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Jessica Silva
Jessica Silva jpcs_5@outlook.com
Naquele tempo, não entendia quem ou o que eu era. Era tão estranho. Eu era uma estranha no meu corpo e nos corpos que conhecia. Por anos, foi uma sucessão de tentativas atrapalhadas e falhas de comunicação. Logo nos primeiros anos da adolescência, fui obrigada a entrar em um jogo que não era meu. Obrigada, digo, no literal. Talvez estivesse em um palco pronta para apresentar, sem roteiro, sem roupa, sem referências, sem palco. Até que um dia desses dias passados, conheci o desejo que os corpos são capazes de despertar, pior, do colapso que acontecia no meu estômago, no meu corpo, nas minhas mãos, e que instantaneamente me paralisava. Me colapsava. Era tão intenso que as vezes me doía. Não me aproximava mais de quem pudesse me despertar isso. Eu escondi e não contei pra ninguém. Fiz meu segredo o que era o contrário do que me confidenciavam. Vivi por muito sem deixar essa sensação permanecer no meu corpo. Até que te conheci. Faz tanto tempo. Nem me lembro ao certo como foi, me lembro apenas que gostava de passar as aulas com você, conversando e querendo estar ali, com você.
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Me lembro de uma vez que consegui um emprego qualquer, tive tanto medo, que no segundo dia, por
algum motivo, consegui que você me acompanhasse até lá. Você foi. No caminho, dentre assuntos e banalidades, você disse. Foi difícil, eu lembro. Foi difícil pra você. Falava algo como a igreja, confusão, sentimentos, eu e você. Foi a primeira vez que me falaram isso. Eu me lembro de como foi difícil pra você. Te admirei tanto. Enquanto ouvia você falar, reconhecia aquela sensação escondida. Enquanto ouvia você falar, sentia vontade de te dizer que não entendia muito bem disso, não entendia muito bem sobre os sentimentos, mas queria tentar, queria aprender. Com você. Quem sabe até te contar aquele segredo, tentar deixar você me tocar. Eu tentar te tocar. Te tocar. Mas fora de mim, no meu corpo, cuidado! Não me toque, não tente me tocar. Eu não posso tocar em você. Olha, quase não posso olhar para você. Eu não sei o que é isso. Impossível te explicar. Hoje eu não me lembro mais o que fiz para sair de lá. Mas tenho a sensação que te magoei. Naquele dia, não fui trabalhar. Nem nos outros.
Sei que os anos passaram e a vida é engraçada em seus caminhos, gosto de pensar assim, nessa possibilidade do mistério. A gente voltou a se encontrar um tempo depois, não me lembro como foi, era algo como algum evento que você precisava de alguém pra tocar? Não sei. Não importa. A partir daí, passei a me perguntar quem era você ali. O espaço era sempre muito cheio da sua voz. O espaço era todo
tomado da sua presença quando você estava lá. Como ninguém percebia? Como ninguém faltava com o fôlego? Como conseguiam te olhar sem quase derreter por dentro? Eu não fazia ideia. Até que um dia veio na cabeça te falar. Você disse que a gente tinha de pagar pra ver. Eu topei. A gente pagou. A gente viu. Eu vi. Eu vi que não fazia ideia. Estava ali, nua, tocando em você. Só ali. Mas era demais pra mim. Mais do que era permitido sentir. Meu comportamento era de alguém recuado, pronto para escapar dali. Lembro que um dia você dormiu em casa e eu precisava te acordar. Entrei e saí umas 5 vezes do quarto. Até que na última vez, te toquei, pedi pra acordar, e em uma tentativa falha de esconder o que estava sentindo, te deixei lá, sozinha, e a partir daí te deixei cada vez mais. Até a despedida, não me lembro como foi, lembro só de uma música, que você disse pra guardar, mapa-múndi era o nome? Algo assim? Não me lembro.
Após o diagnóstico tardio de autismo, me senti leve por entender que esse ‘segredo’não é um segredo. Sou eu. Sinto as coisas assim. Elas podem ser intensas mesmo. E na grande maioria das vezes são. E ok. Tá tudo bem. Tem algumas coisas que marcam, mesmo que já tenha passado o tempo delas, estão ali. E vez ou outra aparecem pra gente pensar. À toa. E quando a gente lembra, alivia e para de doer. Essa é uma carta sem remetente.