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Gisela Peçanha
Gisela Lopes Peçanha é natural de Niterói, RJ. Escritora, cantora. Premiada em diversos concursos literários de Universidades Federais Brasileiras, a citar: Universidade Metodista de Piracicaba, SP (1º Lugar, em 2015 e 2016); Universidade do Pampa, RS; Universidade de Brasília (menção honrosa, 2020); Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (2º Lugar, 2018); Finalista: UNIFEBE, SC; UNICAMP, SP; UERJ, RJ - 2020. Prêmio Rubem Alves - 1º Lugar - Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto SP, 2015. Prêmio Machado de Assis - Menção Honrosa - Concurso Internacional Confraria Brasil – Portugal, 2015. Terceiro Lugar – Concurso Literário Internacional Castro Alves – Academia Rio-Grandina de Letras – 2021 (Rio-Grande, RS). Conquistou mais de 115 prêmios literários. Publicou em 65 antologias, a nível nacional. Membro da CAL - Comissão de Autores Literários – 2021. Acadêmica efetiva Titular da cadeira de número 36 RJ Patrona: Hilda Hilst - Academia Internacional da União Cultural. Contato: giselamusik@yahoo.com.br Facebook: Gisela Peçanha
OLHOS DE BOTÃO, CABELOS DE ALGODÃO
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— Mãe, o robô chegou! — Bradou, eufórica, a menina que mal aguentava o peso do pacote. — Abre, Miuska! — Incentivou a mãe, também ululante, diante da cena de farta alegria. E sentaram-se as duas, a rasgar o papel: tais quais duas coleguinhas infantes. — Olha, mãe! Ela é linda!
Então surgiu (diante daqueles olhos arregalados e brilhantes) um robô feminino de 1 metro e trinta, com tranças e rosto perfeito... como se humana fosse. Uma quase menininha, nascida e vinda direto da fábrica.
Era uma tarde de puro deleite. Sem irmãos para brincar, a menina tinha três robôs: o primeiro, falava e cantava; o segundo, andava; e o terceiro, recém -
chegado, tinha a forma de uma garotinha (parecida com ela) que: falava, cantava, andava, e demonstrava alguma reação quando era tocada. Havia sido o robô mais caro, de última geração.
Assim ficaram, por horas a fio, sentadas no tapete da imensa sala – dando tratos à bola, a fazer o robô funcionar direitinho.
Foi quando, a interpelar momentaneamente o colorido de tal festejo, surgiu a bisavó Nina. Vinha ela com seus cabelos totalmente brancos, enxergando pouco, ossos doloridos, mas tudo era o preço oneroso pelos seus quase cem anos de vida. Chegava com seus passos lentos, trazendo uma bandeja trepidante com chá quente, e nada mais se ouvia além do bater forte de um relógio centenário (como ela).
Fora uma grande pintora de bonecas Marioskas. Nasceu muito pobre, e só conheceu o que é a riqueza, quando a neta mais nova casou-se com um grande magnata da indústria cibernética; mas, o luxo, jamais lhe encheu os olhos.
Bisa Nina já havia presenteado Miuska com dezenas de bonecas Marioskas pintadas por ela, mas a menina não dava o menor valor. Alegava que é muito estúpido brincar com bonecas de madeira, quando se pode ter um robô quase humano! E, de verdade, isso entristecia a bisa; pois, por conhecer a pobreza (e não ter tido brinquedos, quando criança), não compreendia esses tempos modernos. E vazios.
Após servir o chá, a velha senhora sentou-se em sua cadeira feita de pinho, sob o olhar da netinha. — Miuska, a bisa está fazendo uma boneca linda para você! — Disse, com os olhos vibrando. — Boneca de madeira não quero, bisa... — Refutou a menina, abraçada ao robô. — Não é de madeira não, meu amor. É de pano.
E a menina olhou com uma expressão de puro desdém para aquela mulher enrugada, já tão machucada pela vida. –
‘’Uma boneca de pano, quando tenho bonecas que andam e falam’’... – Pensava. — Não quero, bisa. — Sentenciou, rispidamente.
A anciã levantou-se, chorosa, e se encaminhou ao seu quarto. Apagou a luz e cobriu-se. Nevava na montanha, e dentro de seu coração também.
Passado algum tempo, percebeu um pequenino vulto na penumbra, vindo em sua direção. Arregalou os olhos e enxergou Miuska, diante dela. — Bisa, quero ver a boneca de pano. — Disse a menina, meigamente, mostrando-se muito arrependida. A senhora levantou-se e abriu o baú, pegando a boneca que ainda não estava pronta: apenas o corpinho estava feito.
Miuska pediu para colocar cabelos de algodão branquinho, e que os dois olhos fossem feitos com botões pretos: para que a boneca se parecesse com a
bisa (que não conteve a emoção, diante da demonstração de tão doce afeto).
A menina foi dormir em seu quarto, mas a anciã trabalhou a noite toda, a terminar de confeccionar a boneca e deixá-la toda pronta. Fez um vestidinho com um retalho que tinha sobrado do que ela mesma usava, e desenhou rugas e óculos sobre o rosto de pano macio. Depois fez um cabelo de algodão em coque, e colocou os dois botões pretos, como sendo os olhinhos.
Então, saudosa, lembrou-se de sua infância e de seu pai lenhador que, amorosamente, fazia bonecas com talos que sobravam do eucalipto cortado. Sua mãe, costureira, ornava aqueles tocos com sobras de panos dos vestidos que fazia para as ricas damas da cidade. Os olhos, eram de botão. E os cabelos, de palha: tingida de amarelo, da cor do cabelo da menina Nina.
Certo dia, porém – durante uma grande nevasca –todas as bonecas foram jogadas ao fogo, na lareira; pois toda a lenha havia acabado, e seu pai estava muito doente e precisando de calor, temendo de febre. Neste dia, Nina compreendeu que sua infância havia terminado. Para sempre.
Exausta com tantas lembranças, e por ter confeccionado a boneca a madrugada toda, deitou-se. Ajeitou-a na mesa de cabeceira, para que Miuska a visse assim que entrasse no quarto, logo que raiasse o
dia. Então fechou as janelas de seus olhos fundos, lembrando, feliz, do sorriso da bisneta... e, assim, adormeceu. Profundamente.
Muitos anos depois, mais uma noite aconteceu e, como quase sempre, era uma noite congelante. Miuska chegou cansada do trabalho e preparou um chá fervente; mas antes, deu um beijo em seu marido que trabalhava na mesa da sala. Logo após, foi ver a filha de cinco anos que já dormia: abraçada a uma boneca de pano, com olhos de botão e os cabelos de algodão –que, agora, já estavam bem amarelados e faltando vários tufos.
A neve caía. A lareira aquecia. O estalar da madeira incandescente, soltava pequeníssimas fagulhas festeiras. Os ponteiros do relógio batiam incansáveis, valentes, trazendo a certeza de que o tempo, é o vento...
E, na velha garagem da casa, junto a várias caixas de ferramentas antigas e montoeiras de lenha, via-se três sucatas de lata enferrujada retorcida: jogadas em um canto qualquer. Que há muito não falavam, não cantavam nem andavam; muito menos tinham história ou vida.