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Arthur Capelo

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Wagner Gomes

Wagner Gomes

Arthur Capelo é pseudónimo de Bernardo Sancho (2002), nascido em São Paulo e estudante da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Não tem muito a constar na biografia porque da vida sabe pouco e de biografias, um pouco menos. Tal facto prova-se com o estranhamento causado por estar a escrever sobre si na terceira pessoa sem saber ao certo a razão por que o faz.

SOPRA-ME AS CINZAS DUM CIGARRO SEM LUME

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Então disseste que ias dormir. Que a noite era escura e que as luzes te assustavam quando as vias assim, de relance, entre um sonho e outro. Disseste que às vezes as ouvias, que diziam coisas imperceptíveis e bonitas, frases que acabavam em elipses e fugiam para além dos vales, mas que te apertavam o peito e te tiravam o sono. Se te perguntavam, despistavas, tinhas dificuldade em adormecer e só.

Lembro-me da brisa noturna a bagunçar-te os cabelos. Louros, à luz da lua confundiam-se em imagens redondas e libertavam-te as orelhas, que espreitavam para fora e apreciavam a paisagem. Eras belo, nessas noites, quando os teus contornos frágeis eram suaves extensões da informalidade dos campos. A relva por baixo de ti acomodava-se como se fosses um travesseiro macio, e por vezes arrancavas um ramo de flor maior, comia-lhe as pétalas e fumava-lhe o caule a fazer dele um cigarro fosco. E na fumaça desenhavas a tua vida em versos. Na infância, perdeste um irmão, mas não sabes se o engoliste no ventre ou se foi ele que se perdeu por aí. Há vezes em que ele nasce

morto, outras em que quem morre és tu. Gostas muito quando ele faz aniversários e lhe dás, orgulhoso, um presente valioso e ele chora e berra porque queria o carrinho da montra. Quando ele atinge a maioridade, levas os seus amigos a um bar tranquilo e próximo de casa, onde lhe ensinas a praticar a dispersão. — É assim — dizes-lhe — que se foge, mano.

E também o repreendes, quando ele foge demais: alertas-lhe o perigo do corpo e das suas limitações, que começam nas suas fronteiras: — Quando sentires o corpo além dele, senta-te, goza-o. O volante pode esperar, o bar não se irá perder.

Ris-te tremendamente quando ele te liga, no fim duma tarde qualquer, a dizer que vê coisas, que sente cubos nos braços e formigares na testa e que nunca mais irá fumar na vida. Mas ele acalma-se, então, e diz-te que a ama, que se sente frágil, sim, mas que quando ela se tem deitada daquela maneira e o vento brinca a ondular-lhe a saia o seu peito aquece. Tu ouves-lhe um sorriso, e ele de repente versa pela primeira vez: acho que o crepúsculo me morre nos olhos. Dizes-lhe que então vá descobrir campânulas nos seus lábios, e ele vai. Quando se puser o sol, enfim, e a tua noite pouco a pouco começar a se espalhar pela tela do céu, dir-te-á que não somente encontrou flores, mas também, em si mesmo, aromas de alecrim e orvalhos iridescentes.

Depois, alegras-te a vê-lo na formatura. Tem ele o traje vestido e com as mãos balança-o e perde-o nos dos amigos, ri-se tanto, tanto, e tem uns brilhos nos olhos que já pensas que foste tu quem lhes deste. Mais à noite, no jantar, dizes à sua namorada, quando ele vai à casa de banho, as suas histórias de infância, aquela vez em que a bola entrou pela janela e foi direto à tarte, aquela em que o susto lhe molhou as calças num cinema cheio, a fotografia que tens dele com as fantasias e as máscaras.

Mas há vezes em que quem morre és tu. Vês-lhe os pneus furados, o estrago à distância. Confortas-te na certeza de que estará tudo bem, que hoje em dia já ninguém morre em acidentes de carro, consolas-te no afago dos teus avisos, dos teus alarmes e reclamas ao céu a justiça quando tens nos braços o filho que por algum milagre ainda respira.

És tu quem me contas, e a fumaça vai subindo até se perder nas alturas, misturando-se com as nuvens. Os patos riscam a superfície luminosa do riacho, a plenitude de uns olhos azuis são as margens de um calor castanho; a lágrima escorre sob o junco à beira. Disseste-o, então, e eu olhava-te, ali, com os pulsos à mostra e o relógio a dormir. Fechaste os olhos e deixaste que o raminho adormecesse em teu peito, entre os botões distantes da camisa. Sonhaste outra vez com as luzes. O teu rosto contorceu-se e a raiva

fechou-te lenta e violentamente a mão. Fizeste na relva os teus cabelos, e ela, então, pareceu fazer-se mais dura e imitou o teu corpo, subitamente enrijecido, os teus ouvidos já cobertos e seguros. Se tu olhasses, no fundo enegrecido distinguirias a dor. Perceber-te-ias para além dos teus contornos, como eu te venho tentando dizer — e dói-me que me tenhas esquecido em ti. Mas estou cansado, mano, e tu estás também. Hoje vou deixar-te a lágrima, que já não a aguento mais nos olhos, portanto está atento ao vento quando ele vier a rapar a colina. Se vieres amanhã, dá-me outra vez o relógio, mas desta vez ensina-me a ler-lhe as horas nos ponteiros e diz-me que os seus rodares não desembaçam as memórias, por mais que tentemos e queiramos muito; que o relógio continua a andar, que quem para somos nós. Já lhe mordeste a flor, e o campo espera-te. Se ficares, descansa, homem, fecha com sossego os olhos. Eu apago a luz quando sair.

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