A ĂŠtica na sala de aula
Coleção Caminhos da Formação Docente 1. Educando para a superação do Bullying escolar Geovanio Rossato e Solange Marques Rossato 2. Educando contra o preconceito e a discriminação racial Rosângela Rosa Praxedes e Walter Praxedes 3. Entre os fios e o manto: tecendo a inclusão escolar Ana Cristina da Costa Piletti 4. A música e o processo educativo – Atos, recortes e cenas pedagógicas Michel Vicentine Martins 5. A filosofia e o processo educativo – Pensar a educação e educar o pensamento Claudino Piletti
Maria da Gl贸ria Costa Ribeiro Piletti
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A 茅tica na sala de aula
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Piletti, Maria da Glória Costa Ribeiro A ética na sala de aula / Maria da Glória Costa Ribeiro Piletti. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. -- (Série caminhos da formação docente ; 9 / coordenador Nelson Piletti) ISBN 978-85-15-04259-3 1. Aprendizagem 2. Ética 3. Prática de ensino 4. Professores Formação profissional 5. Sala de aula - Direção 6. Valores éticos : Educação I. Piletti, Nelson. II. Título. III. Série. 15-00977
CDD-370.114 Índices para catálogo sistemático:
1. Educação em valores éticos 370.114
Preparação: Maurício Balthazar Leal Projeto Gráfico: Viviane B. Jeronimo So Wai Tam Capa: Viviane B. Jeronimo Logotipo da Coleção: Viviane B. Jeronimo Diagramação: So Wai Tam Revisão: Vero Verbo Serviços Editoriais
Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-04259-3 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015
Apresentação
A melhoria da qualidade da educação escolar brasileira apresenta-se hoje como o principal desafio educacional do país, uma vez que o acesso das nossas crianças ao ensino fundamental está próximo da universalização, e a educação infantil e o ensino médio avançam em constante expansão. E diversos são os caminhos que podem conduzir a uma educação escolar que atenda aos anseios da população brasileira e às demandas de formação e capacitação existentes na atualidade. O imprescindível é que respeitemos o contexto em que se situa cada escola, já que multifacetadas são as formas de convivência, expressão cultural, religiosidade e condições econômicas de vida dos brasileiros. Respeitando e valorizando as diferenças entre os seres humanos que se encontram no processo educativo questionamos, ao mesmo tempo, as raízes das desigualdades sociais e políticas, visando sempre a inspirar a ação educativa nas palavras de Hermann Hesse, com quem aprendemos que cada ser humano constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Tendo como parâmetro o cotidiano escolar, refletindo sobre temas e questões da ordem do dia do trabalho docente, com uma linguagem dinâmica e atual, a série “Caminhos da Formação Docente” oferece subsídios para o aprimoramento da formação e da atuação do professor, buscando contribuir para a efetivação de um salto de qualidade no processo educativo. Que o estudo dos conteúdos presentes nos títulos desta coleção, ao lado de outras iniciativas, possa representar aqueles passos que, no dizer de Mário Quintana, abrem os caminhos! O coordenador
Sumário
Introdução..........................................................................................................................................................................
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Capítulo I Visão filosófica da ética..................................................................................................... 1.1. Na origem, a religião...................................................................................................................................... 1.2. Ética: estudo filosófico dos problemas morais............................................................................... 1.3. A ética aplicada.................................................................................................................................................. 1.4. O surgimento dos códigos de ética. ..................................................................................................... 1.5. Ética e moral. ....................................................................................................................................................... 1.6. Ética e éthos......................................................................................................................................................... 1.7. Ética e felicidade................................................................................................................................................ 1.8. Classificação da ética...................................................................................................................................... 1.9. Aspecto histórico ocidental da ética..................................................................................................... 1.10. Ética e valores...................................................................................................................................................
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Capítulo II Visão histórica da sala de aula................................................................................. 2.1. A invenção da sala de aula......................................................................................................................... 2.2. Religião, obediência e poder..................................................................................................................... 2.3. Elementos e estrutura de comunicação............................................................................................. 2.4. O que fazer entre as quatro paredes. .................................................................................................. 2.5. Planejando a sala de aula............................................................................................................................ 2.6. A sala de aula como ponto de encontro........................................................................................... 2.7. Novos ares arejam a sala de aula............................................................................................................
