e circo, a mídia rainha dos desejos e das manipulações das massas. Cria-se a necessidade desnecessária para substituir a necessidade necessária, permite-se a glória do ser, do mito, das personalidades, dos famosos, onde não importa ser ou não ser. E assim constroem-se Coliseus onde gladiadores tornam-se ícones nos seus 15 minutos de fama. Coliseus virtuais dos mais variados tipos são disseminados por meios múltiplos da liberta manipulação, transformando cada dia mais a liberdade em prisão, onde, como numa eterna síndrome de Estocolmo, defende-se com paixão o opressor, sem critério, com a razão lobotomizada se atira, se entrega e se acredita também amado pelo opressor. Civilizações! Ah, civilizações, com seus totens, 233


seus ídolos de ouro, de bronze, de pedra, de concreto armado, que de concreto somente tem a ambição armada do enriquecimento do ego enaltecido, o exibirse numa espécie de competição com Deus, em Babeis eternas sem função, só auto idolatria como um Cristo Redentor que abre seus braços pra Baía de Guanabara, como Rhodes, receptivo ao externo, ao visitante mercador, ao explorador, ao colonizador, de costas viradas para os seus que, como lava, escorrem por faveladas montanhas. Títeres totens que de moais são moídos pelo tempo, ele, que de fato, mima, bajula, enaltece a natureza, a essência da existência a célula mater da vida. Com forte suspiro, Cronos se revira em cambalhotas completas, interpretando um meio pesadelo rondó. As imagens passam a exibir sempre o mesmo roteiro, um remake constante, onde mudam os personagens, variam as locações, adaptam-se cenários e os figurinos, mas segue sempre o mesmo enredo de genocídio, escravidão e supressão da biodiversidade. Egípcios escravizam hebreus que são chacinados em tentativa de extinção étnica por nazistas alemães, que são perseguidos por europeus e se tornam cristãos, esses que em santas cruzadas dizimam milhões de mulçumanos e qualquer outro um que a, também santa, inquisição achasse aprouver. Em santas nefastas ações em nome de quem pregou a paz, cristãos em nome de Cristo inventam 234


interpretações de um livro tido sagrado pra saquear, segregar, apropriar, enriquecer, massacram-se em guerras santas ou revoltas seculares, noites de Bartolomeu que prenunciam 30 anos eternos de batalhas em nome do amor ao próximo. E Deus disse a Abraão vai e arruma encrenca, ponha filho contra filho para que seus descendentes se destruam clamando Islã, clamando Cristo, clamando Israel, numa similar disputa por uma herança de luz que se transformou em trevas. Mas Bhrama e Buda? Por quem os sinos dobram? Hindus e budista se mantém em conflito constante em nome de manter uma população enorme no reduto da miséria física e espiritual. Talvez melhor, então, sem esse um Buda da China banido, mesmo comunista sendo. Torpes religiões ou torpe raça humana? Existe religião boa? Existe homem bom? Com certeza todas as religiões são boas, pois todas pregam, na sua essência, o bem, o amor, a fraternidade, a igualdade e desses conceitos surge a filosofia e com ela conceitos similares da busca da harmoniosa convivência da humanidade. Do Éden desfeito às bombas nucleares, das intrigas de Salomé aos fake News do cotidiano, cabeças rolam soltas numa avalanche de maldade humana, inconsequente ímpeto de destruir tudo para construir pra si, nem que seja o tudo de novo, mas aí tem – eu construí! O homem carrega, em si, o gene do egoísmo, aquele que mata pai, irmão, filho pra se 235


perpetuar e pra se eternizar procria com mãe, irmã e filha. Num bocejo relâmpago, Cronos se percebe nos sonhos e num rápido flashback de roteiro percorrido entende o porquê do mostrar que as 7 maravilhas do mundo seja do antigo ou do moderno enaltecem o ego humano muitas vezes com o sacrifício da obra divina. Seis mil anos se passaram e o mundo se repete numa ação moto contínuo perpétuo de maldade e destruição. Assim é o ser humano? Assim será o ser humano? Será que meses de isolamento o mudou? Será que nesse claustro aprendeu a amar seu semelhante? Será que nesse período trancado descobriu a importância da liberdade? Será que a falta da natureza lhe ensinou a preservá-la? Será que sentiu no fundo da alma que somos todos iguais, que as aparências enganam? Será? Então num entorno olhar, viu que ali estava a ansiada porta fronteira escancarada, sedutora a aqueles todos uns boquiabertos com suas retinas dilatadas aos olhos arregalados e sem pestanejar disse a meia boca: Melhor fechar, né não?

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Poliana Guerra. Poli são várias. Com formação diversa e tendo trabalhado também em diferentes áreas em sua trajetória, Poliana se encontrou nas palavras e tem paixão por contar histórias! Além de fazer freela como gestora de conteúdo, também trabalha com gestão de mídias sociais. https://www.facebook.com/poliguerra poliaraujo.guerra@gmail.com

Contemporaneamente, o tempo que urge, cotidiana e permanentemente, não nos permite extrapolar os ponteiros dos relógios. Nos rege a vida inteira, por seus números, em frações de 12 ou 24. Seguimos nos dividindo, cortando e contando por ele. As saudades não se medem no amor, mas nos dias, meses, anos, A.C. ou D.C. A marca das horas passou a nos guiar e condicionar as decisões e movimentos, no tempo e no espaço. Pobres de nós. Perdemos (ou nunca aprendemos?) outras dimensões de valor mais substantivas ou nos resumimos (reduzimos?) aos ponteiros para nos significar no tempo? Relógios, badaladas, pulsos e ponteiros quantificam e determinam fatores essenciais em nossas vidas. Hoje, não há vida além do relógio. Na esfera do sentimento, o relógio marca e define as saudades. Muitas, 100 dias e suas 2.400 horas. Poucas, 3 dias, assim, curtos, 36 horas. 100 horas para José são iguais a 100 horas para Maria? Mas as horas de José são ligeiras e as de Maria são eternas e custam a vida para passar. Rasgam, cortam, machucam. E agora, Maria? 237


E porque precisamos definir o tempo e as saudades a ele inerentes, assim, nestas frações numéricas, tão práticas e tão ... numéricas? Números são só números e o tempo é mais. O tempo é lembrança, é projeto, é sonho, é história. É também um formato para nos reger vida afora, mas só um e temos tantos outros. Dizer ‘foi às 3 horas da tarde’ é sempre melhor que ‘foi em uma tarde luz?’ ‘Às 8 da manhã’ versus ‘em uma manhã fria’ ou ‘uma manhã enevoada’? Falando nas saudades, fica ainda mais grave este empobrecimento do tempo por seu (hoje) regente e fio condutor. Como demarcar a saudade, esta falta que ama, por números? A dor do coração tem mais afinidade com certa falta de cores, que bem descreve este estado de espírito. Escura, seca, vazia, dilacerante, pungente, falta, ausência. Ou doce, suave, musical, alegre, colorida. Tantos significados falam da saudade, que podemos prescindir do relógio para bem defini-la. Nas cores, nos sabores, nos valores, sentidos ou em outros adjetivos/substantivos, feitos sentimento. Sim, no que ela nos provoca, no que a revertemos, como a digerimos. Um relógio dá os contornos do tempo, uma vez que passou a seu sinônimo e evidencia uma intensidade em razão proporcional, mas isto não é pessoal? 238


E se prescindíssemos do relógio e definíssemos o tempo e a saudade em razão do que nos provocam? A falta que ama, do poeta ‘gauche’ Drummond, me parece uma descrição perfeita para este tempo sem tempo, de quando estamos perdidos em uma ausência. O tempo urge, difere, fica urgente e instável. Um relógio não é suficiente. Seu ponteiro descompassa e se perde em abstração e passionalidade. Meu pulso me marca tempo e ausência feita saudades. Todo sentimento.

