6 minute read
Amelina Chaves
A VELHA GAMELEIRA AMELINA CHAVES
(Este é dedicado aos autênticos sertanejos Jackson Antunes e Téo Azevedo; Pelo trabalho de preservação das nossas raízes culturais.)
Advertisement
A velha árvore guardava lendas sobrenaturais. Causos fantasiados criados pela imaginação do Povo simples dos mais velhos moradores que envolvia a frondosa gameleira plantada no coração da promissora cidade que levava seu nome. Árvore parecia intocável pelo tempo; Morria no outono e brotava na primavera; momentos que mais parecia uma adolescente de vestido novo. Seu tronco grosso as vezes descascado. Não ofuscava sua graça. Nem tirava o verde forte de suas folhas e suas flores? Pequeninas; porém, enchia a praça de festa. Fazendo surgir milhares de abelhas em busca do néctar precioso.
Assim a conheci, viçosa e cheia de vida, pois naquela época ainda existia o respeito pelas velhas árvores que passavam a ser consideradas patrimônio da comunidade. Quando também eu jovem estava pronta para viver a intensidade de um século em um só dia...
Oh... Velha gameleira! Testemunha silenciosa do meu grande e proibido amor! Como me lembro de você, como parte de uma etapa mais importante de minha vida; quando vivia um amor cego que nasceu de uma forma tão imprevista.
Vale do Gurutuba... Quando faz calor é como o Saara; o vapor quente sobe da areia e o chão se torna um vulcão incandescente. Num desses dias em que o sol castigava o povo, saí para fazer compras no mercado; na época, um grande centro de compras. Sacos amontoados aos quatro cantos; numa fartura de dar inveja. Requeijão; rapadura dourada de dar água na boca. Maria adorava o rico farto ambiente.
Quando voltava, sacola pesada, pés afundando na areia quente. Ao passar na praça, a sombra da velha árvore a chamava. Resolveu parar um pouco para descansar na sua sombra.
Em certos momentos, ela imaginava que tudo é determinado pelo destino. Foi quando ela viu Júlio pela primeira vez. Ele apareceu na sua frente, saindo não se sabe de onde. Ao passar perto dela, perguntou: -Está cansada garota??
A palavra ‘garota” soou aos seus ouvidos como a canção mais bela já ouvida; sua voz era suave e, ao mesmo tempo, sensual. Ela respondeu, meio confusa: -É o calor que nos cansa... -Você mora perto? -Sim, bem perto. -É casada? -Sou.
A força do rio, o calor do sol, a crença dos gurutubanos. Todo magnetismo, que emana deste povo queimado pelo sol, reunia-se ao olhar cálido do desconhecido. Ao fitá-lo, lembrou-se das palavras ditas pela velha e afamada benzedeira Zefa Papuda que morava nas bandas de baixo do rio Gurutuba. Ela dizia: - Veja, Maria, aquela Gameleira ali na praça? Ela é mal-assombrada. Debaixo dela, toda sexta-feira, as almas penadas “reunem pra mode conta suas diabruras”.
Ela respondia com desdém: -Ora, isso é lenda. Não acredito. -Verdade, minha vó contava que já ouviu muitas vezes elas discutindo na calada da noite.
Voltei-me ao presente; ao ouvir a voz do desconhecido. -Me desculpa se fui indiscreto. Você ficou pensativa de repente. -Não foi nada; apenas voltei ao passado. -Sabe de uma coisa? Gostaria de falar mais vezes como você. -Por que não? Toda manha passo por aqui; é só me esperar;..
Não sabia explicar o motivo de aceitar de imediato a proposta do desconhecido. Minha alma me dava a certeza de que ele me veria quantas vezes ele quisesse; desde o encontro dos nossos olhos,
senti-me presa por uma força estranha e misteriosa. -Maria, porque demorou tanto? Perguntou meu marido curioso. -Parei na praça para descansar. -Eu que viajo e você é quem fica cansada! -É o sol... - respondeu vagamente, pois seu pensamento estava longe. Bem fundo estava o desejo que formigava suas partes mais íntimas. -Vige santa, que homem mais bonito - falou entredentes enquanto lidava com as panelas. -Tá falando sozinha, Maria? O que você viu de tão bonito assim? -Foi um peixe no mercado. Uma beleza! O rio ainda é fonte de vida, Zé. Eu adoro o rio Gurutuba. Tenho medo de que ele seja destruído. Nasci aqui. Ele é parte de mim. -Também aprendi amar o rio. Suas enchentes o tornam vivo e poderoso, uma máquina gigante rasgando a terra.
