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Elton Sipp

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Wagner Gomes

Wagner Gomes

Elton Sipp. Escrever é como terapia, é conversar com meus próprios medos, coragens, fantasmas, experiências, aspirações e sonhos. Viver é compartilhar experiências, histórias e aprendizados. facebook.com/eltonsipp instagram.com/eltonsipp

A SENHORA E O VELHO FIEL

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Ela pegou, bem devagar, a cadeira dobrável, o chapéu de aba grande, colocou na cabeça e saiu pela porta da frente da pequena casa de três quartos onde ela mora desde o casamento. Caminhou passo a passo, com toda a velocidade que uma senhora de 82 anos consegue enquanto carrega sua cadeira e o lanche.

Caminha em direção ao farol da praia, não muito longe da sua casa. São apenas quatro quadras. Aquele farol está ali desde muito antes de ela ter nascido. Na época havia um operador, hoje ele está automatizado. Sobre isso ela devaneia um pouco enquanto caminha, sobre como tudo está automatizado.

Deu de ombros. Não faz diferença agora. Pouca coisa importa agora. Desde que seu marido morreu, à sete dias, pouca coisa importa. E os dias são sempre iguais. Ela consegue ter um pouco de privacidade pois sua filha mais jovem mora na casa ao lado da sua.

Aos poucos ela chega no farol ao lado da praia. Abre a cadeira, coloca a cesta com o lanche no chão, à sombra dela e da cadeira. Não é um dia muito ensolarado, mesmo que seja bastante claro. Os raios quase conseguem passar pelas nuvens finas que

encobrem o céu hoje.

O farol fica em uma pequena península que entra no mar por mais ou menos 50 metros. Todos os habitantes locais conhecem o farol por Velho Fiel. Dos dois lados praias quase tão brancas como a neve. Apesar de já fazer o calor típico do fim da primavera e começo de verão, as praias ainda estão vazias, ainda não há turistas. Apenas alguns locais fazendo seu exercício ou caminhada de sábado. - Velho Fiel, meu amigo farol. Eu te conheço desde criança e você conhece todos os meus segredos de garotinha e de adolescente. Há tempos você deixou de ser meu confidente e hoje eu estou aqui pra conversar um pouco com você. Quando chegamos a uma certa idade é difícil encontrar gente mais velha e mais experiente para conversar. E eu sinto que preciso de alguém assim.

Uma lágrima começa a brotar no olho da senhora. Uma lágrima que não cai.

Fica ali pronta para cair, mas fica no olho. - Eu quero contar algumas histórias, meu Velho.

Ela fala baixinho com o farol, como se fosse um confidente. E lembra de algumas histórias...

Lembra do Ricardo, Velho Fiel? Aquele rapaz que conheci quando eu tinha 20 anos enquanto eu

trabalhava de garçonete no antigo Armazém da Praia, na praça. Ele era muito bonito. Moreno, cabelos um pouco longos, sedosos. Eu nunca soube se os olhos dele eram verdes ou azuis – uma hora pareciam uma coisa e outra hora pareciam outra.

Ele trabalhava em um dos barcos de pesca do porto, saiam sempre cedo, muito cedo, e voltavam na metade da tarde com os pescados para o armazém e pra outros pontos aqui da cidade.

No barco era só um pescador, mas na conversa ele parecia saber um pouco de tudo. Ele era muito inteligente para aquela idade, sabia coisas que nós, quando jovens, nem imaginávamos. Eu nunca soube de onde ele veio, ele apareceu em um barco uma manhã. Eu devia ter uns 12 anos na época que o encontraram. A cidade toda ficou em polvorosa quando foi encontrado um garoto no barco. Ele não sabia de onde vinha, se tinha pais ou não. Ele não lembrava de nada, nem mesmo lembrava como chegou no barco. O capitão adotou ele e o criou como se fosse filho – as coisas não são mais como eram, hoje seria tudo diferente. Tudo muito mais burocrático. Os jovens de hoje dizem que estão automatizando tudo, mas esse tipo de coisa que poderia ser mais rápido é uma burocracia só. Enfim, eu nem sei porque comecei a falar sobre isso.