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Rafael Rocha

E-mail: translator.rafael@gmail.com

MARCAS Pois se o relógio marca, friamente, As horas do dia A saudade marca, emotiva, As dores do tempo E, tal qual o relógio, Renova periodicamente – Dolorosamente –

As suas marcações E ao mesmo tempo que aflige A saudade enche de significado Aquilo que, de outra maneira, Seria apenas tempo passado (Ou perdido) E se o tempo fosse medido Não pelo que se fez Ou pelo que se obteve 240


Mas por tudo aquilo De que a vida lhe abençoou Por um momento E depois lhe tirou?

E que o tornou miserável E também rico ‘Algum dia inventarão A saudade do futuro

E talvez então seja possível Voltar no tempo E me transmutar Em convivência’

- Delira a saudade (do passado) Talvez, enfim, o relógio Tenha uma outra função A de nos lembrar

Que a cada novo minuto Falta menos tempo Para uma nova saudade Nascer. 241


ANOTAÇÕES DE VIAGEM Rafael Zanlorenzi Rafael.zanlorenzi@hotmail.com Facebook: Rafa Otavio - Em trânsito: A viagem está enfiada entre dois mundos, ficou presa entre os dentes da vida. Lá atrás deixei as preocupações de casa, mas ela cuida de tudo. Ela é diligente – eu que sempre fui um vagabundo. Na frente, a errância convida. Vagueando o olhar pelos assentos, buscava amigos vadios, mas acho que só me dou é com cães – curto almoçar nas calçadas e dividir a comida com vira-latas, melhor sensação do mundo fazer bem a parentes-lobos. - Buenos Aires, trabalho: passo as manhãs enfiado em uma sala dos fundos da Universidad Nacional de las Artes – cadeiras plásticas, telas e trapos esparramados em volta. O estúdio virou sala de conferências, mas continuava borrado de tintas e sujo de pó de mármore. A arte olha pra gente, puta da vida, esperando a gente sair pra voltar a acontecer. E a gente discutindo Macri, monitores, moralismos. Monte de merda que paga as contas. - Lá fora: No segundo dia fui para o pátio da universidade. O ateu uruguaio fumava. “A maioria ¹ Eco-punk; sem tribo, sem lar, sem chama familiar.

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dos uruguaios são ateus”, ele disse. “É estranho para nós que alguém creia”. Ele me deprimiu: descobri que já não estranho mais nada. - Café: na rua, fui catar o que comer. Tinha uns sanduíches no porão da universidade. Tudo com carne. Fui me achar num café com wifi. Queria falar com ela. Coração ficou em casa. Escrevemos um ao outro, rimos. Gozo a vida, grato a Deus por ela. Mesmo de longe. Ela me disse certa vez “só consigo amar alguém de quem possa me distanciar de vez em quando”. Cara, que coisa linda! A gente se degusta melhor na saudade. - Centro Cultural: terceiro dia, e caía o mundo. Saí no meio do dia da universidade – ia assistir a fuça magra do Kalevi Kull no centro. Na saída, dei de cara com o norueguês. Conhecera o homem no ano anterior. Perdido, alucinado, pálido. Me ofereci pra levá-lo a pé. “Ali é bom pra comer?”, perguntava num inglês difícil. “A comida é boa”. “Limpo?” “Relaxa”, respondi. Via germes em tudo; embalou-se em plástico pra fugir da chuva. “Não se pode comer a comida do porão”, dizia. “Tem carne. Ano passado coloquei vegana nos pratos do congresso, lembra?” Cara legal. Pena. A vida é uma escrota com caras legais. - A praça: Eu comia bem no hotel, de manhã. Por alguma razão não via cães nas ruas. Sem comen243


sais, preferia me empanturrar no hotel e bebericar café com medialuna no almoço. Todo dia depois de comer passava pela Emílio Mitre, ensolarada e vazia. Era fim de semana; ninguém nas butiques em volta. A praça me encantava, fazia lembrar a Plaza de Mayo. Mas era mais clara, de verde mais vivo. Na outra, muita memória doída. Filhos perdidos. Como deve ser isso? Tristeza, meu Deus, quanta tristeza... Lágrima de mãe vai parindo túmulos por onde passa. - Despedida: último dia em La Cárcova, fundos de Puerto Madero. Eu já estava meio triste àquelas alturas. Melancólico. Vimos uma peça sobre amor e anjos. Nos fundos, mais carne, muito vinho, pessoas demais. Eu era o guapeca sozinho, mas achei quem me jogasse uns ossos de conversa. Na volta, escolhi andar. Puerto Madero vestia a crise: vazio num sábado. Juntei-me aos empregados dos restaurantes e fomos limpar os pisos da ruína juntos. Felizes. Acho que até cantamos. Eu dizia adeus a uma cidade vazia, judiada de miséria. Décima vez que ia até lá? E nem a reconhecia. Transfigurada de dor, rolando empréstimo pra pagar as contas. Que sina! Fui saindo de fininho, ouvindo Aranjuez. Que dizer? Alegria, quem sabe na próxima...

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Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: Mallarmargens, LiteraturaBr, Acrobata, Philos, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana e Cidadão Cultura. E-mail: ramoncarlos@estrabismo.net

GIRO Saudades do futuro que passou Deixando nada mais que o passado presente Confinando erros expulso nostalgia Nostalgia que há por vir ontem O dia de hoje é um dia atrasado de amanhã O tempo me persegue três voltas à frente Horas mentem Minutos complicam Segundos bastam Meses atrás estarei lá Ano que vem perdi sabe-se lá quando Séculos vendidos como macarrão instantâneo Julho não viu o verão Júlio bronzeou-se no inverno Judite quer um calendário A.C Jezuz prefere feriados D.C Francisco deseja um Chevette E o ponteiro do porteiro quebrou Onde estarão eu’s a partir de nunca

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Professora, pós-graduada em Estudos Literários, Linguísticas e Psicopedagogia. Estudante de Gastronomia. Possui 10 livros publicados. Classificada em vários concursos literários. Administra o blog www.ritalavoyer.blogspot.com Encontre-a no facebook por Rita Zuim Lavoyer.