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Capítulo III A ética vai à escola. ............................................................................................................. 3.1. Ética e educação................................................................................................................................................ 3.2. Princípios éticos na escola........................................................................................................................... 3.3. Ética no relacionamento professor-alunos........................................................................................ 3.4. Ética na avaliação dos alunos.................................................................................................................... 3.5. As novas tecnologias de ensino à luz da ética............................................................................... 3.6. Normas éticas para a convivência na sala de aula.......................................................................
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3.7. A ética e os múltiplos saberes que frequentam a sala de aula...........................................
3.11. Orientações didáticas para o ensino da ética..............................................................................
54 55 57 58 59
Bibliografia........................................................................................................................................................................
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3.8. Ética e currículo escolar. ............................................................................................................................... 3.9. O ensino da ética.............................................................................................................................................. 3.10. A ética e seus conteúdos..........................................................................................................................
Introdução
Nos últimos tempos, a ética tornou-se uma preocupação geral. Ela está presente em quase todos os discursos e conversas. Fala-se de ética no trabalho, na política, na medicina, nos esportes, na educação, nas relações familiares e nas demais relações interpessoais. Nossa proposta é falar da ética nas relações pessoais na sala de aula. A sala de aula é o local onde passamos diversos anos da nossa vida, alguns só como alunos, outros como alunos e professores. Trata-se de importante tempo da nossa vida, vivido num espaço não menos importante. Segundo a professora e escritora Rosely Sayão, “a sala de aula talvez seja o último espaço público onde se possa estabelecer relações de proximidade, de solidariedade pessoais ou anônimas” (Sala de aula: o último espaço público, vídeo ATTA). E de acordo com a professora Terezinha Saraiva a sala de aula é “o local onde se tecem com os fios da convivência que fez aprender a difícil arte de viver e conviver com as diferenças” (2003). É justamente isso que a ética se propõe a ensinar. Para tanto, ela pode seguir diversos caminhos possíveis. Neste livro o assunto é abordado em três etapas ou partes. Na primeira parte, apresentamos uma visão filosófica da ética. Na segunda, uma visão histórica da sala de aula. Na terceira parte, sob o título “A ética vai à escola”, trataremos de alguns aspectos mais concretos do papel da ética “na difícil arte de viver e conviver com as diferenças”.
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Capítulo I
Visão filosófica da ética
A ética é a parte da filosofia que estuda os princípios morais da conduta humana. Antes da filosofia, tais princípios constavam da religião, onde eram atribuídos a alguma manifestação divina e tinham um valor absoluto. O problema da filosofia é torná-los relativos sem cair no relativismo. É isso o que procuram fazer os filósofos desde a antiga Grécia até o mundo atual. Nesse percurso, tratam da ética, da relação entre ética e moral, de ética e éthos, de ética e felicidade e de ética e valores, como veremos a seguir. u
1.1. Na origem, a religião
Em sua origem, os grandes valores morais, que se referem ao chamado plano espiritual do ser humano, foram atribuídos a alguma manifestação divina. Os mitos, por exemplo, continham mensagens divinas. Eles transmitiam, em linguagem simbólica, revelações sobre a ordem das coisas e da vida que o ser humano, então inteiramente sintonizado com o sentido transcendente da existência, acolhia. Assim, os valores mais elevados — de verdade, justiça, beleza, bem etc. — que guiam o ser humano não teriam nascido de elaborações humanas comuns: “sua origem é transcendente, no sentido de que vêm de um além intangível à mera experiência de sobrevivência. De fato, o homem não se realiza apenas com a garantia da sobrevivência; além de comer e beber, ele quer arte, felicidade, amor” (Cunha 1992, p. 281). A “transcendência” refere-se ao aspecto superior das finalidades da vida humana. Ela constitui “uma evocação, uma intuição de uma realidade superior, uma suprarrealidade, que justifica a verdade das coisas, a justiça das relações dos homens entre si e com a natureza, a beleza que inspira e comove o homem, e tudo o mais que se deve fazer visando à paz e à harmonia universal” (Cunha 1992, p. 281).
