Eu vim para servir – Comunidade, Igreja e sociedade

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Eu vim para servir C o m u n i d a d e , e S o c i e d a d e

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Leia também A foice da lua no campo das estrelas – Ministrar exéquias, 2ª ed. A sacralidade das águas corporais Agora e na hora – Ritos de passagem à eternidade, 2ª ed. Água, sopro e luz – Alquimia do Batismo, 2ª ed. Animais interiores – Nadadores e rastejantes Animais interiores – Os voadores Corpo – Território do sagrado, 7ª ed. Ecologia, 2ª ed. Maravilhas a caminho – Acolher um deficiente, viver nossas deficiências O descobrimento da biodiversidade – A ecologia de índios, jesuítas e leigos no século XVI Sábios fariseus – Reparar uma injustiça


Evaristo Eduardo de Miranda

Eu vim para servir C o m u n i d a d e , e S o c i e d a d e

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Miranda, Evaristo Eduardo de Eu vim para servir : comunidade, Igreja e sociedade / Evaristo Eduardo de Miranda. -- São Paulo : Edições Loyola, 2014. ISBN 978-85-15-04163-3 1. Comunidade  2. Crises - Aspectos sociais  3. Igreja e o mundo 4. Mudança social - Aspectos religiosos  I. Título. 14-07289

CDD-261.1 Índices para catálogo sistemático:

1. Comunidade, Igreja e sociedade : Teologia social   261.1

Capa: Walter Nabas Mestre de Housebook, 1480, lava-pés, óleo e têmpera sobre madeira. Os direitos autorais da compilação são do Zenodot Verlagsgesellschaft mbH (http://www.zeno.org/) Diagramação: So Wai Tam Revisão: Maria de Fátima Cavallaro

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ISBN 978-85-15-04163-3 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2014


A pessoa humana, em si mesma e na sua vocação, transcende o horizonte do universo criado, da sociedade e da história: o seu fim último é o próprio Deus. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 47.

Semen est verbum Dei. (Lc 8,11)



Sumário

I QUE PAÍS É ESTE?  9 Época de mudanças ou mudança de época?  10 Transformações contraditórias  17 Muitos desafios sociais e eclesiais  21 Conciliar ou reconciliar?  24

II As sete IGREJAS  31

1 A Igreja é o Corpo Místico de Jesus Cristo  33 2 A Igreja é o Povo de Deus  35 3 A Igreja é um povo convocado  38 4 A Igreja é Transcendental  40 5 A Igreja é relação  43 6 A Igreja é Esposa de Cristo  45 7 A Igreja é uma instituição  47

III os 14 PROCESSOS CAPITAIS  55 1 Violência e criminalidade  56 2 Vandalismo  58 3 Consumismo  60 4 Hedonismo  61 5 Indiferentismo  62 6 Individualismo  64 7 Subjetivismo  66 8 Relativismo  67 9 Materialismo  69 10 Catastrofismo  71 11 Pluralismo  73 12 Laicismo  76 13 Assistencialismo  77 14 Intervencionismo  80


IV VIVER PARA SERVIR  83 Sociedade e comunidades  85 Pessoa humana e sociedade  87 Família e sociedade  91 Doutrina Social da Igreja  94 Globalização de Babel e de Pentecostes  95 Princípio do bem comum  98 Princípio da subsidiariedade  101 Princípio da fraternidade  104

V QUE PAÍS QUEREMOS?  107 Referências bibliográficas complementares  113


I Que país é este?


Época de mudanças ou mudança de época?

Neste início do século XXI, legiões urbanas e rurais, crentes e descrentes, de Norte a Sul do Brasil, se perguntam sobre o que ocorre com o país. A sociedade brasileira não vive uma época de mudanças, como a que marcou as décadas de 1960 e 1970 e o final do século passado. A sociedade vive, sim, uma mudança de época. Dramática. Como ela está sendo vivida? Quais as características marcantes dessa mudança na sociedade brasileira? O quanto a atual sociedade aproximou-se dos valores propostos na promulgação da Constituição Federal em 1988? Como está hoje a relação entre a Igreja e a sociedade? Sobre essa questão, pelo menos para a Igreja1, um primeiro indicador está na religião praticada pelos brasileiros. A cada ano, uma parte significativa da sociedade brasileira abandona a Igreja, mesmo se permanece cristã. Em síntese, assim anda a relação da Igreja com a sociedade no Brasil: no último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o catolicismo teve uma redução da ordem de 1,7 milhão de fiéis (12,2%) em dez anos. Pela primeira vez, o número de católicos caiu em termos absolutos. Se a tendência for mantida, em 25 anos católicos e evangélicos terão números iguais na população. Essa realidade de igualdade e até de inferioridade numérica já é vivida pela Igreja em muitas cidades e nas periferias urbanas. Essa retração relativa do catolicismo já ocorria na metade do século XX, mas acelerou-se após o Concílio Ecumênico Vaticano II, apesar do aggiornamento eclesial. No que pese a abertura, a busca de diálogo e a colaboração com a sociedade por parte da Igreja brasileira, essa retração dos católicos prosseguiu, mesmo após marcantes assembleias e documentos eclesiais do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e dos planos pastorais decorrentes nos últimos 30 anos. Esse fenômeno ocorreu em toda a América Latina, mas em nenhum país com a in-