LIBERTE O TEMPO

Diante dos meus anseios de criança já quis que o tempo voasse para que eu meus sonhos alcançasse. Parecia-me ele de lerdo flutuar. Do dia, horas havia de estudar de tarefas, de orar e a delícia de brincar. O relógio, em sua sisudez, estabelecia a vez com ponteiros, qual agulhas, que indicam das horas as frações, costuravam-me espaços afora, definindo dos meus períodos as durações. Diante dos reveses também quis o tempo parar para logo depois planar em suas asas e, do meu peito, as penas da saudade arrancar matando-a no ninho, extirpando da história meus amores e seus carinhos. Quis o tempo meu prisioneiro. Julgando-me dele proprietária 246


tentei, com a minha sorte, domá-lo. No embalo das minhas saudades, hoje não me calo. Aprendi: não tem jeito! Ele é senhor de si mesmo, não adianta, em nossas mãos, prendê-lo, tampouco arrancar-lhe os ponteiros. Preso no meu invólucro, vazando entre meus dedos, quando os olhos abri decifrei um belo segredo: Não tentes em mim pôr tuas rédeas, não craves em ti tamanha maldade. Estão na passagem do tempo as lembranças que deixam saudades. Se eu não passar como devo não verás na linha da vida evolução, nem a tua, nem a minha. Caminha respeitando do teu relógio a precisão. No sentido horário seremos horas e minutos, acertando teu tempo na exatidão do agora. Sobre um o outro seremos o conduto para o nascimento de uma nova aurora.

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Robinson Silva Alves. Nasci em Coaraci-BA sou formado em filosofia pela UESC. Participo de certames literários tendo sido premiado em alguns deles como: concursos municipais de Coaraci (2º, 3º e 4º lugares) ,antologia Bahia de todas as letras, Antologia Gioconda Labecca 9º Lugar. VI Concuro de poesia Cataratas 2008 8º lugar. Concurso de poesia UFF 2008 1 lugar, Menção especial no jogos florais do séc. XXI, Concurso de poesia Mogi 2008, Menção honrosa no jornal Le Ville, Concurso de poesia Colatina 2008. Cancioneiro poético do Instituto Piaget, Concurso de poesia poetizar o mundo 2010 (2º lugar), menção honrosa no VI concurso Newton Braga de poemas, Concurso de poesia UNIVAP 2010, 3º lugar no concurso de poesias Letras do Divino 2011, Cconcurso literário da AMLAC.

SAUDADES Sinto saudades De tempos de outrora Em que sonhava Com uma nova aurora Onde todos partilhavam O mesmo caminho Onde mesmo sós Nunca estávamos sozinhos Sinto saudades Do amigo vento Dos dias com tempo Dias de sonhar 248


Sinto saudades Dos dedos de prosa Da antiga viola Dos amigos da escola

Das noites trigueiras Um céu de estrelas Sinto saudades Da grande paixão

De minha amada Eterna inspiração Sinto saudades Dos banhos de rio

Um menino arredio Que vivia a brincar Sinto saudades De um tempo feliz Que nunca mais voltará.

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Roque Aloisio Weschenfelder. Natural de Santo Cristo-RS, reside em Santa RosaRS, tem 72 anos, é multipremiado em concursos literários, autor de 16 livros solo, revisor, tradutor, crítico literário, voluntário na organização de eventos literários, palestrante e diretor da Editora Escrita Criativa. www.facebook.com/roquealoisio.weschenfelder roquealoisio@yahoo.com.br

UM TEMPO, UMA SAUDADE Pulsares do coração; Lembranças, Saudades tempo afora, Relógio da vida! Passa o tempo sem parar, Pulsa o coração sem parar, Resiste a saudade sem parar, Sem parar tiquetaqueia o coração!

Em longos devaneios paradoxais, Absorve a mente o tempo passado, Sente o coração pulsar o tempo presente, Remetendo a vida ao tempo futuro. Passaram, Passam, Passarão Pulsos de saudade no tempo! 250


Rosangela Mariano escreve poesias, contos e artigos. É formada em Letras pela UNISINOS (RS). A poesia Alquimia do Tempo é classificada em 6º lugar pela Revista Inversos, Feira de Santana, Bahia, em 10 de setembro/2021. Pelo projeto Movimento Literário Digital (Motus #5), da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA- RS), o poema Renascer é selecionado para fazer parte do Livro Digital a ser lançado em outubro de 2021. E-mail: marihanaescritora@gmail.com

TEMPO

O tempo se foi... cobrou horas... mas descuidou das tristezas de outrora... - O tempo, viajante do adeus...

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DOCE MELANCOLIA Rosiane Covaleski Ah, que saudade de um tempo, Que o relógio já esqueceu... Tempo recolhido no peito, E que aprisiona pedaços meus... Lá, o novelo dos dias, Desfiava-se bem devagar. Lá, a vida passava, Como brisa leve a soprar. Naquele tempo, a palavra dita, Tinha peso e muito valor. Naquele tempo, um olhar marejado, Era apenas o prenúncio de um grande amor. Tempo que se perdeu no vento, Enlaçado em minhas recordações, Momentos que se derramam em saudade, Reavivando as emoções. 252


Rúben António Silva Marques nasceu em Louriceira, Alcanena, no ano de 1994. Formou-se em Gestão do Território pelo Instituto Politécnico de Tomar. O seu primeiro livro de poesia, “Segredos Despertados”, data de 2013. “Um Pedaço de Viagem” é o seu segundo livro de poesia, e foi editado em 2017. Em 2020 editou o seu terceiro livro de poesia "Navegações pelo Tempo". Conta com várias participações em antologias de poesia.

REGRESSO

As ruas fluem os carros em leveza, Precipitando em ápices a indiferença Presente em cada movimento quotidiano, Enquanto a luz da tardeza, Ao iluminar as folhas do Outono,

Lembra o intervalo da diferença. O alongamento da sombra dos prédios Vai desamarrando a venda sobre a vontade, Que ainda tenta calcar uma história cristalizada. Os passos estilhaçam transitórios, Delapidando a duração de uma eternidade, Uma eternidade enclausurada. O virar de cada esquina dissipa o lugar, O lugar criado pela metamorfose obsessiva Das alegrias passadas em boas recordações. Talvez seja engano voltar Para que um sentimento sobreviva. 253


Alimentada a leituras e escritas, emergiu S3nsoria. Um alter-ego de Patrícia Lameida, com a missão de fazer sentir através da leitura. Sensações carnais, cenários imaginários, explorações do eu, físico e mental, sem tabus, penas ou culpas. Junte-se a mim nesta experiência e deixe-se levar por lugares parcamente percorridos. Permita-se sentir, na intimidade de si, com as palavras que lhe ofereço. Sofra, excite-se e deixe-se levar pelo prazer. Para mim, é um gosto tê-lo por perto. Visite-me em http://s3nsoria.com/

