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Sandra Alves
O TEMPO E A SAUDADE SÃO NA VERDADE UM RELÓGIO
O tempo e a saudade andam juntos, o tempo numericamente é medido no relógio e a saudades sentida, medida no coração, na alma e na mente. Tempo de relógio é igual para todos, mede vinte e quatro horas todos os dia, mas para as pessoas a medida do tempo depende do que cada um faz com suas vinte e quatro horas do seu dia. Saudade também cada pessoa tem a sua. O tempo está no ontem, no hoje e no amanhã, todos nós temos um tempo onde o passado e o presente se entrelaçaram ou entrelaçam em momentos de saudades, lembranças e pensamentos. Ele pode ser diferente a cada momento de nossas vidas. No tempo cronológico pode se arrastar por 260
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horas, ou simplesmente voar como mágica que ilude as nossas mentes. O tempo é feito de dias, meses e anos, a saudades é feita de sentimentos, acontecimentos acometidos na vida de cada um e na vida de todos. Ela é uma reação provocada e causa um vazio, um aperto, uma dor na alma e na mente e o coração dói, dói, ah, como dói. De algum modo a dor é igual para todas as pessoas, ou porque o coração está cheio de amor, ou porque está cheio de ausência.
A saudade é sentida quando ao caminhar lado a lado lembramos que no passado era ter companhia, no tempo que havia conversa e na conversa havia diálogo, olho no olho, gargalhadas em coro, expressando coisas engraçadas e alegrias. Saudades de namoro, do flerte imageticamente comunicando eu te amo, que bom que você está aqui. Tudo parou no tempo, na saudade, no tempo.
É bem verdade que no relógio anda o tempo, mas na saudade no tempo para. E no verbo parar a saudade para no tempo, na alma, na mente e no coração; para no olhar distante na lembrança, na vontade, no desejo. O relógio é igual para todos, no corre, corre ele marca os segundos, os minutos, a hora, a distância da noite para o dia, e o espaço do dia para a noite. O tempo passa correndo na alegria, se arrasta na dor, demora passar na tristeza, mas a saudade passa não passa, se acalma até a lembrança
voltar provocada por se avistar algo que faz a mente lembrar e no coração a saudade bater e voltar.
No tempo presente percebido em silêncio tudo é permitido, lembrar do passado, tempos marcantes, reviver histórias para transformar sentimentos, organizar a vida porque fatos do passado permanecem, e devem ficar no passado, porém seus significados podem ser mudados se reinventarmos e no presente criarmos um diálogo com o tempo e a saudades, remexermos nas lembranças, pensarmos e sentirmos com o coração, mas captarmos com a mente e com palavras vivermos a saudade estando no tempo presente.
Porque é permitido viver e escrever novas histórias, enfrentar novas jornadas, novos desafios, alcançar muitas vitórias, aproveitar tempos livres, porque também é permitido se perder na saudade, permitido viver o tempo presente e se perder no tempo. Ontem, hoje e amanhã na verdade são vários tempos marcados numericamente pelos relógios, só as saudades são marcadas pelas lembranças sentidas profundamente cheias de tristezas ou cheias de grandes alegrias. O tempo e a saudades são na verdade um relógio marcando emoções.
UMA CARTA PARA O SENHOR TEMPO Sandra Lee dos Santos Ribeiro
Adinkra Mmere Dane¹
Senhor Tempo, tomo a liberdade de escrever esta carta porque, com a mesma sinuosidade de um rio, carrega os processos da vida e, quando o mar adentra ao leito destes caminhos uma pororoca de acontecimentos se faz presente criando um caos que reorganiza a tudo e a todos com respostas de sabedoria.
Tierno Bokar² diz que “a escrita é uma coisa, e o saber, outra.Aescrita é a fotografia do saber, mas não o
¹Adinkra Mmere Dae, dane (o tempo muda, muda). Escrita africana originária do povo de Ghana. A vida não é uma água parada, mas um rio que corre. Sem mudanças, o tempo não pode existir. As pessoas mudam, a terra se transforma, os alimentos amadurecem e apodrecem, os governos tem sua ascensão e colapso, os organismos evoluem e se extinguem. As mudanças geralmente acompanhadas por aflição ou insatisfação. Por vezes queremos mudar, mas isso não acontece tão facilmente quanto gostaríamos. Todos nascemos num ambiente de mudanças e levados pelos ventos da mudança, que é a dinâmica da vida. Ao aceitarmos isso, nossa alma se harmoniza e pacifica. Este símbolo nos alerta a fluir de acordo com os movimentos da vida. (http://claudio-zeiger.blogspot.com/2012/02/mmere-dane-simbologia-adinkra.html Acesso em 02/07/2021) ² Falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara (Mali). Grande Mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente tradicionalista em assuntos africanos. Cf.HAMPÂTÉ BÂ,A. e CARDAIRE, M. 1957.