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No plano moral, a experiência da transcendência constitui a essência da experiência religiosa. É preciso distinguir, no entanto, experiência religiosa de prática religiosa. Enquanto a prática implica a participação em rituais e cultos, a experiência “diz respeito a vivência e convicções pessoais, que expressam a fidelidade a princípios de uma transcendência moral fortemente vivenciados” (Cunha 1992, p. 282). Não podemos, porém, confundir moral com religião. São coisas distintas. O problema é que durante muito tempo vivemos com a ideia de que a moral está sujeita à religião. Aliás, mesmo nos dias atuais muitas pessoas vivem com tal ideia. A moral autêntica, no entanto, vale para os crentes e os não crentes, pois trata-se de uma moral que apela para a capacidade de raciocínio de qualquer pessoa. É também preciso considerar que há “uma diferença básica entre religião e moral que continua sendo válida: a moral persegue uma vida melhor e a religião busca algo melhor que a vida. São objetivos bastante diferentes” (Savater 2012, p. 99). Além disso, as religiões, mesmo sendo um direito privado de cada cidadão, não são obrigatórias. Não se constituem num dever para os indivíduos e sociedades. É claro que é preciso defendê-las como um direito individual, desde que não prejudiquem nenhuma pessoa. Savater apresenta o seguinte exemplo: “… se uma mulher acredita que não pode dirigir um carro porque é pecado e o proíba, isso já não se pode permitir” (Savater 2012, p. 100). Esse exemplo e uma infinidade de outros, mais que uma questão religiosa, são uma questão filosófica.
Para saber mais
A ética e a religião “As religiões se consideram a fonte de toda ética. É assim que sempre que a imprensa destaca um crime hediondo, o aumento dos índices de criminalidade ou um episódio de corrupção de políticos os moralistas religiosos aproveitam para se manifestar na imprensa. Em artigos ou cartas de leitores, eles apontam como a causa da proliferação de tais acontecimentos lamentáveis o descaso contemporâneo de grande parte da população pela religião, consequentemente pelos valores cristãos. Ultimamente esse descaso tem sido associado — quando não atribuído — ao relativismo. O exemplo foi dado pelo cardeal Ratzinger, que, às vésperas de se tornar o papa Bento XVI, advertiu que ‘estamos a caminho de uma ditadura do relativismo que não reconhece coisa nenhuma como certa’. Impõe-se, assim, que uma pessoa que acha, por exemplo, que não há certo ou errado absolutos, mas que tudo depende da cultura a que cada qual pertence, relativiza, ipso facto, as regras morais e as leis que imperam na sua própria cultura, o que lhe torna mais fácil contemplar a violação dessas regras e leis” (Cicero 2009, p. E 11).
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1.2. Ética: estudo filosófico dos problemas morais
A partir do século V a.C. filósofos gregos fundaram a ética, isto é, um estudo filosófico dos problemas morais. Desde então, a ética tem sido conceituada como 12
A ética na sala de aula
“parte da filosofia que estuda os valores morais e os princípios ideais da conduta humana” (Michaelis 1998, p. 908). Há outras definições. Aurélio Buarque de Holanda, por exemplo, a definiu como “o estudo do juízo de apreciação que se refere à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto” (Ferreira 1976, p. 823). Para Marilena Chaui, a ética seria, segundo os antigos filósofos gregos, “a educação da vontade pela razão para que possamos alcançar a felicidade a que todos somos destinados por natureza” (Chaui 1994, p. 342). Na Grécia arcaica (800 a.C.-500 a.C.), a felicidade era considerada resultado da sorte, um capricho dos deuses. O mundo então era tão hostil que os bons momentos eram suplantados pelo infortúnio. Só os deuses poderiam reverter a situação. Foi durante o período arcaico que nasceu a filosofia — que significa “amor à sabedoria” —, uma das maiores contribuições da Grécia para a civilização ocidental. Na Grécia clássica (500 a.C.-338 a.C.), os filósofos transformaram a felicidade em objeto de uma busca racional. E, segundo eles, cultivar a virtude seria o melhor caminho para alcançar a felicidade. Isso, porém, era considerado privilégio de uns poucos, isto é, dos sábios, que tinham condições de, com base em critérios racionais, distinguir a verdadeira virtude da mera aparência de virtude. Para Platão (427347 a.C.), por exemplo, a virtude é a capacidade de atender a determinada tarefa. Assim, como cada órgão tem suas próprias funções, a alma também tem as suas. E a cada função corresponde uma virtude. Segundo Platão, são quatro as virtudes da alma. Denominadas por Aristóteles (384-322 a.C.) virtudes morais ou éticas, são as seguintes: a prudência, a justiça, a temperança e a fortaleza. Para Aristóteles, a felicidade está no saber, que é onde o homem encontra sua perfeição. Assim, a ética aristotélica está centrada no conceito de vida contemplativa ou teorética, que, ao mesmo tempo que vida feliz, é a virtude mais elevada. Aristóteles é o autor da famosa obra Ética a Nicômaco. Por diferentes que sejam todas as éticas da filosofia antiga, elas procuram determinar a natureza necessária do ser humano, para deduzir de tal natureza o fim a que deve ser dirigida sua conduta. A filosofia medieval mantém-se fiel a esse esquema. Tomás de Aquino (1225-1274), por exemplo, deduz toda a sua ética do princípio “Deus é o último fim do homem”. Na filosofia moderna há uma grande diversidade de esquemas éticos. O que predomina, no entanto, é o esquema empírico, cuja maior preocupação é elaborar uma ética aplicada. Tal ética utiliza diferentes teorias filosóficas: o aristotelismo, o tomismo, o kantismo, o utilitarismo etc. Mas na modernidade trata-se menos de deduzir um princípio de ação da teoria (atitude tradicional) do que de avaliar a própria teoria. Uma teoria filosófica incapaz de resolver os novos problemas éticos é considerada tão inútil quanto uma teoria física incapaz de explicar o movimento.