Ao longe, Maria ouviu o apito do trem na estação da ferrovia. Era esse que seu marido conduzia até a cidade de Monte Azul. O apito entrou no seu coração fazendo disparar sem trela, tocado pela corda mágica do desejo. -Zé, você viaja hoje à noite? -Ora, que pergunta besta! As pranchas já estão carregadas, só volto no final da semana, como sempre.
-Ah, gameleira-árvore... gameleira-cidade, como estão ligadas à sua vida. Testemunhas mudas dos mais belos momentos em nos quais realmente me despertei como mulher. Momentos em que meus seios rijos, empinados, buscava ansiosos as carícias de mãos ternas. E o rio? Presente com suas águas claras. Purificando nossos corpos. Quantas vezes, na calada da noite, mergulhamos nas suas águas trépidas, depois de rolarmos no colchão macio de suas areias, no mais intenso e louco amor...
Hoje, muito tempo depois, retorno ao passado. Vejo que a tecnologia destruiu a simplicidade da natureza. Sinto que tudo está perdido na memória do tempo. Fico assustada ao recordar o estouvamento e a ousadia com que vivemos hoje, a ponto de perder os mais belos momentos. Encontros que se sucederam com a força do caudaloso rio Gurutuba. Tudo era tão simples. Assim que ficava sozinha e o silêncio tomava a noite, eu ficava atenta.
Sabia, Júlio estava me esperando, meus ouvidos ligados aos sons que vinha da velha gameleira da praça. Na hora marcada, ouvia-se um assovio fino e longo. Então corria furtivamente e ganhava a praça e dois braços fortes e cálidos estavam lá à minha espera nas sombras da árvore. Era como se ela também abria seus braços para nos abrigar. Por quantas vezes, nos amamos perdidamente ali mesmo na praça. Em outras, descíamos para as areias
do rio que, carinhosamente, nos esperava como cúmplices. Enquanto a cidade dormia, nos sentíamos donos e senhores absolutos do rio das estrelas que nos olhavam do alto.
Incrível!... Como o amor nasce e fenece implacavelmente. Assim foi. Júlio, que era viajante, fez uma viagem ao rio de nunca mais voltou. Jamais soube explicar o seu desaparecimento. Com certeza, não fugiu de mim, algo devia ter acontecido. Sofri muito , no princípio, mas o tempo foi acomodando as coisas. Foram caindo no esquecimento. Só as reminiscências permanecem vivas e guardadas como um tesouro precioso motivando a minha caminhada.
E o tempo? Nada espera. Mudei-me para outra cidade.Anos depois, voltei para rever a antiga vila.
Hoje, ao olhar seus recantos, fui tomada por uma imensa tristeza. Foi invadida pelo progresso, nem seu nome era o mesmo. E a velha gameleira (motivo de seu nome) não encontrei mais na antiga praça. Talvez a tenha confundido com outras árvores, que hoje eram muitas. Na minhas buscas, fui ao encontro do rio para aliviar o coração. Pensava em encontrá-lo
Como deixei. Olhei tudo com grande surpresa. E a alma ferida, os olhos turvos pelas lágrimas, vi na minha frente o grande rio que não passava de um filete de água suja onde meia dúzia de lavadeiras tentavam, com dificuldade, lavar a roupa dos seus filhos. Uma
angústia terrível tomou meu coração. Caí de joelhos na areia quente e chorei de saudade e revolta ao ver tanta destruição. Queria ter o poder de, com minhas lágrimas, inundar o rio. Vê-lo correr novamente cheio de água cristalina como antes... -Água para as mulheres lavarem suas rendas brancas. -Água para os meninos mergulharem nas tardes quentes. -Água para encher os potes de barro das casas pobres. -Água para molhar as raízes das outras gameleiras para que cresçam frondosas e, nas noites escuras, continuem a reunir as almas penadas... -Água limpa para o povo, direito doado pelo Criador que nada pede em troca.
Água, água para lavar a alma do pecado dos que buscam, na irrigação, meio de riquezas, sem se lembrarem de outros que tem na terra o único meio de sobrevivência...
Cansada de olhar a natureza destruída, sai. Meus pés pesavam como chumbo, pois carregava nos ombros a imensa bagagem de sonhos perdidos e mais...
O rio do meu coração e o tronco de uma velha gameleira.
(Janaúba: numa noite de solidão-17 junho de 1949)