saber em si”, por isso nas Perspectivas femininas afro-brasileiras a Negroesia abraça a literatura já que nos Becos da Memória existem As Cidades Invisíveis que, como Olhos d’água, caem em formato de cachoeira através das Insubmissas Lágrimas de Mulheres onde se avolumam e alimentam as histórias africanas com seus Mitos, Emblemas e Sinais, tal qual uma EscritaAdinkra.
A vida, o saber e a escrita são lugares soprados pelas inxias³ ancestrais como uma Balada de Amor ao Vento e que se encontram no rio das sinestesias onde o murmúrio das águas de Òsun desperta o embondeiro adormecido, guardião da entidade a quem nós, os humanos, chamamos de Tempo.
Enraizada na esperança A árvore generosa, testemunha os processos e guarda consigo A lenda dos anjos que alçam voos de histórias semeando Flores Negras que, em terra fértil, recebem As águas de Oxalá umedecendo-as e despertando-as para a vida porque recusam a Escravidão e acreditam que Apedagogia das Encruzilhadas trará uma nova forma de olhar para o mundo.
³Apitos
Meu Ori não deseja outro Ensaio sobre a cegueira para que a humanidade possa repensar sua trajetória e sim, escrever um novo Kitábu com outras Obras escolhidas para discutir a Magia e técnica, arte e política baseadas no respeito às diferenças de todos os povos habitantes da Terra porque Cada homem é uma raça e, Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos concederia a cada ser um Lugar de
fala.
Mesmo aqueles com Pele negra, máscaras brancas precisam lembrar-se das Rebeliões da Senzala e honrar as lutas dos “mais velhos” reafricanizando as suas falas e ações porque ao olhar para O surrealismo da vida tenho a certeza de que se a humanidade teve origem no berço de ébano da realeza africana, porém, a descendência foi forjada no cárcere dos tumbeiros onde as matriarcas, por vezes, eram As filhas das lavadeiras oprimidas e estupradas na Casa Grande & Senzala.
É possível que O patuá escondido em alguma das histórias de Anansi, o velho sábio, guarde os segredos milenares da Mãe África, assim como O mundo no black power de Tayó abriga centenas de sonhos coloridos, porém, A penúltima visão do paraíso ainda está incrustada no coração fibroso e na sabedoria de Vossa Majestade, o Tempo.
Apesar da linearidade imposta pelas culturas europeias sabemos, Senhor Tempo, que
Em comunidades da África, o tempo dos antepassados é fundamental (...) se estamos em uma reunião, os antepassados fazem parte dessa reunião; não estão ‘antes’, estão presentes(...) É outra concepção do tempo, porque os que estão ‘antes’ estão conosco, é uma concepção muito mais rica (SANTOS, 2007, p. 34).
Portanto devemos respeito a todos aqueles que vieram antes de tudo e todos como os elementares minerais, o fogo, a terra, as matas e, especialmente aqui, Senhor Tempo, quero me prostrar diante da água.
Água que nasce na fonte Serena do mundo E que abre um profundo grotão Água que faz inocente Riacho e deságua Na corrente do Ribeirão (...) Água dos igarapés Onde Iara mãe d’água É misteriosa canção Água que o sol evapora Pro céu vai embora Vai virar nuvens de algodão (...) Águas que movem moinhos São as mesmas águas Que encharcam o chão E sempre voltam humildes Pro fundo da terra (...)⁴
⁴ Planeta Água, Guilherme Arantes, 1981. 266
Talvez sejam elas, hoje, as mesmas que brotaram no sudário de Jesus Cristo, e na visão de Paulina Chiziane, foi o primeiro feminista da história da humanidade ao impedir que Maria Madalena fosse apedrejada.
Quem sabe não se fazem presentes nas chuvas de verão as lágrimas das mulheres africanas que foram separadas dos seus rebentos ou violentadas pelos seus senhores; ou ainda não caiam nos orvalhos das noites as águas sangrentas que choraram das costas dos negros chibatados nos pelourinhos?