Visão filosófica da ética
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Para saber mais
A virtude “O que é uma virtude? É uma força que age, ou que pode agir. Assim a virtude de uma planta ou de um remédio, que é tratar, de uma faca, que é cortar, ou de um homem, que é querer e agir humanamente. Esses exemplos, que vêm dos gregos, dizem suficientemente o essencial: virtude é poder, mas poder específico. … A virtude de um ser é o que constitui seu valor, em outras palavras, sua excelência própria: a boa faca é a que corta bem, o bom remédio é o que cura bem, o bom veneno é o que mata bem. … Se todo ser possui seu poder específico, em que excede ou pode exceder …, perguntemo-nos qual é a excelência própria do homem. Aristóteles respondia que é o que o distingue dos outros animais, ou seja, a vida racional. Mas a razão não basta: também são necessários o desejo, a educação, o hábito, a memória… O desejo de um homem não é o de um cavalo, nem os desejos de um homem educado são os de um selvagem ou de um ignorante. Toda virtude é, pois, histórica, como toda a humanidade, e ambas, no homem virtuoso, sempre coincidem: a virtude de um homem é o que o faz humano, ou antes, é o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua humanidade (no sentido normativo da palavra) … A virtude é uma maneira de ser, explicava Aristóteles, mas adquirida é duradoura, é o que somos. … Isso que os gregos nos ensinaram … também pode ser lido em Spinoza: ‘Por virtude e poder entendo a mesma coisa, isto é, a virtude, enquanto se refere ao homem, é a própria essência ou a natureza do homem enquanto ele tem o poder de fazer certas coisas que se pode conhecer apenas pelas leis de sua natureza’ … É o que também chamamos virtudes morais, que fazem um homem parecer mais humano ou mais excelente, como dizia Montaigne, do que outro. … A virtude, repete-se desde Aristóteles, é uma disposição adquirida de fazer o bem. É preciso dizer mais, porém: ela é o próprio bem. … Não o Bem absoluto, não o Bem em si, que bastaria conhecer ou aplicar. O bem não é para se contemplar, é para se fazer. Assim é a virtude: é o esforço para se portar bem, que define o bem nesse próprio esforço. … A virtude, ou antes, as virtudes (pois há várias, visto que não se poderia reduzir todas elas a uma só, nem se contentar com uma delas) são nossos valores morais … Sempre singulares, como cada um de nós, sempre plurais, como as fraquezas que elas combatem ou corrigem” (Comte-Sponville 2007, p. 7-10).
u 1.3. A ética aplicada
A expressão ética aplicada surge nos Estados Unidos nos anos 1960. Mas foi só depois dos anos 1970 que os filósofos passaram realmente a se interessar por questões de ética aplicada. E isso ocorreu sobretudo nos países anglo-saxões. As razões do surgimento da ética aplicada, segundo Michela Marzano (2008), são múltiplas: “As atitudes e os comportamentos sociais evoluíram radicalmente não somente na esfera privada, mas também no espaço público. O desenvolvimento crescente da técnica e das descobertas científicas coloca novas questões tanto aos indivíduos como às sociedades” (p. 3). A análise dessas novas questões fez que 14
A ética na sala de aula
os filósofos deixassem de lado discussões teóricas estéreis e se voltassem para os problemas reais. Surgiram, assim, diferentes ramos da ética: “a bioética e a ética médica se desenvolvem para dar respostas aos problemas ligados aos avanços da biomedicina; a ética do meio ambiente se interessa pelo futuro do planeta; a ética da sexualidade se estrutura em volta dos novos desafios morais ligados às evoluções dos costumes etc.” (Marzano 2008, p. 3). Interessar-se pela ética aplicada significa buscar respostas ou, ao menos, instrumentos de análise para abordar as grandes questões da atualidade. Não se trata de simplesmente aplicar teorias éticas preestabelecidas aos diferentes problemas. Em vez disso, “a ética aplicada pede emprestada a voz da transdisciplinaridade para estruturar uma pesquisa que seja ao mesmo tempo fundamental e prática. Por esta razão, além dos debates sobre os princípios fundamentais da razão prática …, a ética aplicada leva em conta as interrogações que nascem da colocação em ação desses princípios em esferas tão diferenciadas como aquelas da medicina, da sexualidade, do meio ambiente, das relações internacionais etc.” (Marzano 2008, p. 5).