O Riccardo era inteligente e eu gostava de ouvir ele falar. Eu também adorava conversar com ele. Fazia

me sentir importante – ele prestava atenção quando alguém falava com ele, você lembra? Eu me sentia à vontade, era como se o conhecesse por anos.

Não sei dizer bem, mas eu acredito que estávamos apaixonados. Da forma como todos falam da paixão ou tentam explicar ela, aquilo deve ter sido uma paixão ou algo parecido, eu não sei dizer bem. Só sei dizer que ele me fazia ficar à vontade, tranquila e ao mesmo tempo vibrante, empolgada e entusiasmada.

Nunca mais me senti dessa forma com nenhuma outra pessoa, nem mesmo com Marc, mas acho que isso é normal. Cada pessoa com quem nos conectamos nos faz sentir de formas diferentes e isso é a forma única de sentir a energia uns dos outros. Nenhuma sensação ou sentimento me parece melhor ou pior, são todos importantes – é o que me faz ter histórias para contar. Não acha Velho Fiel?

Alguns dias depois ele apareceu e disse que partiria para uma grande viagem ao redor do mundo e que esse sempre foi o sonho dele. Ele me convidou, todo empolgado, todo excitado, todo animado. Fazia planos sobre as aventuras que viveríamos pelos mares e terras que fossemos percorrer. Ele me deixou animada – e assustada.

Muito assustada, pois eu só conhecia a nossa cidade e um pouco aqui ao redor, eu nunca havia saído daqui. Eu pedi uma noite para pensar. Mas ele não pôde esperar. Ele disse que o navio partiria no dia

seguinte, mas eu não o encontrei para partirmos juntos na nossa aventura gloriosa. Fiquei arrasada, por meses.

Eu estava dando o maior salto no escuro da minha vida e foi como se minhas pernas não pudessem pular. Me senti impotente. Foi a primeira vez que me senti impotente de verdade. Aquela pancada doeu muito, muito mesmo.

Eu sentia em mim a vontade de ir, mas fiquei com medo e me segurei para não dizer que sim na hora. Depois já era tarde.

A lágrima se manteve lá, determinada a não cair. A verdade é que a senhora não quer deixar a lágrima cair e tenta segurar ela o maior tempo possível. Ela olha para a sua direita e vê um casal de mãos dadas e seu cachorro, caminhando pela praia. É uma bela cena. Ela respira fundo. Como se estivesse libertando algum animal que viveu uma vida inteira em uma gaiola. Com isso ela sente uma sensação de paz, de tranquilidade. De serenidade.

Então se ajeita de forma um pouco mais confortável na sua cadeira e encosta o braço da cadeira no farol, como se fosse para se aconchegar em alguém. E continua a falar, em pensamento, com o farol...

Então Velho Fiel, você lembra da Clarice? Aquela minha amiga dos anos de ensino da igreja. A mãe dela fazia os melhores doces. Ela sempre levava, toda quinta, alguns dos doces da mãe dela e a gente passava aqui, depois das aulas, para comer. Escondidas de todos os outros.

Ela morreu há uns seis anos, sinto falta dela, sinto falta de como ela contava pra mim coisas que ela não contava para mais ninguém. Assim como eu fazia para ela. Depois que nós resolvemos aquela briga que nos deixou separadas por anos, pudemos voltar a ser grandes amigas. Foi por poucos meses, mas valeu a pena.

Chega uma certa idade que o orgulho passam a não ter mais importância. Fomos tão bobas por tantos anos da nossa vida e eu nem lembro bem qual era o motivo do começo da nossa briga. Na verdade eu lembro sim, eu só queria esquecer de vez...

Lembro de quando éramos jovens. Ela tinha a mesma mão que a mãe dela para fazer os melhores doces. Os melhores doces que eu já comi na minha vida. Menos as tortas de limão, eram péssimas, sempre foi o único doce que eu sabia fazer melhor do que ela.

