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Bernardo Rodrigues

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Wagner Gomes

Wagner Gomes

FIM ALHEIO – Bernardo Rodrigues

Foi no meu aniversário de 12 anos que meu pai recebera a ligação do hospital. Não tinha aula nesse dia, acordei cedo toda elétrica para celebrar essa data, acreditando que ele estaria ali, esperando para me presentear. Eu já sabia o que minha mãe tinha comprado para mim; eles haviam feito o divórcio há 2 anos e eu fiquei morando com ela. Apesar de que adorava viver com minha mãe, encontrar e conviver, mesmo que fosse por poucas horas, ou minutos, com meu pai, havia aí uma sensação de alegria que não entendia na época. Meus sentimentos eram apontados da mesma forma para ambos, mas o jeito que ele me alegrava era diferente; produzia em mim essa vontade absurda de continuar vivendo, como se a morte estaria longe, inalcançável e intocável, que eu riria da ideia de que algum dia ela viria e alguém ou todos nós morreríamos. Mamãe era toda cuidadosa, observava se eu não estava comendo muito depressa, tornava-se infantil para brincar comigo durante pouco tempo, com receio de que isso afetasse a minha adolescência, e me tratava, muitas vezes, como já sendo “grandinha”; papai, por sua vez, tinha uma rebeldia educacional brilhante: transformava tudo em diversão, pegava a sopa que mamãe fazia e segurava a colher longe de mim até que eu respondesse algumas de suas perguntas brincalhonas; e se eu o questionasse acerca de uma

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atividade de História, ele respondia representando o fato em si, como a descoberta do Brasil, levantava a mão até acima das sobrancelhas e gritava: “Terra à vista!” E pulava de seu navio imaginário e conversava ao vento com os índios, que eram as vassouras, e, tomando posse da terra, sentava-se na cadeira da mesa da sala, como se fosse o dono do país. Caso eu estivesse triste, seja porque tinha brigado com alguma amiga, seja porque mamãe me deixara de castigo, o conhecimento de que papai estava vindo me visitar, como se tudo perdesse a razão de existir, ou ao menos de me deixar infeliz, acontecia que eu ignorava o castigo, a briga, e já pensava em qual brincadeira eu faria quando ele chegasse.

O que eu vi, quando acordei naquele dia, foi meu pai em pé, na porta da cozinha, com os braços direcionados às costas, escondendo algo. Meu rosto remexeu cada parte para produzir um largo sorriso. Ele disse bom dia e fez uma cara tristonha. Eu já conhecia esse disfarce mal feito dele, mas ignorei: a surpresa deveria ser completa.

“Eu tive poucas opções, bonequinha”, ele falou. E então retirou as mãos de trás do corpo e fiquei decepcionada. O gatinho era meu, ganhara há dois meses.

Eu não tinha lágrimas, porém a vontade de chorar veio e fiz de tudo para não demonstrá-la. Papai de súbito percebeu minha tristeza e veio me abraçar. Eu,

dramática como era, virei o corpo e cruzei os braços, de cara fechada. Deixei que ele fizesse o abraço comigo de costas, que desse para entender que ainda haveria chances de me presentear direito. O sussurro dele chegou aos meus ouvidos e a vontade de chorar sumiu, como se jamais existira em mim.

“Talvez a mocinha possa encontrar algo lá fora, na área”, ele me segredou.

Cheguei a empurrá-lo para correr ao lugar. Um vestido azul, com detalhes brancos na manga, assim como vira no comercial de um desenho animado, estava pendurado no varal, dentro de um plástico transparente gigante. Olhei para o meu pai, descrente da situação. E como soubesse o que meus olhos faiscantes de alegria perguntavam naquele momento:

“Eu vi um desenho desse vestido no seu caderno. É claro que o real é bem mais bonito, não é? Você sempre foi uma desenhista ruim. ”

Quis pegar o vestido, vesti-lo, no entanto, a altura era um obstáculo intransponível, fruto da imaginação fértil para pegadinhas de meu pai. Levantei os braços e mostrei a ele que não conseguia alcançar.

“De jeito nenhum, mocinha”, ele negou. “Acha que vai pegá-lo só porque fez um desenho e tá fazendo aniversário hoje? Não sou tão bonzinho assim. Me dê um abraço e um beijo. ”

Fiz, toda obediente da vontade de ter o vestido.A

gratidão só veio à mente depois de usá-lo, um pouco egoísta por parte de uma garota de 12 anos, mas acho que papai entendia como eu me sentia naquela hora.