Para saber mais
Bioética: um exemplo de ética aplicada A evolução da Medicina, por meio do desenvolvimento científico e tecnológico, colocou o ser humano diante de situações até pouco tempo inimagináveis. Exemplos disso são a reprodução assistida, os transplantes, a eutanásia, o Projeto Genoma etc. A bioética procura “engendrar uma sabedoria, um saber relativo à maneira de utilizar o saber em vista do bem social, sobre a base de um conhecimento realista da natureza biológica do homem. … Os quatro princípios da bioética são: o princípio da autonomia, o princípio do benefício, o princípio do não malefício e o princípio de justiça. O princípio da autonomia afirma que cada paciente é uma pessoa autônoma, isto é, capaz de fazer escolhas e de tomar decisões: é o fundamento filosófico da regra do consentimento declarado dos pacientes. O princípio do benefício visa a assegurar o bem-estar das pessoas, que necessita, no plano médico, que se leve em conta a relação entre os riscos e os benefícios dos diferentes atos de cura. O princípio de não malefício retoma o primum non nocere (‘não prejudicar’) da tradição hipocrática . O princípio de justiça, enfim, consiste em não fazer discriminações e em não beneficiar unicamente os mais favorecidos: ele visa a regular a alocação de recursos e meios limitados … da política de saúde” (Marzano 2008, p. 21).
u 1.4. O surgimento dos códigos de ética
Assim como o empirismo deu origem à ética aplicada, esta, por sua vez, deu origem aos códigos de ética. O objetivo fundamental desses códigos é regular as relações entre os membros de um determinado grupo social. Um código de ética pode ser definido como “um acordo explícito entre os membros de um grupo social: uma categoria profissional, um partido político, uma Visão filosófica da ética
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associação civil etc. Seu objetivo é explicitar como aquele grupo social, que o constitui, pensa e define sua própria identidade política e social; e como aquele grupo social se compromete a realizar seus objetivos particulares de um modo compatível com os princípios universais de ética” (Casali [s.d.], p. 15). Todo código de ética articula-se em torno de dois eixos: os direitos e os deveres. É claro que para ser mais eficaz um código de ética deveria envolver em sua elaboração todos os membros do grupo social que deverão segui-lo. “Isso exige um sistema ou processo de elaboração ‘de baixo para cima’, do diverso ao unitário, construindo-se consensos progressivos, de tal modo que o resultado final seja reconhecido como representativo de todas as disposições morais e éticas do grupo” (Casali [s.d.], p. 15). Assim, o próprio processo de produção de um código de ética torna-se um exercício de ética. E se não for elaborado dessa maneira já será falta de ética. Além de exercício ético, a elaboração participativa do código de ética é um exercício de democracia. E quanto mais participativa e democrática for a elaboração do código de ética maiores serão as chances de cada membro do grupo identificar-se com ele. Consequentemente, maiores serão as chances de sua eficácia. É importante ressaltar, no entanto, que, de acordo com Basil Bernstein, há dois tipos de código: “o código elaborado e o código restrito. No código elaborado os significados … são relativamente independentes do contexto. Ao contrário, no código restrito, o ‘texto’ produzido na interação social é fortemente dependente do contexto” (apud Silva 2000, p. 27). Mas o que Bernstein pretende ao fazer tal distinção? Ele quer, no caso da escola, chamar a atenção para a discrepância entre o código elaborado, suposto pela escola e o código restrito de alunos e professores. Tal discrepância às vezes pode estar na origem do fracasso escolar. Para evitar que isso ocorra, é importante que o código elaborado esteja sempre aberto ao código restrito. Mesmo porque, seja na escola ou em outras instituições, o código elaborado é um instrumento um tanto frágil para controlar o comportamento dos indivíduos. Esse controle só será possível, também só será realmente ético, se respeitar a convicção íntima dos indivíduos. Se isso é fundamental em qualquer instituição, é mais ainda na escola, sobretudo na sala de aula, local onde se realiza a educação.
