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Camilla Agostini
Camilla Agostini https://www.facebook.com/profile.php?id=100009270156496
CASA VAZIA
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Existem lembranças que, para serem visitadas, é preciso coragem. São como casas abandonadas, das quais você se aproxima em noite de tempestade. Com uma lamparina e uma mala nas mãos, você abre a porta e, com medo, entra.
Às vezes parece difícil respirar lá dentro. É escuro e embolorado. Passo a passo você reconhece o lugar há tanto tempo deixado para trás. Você busca refúgio da tempestade, mas é um pouco triste estar de volta àquele lugar.
Recostando-se em um velho piano, reconhece sobre ele uma caixa, de cujo conteúdo você não esqueceu. Lembranças escritas em cartas, cadernos, anotações e algumas fotografias. Você os retira de lá e se senta para ler uma ou outra linha ao acaso. Apesar dos anos, parece reconhecer todas. Uma carta, um pouco mais esquecida na lembrança, lhe surpreende e lhe leva a um encontro.
São fantasmas que moram nas paredes daquela casa antiga. Você os desperta. Eles falam, conversam, brigam, tagarelam na sua cabeça. Eles são confusos, têm memórias fragmentadas dos acontecimentos, cheias de sentimentos difíceis. Você os sente presos no peito e chora sozinha na penumbra daquela
vazia. Mal se recorda do porquê de ter ido parar ali. Escuta a chuva e lembra-se da tempestade.
Então, a consciência daqueles desgovernos que brotam na sua lembrança zanga com eles e tenta fazêlos calar. A tentativa é em vão. Memórias e sentimentos brigam, defendendo diferentes versões do que passou. Você também argumenta e cai na armadilha daquele encontro. É mais uma a tagarelar silenciosamente junto aos fantasmas dentro da sua cabeça.
Dessas argumentações e desvarios criam-se coisas. A lembrança, a memória, o pensamento, os sentimentos contorcidos produzem absurdos tão tangíveis quanto cada coisa registrada naquelas fotografias nas quais você pode vê-las, mas não tocálas. Não são mais lembranças, mas criações absurdas, produzidas nesse encontro com fantasmas tagarelas, cheios de mágoa.
Zangada, sua consciência se aparta da confusão e dá um basta. Recolhe os absurdos e – sem muita consciência – resolve levá-los consigo. A mala com a qual entrou na casa estava vazia, então os guarda dentro dela. Com ou sem tempestade lá fora, já não vale estar ali. Mas, antes de sair, você olha para trás e retorna aos papéis que encontrara na caixa sobre o piano. Devolve-os aos fantasmas, atirando-os com desgosto “Não me valem mais!”. Senta novamente ao piano, em despedida, e escreve lembranças que possam
um dia ser encontradas, como se produzisse provas daquele momento. Só esse papel deixa guardado na caixa que ficara vazia. Até o próximo encontro, quando os fantasmas terão organizado toda a papelada de volta na caixa. Também eles estarão lá, pelas paredes, à sua espera.
Há quem não esteja pronto para esses encontros.
Há quem esqueça o caminho de casa.