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S3nsoria

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Rúben Marques

Rúben Marques

Alimentada a leituras e escritas, emergiu S3nsoria. Um alter-ego de Patrícia Lameida, com a missão de fazer sentir através da leitura. Sensações carnais, cenários imaginários, explorações do eu, físico e mental, sem tabus, penas ou culpas. Junte-se a mim nesta experiência e deixe-se levar por lugares parcamente percorridos. Permita-se sentir, na intimidade de si, com as palavras que lhe ofereço. Sofra, excite-se e deixe-se levar pelo prazer. Para mim, é um gosto tê-lo por perto. Visite-me em http://s3nsoria.com/

INSONE

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Terminado o dia, mais um entre uma incontável sequência de banalidades regulares, decido-me a dormir. Escasseia a capacidade para reflexão e temo o encontro com o vazio de mim. Deitada, entre lençóis suaves, envolta pela escuridão que consigo produzir, cerro os olhos às imagens e sensações que me assaltam. Começam, como sempre, pela amálgama de desentendimentos, desgostos e pequenas perdas diárias. Afugento-as com os truques mais banais: inspirações, respirações, contagens e associações disparatadas; mas a mente é mais forte do que a vontade e vagueia por trilhos inesperados. No desespero da frustração insone, leva-me a afundar em mim. Sem permissão, confronta-me com a sombra que ostento, qual estandarte de indiferente existência, ofuscando a minha verdade, triste e só. Sob a aparência de tranquilidade e segurança, vejo o teu reflexo rindo comigo, e é inevitável o aperto que me sufoca.

Passaram meses. Viagens a trabalho que se sucedem, com destinos mais remotos a cada decisão,

espaçando os pedacinhos de ti que de lá me chegam. Tenho-te tão vívido que me dói perceber-te ausente. E se a princípio era inevitável, tornou-se dispensável e excessivo para os dias banais que carrego. Assim, descarto-te a cada nuance que recordo. Recalco-te com a mais férrea decisão e existo suspensa do teu retorno por todos os sessenta segundos de cada minuto, sessenta minutos por hora, e vinte e quatro horas por dia, por sei lá quantos dias.

Na fraqueza noturna que visitas, ris. Sempre luminoso e inconsequente, em desafio pelo limite. Eras a vida encarnada na noite em que te conheci, cativante nos gestos largos e gargalhadas fundas, fixaste em mim um olhar penetrante, acicatando brasas de liberdade e algo mais. “És tão bonita…”, sussurraste enquanto sentias uma mexa de cabelo que se libertava, como eu, rumo a ti.

Assim começamos. Depois do primeiro toque, foi magnético o nosso reencontro. Um café a servir de pretexto, beijos roubados na fila para o cinema e um filme que não recordamos, entretidos como estávamos a trocar carícias proibidas numa sala repleta. Dava-te pipocas à boca, contornando com o dedo o leito carnudo dos lábios que me chamavam, que aspiravam curtos golpes de ar entre ondas de crescente excitação. Massajavas-me o joelho, subindo pela coxa, lento, escorregando para o seu interior entre pequenas preensões que me elevavam na aproximação à minha intimidade.

Adoramos o presságio da decadência a que nos entregaríamos. Não foi rápida a redenção. Prolongámos encontros, jantares e charadas em pisos de dança anónimos. Ansiávamos um pelo outro, tanto. Sabermo-nos longe sem um momento de reunião pelo qual esperar era impossível.

E assim estiramos o inevitável que, quando aconteceu, foi fulminante. Era um jantar imenso, repleto de amigos e conhecidos, na celebração anual das festas da Natividade. Há nestas ocasiões um consentimento implícito que permite comportamentos recalcados, meses de anseios e frustrações libertados. Tornam-se eufóricas e despropositadas, emergindo vontades pouco natalícias: danças que libertam roupas, bebidas por aposta que entorpecem a crítica, encontros de corpos sem que as almas estejam presentes. E nós. Atiçados pelo desejo que afincadamente alimentamos, rendemo-nos. Afastados da algazarra, embrenhamo-nos num jardim escuro. Escolhemos um banco aleatório e fundimo-nos, na noite e um no outro. Estava frio, um arrepio que só nos aumentava a vontade. Com o teu casaco longo sobre os ombros, sentada sobre ti, entre beijos urgentes e gestos de deleite, foi-nos fácil eliminar barreiras. Sentir-te em mim levou-me um gemido animal que espelhava o que sentia: sensualidade e volúpia, cheia do poder que percebia ter sobre ti, encantada pelos arfares que

davam voz ao prazer que mostravas e que vinha de mim, fiz-me deusa, tão antiga como a humanidade.

Terminou rápido e soube a pouco. Remediamos os trapos que nos cobriam e aceleramos o passo que só abrandou quando a porta deste quarto nos isolou da realidade com um clique. Assim, o tempo dilatou, permitindo a lentidão que nos revelou um ao outro aos poucos, explorados por beijos e carícias, guiados pela pele que estremecia sob um toque ou pela urgência que antecipava gestos, ansiedades que tardávamos em saciar, bêbados de nós.

Foi a primeira de noites inúmeras e inigualáveis. Não nos sentíamos usuais. Era tamanha a necessidade de nos termos que permitia a audácia necessária para os pequenos delitos. Nenhum local era demasiado público, nenhum intervalo demasiado curto, nenhuma ideia excessivamente depravada. Passámos por todos os clássicos: a cueca minúscula que despi para te oferecer discretamente numa festa familiar; as carícias que te engorgitaram quando conduzias, atento aos carros que aceleravam em conformidade com a rapidez da via que te obrigava a continuar enquanto desci o fecho e te libertei, tomando-te entre lábios húmidos e travessos; os dedos que escondeste sob a mesa num qualquer jantar formal, que descobriram o caminho para o meu centro sem se deterem com saias ou rendas, entretendo-se numa tortura sensual que me tornou subitamente calada, faltando o ar até

me render à necessidade…

Mas fomos tão mais, sedimentados em serões de tranquila modorra a dois, com o som do papel folheado como único adorno; carícias leves ao adormecer e risos palermas que soltávamos enfiados em pijamas quentes, aquecendo a conversa com chá e chocolate. Eternos.

Até partires.

Não foi uma notícia que nos preocupasse, afinal seríamos sempre nós. Sentimos a antecipação da partida com a excitação que nos acompanhava habitualmente. Teremos falhado na percepção da falta que nos faríamos. Eu sei que falhei. Percebi-o na tua partida. O ruído de um aeroporto é memorável na dor. Começou por um ligeiro desconforto ao acordar nesse dia, uma sensação deslocada que crescia no peito a cada gesto que nos aproximava da despedida. Quando deixámos as malas em troca de um passe para te levar, tornou-se álgico e sufocante. Quase intolerável. Arrastei-te para a primeira porta de acesso interdito que nos surgiu. Assaltei-te: lábios, peito, membro, tudo o que de ti coubesse nas palmas destas mãos que não chegavam para te absorver. Quase em combustão espontânea, respondeste-me com a mesma necessidade, rápidos em escalarmos a espiral de oblívio, tremendo, temendo, tardios na realização do que viria…

Gemo enquanto te recordo sugando-me o peito; acaricio-me na visão das tuas mãos largas prendendome a anca contra ti quando me preenchias e reclamavas, marcando-me com os lábios a beijos púrpura. Chego conosco ao clímax. Amolecida, tremo no rescaldo da memória, e deixo-te partir, sonolenta. Entrego-me a Morfeu, finalmente, e deixo escorrerem as horas de sono até um amanhecer cinzento, como todos, até que voltes.

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