INSONE Terminado o dia, mais um entre uma incontável sequência de banalidades regulares, decido-me a dormir. Escasseia a capacidade para reflexão e temo o encontro com o vazio de mim. Deitada, entre lençóis suaves, envolta pela escuridão que consigo produzir, cerro os olhos às imagens e sensações que me assaltam. Começam, como sempre, pela amálgama de desentendimentos, desgostos e pequenas perdas diárias. Afugento-as com os truques mais banais: inspirações, respirações, contagens e associações disparatadas; mas a mente é mais forte do que a vontade e vagueia por trilhos inesperados. No desespero da frustração insone, leva-me a afundar em mim. Sem permissão, confronta-me com a sombra que ostento, qual estandarte de indiferente existência, ofuscando a minha verdade, triste e só. Sob a aparência de tranquilidade e segurança, vejo o teu reflexo rindo comigo, e é inevitável o aperto que me sufoca. Passaram meses. Viagens a trabalho que se sucedem, com destinos mais remotos a cada decisão, 254


espaçando os pedacinhos de ti que de lá me chegam. Tenho-te tão vívido que me dói perceber-te ausente. E se a princípio era inevitável, tornou-se dispensável e excessivo para os dias banais que carrego. Assim, descarto-te a cada nuance que recordo. Recalco-te com a mais férrea decisão e existo suspensa do teu retorno por todos os sessenta segundos de cada minuto, sessenta minutos por hora, e vinte e quatro horas por dia, por sei lá quantos dias. Na fraqueza noturna que visitas, ris. Sempre luminoso e inconsequente, em desafio pelo limite. Eras a vida encarnada na noite em que te conheci, cativante nos gestos largos e gargalhadas fundas, fixaste em mim um olhar penetrante, acicatando brasas de liberdade e algo mais. “És tão bonita…”, sussurraste enquanto sentias uma mexa de cabelo que se libertava, como eu, rumo a ti. Assim começamos. Depois do primeiro toque, foi magnético o nosso reencontro. Um café a servir de pretexto, beijos roubados na fila para o cinema e um filme que não recordamos, entretidos como estávamos a trocar carícias proibidas numa sala repleta. Dava-te pipocas à boca, contornando com o dedo o leito carnudo dos lábios que me chamavam, que aspiravam curtos golpes de ar entre ondas de crescente excitação. Massajavas-me o joelho, subindo pela coxa, lento, escorregando para o seu interior entre pequenas preensões que me elevavam na aproximação à minha intimidade. 255


Adoramos o presságio da decadência a que nos entregaríamos. Não foi rápida a redenção. Prolongámos encontros, jantares e charadas em pisos de dança anónimos. Ansiávamos um pelo outro, tanto. Sabermo-nos longe sem um momento de reunião pelo qual esperar era impossível. E assim estiramos o inevitável que, quando aconteceu, foi fulminante. Era um jantar imenso, repleto de amigos e conhecidos, na celebração anual das festas da Natividade. Há nestas ocasiões um consentimento implícito que permite comportamentos recalcados, meses de anseios e frustrações libertados. Tornam-se eufóricas e despropositadas, emergindo vontades pouco natalícias: danças que libertam roupas, bebidas por aposta que entorpecem a crítica, encontros de corpos sem que as almas estejam presentes. E nós. Atiçados pelo desejo que afincadamente alimentamos, rendemo-nos. Afastados da algazarra, embrenhamo-nos num jardim escuro. Escolhemos um banco aleatório e fundimo-nos, na noite e um no outro. Estava frio, um arrepio que só nos aumentava a vontade. Com o teu casaco longo sobre os ombros, sentada sobre ti, entre beijos urgentes e gestos de deleite, foi-nos fácil eliminar barreiras. Sentir-te em mim levou-me um gemido animal que espelhava o que sentia: sensualidade e volúpia, cheia do poder que percebia ter sobre ti, encantada pelos arfares que 256


davam voz ao prazer que mostravas e que vinha de mim, fiz-me deusa, tão antiga como a humanidade. Terminou rápido e soube a pouco. Remediamos os trapos que nos cobriam e aceleramos o passo que só abrandou quando a porta deste quarto nos isolou da realidade com um clique. Assim, o tempo dilatou, permitindo a lentidão que nos revelou um ao outro aos poucos, explorados por beijos e carícias, guiados pela pele que estremecia sob um toque ou pela urgência que antecipava gestos, ansiedades que tardávamos em saciar, bêbados de nós. Foi a primeira de noites inúmeras e inigualáveis. Não nos sentíamos usuais. Era tamanha a necessidade de nos termos que permitia a audácia necessária para os pequenos delitos. Nenhum local era demasiado público, nenhum intervalo demasiado curto, nenhuma ideia excessivamente depravada. Passámos por todos os clássicos: a cueca minúscula que despi para te oferecer discretamente numa festa familiar; as carícias que te engorgitaram quando conduzias, atento aos carros que aceleravam em conformidade com a rapidez da via que te obrigava a continuar enquanto desci o fecho e te libertei, tomando-te entre lábios húmidos e travessos; os dedos que escondeste sob a mesa num qualquer jantar formal, que descobriram o caminho para o meu centro sem se deterem com saias ou rendas, entretendo-se numa tortura sensual que me tornou subitamente calada, faltando o ar até 257


me render à necessidade… Mas fomos tão mais, sedimentados em serões de tranquila modorra a dois, com o som do papel folheado como único adorno; carícias leves ao adormecer e risos palermas que soltávamos enfiados em pijamas quentes, aquecendo a conversa com chá e chocolate. Eternos. Até partires. Não foi uma notícia que nos preocupasse, afinal seríamos sempre nós. Sentimos a antecipação da partida com a excitação que nos acompanhava habitualmente. Teremos falhado na percepção da falta que nos faríamos. Eu sei que falhei. Percebi-o na tua partida. O ruído de um aeroporto é memorável na dor. Começou por um ligeiro desconforto ao acordar nesse dia, uma sensação deslocada que crescia no peito a cada gesto que nos aproximava da despedida. Quando deixámos as malas em troca de um passe para te levar, tornou-se álgico e sufocante. Quase intolerável. Arrastei-te para a primeira porta de acesso interdito que nos surgiu. Assaltei-te: lábios, peito, membro, tudo o que de ti coubesse nas palmas destas mãos que não chegavam para te absorver. Quase em combustão espontânea, respondeste-me com a mesma necessidade, rápidos em escalarmos a espiral de oblívio, tremendo, temendo, tardios na realização do que viria… 258


Gemo enquanto te recordo sugando-me o peito; acaricio-me na visão das tuas mãos largas prendendome a anca contra ti quando me preenchias e reclamavas, marcando-me com os lábios a beijos púrpura. Chego conosco ao clímax. Amolecida, tremo no rescaldo da memória, e deixo-te partir, sonolenta. Entrego-me a Morfeu, finalmente, e deixo escorrerem as horas de sono até um amanhecer cinzento, como todos, até que voltes.