Por fim ele pegou e me entregou. Saí correndo alegre para o quarto. Queria vestir logo, mostrar ao meu pai que eu também poderia ser uma princesa, mesmo sem aqueles sapos falantes, cavalheiros loiros e cavalos brancos. “Eu quero ver, hem, garota”, ele gritou lá de fora. Vesti delicadamente e fui caminhando lentamente, como se estivesse na passarela do céu e as nuvens servissem de chão. O telefone tocou, reconheci pelo barulho que era do meu pai.Abri a porta e saí.

Procurei por ele e não o encontrei. Deveria estar aqui no corredor para me receber. Mamãe veio ao meu lado e disse que ele estava falando ao telefone. Então esperei.

Papai voltou, andando devagar, perdido na ausência de pensamentos, uma lágrima escapava-lhe do rosto e nem sequer se importava com aquilo, visto que detestava chorar na minha frente. E, dentro do vestido, querendo ser agradecida, pensei: papai tá chorando; alguma coisa de muito ruim aconteceu com ele. Passou por mim e encostou a mão na minha cabeça.

“Tá lindo, filha”, ele disse, sem pensar naquilo, sem olhar para mim, sem sentir a minha gratidão. Desejei abraçá-lo, porém mamãe foi mais rápida. O

obrigado soltava uma perninha para fora da minha boca, querendo sair. Para que o diria se papai nem ouviria?

Fui guardar o vestido.

Juntamos algumas coisas e entramos no carro. Fiquei olhando o rosto de meu pai pelo retrovisor interno. Mamãe encostava o braço esquerdo no ombro dele e o apertava. Senti ciúmes dela: eu também me sentia triste por ele, mesmo não sabendo o que tinha acontecido. Ousei me aproximar e passar os braços pelo pescoço dele.

“Volte pra trás, menina!”, ele gritou. “Quer me ver perder a direção do carro?”

Chateada, me recostei no banco traseiro.

Chegamos ao hospital; o prédio de quatro andares, na esquina de uma via dupla, era o lugar onde minha avó estava internada. Descobrira o câncer há três meses quando a dor nos rins já havia se tornado frequente, depois, insuportável. Minha avó ficou menos alarmada do que meu pai; ele sentia mais por ela do que ela mesma tinha sentido. Como era complicado para eu entender isso nesses tempos.

Papai saiu do carro, moveu-se em direção à entrada do prédio, e eu segurava a mão da minha mãe; estava de certo modo com receio de tocar em meu pai, talvez a dor estivesse percorrendo sua pele, fazendo-a tornar-se bem sensível e qualquer toque a deixaria dolorida. Eu olhava para ele, alto, de cabelos grisalhos,

a parte detrás da cabeleira tinha mais mechas brancas do que o restante, a mão forçando o controle do carro; queria andar pela sua mente, saber o que ele estava pensando naquele momento, se eu estaria em algum lugar, no meio de receios, preocupações, lembranças de filho com a mãe… mesmo que escondida, atrás de um bloco de recordações. Mamãe de vez em quando arrastava o rosto para trás e me entregava um sorriso motivacional, como se dissesse: “estamos passando por um problema, filhinha, mas rapidamente vamos voltar ao normal, é só um evento comum da vida”.

Na recepção eu consegui ouvir a voz de meu pai, fraca mas esforçada, semelhante a estar abatido e tentar ser o mais otimista possível, sorrindo para as tristezas, virando a cara para o dia perdido, pensando em uma piada boa para rir no meio de lágrimas.

O médico esperava sentado no banco do lado de fora, anotando alguma coisa na caderneta dele. Papai sentou-se ao lado dele e começaram a conversar. Por algum motivo, o qual me fizera ficar aborrecida, mamãe foi rumo ao bebedor, e eu, como estava apanhada pela mão dela, puxada bruscamente, tive que segui-la. Acredito que ela não desejava que eu escutasse a conversa deles; ele, o médico, decerto falava para meu pai o que tinha de ruim para ter que ligar e pedir nossa presença.

Após uns minutos, meu pai se levantou e fez um gesto de mão para nós. Fomos até ele e o médico disse

que poderíamos entrar.

