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Rafael Zanlorenzi
ANOTAÇÕES DE VIAGEM
Rafael Zanlorenzi Rafael.zanlorenzi@hotmail.com Facebook: Rafa Otavio
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- Em trânsito: A viagem está enfiada entre dois mundos, ficou presa entre os dentes da vida. Lá atrás deixei as preocupações de casa, mas ela cuida de tudo. Ela é diligente – eu que sempre fui um vagabundo. Na frente, a errância convida. Vagueando o olhar pelos assentos, buscava amigos vadios, mas acho que só me dou é com cães – curto almoçar nas calçadas e dividir a comida com vira-latas, melhor sensação do mundo fazer bem a parentes-lobos. - Buenos Aires, trabalho: passo as manhãs enfiado em uma sala dos fundos da Universidad Nacional de las Artes – cadeiras plásticas, telas e trapos esparramados em volta. O estúdio virou sala de conferências, mas continuava borrado de tintas e sujo de pó de mármore. A arte olha pra gente, puta da vida, esperando a gente sair pra voltar a acontecer. E a gente discutindo Macri, monitores, moralismos. Monte de merda que paga as contas. - Lá fora: No segundo dia fui para o pátio da universidade. O ateu uruguaio fumava. “Amaioria
¹ Eco-punk; sem tribo, sem lar, sem chama familiar.
dos uruguaios são ateus”, ele disse. “É estranho para nós que alguém creia”. Ele me deprimiu: descobri que já não estranho mais nada. - Café: na rua, fui catar o que comer. Tinha uns sanduíches no porão da universidade. Tudo com carne. Fui me achar num café com wifi. Queria falar com ela. Coração ficou em casa. Escrevemos um ao outro, rimos. Gozo a vida, grato a Deus por ela. Mesmo de longe. Ela me disse certa vez “só consigo amar alguém de quem possa me distanciar de vez em quando”. Cara, que coisa linda! A gente se degusta melhor na saudade. - Centro Cultural: terceiro dia, e caía o mundo. Saí no meio do dia da universidade – ia assistir a fuça magra do Kalevi Kull no centro. Na saída, dei de cara com o norueguês. Conhecera o homem no ano anterior. Perdido, alucinado, pálido. Me ofereci pra levá-lo a pé. “Ali é bom pra comer?”, perguntava num inglês difícil. “A comida é boa”. “Limpo?” “Relaxa”, respondi. Via germes em tudo; embalou-se em plástico pra fugir da chuva. “Não se pode comer a comida do porão”, dizia. “Tem carne. Ano passado coloquei vegana nos pratos do congresso, lembra?” Cara legal. Pena. A vida é uma escrota com caras legais. - A praça: Eu comia bem no hotel, de manhã. Por alguma razão não via cães nas ruas. Sem comen-
sais, preferia me empanturrar no hotel e bebericar café com medialuna no almoço. Todo dia depois de comer passava pela Emílio Mitre, ensolarada e vazia. Era fim de semana; ninguém nas butiques em volta. A praça me encantava, fazia lembrar a Plaza de Mayo. Mas era mais clara, de verde mais vivo. Na outra, muita memória doída. Filhos perdidos. Como deve ser isso? Tristeza, meu Deus, quanta tristeza... Lágrima de mãe vai parindo túmulos por onde passa. - Despedida: último dia em La Cárcova, fundos de Puerto Madero. Eu já estava meio triste àquelas alturas. Melancólico. Vimos uma peça sobre amor e anjos. Nos fundos, mais carne, muito vinho, pessoas demais. Eu era o guapeca sozinho, mas achei quem me jogasse uns ossos de conversa. Na volta, escolhi andar. Puerto Madero vestia a crise: vazio num sábado. Juntei-me aos empregados dos restaurantes e fomos limpar os pisos da ruína juntos. Felizes. Acho que até cantamos. Eu dizia adeus a uma cidade vazia, judiada de miséria. Décima vez que ia até lá? E nem a reconhecia. Transfigurada de dor, rolando empréstimo pra pagar as contas. Que sina! Fui saindo de fininho, ouvindo Aranjuez. Que dizer? Alegria, quem sabe na próxima...