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Juliana Moroni
Juliana Moroni nasceu em São Carlos, Estado de São Paulo, Brasil. Doutora em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Professora, pesquisadora, poeta e contista. Publicou artigos e capítulos de livros com temática em pesquisa filosófica, bem como poemas e contos em revistas literárias, coletânea e blogs. https://fragmentosilusoes.blogspot.com/
RELÓGIO GIRANDO EM SENTIDO ANTI-HORÁRIO
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Pegou uma taça de vinho, sentou-se no sofá carcomido pelo tempo de sua ausência. O pó que cobria o assento se espalhou pela atmosfera tranquila da sala. A penumbra trazia um ar de mistério que ela sempre havia cultivado em si, bem como um aspecto de solidão, ampliada pelas memórias que a inundavam na sua volta à fazenda Antônia Terino, nome de sua avó.
Ela estava ansiosa. Havia voltado justamente para reencontrar o seu passado. Ainda sentia a dor no peito da bala que a havia perfurado, em um assalto à mão armada, em frente ao seu apartamento, na cidade onde trabalhava durante a semana. A operação ainda lhe custava a dor de ser agredida em uma sociedade sedimentada na violência e no sadismo de políticos algozes.
Levantou-se e caminhou até a janela que direcionava o olhar para os fundos da casa. Lá havia um corredor natural de árvores, um caminho poético e belo, iluminado durante o dia pela luz do sol e, agora,
pela luz da lua. Diziam metaforicamente que era o portal multidimensional entre mundos subjetivos que se emaranhavam em espectros, às vezes confusos, de inúmeras e profusas existências. A suavidade daquela imagem trouxe à sua mente a paz que ela tanto almejava, mesmo que ainda momentânea, presa à conexões passadas.
Bateram na porta. O relógio girando em sentido anti-horário. Ela ouvia vozes que vinham da varanda. A ansiedade acelerava no peito um coração extenuado, cansado de medo. Eram eles, pensou ela. Viajaram de muito longe, trazendo nas almas resgates de histórias, lembranças atordoadas no cotidiano de sons indistinguíveis, em cidades por onde correm vidas em trilhos de metrôs.
A porta se abre, num misto de pressa e apreensão. Rostos sorridentes, pálidos de exaustão a observam, encantados. O tempo estampado nos caminhos curvilíneos que percorrem as peles ressecadas nas andanças do esperançar. Ela solta um suspiro prolongado daqueles em que a saudade se comunica em forma de alento divino. Os olhos de pupilas dilatadas pedem a “palavra”, brilham feito estrela solitária, queimam a distância que é subtraída em segundos, feito a eternidade que costura laços em pequenos mundos.
A lua afaga o rosto delicado, embevecido de ternura.As mãos se tocam lentamente, ainda receosas
de serem usurpadas pelo tempo. Os corpos se encontram em abraços longos, encurtando lonjuras, semeando amor onde havia ruptura. Aporta permanece aberta, como se estivesse observando o encontro de passados abandonados em dimensões sem tempo, de histórias dilaceradas pelos acontecimentos inesperados, escritos pelo acaso.
Já não se sentia mais cansada. A dor no peito havia sido levada pelo reencontro tão aguardado. Uma águia sobrevoava a casa, voava em círculos, desaparecendo no corredor de árvores, nos fundos da casa.
O caseiro da fazenda que passava pelo lugar parou e olhou, intuitivamente percebeu algo diferente. A casa abandonada, há décadas, parte de suas paredes já demolidas pelo tempo. A parte intacta era a varanda e a porta, envelhecida. Os antigos donos já eram falecidos. Jéssica era a última que ali havia estado, morta com um tiro no peito, há cinquenta anos. Ele sabia toda a história da família Terino porque seus pais tinham sido os antigos caseiros da fazenda, hoje abandonada por causa de uma briga na justiça entre os herdeiros que se arrastava por anos a fio.
Daniel olhava desgostosamente, contrariado, aquela terra de grande proporção, abandonada, enquanto milhares de pessoas sofriam com a fome, sem terem absolutamente nada para comer. Terra que poderia ser cultivada, porém, parecia estar nas mãos de
pessoas erradas. Nos tempos dos antigos donos, havia fartura, trabalho e distribuição gratuita de alimentos que ali eram cultivados. Afazenda era um Oásis em um país marcado por desigualdades. Havia outra perspectiva de mundo, hoje substituída pela visão estreita de vida dos herdeiros, cujo lema era acumular riquezas, ter posses, mesmo que sejam terras improdutivas, fazer fortuna em cima da miséria alheia. Neoliberalismo, louvor ao individualismo, um punhado de milionários, milhares de miseráveis.
Daniel, disperso em seus pensamentos, recobrou a atenção e percebeu que a porta, curiosamente, encontrava-se aberta. Talvez alguém tivesse entrado ali durante o dia. A luz da lua incidia na varanda, proporcionando uma atmosfera melancólica e suave. Nunca tinha visto aquela casa por esta perspectiva, de certa forma, bonita. Diziam que ela era malassombrada, o que ele achava superstição, fora da realidade.
Na frente da casa havia florido um girassol. Há anos o girassol floria ali, solitário, com seu amarelo luz, voltado para o sol durante o dia, trazia vida e desenterrava histórias da velha casa abandonada.
Daniel olhou novamente a casa, antes de seguir seu percurso. O silêncio de passados distantes perturbavam a sua mente. Não sentia medo, mas uma sensação de que algo pendente se encerraria ali, naquele momento.
Olhou para a lua e para a varanda, continuou caminhando e avistou o corredor de árvores. Sentiu a vida fluir diferentemente. Continuou na sua realidade enquanto compartilhava, sem saber, realidades diferentes em dimensões múltiplas onde o tempo e o espaço existem de formas diferentes.