E isso nos divertia muito.

Sonhamos com uma linda padaria que atenderia toda a cidade. Com os melhores doces, os melhores pães e o melhor café de toda a região. Parece que quando somos jovens precisamos dessas metas de ser

melhor em tudo o que tentamos fazer. Quando amadurecemos percebemos que ser muito bom em duas ou três coisas é suficiente. A bem da verdade, ser muito bom em mais do que duas ou três coisas é praticamente impossível em nossas vidas tão curtas.

Começamos a buscar tudo o que precisávamos para aquela padaria ser um sucesso estrondoso. Utensílios, o local perfeito, os equipamentos... tudo o que era importante.

Então a minha mãe sofreu aquele acidente.

E precisou de mim.

Eu precisei fazer uma escolha muito difícil. Era a minha mãe e aquele acidente fez ela ficar sem o movimento das pernas. Ela precisava de mim. E a Clarice precisava de mim para a padaria. Mas eu não podia fazer as duas coisas. Eu não via como poderia fazer as duas coisas.

Ela me acusou de ser fraca e eu acusei ela de ser insensível e de não me entender. A grande verdade é que fomos fracas e insensíveis nós duas.

Hoje eu sei que poderíamos ter tentado aquele projeto e ele poderia ter sido tão bom quanto imaginamos ou ainda melhor. Mas aquela briga durou por mais de quarenta anos. Como fomos estúpidas.

Clarice, eu sinto falta dos seus doces. E sinto ainda mais falta da minha melhor amiga...

Dessa vez a lágrima rola pelo rosto da senhora. Lembrar do passado, essa sensação de nostalgia, nos faz sentir saudades muito intensas. Muito mesmo.

É perto do meio dia e o estômago lembra ela de que a fome chega também para as senhorinhas de idade. Ela pega a cesta, tira o sanduíche e a pequena garrafa térmica com chá. Aquele sempre foi um dos melhores almoços que ela poderia querer. Desde garota.

Mastiga devagar, enquanto o tempo passa lento e as ondas batem devagar nas pedras da pequena península do farol. Às vezes olhar para as ondas traz paz, às vezes traz saudades. Mas naquele dia as pequenas ondas estão trazendo alguma outra coisa que ela ainda não sabe definir, algo que ela não sabe descrever ainda.

É difícil sentir alguma coisa que não sabemos descrever, mas com o passar dos anos ficamos mais à vontade com isso e nos permitimos sentir coisas mesmo que não sabemos explicar. Talvez isso seja maturidade? Talvez.

Ela então decide contar mais uma história para o Velho Fiel.

Do Marc você lembra sem dúvida... A gente vinha aqui todos os finais de semana. Bom, pelo menos todos

os que tinham alguns minutos sem chuva. Dois anos antes de minha mãe falecer nos conhecemos. O que eu sentia e ainda sinto por ele é o que as pessoas devem chamar de amor. Eu sinto a falta dele, ele foi meu tudo.

Nos conhecemos por acaso, na feira, eu derrubei um tomate nele. O que foi até engraçado porque sempre foi ele o desastrado. Não foi uma paixão arrebatadora e eu não tinha tempo pra me apaixonar naquela época. A verdade é que eu não queria me apaixonar, eu tinha medos e pouco tempo – eram os verdadeiros motivos, mas eu dava qualquer tipo de desculpa esfarrapada para não olhar para isso.

Então ele foi me chamando para sair, até que eu fui. Conversamos, nos entendemos, saímos mais algumas vezes. A gente quase sempre vinha aqui, era nosso porto seguro. Velho Fiel, você conhece nossa história melhor do que qualquer pessoa. Quando estávamos brigados, quando estávamos bem, quando as coisas estavam evoluindo, quando pareciam estar andando para trás.

Cuidar da minha mãe aquele tempo me cansou. O Marc me chamava para sair, para viajarmos, para conhecer lugares, para experimentarmos coisas. Mas eu dizia que não queria, que não estava preocupada com isso na época ou que não tinha tempo.