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O TEMPO E A SAUDADE SÃO NA VERDADE UM RELÓGIO O tempo e a saudade andam juntos, o tempo numericamente é medido no relógio e a saudades sentida, medida no coração, na alma e na mente. Tempo de relógio é igual para todos, mede vinte e quatro horas todos os dia, mas para as pessoas a medida do tempo depende do que cada um faz com suas vinte e quatro horas do seu dia. Saudade também cada pessoa tem a sua. O tempo está no ontem, no hoje e no amanhã, todos nós temos um tempo onde o passado e o presente se entrelaçaram ou entrelaçam em momentos de saudades, lembranças e pensamentos. Ele pode ser diferente a cada momento de nossas vidas. No tempo cronológico pode se arrastar por 260


horas, ou simplesmente voar como mágica que ilude as nossas mentes. O tempo é feito de dias, meses e anos, a saudades é feita de sentimentos, acontecimentos acometidos na vida de cada um e na vida de todos. Ela é uma reação provocada e causa um vazio, um aperto, uma dor na alma e na mente e o coração dói, dói, ah, como dói. De algum modo a dor é igual para todas as pessoas, ou porque o coração está cheio de amor, ou porque está cheio de ausência. A saudade é sentida quando ao caminhar lado a lado lembramos que no passado era ter companhia, no tempo que havia conversa e na conversa havia diálogo, olho no olho, gargalhadas em coro, expressando coisas engraçadas e alegrias. Saudades de namoro, do flerte imageticamente comunicando eu te amo, que bom que você está aqui. Tudo parou no tempo, na saudade, no tempo. É bem verdade que no relógio anda o tempo, mas na saudade no tempo para. E no verbo parar a saudade para no tempo, na alma, na mente e no coração; para no olhar distante na lembrança, na vontade, no desejo. O relógio é igual para todos, no corre, corre ele marca os segundos, os minutos, a hora, a distância da noite para o dia, e o espaço do dia para a noite. O tempo passa correndo na alegria, se arrasta na dor, demora passar na tristeza, mas a saudade passa não passa, se acalma até a lembrança 261


voltar provocada por se avistar algo que faz a mente lembrar e no coração a saudade bater e voltar. No tempo presente percebido em silêncio tudo é permitido, lembrar do passado, tempos marcantes, reviver histórias para transformar sentimentos, organizar a vida porque fatos do passado permanecem, e devem ficar no passado, porém seus significados podem ser mudados se reinventarmos e no presente criarmos um diálogo com o tempo e a saudades, remexermos nas lembranças, pensarmos e sentirmos com o coração, mas captarmos com a mente e com palavras vivermos a saudade estando no tempo presente. Porque é permitido viver e escrever novas histórias, enfrentar novas jornadas, novos desafios, alcançar muitas vitórias, aproveitar tempos livres, porque também é permitido se perder na saudade, permitido viver o tempo presente e se perder no tempo. Ontem, hoje e amanhã na verdade são vários tempos marcados numericamente pelos relógios, só as saudades são marcadas pelas lembranças sentidas profundamente cheias de tristezas ou cheias de grandes alegrias. O tempo e a saudades são na verdade um relógio marcando emoções.

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UMA CARTA PARA O SENHOR TEMPO Sandra Lee dos Santos Ribeiro

Adinkra Mmere Dane¹ Senhor Tempo, tomo a liberdade de escrever esta carta porque, com a mesma sinuosidade de um rio, carrega os processos da vida e, quando o mar adentra ao leito destes caminhos uma pororoca de acontecimentos se faz presente criando um caos que reorganiza a tudo e a todos com respostas de sabedoria. Tierno Bokar² diz que “a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o ¹Adinkra Mmere Dae, dane (o tempo muda, muda). Escrita africana originária do povo de Ghana. A vida não é uma água parada, mas um rio que corre. Sem mudanças, o tempo não pode existir. As pessoas mudam, a terra se transforma, os alimentos amadurecem e apodrecem, os governos tem sua ascensão e colapso, os organismos evoluem e se extinguem. As mudanças geralmente acompanhadas por aflição ou insatisfação. Por vezes queremos mudar, mas isso não acontece tão facilmente quanto gostaríamos. Todos nascemos num ambiente de mudanças e levados pelos ventos da mudança, que é a dinâmica da vida. Ao aceitarmos isso, nossa alma se harmoniza e pacifica. Este símbolo nos alerta a fluir de acordo com os movimentos da vida. (http://claudio-zeiger.blogspot.com/2012/02/mmere-dane-simbologia-adinkra.html Acesso em 02/07/2021) ² Falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande Mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. Cf.HAMPÂTÉ BÂ, A. e CARDAIRE, M. 1957.

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saber em si”, por isso nas Perspectivas femininas afro-brasileiras a Negroesia abraça a literatura já que nos Becos da Memória existem As Cidades Invisíveis que, como Olhos d’água, caem em formato de cachoeira através das Insubmissas Lágrimas de Mulheres onde se avolumam e alimentam as histórias africanas com seus Mitos, Emblemas e Sinais, tal qual uma Escrita Adinkra. A vida, o saber e a escrita são lugares soprados pelas inxias³ ancestrais como uma Balada de Amor ao Vento e que se encontram no rio das sinestesias onde o murmúrio das águas de Òsun desperta o embondeiro adormecido, guardião da entidade a quem nós, os humanos, chamamos de Tempo. Enraizada na esperança A árvore generosa, testemunha os processos e guarda consigo A lenda dos anjos que alçam voos de histórias semeando Flores Negras que, em terra fértil, recebem As águas de Oxalá umedecendo-as e despertando-as para a vida porque recusam a Escravidão e acreditam que A pedagogia das Encruzilhadas trará uma nova forma de olhar para o mundo.

³Apitos 264


Meu Ori não deseja outro Ensaio sobre a cegueira para que a humanidade possa repensar sua trajetória e sim, escrever um novo Kitábu com outras Obras escolhidas para discutir a Magia e técnica, arte e política baseadas no respeito às diferenças de todos os povos habitantes da Terra porque Cada homem é uma raça e, Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos concederia a cada ser um Lugar de fala. Mesmo aqueles com Pele negra, máscaras brancas precisam lembrar-se das Rebeliões da Senzala e honrar as lutas dos “mais velhos” reafricanizando as suas falas e ações porque ao olhar para O surrealismo da vida tenho a certeza de que se a humanidade teve origem no berço de ébano da realeza africana, porém, a descendência foi forjada no cárcere dos tumbeiros onde as matriarcas, por vezes, eram As filhas das lavadeiras oprimidas e estupradas na Casa Grande & Senzala. É possível que O patuá escondido em alguma das histórias de Anansi, o velho sábio, guarde os segredos milenares da Mãe África, assim como O mundo no black power de Tayó abriga centenas de sonhos coloridos, porém, A penúltima visão do paraíso ainda está incrustada no coração fibroso e na sabedoria de Vossa Majestade, o Tempo. Apesar da linearidade imposta pelas culturas europeias sabemos, Senhor Tempo, que 265


Em comunidades da África, o tempo dos antepassados é fundamental (...) se estamos em uma reunião, os antepassados fazem parte dessa reunião; não estão ‘antes’, estão presentes(...) É outra concepção do tempo, porque os que estão ‘antes’ estão conosco, é uma concepção muito mais rica (SANTOS, 2007, p. 34). Portanto devemos respeito a todos aqueles que vieram antes de tudo e todos como os elementares minerais, o fogo, a terra, as matas e, especialmente aqui, Senhor Tempo, quero me prostrar diante da água. Água que nasce na fonte Serena do mundo E que abre um profundo grotão Água que faz inocente Riacho e deságua Na corrente do Ribeirão (...) Água dos igarapés Onde Iara mãe d’água É misteriosa canção Água que o sol evapora Pro céu vai embora Vai virar nuvens de algodão (...) Águas que movem moinhos São as mesmas águas Que encharcam o chão E sempre voltam humildes Pro fundo da terra (...)⁴ ⁴ Planeta Água, Guilherme Arantes, 1981.