1. No texto, a palavra Igreja, com maiúscula, refere-se sempre à Igreja Católica Apostólica Romana.

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tensidade observada no Brasil. Em 1970, 91,8% dos brasileiros eram católicos. Em 2010, eles eram 64,6%. Os evangélicos passaram de 5,2% da população para 22,2%2. A proporção de católicos é maior entre as pessoas com idade superior a 40 anos. Os evangélicos têm a maior proporção entre crianças e adolescentes, o que indica a forte renovação da religião no Brasil e o envelhecimento da população católica. Eventos públicos e “marchas” evangélicas reúnem centenas de milhares de pessoas, enquanto manifestações e procissões católicas em datas religiosas, como Corpus Christi ou Páscoa, alguns milhares, mesmo em grandes centros urbanos. Entre as igrejas evangélicas, a Assembleia de Deus, atualmente, é a maior, com 12 milhões de fiéis, mesmo com várias correntes sob essa denominação. A preservação da família e uma vivência muito pessoal da fé estão entre os motivos que explicariam o maior crescimento da Assembleia de Deus no país. Em comparação com a igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, que perdeu 228 mil fiéis nos últimos 10 anos e tem 1,8 milhão de arrebanhados, a Assembleia de Deus prega valores morais mais rígidos, especialmente os ligados à unidade da família. Ela não tem uma pregação tão voltada à prosperidade e bens materiais como outras correntes neopentecostais, mas orienta seus fiéis de baixa e média renda contra a desestruturação das famílias tradicionais3. Na contramão da pluralidade de modelos familiares vivida por parte da sociedade brasileira, a audiência da Assembleia de Deus cresce na força do seu próprio tecido: pastores com suas esposas atuam onde vivem, celebram quase todas as noites ali mesmo, sempre apoiados por obreiros e servos de Deus, numa grande capilaridade de templos e casas de oração. Enquanto isso, padres celibatários e solitários vivem uma vida itinerante, indo sem cessar de comunidade em comunidade, e até de paróquia em paróquia, para celebrar e dar os sacramentos. Pouco tempo lhes resta para atender os fiéis, as suas famílias e para tratar com proximidade dos problemas e desafios das diversas comunidades. Pouco tempo também para cuidar de sua vida pessoal e de sua vivência espiritual, em que pese sua fidelidade à vocação. Com

2. Cecília Ritto. População católica encolhe no Brasil. Evangélicos avançam. In: <http://veja.abril. com.br/noticia/brasil/ibge-populacao-catolica-encolhe-no-brasil>. 3. ReinaldoAzevedo. O IBGE e a religião. In em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-ibgee-a-religiao-%E2%80%93-cristaos-sao-868-do-brasil-catolicos-caem-para-646-evangelicos-jasao-222/>.