Para saber mais
Para além dos códigos de ética “A ética não nos interessa porque nos entrega um código ou um conjunto de leis que basta aprender e cumprir para sermos bons e ficarmos descansados com nós mesmos … Pois a ética não consiste em aprender dez nem quinze mandamentos, nem um dos códigos de boa conduta. A ética é a prática de refletir sobre o que vamos fazer e os motivos pelos quais vamos fazê-lo. E por que deveria eu raciocinar, viver deliberadamente, treinar-me na ética? … Há uma série de aspectos na vida em que não nos é permitido raciocinar nem dar nossa opinião: não depende de nós ter coração, fazer a digestão, respirar oxi-
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A ética na sala de aula
gênio… São atividades que me são impostas pela natureza, pelo código genético, pelo desenho da espécie. Tampouco posso escolher o ano em que nasci, nem que o mundo seja como é, nem o país natal, nem os pais que tenho. Os homens não são onipotentes, não lhes foi dado o poder de fazer e desfazer à vontade. Porém, se nos comparamos com os animais, percebemos que dispomos de um campo de escolha bastante amplo. … Por isso nos equivocamos e nos enganamos, e cometemos atrocidades, porém também, graças a isso, podemos transformar nossa vida, inventar seus conteúdos. E refletir sobre esta natureza e buscar os motivos adequados e as melhores explicações pelas quais fazemos uma coisa em lugar de outra é parte da tarefa da ética. … A liberdade de escolha e a vulnerabilidade de nossa condição são as bases da ética e nos impõem … obrigações. A reflexão ética pretende ajudar-nos a entender como podemos ajudar-nos uns aos outros a conviver melhor, a desfrutar a melhor vida possível. E ainda que não exista um código podemos recorrer a … ideias úteis e consolidadas, utilizadas como instrumentos que nos ajudam a pensar que tipo de vida preferimos. E como os problemas se renovam quase diariamente devemos refletir constantemente, a vida raciocinada nunca termina, e dura o que dura a existência” (Savater 2012, p. 16-22)
A ética sem um código “Meu sábio amigo Leszek Kolakowski escreveu certa vez um ensaio … intitulado A ética sem código? … A alternativa ao código de ética — fechado, preciso e acima de tudo restritivo (talvez até autoritário) — é uma vida de vacilação. A busca inquieta e incansável das formas do mal dificilmente poderia seguir uma linha reta, pois os passos que esperamos sejam bons trazem em geral novos males; e quando examinados mais de perto não parecem tão bons quanto se esperava. Acho que o itinerário humano (individual ou coletivo, biológico ou histórico) parece mais um pêndulo que uma régua. Para seres lançados numa situação moral, a consistência sustentada pela régua não é necessariamente uma virtude. Para os seres humanos que comeram da árvore do bem e do mal (uma refeição que oferece considerável conhecimento do mal, mas uma ideia bastante nebulosa do bem), ela é, me parece, uma impossibilidade” (Bauman 2011, p. 57).