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Talvez sejam elas, hoje, as mesmas que brotaram no sudário de Jesus Cristo, e na visão de Paulina Chiziane, foi o primeiro feminista da história da humanidade ao impedir que Maria Madalena fosse apedrejada. Quem sabe não se fazem presentes nas chuvas de verão as lágrimas das mulheres africanas que foram separadas dos seus rebentos ou violentadas pelos seus senhores; ou ainda não caiam nos orvalhos das noites as águas sangrentas que choraram das costas dos negros chibatados nos pelourinhos? Então, Senhor Tempo, quero pedir licença para reunir os de ‘antes’ com os presentes na direção do futuro através das águas, num movimento Sankofa, como um portal que permite vivenciar as temporalidades de forma concomitante.

Adinkra Sankofa⁵ Permita-me, Senhor Tempo, buscar nas cidades visitadas por Marco Pólo a fluidez de Valdrada que conta histórias gêmeas refletidas no espelho das águas de um lago por onde as vidas, sempre aos pares, acontecem simultaneamente sem que uma jamais toque a outra ou interfira nas suas cotidianeidades. ⁵Adinkra Sankofa. Se wo werw fi na wo sankofa a yenkyi. Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás. Símbolo da sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. (Nascimento, Gá. 2009, p. 40)

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Nessa cidade um caleidoscópio de cores invade a privacidade dessas águas tão calmas que revelam a existência de amores proibidos, “quando os amantes com os corpos nus rolam pele contra pele à procura da posição mais prazerosa” (CALVINO, 2003, p.55) ou, ainda, quando denunciam crimes quase perfeitos. Quem sabe me seja permitido, na cidade de Fílide viajar na invisibilidade dos seus espaços que, certamente, assim foram preparados para que as águas os ocupassem, e talvez elas lá estejam presentes, sublimadas e envolvendo a todos aqueles que se encontram entre nós, mesmo sem serem vistos. Ao vislumbrar Isaura com seus cinco mil poços presumo que os sonhos da humanidade estejam misturados liquidamente neste espaço e possam elevarse aos céus caindo em formato de chuva, em todos os lugares do mundo, inclusive em Moçambique. Ouso dizer, Senhor Tempo, que Kublai Khan seria o homem mais rico do mundo se pudesse presenciar com seus próprios olhos as águas esverdeadas do Rio Save em cujas margens Sarnau e Mwando vivenciaram o primeiro amor entre macho e fêmea. Penso que as inxias ancestrais possam acasalar seus sons com quem, em Zemrude, “passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos” (CALVINO, 2003, p. 66), águas que podem carregar um pouco do DNA das negras lavadeiras que, 268


ao clarear as roupas da casa grande nos açudes tentavam limpar seus caminhos para alcançar a liberdade. Nessa cidade invisível onde cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distinguí-los da calçada. (...)por isso, continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam até as adegas, os alicerces, os poços(...) (ibidem) Esses poços, Senhor Tempo, talvez, tenham conexão com as casimas da Maianga e seja possível unir, através de um portal, lugares que falem de ancestralidade para recontar, através das águas, uma história a “contrapelo” como sugere Walter Benjamim. Quem sabe as águas do Rio Save não carreguem no seu leito, até o mar, um pouco de Valdrada, Fílide, Zemrude ou Isaura, ou ainda algum resquício do suor dos trabalhadores durante a construção de Quéops? Talvez, as antigas matriarcas do mundo tenham desaguado seus desejos nesse caminho líquido como um melão ferido porque 269


(...) a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão. Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p. 12). Haveria elementar mais apto do que a água para acalmar o vulcão da escrevivência de mulheres negras que a literatura de Conceição Evaristo liberta dando-lhes visibilidade através das águaslágrimas, do aleitamento materno, do líquido amniótico ou do suor dos desejos? É possível que, elas evaporadas, se debrucem no universo, caiam e repousem como úmida neblina para acariciar os campos outonais em algum lugar no sul do Brasil! Talvez, Senhor Tempo, sejam as mesmas gotas que umedeceram a pele de algum “cavallo marinho” mergulhado no rio Coamza ou ainda tenham testemunhado a pesca dos peixes-fêmea 270


por algum negro habilidoso naquelas paragens angolanas incrustadas no seio da Mãe África. Quem seria mais apta do que as águas para unir esses processos ao longo da existência humana já que vivemos num planeta que tem 75% da superfície coberta pelas águas, somos gerados numa placenta, uma bolha d’água, e nosso corpo é 80% composto por água. Senhor Tempo, a sua sabedoria pode me tirar uma dúvida? Por que o nosso planeta se chama Terra?

271


Sandra Ramos, nascida em Alcochete (Portugal) em maio de 1976, vive desde os seus 27 anos na Charneca da Caparica. Concluiu o Curso de Engenharia Química e o mestrado em Gestão da Qualidade, estando a frequentar o Doutoramento em Gestão Industrial. Em abril do ano de 2020, abriu uma página de autora onde publica diariamente poesia e prosa poética. Participa regularmente na publicação de poemas num blogue e atualmente é uma das cronistas (da equipa Heli Cayenne) da revista Helicayenne Magazine. Foi desafiada a publicar o 1.º livro “Memórias de um Tempo Enfermo e Infinito: Diário Epidémico” (em outubro de 2020) com a chancela da Chiado Editora, uma súmula de textos e poemas escritos durante a pandemia (de março a agosto de 2020). Tem vindo, também, a participar em muitas coletâneas de poesia desde abril de 2020 ) até à data presente. Tem participado também em tertúlias e programas de rádio de divulgação poética. O que mais ama fazer? Escrever, partilhar com os demais o que sente e contemplar a perfeita união de vogais e consoantes, decifradas em sentimentos íntimos e adornadas em mensagens de purpurinas. Ama a sua Filha (A “Voa-Voa”, razão do seu Viver), a Gestão da Qualidade e a Poesia (o seu refúgio, a sua melhor amiga).

O TEMPO QUE DÓI DE SAUDADE O frio aperta o peso do silêncio, gélido o pensamento que me envolve, na acesa noite que se projeta, na fragmentada lança que me acerta. Deserto tatuado no corpo afogado, chagas perfumadas e sagradas da vontade, compassos recolhidos no desejo de carícias, escolhas preparadas em certeiras delícias. Gestos que se colidem no nó intemporal, beijos fluidos, dedos presos na exaltação de corpos molhados; mel de conforto escorrido no enlace, acalmia do abraço rendido ao desenlace. O tempo não segue na espera disforme, 272


as órbitas nucleares recusam-se a girar, a ausência geme na sede da vontade, esgota-se - docemente - na estrangulada saudade. E.…no frio do meu suspiro, chamo; perfumo o desejo recriado nesta noite, repouso nas asas semeadas da minha vontade, e.…aguardo...no tempo...que dói de saudade.