Eu me acomodei, Velho Fiel. Eu me acomodei e fiquei lá, naquele canto, naquela casa e naquela vida

que vivemos. Eu sei que o Marc queria fazer muito mais do que fez e ele não conseguiu fazer porque eu fui um estorvo. Eu não quis.

Me arrependo disso agora. Me arrependo de tanta coisa.

De tudo que deixei de fazer e gostaria muito de ter feito, de pelo menos ter tentado. E pior, das coisas que outras pessoas, especialmente o Marc, deixaram de fazer porque eu desisti ou porque eu fui medrosa.

Nossa vida foi ótima, trabalhamos, construímos coisas, aprendemos um pouco sobre como viver, criamos duas filhas e um filho maravilhosos que são muito felizes e estão bem.

Mas eu sei que poderia ter feito muito mais do que isso. E sei que poderíamos ter feito tudo isso que a gente fez e ainda tentar todas as outras coisas das quais eu desisti antes de começar ou tive medo de tentar só porque eu não tinha a certeza do que ia acontecer.

A gente se acha tão inteligente e a gente não sabe de nada. Ou escolhemos essas coisas estúpidas, às vezes só por medo ou pela sensação de segurança.

Ela continuou como uma espécie de prece para o Marc.

Marc, onde estiver, receba as minhas desculpas. Você sempre foi tão animado e cheio de vida, a vida toda, mesmo lutando contra a porcaria daquele câncer agora no final da sua vida. Você foi até o fim. Me desculpe por não ter apoiado as tuas ideias um pouco mais.

Velho Fiel, lá no começo eu fui tão boba e estava tão cheia de mim que eu não percebia que estava sendo um peso. Eu não consegui perceber que era por minha causa. Que pessoas se doaram por mim.

Com o tempo o Marc foi desistindo de dar ideias ou de sugerir lugares para ir. Ele deve ter cansado de insistir. Eu não sei bem, mas eu sinto como se fosse a culpada. Se eu pudesse voltar atrás teria feito as coisas diferente. Mas acho que a vida é isso mesmo, entender o que fizemos e viver com os resultados das escolhas que fazemos ou que deixamos de fazer.

A minha vida, a nossa vida teria sido diferente. Mas eu não posso voltar lá e fazer alguma coisa. Eu preciso aceitar que eu escolhi isso. Dói, machuca minha alma. Mas é a verdade.

Eu vim para conversar com você, Velho Fiel... Você me entende desde garotinha e eu precisava falar com alguém sobre tudo isso.

A conversa é entre você e eu. E só eu falo. Mas se eu pudesse deixar uma mensagem para alguém eu deixaria essa mensagem de pelo menos tentar realizar seus sonhos, para não ser corroído pelo arrependimento quando já não é mais possível fazer as coisas.

- Vovó! Vovó, você está aí!? Estamos procurando

você o dia todo. Onde é que você se meteu? Você está bem vó?

A neta dela grita enquanto corre pela calçada até o Velho Fiel. E quando chega perto da sua avó encontra ela chorando. - Vó, está tudo bem com você? - Sim, querida, está tudo bem comigo sim. - O que você está fazendo aqui? – A neta pergunta ainda cheia da adrenalina da correria de procurarem pela avó. - Eu precisava de um lugar para pensar um pouco, querida. Eu só precisava sentir o vento do mar mais uma vez e deixar ele levar essa dor. Eu sinto falta do seu avô. - Nós também, vovó. Nós também.

A neta acreditou, sem dúvida, que sua avó sentia o luto pelo seu amado. Afinal, é apenas uma semana. Todos sentem o luto.

A grande verdade é que o luto da sua avó não é apenas pelo marido, o luto é por todos os sonhos que ela deixou de realizar na sua breve vida aqui na terra. O luto da velha senhora é o arrependimento da sua vida cheia de não realizações, de sonhos frustrados e de possibilidades abandonadas.

O luto é pelas histórias não escritas.

Pelas experiências não vividas.

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