u 1.5. Ética e moral
Para alguns, a ética se confunde com a moral. Para outros, porém, trata-se de duas coisas diferentes. A ética, para estes, seria a parte da filosofia que estuda a moral. E a moral, por sua vez, seria um conjunto de regras de conduta ou hábitos julgados válidos para qualquer tempo ou lugar. A diferença, portanto, seria a filosofia ou a reflexão, presente na ética e não necessariamente na moral. Mas o que deve ficar claro é que ética e moral caminham lado a lado. A moral de uma pessoa vai se constituindo no decorrer da sua história, por meio da convivência e dos ensinamentos dos pais e também de outras pessoas do ambiente em que ela vive. Essa convivência e esses ensinamentos, no entanto, nem Visão filosófica da ética
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sempre são fatores de boa formação para essa pessoa. Às vezes podem ser fonte de maneiras distorcidas de ver a realidade e de maus costumes. A ética, então, com base em conhecimentos filosóficos e científicos, poderá questionar certas visões da realidade e certos costumes. É claro que tanto a ética como a moral envolvem a filosofia, a história, a psicologia, a sociologia, a religião, a política, o direito, enfim, todo o conjunto de conhecimentos disponíveis ao ser humano. O que, então, diferencia a ética da moral? Para alguns, nada! Para o filósofo português Desidério Murcho, por exemplo, “a pretensa distinção entre a ética e a moral é intrinsecamente confusa e não tem qualquer utilidade, razão pela qual não é utilizada pelos melhores especialistas atuais em ética” (Motta 2010, p. 232). O escritor Carlos Heitor Cony pensa da mesma forma, por isso escreveu: “Implico com a palavra ‘ética’. Ela tende a substituir a desmoralizada palavra ‘moral’, daí a sua desmoralização. O moralista é antes de tudo um chato, um hipócrita etc. etc. A ética seria a moral compartimentada num determinado ofício ou função: a ética do médico, do sacerdote, do jornalista, do parlamentar. Por que não a moral pura e simples, que é abrangente e transcende o ofício e a função?” (Cony 2003, p. A 2). Respondendo ao nosso escritor Carlos Cony, pode-se dizer que não há “moral pura e simples” porque a ética não é, segundo ele sugere, a moral compartimentada num determinado ofício ou função. A ética tem um objetivo bem mais amplo do que elaborar códigos de ética para as diferentes categorias profissionais. O objetivo primordial da ética é refletir sobre as experiências morais do ser humano. Nada impede, no entanto, que os termos ética e moral sejam utilizados como sinônimos. Mesmo porque, do ponto de vista etimológico, ética (do grego éthos) e moral (do latim mos, moris) querem dizer pura e simplesmente “costumes”. O que importa mesmo é uma consciência moral que, por isso, tende a avaliar as ações como boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas etc.
Para saber mais
Consciência moral “Quando a criança começa a pensar no seu futuro nós lhe dizemos: ‘Se quiser vencer na vida, então estude!’. ‘Se quiser ficar rica, aprenda a economizar!’ Ou então: ‘Aprenda a trabalhar se não quiser morrer de fome!’. Os braços, cotovelos, a inteligência, a rasteira bem aplicada formam o arsenal dos instrumentos mais aptos a levar alguém a ‘vencer’ na vida. Não há lugar para a consciência. Quem já viu alguma vez um homem que ficou rico por obra da sua consciência? Para quem realizar-se, vencer na vida, ser feliz e ser rico é a mesma coisa, a consciência não faz falta. Apostamos muito pouco em nossa capacidade moral. Pouco ou nada investimos nesta área. Procedemos como se a felicidade não fosse acima de tudo uma questão moral, isto é, uma questão de consciência. Dedicamos na escola um tempo imenso ao cultivo da inteligência, à aquisição de habilidades técnicas. No mais, cada qual confia na sorte e na esperteza. Como a atividade profissional exige muito pouco da consciência, pouca gente sabe alguma coisa a respeito do seu papel e da sua fun-
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A ética na sala de aula
ção. Se não a usam quase nunca, como é que vão saber para que serve? Sentimo-la como presença incômoda, quando exageramos no uso da liberdade, quando levamos a alegria a extremos incompatíveis com a ‘seriedade’ da vida. Sem a sua interferência seríamos bem mais espontâneos e curtiríamos a vida, em especial o sexo, de maneira muito mais intensa e descontraída. Resta apenas dizer que a consciência é um trambolho, que só serve para atrapalhar e incomodar. O que a sociedade e de modo especial as instituições sociais esperam da nossa consciência? Fazem de tudo para que a coloquemos a serviço dos sistemas, da ordem estabelecida e dos interesses legitimados pelo direito. Querem que a sintonizemos com a voz dos representantes da lei e de Deus. A sociedade não quer que a usemos contra ela, questionando a validade de seus sistemas, dogmas e modelos. Quer que usemos o menos possível o seu potencial crítico. Para ela, o ideal seria que todos e cada um renunciassem ao emprego de sua consciência, substituindo-a pela obediência cega e absoluta. Aí, sim, a ‘máquina’ social poderia funcionar a todo vapor, sem atritos nem problemas“ (Bach 1985, p. 97-98).
