Rachel: o mundo por escrito

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E

sta é uma biografia diferente. Foi escrita na forma de um diário, supondo que Rachel de Queiroz tivesse feito um, logo após a conclusão de seu romance de estreia. Por estas anotações imaginárias, surgem os fatos da existência como se fossem ainda futuro, hipótese ou sonho de uma artista então adolescente. A escritora Rachel de Queiroz, assim, torna-se mais próxima, personagem viva de sua própria história.

o mundo por escrito Texto

Tércia Montenegro Ilustrações

Glauco Sobreira

O Quinze ~ Miguel Joao Caminho de Pedras ^ Marias As Tres ^ Dora, Doralina Memorial de Maria Moura





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Tércia Montenegro Ilustrações

Glauco Sobreira

Fortaleza - CE 2010


Copyright©2010 by Edições Demócrito Rocha Fundação Demócrito Rocha Presidente Luciana Dummar Edições Demócrito Rocha (EDR) (Marca registrada da Fundação Demócrito Rocha) Editora Regina Ribeiro Editor de Design Deglaucy Jorge Teixeira Capa e Projeto Gráfico Deglaucy Jorge Teixeira e Iasodara Sena Editoração Eletrônica Iasodara Sena Revisão Ortográfica Fernando de Souza Catalogação na Fonte Adelly Maciel

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M772r

Montenegro, Tércia Raquel: o mundo por escrito. / Tércia Montenegro; ilustração Glauco Sobreira. – Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2010. 84 p.; il. color. ISBN 85-7529-480-2 I. Memórias II. Diário. III. Queiroz, Raquel de IV. Sobreira, Glauco V.Título CDU 82-94 Edições Demócrito Rocha Av. Aguanambi, 282 - Joaquim Távora - Cep 60.055-402 - Fortaleza-Ceará Tel.: (85) 3255.6270 - 3255.6036 - 3255.6256 - Fax (85) 3255.6276 edicoesdemocritorocha.com.br | edr@fdr.com.br I livrariaedr@fdr.com.br


Para a Regina Ribeiro, que me fez reviver o mundo de Rachel.



Sumário

Aos dezenove, O Quinze

09

História de um nome - e de uma família

Os amores e as dores

43 59

Um mundo por escrito

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Aos dezenove, O Quinze

A

1930 junho

qui estou, começando a encher mais um dos caderninhos pautados que papai me compra. Não há muito a fazer, nesta convalescença. A congestão pulmonar que tive me obrigou a um tratamento de repouso total. Mas pelo menos posso escrever – e neste ponto não descanso! Tanto que acabei uma história longa poucos dias atrás. Passei muitas noites escrevendo, à luz do lampião. Fiz tudo às escondidas, porque senão mamãe reclamava, dizendo que eu ia estragar a vista, ou piorar dos pulmões. Mas o impulso de criar a história era maior que qualquer coisa. Conceição, Chico Bento... meus personagens precisavam existir. Bem, na verdade era um pouco como se eles já tivessem de fato existido, e eu me encarregasse apenas de revê-los. Tinham vivido


em cada uma das secas que castigou o Ceará: eram os retirantes, crestados de aparência, e humildes, tão desgastados como galhos secos. Em Quixadá, era raro o dia em que eu não



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via um deles, pedindo água, sombra ou emprego. Acho que fiquei com isso na cabeça, e juntei com os relatos que ouvia no oitão. Todos – tios, peões, vizinhança – sempre conversavam sobre os tempos antigos, concordando: a seca de 1915 tinha sido uma das piores, inesquecível de trágica. Na época, eu ainda era uma criança e não percebi nada. Pouco havia para perceber, também, pois minha família estava morando fora do Ceará. Mas, apesar de termos vivido no Rio de Janeiro e no Pará, não perdemos contato com o sítio do Junco. As notícias sempre chegavam, comentando o êxodo rural, a fome e a sede. E quando voltamos ao sertão, a memória dos parentes e amigos coloriu todos aqueles episódios que eu, menina, escutei com detalhes. Por isso elegi aquela data para batizar meu romance; ele um dia será publicado, com o título O Quinze.