Entramos. Os quartos dos hospitais sempre produziram em mim essa sensação de que podemos estar, amanhã, ou depois, ali, no lugar dos pacientes, deitados numa cama daquelas, com um fio no braço. Eu era uma atriz que tinha que se caracterizar, colocarse no lugar: estando no hospital, a paciente; no cemitério, a morta; no jardim, a flor. No final das contas, eu fazia a mesma coisa que papai. Sentia as paredes do recinto. Como se fossem partes do meu corpo.

A minha avó transmitia a impressão de doente, a velhice fazia isso há muito tempo, mas agora se juntava de fato à doença, e a imagem sofrida que tínhamos dela era três vezes maior. Papai puxou uma cadeira para o lado da cama, sentou-se e apanhou a mão da vovó. Percebi que ela fazia força para apertar a mão, porém força era o que lhe faltava. Eles conversaram baixinho, de modo que não pude ouvir. A única coisa que ficou gravada da conversação foi uma lágrima de papai, e minha avó passando o dedo tremelicante para secá-la.

Minha mãe deu um empurrãozinho nas minhas costas e falou para eu cumprimentar minha avó. Pedi a benção a ela e fiquei observando a cor da sua pele. Várias manchas espalhadas pelo rosto, pescoço e mãos. Algumas estavam feridas, de tanto coçar ou de perder o vigor por causa do tempo. Eu não me senti mal por ela.

Não que sou uma má pessoa, sem sentimentos, que a empatia não me afeta, é que, mesmo pequena e sem estar na idade da razão, eu entendia que ela já havia chegado no tempo de morrer. A doença seria apenas um motivo a mais para o que aconteceria em breve, como o empurrãozinho que mamãe me dera. Talvez também pudesse ser porque o sentimento que eu tinha pelo papai era maior do que eu tinha pela vovó; eu olhava para ele e me sentia triste, mas só por ele.

Ficamos duas horas lá. Eu queria ir embora, não gostava daquele lugar. Sentamo-nos, mamãe e eu, no banco do lado de fora. Acho que ela estava pensando a mesma coisa: que nada poderia ser feito pelo papai. Era algo a que somente ele tinha acesso. Apenas nos restava ficar na exterioridade, tampando os buracos e afastando os elementos para que o evento não aumentasse. Ele, algumas vezes, fechava a cara para ignorar as lágrimas, e eu tinha vontade de abraçá-lo e dizer bem baixinho no ouvido dele, para que mamãe ou a vovó não escutasse: “O senhor não gosta de que alguém o veja chorando, eu sei. Então coloque o rosto no meu ombro e chore, pode chorar, não tem problema”. Quando ele saiu, contou-nos que passaria a noite com a vovó. Deu dinheiro para minha mãe para que voltássemos de táxi. Nenhuma palavra foi dirigida a mim. Ele sair sem falar comigo era como se eu não existisse. Ocorreu-me que mamãe havia entendido que

eu me sentiria deprimida por isso, então vi que ela fez um movimento com a cabeça, como se me apontasse ao papai. Ele balançou a mão em minha direção, dizendo tchau, com nada saindo de sua boca… fiquei muito mais triste.

Eu costumava brincar antes de dormir, mas nesse dia eu fiquei acordada, olhando para cima, imaginando como papai estava naquele quarto, junto da vovó, talvez cuidando cada movimento dela, cada respiração profunda ou rasa; será que eu passei pelo menos uma vez na mente dele? Mamãe veio ao meu quarto e apagou a luz do abajur.

Foram cinco semanas de preocupação e ida ao hospital. Voltei lá duas vezes apenas, pois tinha que estudar; mamãe acompanhou meu pai quase todas as vezes. Cheguei a pensar que eles poderiam se reconciliar novamente, mas era somente uma ideia absurda que temos quando as circunstâncias se encontram e julgamos fazerem parte de um destino esperançoso; uma paranoia, para dizer a verdade.

Na quarta semana, vovó passou muito mal. Foi nessa semana que papai chorou bastante. Chorou tanto que na quinta, quando ela deu o último suspiro, meu pai queria molhar os olhos mas não havia mais água. Quem chorou fui eu. O sofrimento de meu pai plantou uma semente nos meus olhos, e ela cresceu num instante, evoluindo em líquidos, caindo, jorrando. Chorei não por vê-lo sofrer, e sim pela noção de que um dia eu estaria em seu lugar.

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