u 1.6. Ética e éthos
“Ética” deriva da palavra grega éthos, que significa, originalmente, morada, habitação. O sentido de morar ou habitar está, certamente, entranhado no éthos humano, que reporta à ideia de “morada interior”. O éthos humano é o “lugar” humano da “segurança” existencial. Em outras palavras, é o lugar habitual de comportamento de cada pessoa, ou seja, o seu hábito ou costume. Assim, éthos implica a ideia de estabilidade, consistência, persistência, fidelidade a si mesmo e “identidade”. Isso faz que cada indivíduo ou grupo social interprete e interiorize as regras morais (éthos) e o seu conteúdo geral (ética). Assim, a ética seria o conjunto das regras que estabelecem o que é bom, mau, justo ou injusto. E o éthos, por sua vez, seria “a construção subjetiva da ordem legítima do mundo que organiza a convicção íntima de cada um sobre aquilo que deve ou não deve ser feito” (Gresle et al. 1990, p. 109). Segundo Bateson, “o éthos é o caráter habitual possuído em comum pelos membros de uma sociedade determinada e definida por um conjunto hierarquizado de valores, expressão de um sistema culturalmente normalizado de organização dos instintos e das emoções dos indivíduos. É o éthos que dá a cada cultura seu caráter próprio. Introduzida pelos culturalistas, essa palavra é seguidamente utilizada como sinônimo de personalidade de base” (apud Gresle et al. 1990, p. 109). Bourdieu e Passeron utilizaram, em 1970, a expressão ethos pedagógico num sentido mais geral de interpretação normativa do mundo e de sua ordem. Eles, então, reservaram “à palavra hábito a possibilidade de analisar as relações entre o universo das regras morais e aquele dos comportamentos” (apud Gresle et al. 1990, p. 109). O éthos, portanto, se distingue da ética ou da moral por tratar de disposições de caráter essencialmente práticas, isto é, de disposições nem sistemáticas nem intenVisão filosófica da ética
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cionais. Assim, pode-se dizer que através do éthos o problema ético situa-se no mais íntimo da natureza humana. É aquilo que, de acordo com uma filosofia cristã, por exemplo, se denomina consciência.
Para saber mais
Papel da consciência “Rosseau define a consciência como conhecimento mais inclinação. Com isto ele afirma que a consciência não pode ser identificada com a inteligência ou a razão. Não nega, pelo contrário, afirma que a consciência é inteligência e razão. Só insiste em ver nela mais que só isto. Papel da inteligência e da razão é fornecer a seu usuário informações objetivamente válidas. Papel da consciência é transformar informação em conhecimento. Um computador abarrotado de informações ainda não é inteligente só por esta razão. Seu modo de dispor desta informação não é racional, em si, já que não é ele que, em última análise, dispõe do emprego desta informação. Para agir de forma inteligente ou racional não é preciso dispor do emprego e do uso da informação. Para proceder de modo moral é, no entanto, indispensável dispor deste uso. A consciência é, pois, mais do que simples depósito de conhecimento. É reflexão, mas é também generosidade. Razão, mas é também sentimento e paixão. Produz o conhecimento e ao mesmo tempo o amor do bem. Sua função não se resume a construir unidades significativas. É papel da consciência elaborar, agrupar, organizar, coordenar e comunicar informações. A inteligência penetra no mundo das relações. A consciência revela e ao mesmo tempo cria significados. A luz da consciência nos torna capazes de distinguir o essencial do acidental. Cria, por assim dizer, o horizonte ético, a perspectiva histórica. A consciência nos proporciona um conhecimento seletivo, onde o critério de avaliação e a medida de base é o homem. O homem histórico. Não o Homo faber, o Animal rationale, nem o Homo sapiens. O ‘homem’ que constitui o critério de avaliação da consciência é um homem por nascer. Como pode ser critério de avaliação ético-histórica o que ainda não é? Porque o ‘melhor’ e o essencial no homem ainda não nasceu é que ele precisa da consciência. Como é que vai ver o que pode ser e ainda não é sem dispor de uma faculdade que o transporte até as profundezas do seu ser? A consciência revela ao homem não tanto o que ele não é quanto aquilo que ainda não é. É, por isso, mais órgão e matriz de aspirações e desejos que de conhecimentos. Gera mais angústia do que certezas, mais interrogações do que respostas. Tudo isto faz da consciência uma faculdade incômoda e sui generis” (Bach 1985, p. 99-100).
u 1.7. Ética e felicidade
De acordo com os filósofos gregos, o fim último da ética é a eudaimonia, isto é, a felicidade. Platão (427-347), por exemplo, relacionava a felicidade com a virtude. “Os felizes são felizes pela posse da virtude e da temperança, e os infelizes pela posse da maldade” (Górgias 508 b, apud Abbagnano 1982, p. 412). Assim, para Platão, a felicidade está relacionada sobretudo com a observância dos deveres. 20
A ética na sala de aula