Por isso…Tempo, ordeno-te que a leves, segue o teu/vosso caminho áspero e vazio, recuso a vossa presença rasante, personagens assíduas da laceração e distante.

Partam..., o bilhete já vos dei; as indicações estão apreendidas, almejo que não crucifiquem outras almas, porque - vós – Saudade e Tempo, sois cruéis e Alfa. Vão...! Levem convosco o pior da minha essência, Esqueçam-se de mim, porque – Saudade e Tempo - finalmente, eis que chegou o vosso Fim! 273


Saul Cabral Gomes Júnior. Nasceu em Belém (PA), no dia 21 de maio de 1980. Graduou-se em Letras (Licenciatura em Português e Inglês) pela Universidade da Amazônia (2001). Possui mestrado (2006) e doutorado (2011) em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Em 1998, obteve o 4º lugar no Concurso Nacional de Contos “Cidade de Araçatuba”. A produção do ensaio O romance regionalista: do panorama ao perfil lhe valeu o prêmio “Carlos Nascimento”, concedido pela Academia Paraense de Letras em 2002. Dois anos depois, teve uma poesia classificada no VIII Prêmio Escriba de Poesia. Em 2020, publicou o livro Entre a História e o discurso: olhares sobre a obra de Gladstone Chaves de Melo. E-mail: muiraquitan.saul@bol.com.br

A IDADE É UM ESTADO DE ESPÍRITO

A idade é um estado de espírito tempo cronológico tempo psicológico nem sempre confluem podemos rejuvenescer quando menos esperamos podemos envelhecer antes do que pensamos

as rugas no rosto não represam a vivacidade da alma Nós construímos o nosso tempo.

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ENSAIO DE SAUDADE Sérgio Moreira

Parece que foi ontem.

Parece que não foi. Nunca foi. Mas se foram os muito queridos cuja perda parece o ontem perdido mesmo não tendo sido.

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PÊNDULO Silvana Carvalho

Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. O som metálico e repetitivo do relógio de pêndulo da sala me chama à reflexão. Pouso minha xícara de café na mesa e o observo. Lembro da sua chegada nessa casa há muito tempo atrás, no dia em que completamos um ano de casados. A embalagem não dava a entender o seu conteúdo e era acompanhada de um cartão no qual meu marido tinha escrito uma frase cheia de significados. “Para a gente nunca perder a noção do tempo.” Por muitos anos esse relógio cumpriu sua função de escandir nossas horas juntos: quando ele chegava, quando eu saia, a hora do almoço, a hora do dentista, as horas. Naquele tempo seu tic tac era inaudível, sufocado pelos rumores da casa: as vozes dos filhos e dos amigos, o latido dos cães, o alvoroço dos eletrodomésticos, o toque insistente de um telefone. Depois, sem nenhum aviso prévio, aquele ruído ritmado tornou-se ensurdecedor e começou a ecoar nas paredes e nos móveis como um estrondo. 276


Não nos tínhamos dado conta do passar do tempo e de nada tinha servido a imponência desse relógio. Nossas vidas tinham se esvaziado e aquele barulho insistente fazia agora com que a saudade chegasse pontual todos os dias, junto com muitas lembranças e uma lágrima ocasional. O mundo inteiro, e o nosso em particular, tinha passado por uma revolução. Enquanto nosso relógio de pêndulo ficava obsoleto nossos filhos abandonaram o ninho, nossos corpos se tornaram frágeis e as horas de trabalho foram substituídas por horas de ócio. Nada, nada era como antes, nem mesmo o sabor desse café. A única coisa que permaneceu igual é a impertinência com a qual esses ponteiros continuam exercitando sua função de controlar o tempo e a sua incapacidade de fazer com que ele pare. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac. Tic tac.

277


SINVAL FARIAS nasceu em Fortaleza, no ano de 1977. É graduado em Letras pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente, cursa o mestrado em Estudos da Linguagem pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira – UNILAB. Atua como professor de Língua Portuguesa do Instituto Federal do Ceará – IFCE. No correr da vida, diversificou a produção literária, dando corpo a poemas, contos e crônicas, muitos dos quais premiados em concursos locais, nacionais e até internacionais. Possui textos publicados em diversas coletâneas espalhadas pelas piçarras do mundo. Consta como autor do livro Coisas de sala de aula e outras crônicas (crônica) e Depois de tudo a palavra (poesia). Facebook: https://www.facebook.com/sinval.farias/ Instagram: @profsinvalfarias E-mail: professorsinvalfarias@gmail.com

SOBRE DESPEDIDAS Entre todos os temas que vingam de uma cachola em ebulição, o que mais confina a sanidade é tratar de desencontros e despedidas. Há motes menos extenuantes: viagens inalcançáveis, bichos exóticos do Camboja, incursões intergalácticas. Entanto, tange no relógio o desejo sonoro de matutar sobre despedidas. Como não se remedeia, vamos aos costumes. À guisa de praticidade, dividi a liturgia em três partes: a juventude, o tempo e a saudade. Envelhecer não é somente uma mera produção desenfreada de radicais livres. Isso traz maturidade se confundir com decomposição. Ficar velho parece ser um esquecimento, um sobressalto. Quando menos se espera, cá estamos, ranzinzas e obsoletos, reclamando da música alta na casa vizinha. Melhor aproveitar enquanto a vida ainda soa colorida, e podemos, com traços de alfabetizando, rabiscar o futuro. Juventude é 278


bom porque dura pouco. Não há nada mais ridículo que um velho dando de rapazola, nem nada mais perigoso que um jovem descrente da liberdade. Segundo a teoria da relatividade, presente, passado e futuro são ilusões teimosamente persistentes. Concordo, embora não veja mal em cultivar ilusões. Trago memórias fugidias dos tempos de escola. Com esforço e imaginação, reconstruo cenas: as tias do primário ninando as primeiras letras, o recreio e suas filas intermináveis, os amigos que fiz e que me fizeram. Dia desses, reencontrei, por acaso, um amigo de escola. Foi uma conversa rápida, que velhos nunca têm tempo para nada. Havia um quê de intimidade ali. Os ponteiros são implacáveis. Talvez nunca mais volte a vê-lo. Como apenas é possível medir a dor no irromper da ferida, ninguém entende a saudade sem a experiência da perda. Ah, o se, essa conjunção carregada de remorso. Se não houvesse virado as costas, se duvidasse sem excessos, se dedicasse mais tempo, se entrasse na rua certa, se evitasse chorar ao primeiro tremor, se acreditasse menos no espelho. O se é pura saudade. Quanto de nós se extravia ao nos despedirmos de algo ou de alguém? Das certezas impostas pela existência, a saudade é a mais poética. Está longe de ser sobre realizar tudo, mas sim sobre tentar não esquecer e, se merecido, não ser esquecido. 279


Sirlene Maria da Silva Ferreira é brasileira, casada, reside na cidade de Taguatinga, DF. É professora aposentada, formada em Pedagogia, área de Magistério pela Universidade Católica de Brasília e pós-graduada em Psicopedagogia Institucional. Atuou em Escola Normal com Formação de Professores na área de Metodologia da Linguagem. Nas séries iniciais atuou com Alfabetização e em Sala de Leitura com Projetos literários. É contadora de histórias e escritora.