T

omei coragem de mostrar para meus pais o caderninho em que escrevi o romance. Mamãe, conforme eu já previa, ralhou comigo: “Mas você fez essa extravagância com sua saúde? Escrevendo por noites e noites, com esse vento encanado e a sua doença... Que loucura!” Respondi que não tinha ficado


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tísica como ela temia; ao contrário, estava praticamente recuperada das crises que me fizeram cuspir sangue. Tinha sido um alarme falso. Mas mamãe continuou: “Mesmo assim, Rachel...” Claro que eu não ia continuar no bate-boca com ela, até porque mamãe é tão bonita que ainda que esteja zangada não amedronta. Felizmente papai, que nesse tempo todo segurava o caderninho e lia algumas páginas, nos interrompeu: “Minha filha, isso aqui é muito bom. Temos que publicar!” E a surpresa foi que ele se ofereceu para custear os trabalhos na gráfica. Fiquei orgulhosa, mas só aceitei sob a condição de que seria um empréstimo. Tão logo o livro vendesse, fizesse sucesso, eu lhe pagaria devidamente. Papai concordou, sorridente, e a esta altura mamãe também estava feliz, esquecida do meu segredo de varar noites a escrever sob a luz do lampião. Combinamos de procurar o seu Camarão, da Tipografia Urânia, a ver como podem ser rodados os mil exemplares de estreia d’O Quinze.

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assei o dia às voltas com atividades domésticas, que normalmente me dão muito prazer. Gosto de cuidar da casa, preparar comida ou vigiar as crianças. O problema é que hoje


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estava aborrecida com a negociação recente, na gráfica que vai imprimir meu livro. Seu Camarão colocou vários obstáculos para confeccionar a edição do jeito que eu quero; pareceu ter má vontade, e ainda cobrou de papai mais de dois contos. Fiquei aborrecida, mas agora não quero mais pensar nisso. Gastei o dia todo com essa zanga, e parece que mau humor atrai chateações. Quer mais provas do que o que me aconteceu sucessivamente? Primeiro, comecei a faxina desastrada como se estivesse bêbada: trinquei com a vassoura vários cantos de parede. Depois, quando tive de embalar a Maria Luíza, ela demorou uma eternidade para adormecer – ficou só naquele chorinho miúdo e insistente, e eu, que estava com dor de cabeça, não sabia o que fizesse, até que chamei Antônia para me substituir um pouco na tarefa. Naturalmente, ouvi uma reprimenda: “Você não tem paciência com sua irmã de três anos, como quer depois cuidar dos seus próprios filhos?” Não respondi nada e saí para engomar umas roupas; por pouco não queimo um de meus vestidos, com aquele ferro pesadíssimo. Mas a brincadeira do capeta aconteceu mesmo de tarde, quando eu estava preparando um doce de caju, daqueles que todo mundo gosta. A família inteira esperava a sobremesa que eu


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já tinha anunciado, mas de repente me deu uma vontade de conferir uns poemas em francês, que tinha lido numa revista recentemente. Não deu outra: a calda do doce, sem vigilância, queimou no tacho. “Essa menina não tem jeito”, ouvi dizerem. “Deixa”, responderam, e acho que foi papai, adivinhando meu nervosismo por causa dos problemas na gráfica.

D

epois que concluí o Colégio Imaculada Conceição, três anos atrás, fiquei meio às cegas, sem saber direito que rumo tomar. O mais certo era que fosse professora; afinal, eu estava formada para esse fim. Agora, aos dezenove anos, vejo-me no magistério – ainda como substituta, mas no mesmo colégio em que fiz os estudos. Leciono História, que é uma disciplina que me interessa. Mas confesso que a escrita me atrai muito mais, e não somente porque tenho um romance em vias de ser publicado. Bem antes, desde garota, eu já me dedicava às letras, embora então não mostrasse a ninguém o que compunha. Escrevia, escrevia e rasgava, com medo de que meus irmãos descobrissem e fizessem troça de mim – tamanha timidez era a minha!


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sta é uma biografia diferente. Foi escrita na forma de um diário, supondo que Rachel de Queiroz tivesse feito um, logo após a conclusão de seu romance de estreia. Por estas anotações imaginárias, surgem os fatos da existência como se fossem ainda futuro, hipótese ou sonho de uma artista então adolescente. A escritora Rachel de Queiroz, assim, torna-se mais próxima, personagem viva de sua própria história.

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Glauco Sobreira

O Quinze ~ Miguel Joao Caminho de Pedras ^ Marias As Tres ^ Dora, Doralina Memorial de Maria Moura


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