5 minute read
Ana Faísca Pinheiro
Ana Faísca Pinheiro, nasceu em 1985, em Almancil, Loulé. Casada, mãe de dois rapazes, licenciou-se em Educação Social; atualmente exerce funções de Diretora Técnica numa IPSS. Apaixonada pela leitura, descobriu o prazer da escrita com a participação no Concurso de Escrita Criativa Poeta António Aleixo. Permitiu-se soltar as suas palavras, participando na iniciativa “Escrita em Ação”, dinamizada por Analita Alves dos Santos e percebeu que é a escrever que se sente completa, feliz e realizada. Tem tentado a sua sorte com a participação noutros concursos literários, tendo também colaborado, como primeira experiência no mundo literário, numa coletânea de contos, enquanto autora de um conto, a ser lançada em breve. Também é uma das novas vozes que integra a revista literária PALAVRAR – Ler e Escrever é resistir, recentemente lançada para o mercado literário. Determinada em desbravar caminho no mundo da escrita e dos livros, tem como objetivo aliar a escrita à culinária, através da partilha de saberes e sabores, num blogue a ser lançado até ao fim do ano. Tem na mãe, filhos e marido, o maior suporte, força e foco para lutar pelos seus sonhos.
UMA VIDA SEM TI
Advertisement
Desfio-me nas lembranças amarguradas do meu ser. Embalo-me com desespero na cadeira de baloiço, debruçada na varanda por nós concebida. Nós! O “nós” já não existe, e agora só sobrei eu.
Olho em redor. Tudo à minha volta me traz de novo a ti. A casa de madeira que desenhamos, a piscina, o jardim, a pequena horta, o nosso paraíso perdido, jamais será o mesmo sem ti.
Amanhã cumprem-se cinco anos da tua partida. Cinco anos que ainda me parecem cinco minutos. Respiro fundo, tão fundo que a dor me invade o peito, corrói-me a alma e me esmaga de solidão. Lágrimas afloram-me aos olhos, enquanto sinto o desespero invadir-me.
Não passa um dia que não pense em ti. Não passa um dia que não questione a tua partida precoce. Dizem que tudo acontece por um propósito, mas não há
propósito que me aquiete o coração e sossegue a alma.
Acordo cedo. Na verdade, mal dormi, agitada num mar de lençóis frios que me agoniam as entranhas. Tomo um ducha rápido, visto o vestido branco esvoaçante, e saio. Pelo caminho passo no mercado da vila e compro flores. Camélias, brancas, as tuas preferidas.
Ao avistar as grandes portadas do cemitério, apertas de par em par, a angústia invade-me. É-me doloroso verbalizar o quanto sofrimento encerro em mim, o quão massacrante é visitar-te neste sítio, onde tudo se finda, onde tudo se resume a pó.
Percorro a calçada reluzente em silêncio. Limpo a face com a mão, segurando as lágrimas que teimam em cair. Agacho-me junto à campa e afago o teu rosto imortalizado em pedra. O teu sorriso contagiante aquece-me o coração. Distribuo as camélias pelas duas jarras bojudas, encho-as com água e componho os arranjos.
Abandono-me ao choro descontrolado. Soluçante, deixo-me escorregar e quedo-me, deitada, no mármore frio. Relembro com saudade as juras de amor eterno, “até sermos velhinhos”, os sonhos, os projetos, a família que íamos construir. Agarro com fúria um pedaço de terra frouxa e atiro-o violentamente contra a tua fotografia, que continua a sorrir-me em grande plano.
A raiva me consome e a dor, profunda e dilacerante, rasga-me a pele. Em fragmentos, recebo na memória imagens daquele dia. Recordo como o médico, condescendente, me disse, “lamento, fizemos tudo o que podíamos, mas não foi possível salvar o seu marido”. Revivo as sessões em tribunal, intermináveis, o julgamento, o olhar nos olhos do homem que te roubou da minha existência; duras lembranças que permanecem no coração.
“O tempo tudo cura”, “o tempo ameniza a dor”, “só a saudade fica”, frases feitas que me repetem até à exaustão. Cinco anos depois e a única certeza que tenho é de que que o relógio não pára. Cada segundo é uma eternidade, cada minuto uma desolação, cada hora um martírio.
Sinto olhares cravados na nuca. Levanto a cabeça, passo a mão nos cabelos desgrenhados e reparo numa velhota, vestida de negro, olhando-me com espanto. Aproxima-se, afaga-me o rosto e estende-me uma mão trémula, carcomida pelo tempo. Sem oferecer resistência, sigo-a sem pestanejar. Para onde me leva? O que me quer?, são perguntas cujas respostas não me preocupam. Experiencio uma paz tranquilizante.
Encontro-me num jardim verdejante onde, ao fundo, uma fonte gorgoleja, apaziguadora. Continuo guiada pela mão da velha senhora. Atravessamos o parque frondoso, até chegar a um lago. Indica-me, com
o olhar, um jovem, de costas, atirando seixos para a água. Enverga calças de ganga e um polo branco. Há algo na sua fisionomia que me intriga.
Olho para o lado e a senhora desapareceu. Só resto eu e o homem misterioso. Um arrepio percorreme o corpo. Frio? Medo? Toda eu tremelico enquanto caminho para ti. Num repente, voltas-te e ficamos frente a frente. A tua rápida intervenção não permite que me estatele no chão, roxa de espanto e comoção.
Renato!? — num misto de choro e agitação — Como!? Como é possível estares aqui, ao pé de mim!?
Sinto a respiração ofegante quando se inclina para me beijar. Há minha volta tudo permanece estático, quase irreal. Será que morri e reencontrei o Renato? Não, não é possível. Não me recordo como aconteceu, como vim aqui parar. Toda eu me desfaço numa ânsia híbrida, plena de felicidade e estupefação.
Contigo passo as horas mais felizes dos meus dias. Contemplamos o pôr-do-sol, dançamos abraçados, amamo-nos debaixo de um choupal, enquanto trocamos promessas de amor. — Meu amor, — sussurras-me ao ouvido— deixa-te guiar pelo destino. Liberta-te da tristeza a que te votaste. Recebe com gratidão e serenidade, não só o que a vida te dá, como também o que te tira. — Acaricias-me a face, limpando as lágrimas silenciosas. — Não esperes as respostas todas no imediato. Aos poucos vais conseguir perceber, e aceitar, a tua vida
sem mim. E um dia, quando formos velhinhos, reunirnos-emos de novo. Agora vai, segue o teu rumo. Eu estou em paz, e continuo a olhar por ti. Quando te sentires só, triste e desesperançada, lembra-te que estás sempre envolta no meu abraço… — Menina, menina, sente-se bem? — diz uma voz que não identifico prontamente, ao mesmo tempo que me toca, ao de leve, no ombro.
Desperto estremunhada, já lusco-fusco, tremelicante, e reconheço o Sr. Fernando, o coveiro daquela área do cemitério. Demoro a abarcar os últimos acontecimentos. A cabeça num torvelinho não ajuda a raciocinar com clareza. O olhar errante, quedase de novo no sorriso radioso do Renato.
Logo as lágrimas redobram, à recordação do passado que não volta, embora o teu sorriso tranquilo me pacifique o coração. Carrego no peito a saudade terrena, amparada no desejo do reencontro divino, no tempo que o relógio assim aprouver…