O RELÓGIO DO TEMPO As horas passam, o tempo voa, E a vida é tão rara! É tão curta e mágica! Ora se nasce, ora se morre. Pela manhã tudo é normal. O sol brilha, a brisa é suave, O céu é azul, o horizonte amarelo. E a noite? A noite, surpreende, não tem idade. Crianças, jovens, velhos. A vida é um mistério! Dizimada. A morte chama, o tempo não dorme. Alguém adormece, de noite ou de dia, em sono profundo. Não tem lugar, não tem hora. O momento pode ser o agora. E nós? Não somos nada! Sensíveis, frágeis, vulneráveis. 280


Assim vai passando tudo. Não há mais passado nem presente. O futuro? Incerto! Não nos pertence. Só Deus, só ele, nada mais. O “tic tac” do relógio cessa, O tempo para, não avança. A esperança se esvai. Não! A esperança é última, é virtude! Quando tudo por aqui acaba, Não adianta mais, não tem volta. Fica a dor, o vazio, a lembrança. A saudade ocupa lugar de destaque. A saudade? Isso mesmo! A saudade! Torna-se alimento, sentimento. E de novo o tempo ocupa seu lugar, Como remédio! A longo prazo, cura. O relógio do tempo, joia de grande valor, A cada dia mostra seu preço, Nos desperta para o recomeço. O amor para com o outro? Isso! Torna-se intenso. Não sabemos jamais quem é o próximo. Viver é preciso, com alegria, entusiasmo, Sorrir, cantar, brincar, correr, abraçar, Valorizar! Como se o hoje fosse o dia! 281


Tayza Azevedo - @tayzazevedo Site oficial: Palpitar com Tayza Azevedo. Escritora e autora do livro Nunca será tarde para construir o seu castelo/ 2021. Formada em Letras pela UEG/2011

HÁ 10 ANOS Ventos do tempo de quem amou Sofreu e perdoou Experimentei outros vinhos Outros sabores e odores E para outros amores Jurei que era passageiro Te escondi no meu corpo inteiro Como você me ensinou Nunca te confessei Entrei no seu jogo Fingi que criei, o que não levou o tempo como bomba relógio ainda te sinto aqui dentro.

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Thaís Thomaz Bovo é historiadora, doutora em História da Arte e gosta muito de fotografia. Trabalha como professora universitária e coordenadora pedagógica, mas, quando tem um tempo livre, aprecia fotografar paisagens e pessoas. É mãe do Francisco e apaixonada por gatos.

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Valéria Paz é mestre e doutora em Letras pela USP, com trabalhos sobre poesia, mídia e memória social. Tem 56 anos, é professora aposentada e em 2021 publicou, pela Editora Penalux, o livro “Era vida e se quebrou”. argumentovpa@uol.com.br

QUEM DERA

agora tudo demora a pele pra regenerar os ossos pra voltar no lugar a respiração pra desacelerar o coração pra esquecer não me venha com essa de resiliência e superação não sou de matéria com rigidez negativa pra absorver tanto golpe vivo encarnado nesse corpo frágil não sei até quando marcando um desencontro atrás do outro tem tanta coisa que nunca mais que já me assusta menos o para sempre

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TEMPOS DIVERSOS Vera Barbosa Tempo parado, suspenso,

esperando acontecimento. Tempo esparramando-se sobre os telhados da noite, Velando os sonhos dos dormentes Sonhos fugazes, ou recorrentes, De sonos inconscientes. Tempo afetuoso, que traz a manhã, Atrás de tumultuada noite malsã.

Tempo de viver o amanhã. Tempo da onda visitando a areia da praia E tempo de voltar ao seio do mar

Aos peixes, moluscos, arraias Que, lá, fazem seu lar

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Tempo do aconchego do feto

Sossego, afeto, carícias da mãe. E logo chegará o tempo da vida Talvez sofrida, talvez não, E enfim o tempo da ida Quando, para onde, ninguém sabe. Tempo de primavera, flores multicores, e perfumes inebriantes, espalhando odores. Tempo de espera dos frutos de sementes plantadas Inda não germinadas. Tempo de esquecimento Das injustiças sofridas, Ou cometidas,

Das mágoas ainda doídas. Tempo do arrependimento, Tempo de aprender A amar

A sofrer.

287


Wagner Gomes. Apaixonado por música e arte, baiano da cidade de Cruz das Almas, residente em Salvador (BA), trabalha também como produtor cultural. Escreveu o poema "O Reinado de Reinalda - uma rainha que começa com Rei, em 2016, um mês após o falecimento de sua mãe, inspirado na canção Dona Cila de Maria Gadú. Facebook: https://www.facebook.com/wagner.gomes.3726613/

O REINADO DE REINALDA UMA RAINHA QUE COMEÇA COM REI O sorriso do retrato Não a registrava de fato

Já a gargalhada da vida Uma delícia divina Pra quem com ela tinha contato Acordava com o sol

Na terra que a acolheu E seguia à caminhada Ao “dar no pé” botava no chulé De manhã cedo a meninada

Sua prole, sua vida Dá pra contar nos dedos de uma mão Mas ela dizia que eram poucos Acima de tudo, nunca deixou faltar o lápis nem o pão 288


Conhecia muita gente Meia hora bastava pro papo A cada novo contato

Só que dos defeitos que ela tinha Era dizer que quem falava pouco Tinha espírito fraco Na labuta de sua vida Pra criar os cinco filhos Nunca um cigarro cruzou seu rumo Mesmo assim foi operária Exatamente da indústria do fumo Perto da aposentadoria Foi pra lida em colégios Mudando assim sua carreira E graças à sua simpatia

De alunos a professores Ganhou filhos pra “desgrameira” Na infância à escola foi bem pouco Já que na roça educação não era o desejável

Mesmo assim ela era danada 289


E até às vezes atropelando o português Tinha uma dicção impecável

Aí vieram os segundos filhos Amou tanto que a vida mandou quase uma dúzia Aqui os chamo de netos Entretanto, o destino traiçoeiro Decidiu contar só nove Porque os outros quase não passaram de “fetos” Por ironia do destino Hoje tão cedo sua “Alma” Voltou a morar em “Cruz” Ao lado de dois dos netos E daquela que lhe deu à luz Mas antes de ir embora

E de passar por tanta dor Se juntou com as amigas E bem na melhor da idade Sorriu e até sambou Tocando num machucador 290


Para os filhos era Mainha Foi vovó, sogra, Nalda, Rena e Rei Pros sobrinhos Tia Dinda ou Nanada Mas aviso pra aqueles que não acertavam

Seu nome certo era Reinalda Com sua precoce partida Pra gente é como faltar água num rio Mas aqui deixou sua irmã amada

Que apesar de Alaíde Para nós é “Tia Til” Hoje digo com emoção Com o coração “estraçalhado”

Há, se Deus permitisse Mainha! A sua “bença” mais uma vez eu pedir E ter a senhora, por um segundo, ao meu lado.

291


Para a próxima edição o tema é livre. 292


DICAS CULTURAIS https://www.in-finita.com/ Portugal e Brasil

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