Então, Senhor Tempo, quero pedir licença para reunir os de ‘antes’com os presentes na direção do futuro através das águas, num movimento Sankofa, como um portal que permite vivenciar as temporalidades de forma concomitante.
Adinkra Sankofa⁵
Permita-me, Senhor Tempo, buscar nas cidades visitadas por Marco Pólo a fluidez de Valdrada que conta histórias gêmeas refletidas no espelho das águas de um lago por onde as vidas, sempre aos pares, acontecem simultaneamente sem que uma jamais toque a outra ou interfira nas suas cotidianeidades.
⁵Adinkra Sankofa. Se wo werw fi na wo sankofa a yenkyi. Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás. Símbolo da sabedoria de aprender com o passado para construir o futuro. (Nascimento, Gá. 2009, p. 40)
Nessa cidade um caleidoscópio de cores invade a privacidade dessas águas tão calmas que revelam a existência de amores proibidos, “quando os amantes com os corpos nus rolam pele contra pele à procura da posição mais prazerosa” (CALVINO, 2003, p.55) ou, ainda, quando denunciam crimes quase perfeitos.
Quem sabe me seja permitido, na cidade de Fílide viajar na invisibilidade dos seus espaços que, certamente, assim foram preparados para que as águas os ocupassem, e talvez elas lá estejam presentes, sublimadas e envolvendo a todos aqueles que se encontram entre nós, mesmo sem serem vistos.
Ao vislumbrar Isaura com seus cinco mil poços presumo que os sonhos da humanidade estejam misturados liquidamente neste espaço e possam elevarse aos céus caindo em formato de chuva, em todos os lugares do mundo, inclusive em Moçambique.
Ouso dizer, Senhor Tempo, que Kublai Khan seria o homem mais rico do mundo se pudesse presenciar com seus próprios olhos as águas esverdeadas do Rio Save em cujas margens Sarnau e Mwando vivenciaram o primeiro amor entre macho e fêmea.
Penso que as inxias ancestrais possam acasalar seus sons com quem, em Zemrude, “passa assobiando, com o nariz empinado por causa do assobio, conhece-a de baixo para cima: parapeitos, cortinas ao vento, esguichos” (CALVINO, 2003, p. 66), águas que podem carregar um pouco do DNA das negras lavadeiras que,
ao clarear as roupas da casa grande nos açudes tentavam limpar seus caminhos para alcançar a liberdade.
Nessa cidade invisível onde
cedo ou tarde chega o dia em que abaixamos o olhar para os tubos dos beirais e não conseguimos mais distinguí-los da calçada. (...)por isso, continuamos a andar pelas ruas de Zemrude com os olhos que agora escavam até as adegas, os alicerces, os poços(...) (ibidem)
Esses poços, Senhor Tempo, talvez, tenham conexão com as casimas da Maianga e seja possível unir, através de um portal, lugares que falem de ancestralidade para recontar, através das águas, uma história a “contrapelo” como sugere Walter Benjamim.
Quem sabe as águas do Rio Save não carreguem no seu leito, até o mar, um pouco de Valdrada, Fílide, Zemrude ou Isaura, ou ainda algum resquício do suor dos trabalhadores durante a construção de Quéops? Talvez, as antigas matriarcas do mundo tenham desaguado seus desejos nesse caminho líquido como um melão ferido porque
(...) a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão. Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p. 12).
Haveria elementar mais apto do que a água para acalmar o vulcão da escrevivência de mulheres negras que a literatura de Conceição Evaristo liberta dando-lhes visibilidade através das águaslágrimas, do aleitamento materno, do líquido amniótico ou do suor dos desejos? É possível que, elas evaporadas, se debrucem no universo, caiam e repousem como úmida neblina para acariciar os campos outonais em algum lugar no sul do Brasil!
Talvez, Senhor Tempo, sejam as mesmas gotas que umedeceram a pele de algum “cavallo marinho” mergulhado no rio Coamza ou ainda tenham testemunhado a pesca dos peixes-fêmea
por algum negro habilidoso naquelas paragens angolanas incrustadas no seio da Mãe África.
Quem seria mais apta do que as águas para unir esses processos ao longo da existência humana já que vivemos num planeta que tem 75% da superfície coberta pelas águas, somos gerados numa placenta, uma bolha d’água, e nosso corpo é 80% composto por água.
Senhor Tempo, a sua sabedoria pode me tirar uma dúvida?
Por que o nosso planeta se chama Terra?