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muita ação e pouca contemplação, os padres e os religiosos vivem situaçõeslimite, mergulhados no mundo atual que não é mais uma cristandade e que, pelo contrário e no geral, está contra ela. O povo insatisfeito deseja que o padre seja mais um pastor, um verdadeiro pai, próximo de suas ovelhas. A carga de exigências e demandas que pesa sobre o clero no Brasil é enorme. As vocações diminuíram e as reduções ao estado leigo continuam. Além dessa forte atuação local, os evangélicos profissionalizam ao máximo a gestão e a administração de suas igrejas, como um verdadeiro negócio. Eles atuam em grande parte dos meios de comunicação, desde rádios comunitárias locais até grandes redes nacionais de mídia. Nas cidades, muitas rádios tradicionais são hoje dirigidas por pastores evangélicos. Eles se comunicam permanentemente com a população, além de uma presença maciça na televisão, em canais próprios e em espaços adquiridos na programação de grandes redes. Esses programas de rádio dirigem-se a enfermos, trabalhadores noturnos, motoristas, donas de casas, domésticas, autônomos etc. Os pastores interagem com seu público através de telefonemas e mesmo pela internet. Não há nada de comparável na Igreja, salvo no âmbito dos movimentos carismáticos, praticamente os únicos ainda capazes de mobilizar um número ainda significativo de jovens e de manter alguma presença qualificada na mídia. A Igreja incentiva as pessoas e as comunidades a exercerem seu protagonismo no contexto social em que vivem, mas não consegue mobilizá-las em seu protagonismo de evangelizadores. “Na evangelização e na pastoral persistem linguagens pouco significativas para a cultura atual, especialmente para os jovens. Buscar novos meios de comunicação, especialmente as redes sociais para cativar os jovens, é uma tarefa que depende muito da presença da juventude nas comunidades”4. Contudo, o desafio é bem maior do que uma questão de meios, linguagem ou idade no relacionamento Igreja — Sociedade. Como a proporção de cristãos mantém-se a mesma na sociedade (86,8%), há uma clara migração social de católicos para as correntes evangélicas. A Igreja no Brasil fez uma opção preferencial pelos pobres e eles pelas igrejas evangélicas. Se a Igreja presta serviços à sociedade, aos mais necessitados, isso não se traduz na adesão ou na fidelidade dos beneficiários à fé católica. E tais serviços

4. Estudos da CNBB 104. Comunidade de comunidades: uma nova paróquia. (203). In: <http:// cnbb.org.br/publicacoes-2/documentos-para-downloads-2/cat_view/470-comunidades-decomunidade/471-texto-base>.

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são desconhecidos até da própria Igreja. As dioceses têm pouco controle ou acompanhamento dos multiformes serviços eclesiais existentes para atender drogados, idosos, órfãos, enfermos, crianças abandonadas, aidéticos, jovens em situação de risco, além das estruturas educacionais e de ensino, profissionalizantes, médicas e hospitalares ligadas à Igreja. As múltiplas iniciativas concretas em prol da paz, a serviço da vida e do bem comum são pouco articuladas e até divergentes. Qual a responsabilidade dos católicos e de seus dirigentes frente a esse processo de “perda de fiéis”? Esse aspecto reveste-se de uma forte dimensão quaresmal. A responsabilidade da Igreja é enorme, em todos os níveis. A indiferença a esse fenômeno segue presente entre muitos fiéis e seus pastores. Os católicos encontram essa mudança religiosa no seu cotidiano e acostumaram-se à pluralidade religiosa resultante em seu ambiente de trabalho, na comunidade e nas famílias. Mesmo quando ela se traduz por atitudes agressivas e ofensivas em relação à Igreja. Onde está o irmão que deixou a Igreja? O que essa mudança trouxe para sua vida? Onde está o teu irmão (Gn 4,9)? O que ele encontrou de crescimento e realização pessoal ou familiar nessa mudança de igreja? Ninguém responde. Poucos sabem. Grande parte da Igreja parece pouco interessada em aprofundar, à luz do Evangelho, esse divórcio entre ela e a sociedade. Alguns de seus dirigentes insistem em temas como os do diálogo e da colaboração, “propostos pelo Concílio Vaticano II, como serviço ao povo brasileiro, para edificação do Reino de Deus”. Já se passaram 50 anos, meio século, desde o Concílio Ecumênico Vaticano II. Logo após o Concílio, o papa Paulo VI disse: “Após o Concílio e graças ao Concílio […] encontrar-se-á a Igreja mais apta para anunciar o Evangelho e para o inserir no coração dos homens, com convicção, liberdade de espírito e eficácia? Sim ou não?”5. No caso do Brasil, a resposta parece negativa. O processo atual evoca mais a famosa autodemolição eclesial, expressão também usada pelo papa Paulo VI. Mas analisar criticamente esse processo parece um tabu. A Igreja precisava de aggiornamento ou de uma verdadeira mutação? Muitos bispos, a cada noite, constatam e se preocupam com o fato de que há menos ovelhas em seu aprisco. Essa hemorragia de fiéis é cotidiana. Mesmo assim, não há uma mobilização institucional visível em face da retração social

5. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. (4). In: <http://www.vatican.va/holy_father/paul_vi/ apost_exhortations/documents/hf_p-vi_exh_19751208_evangelii-nuntiandi_po.html?>.

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da Igreja. Não se observa um engajamento claro da maioria dos responsáveis eclesiais na busca de resultados efetivos para estancar tal situação e seus processos. E o rebanho segue diminuindo. A sociedade brasileira mudou, está mudando e seguirá num processo de transformações. As justificativas repetidas sobre o êxodo rural, a urbanização, as desigualdades, a alienação etc. para explicar o abandono da Igreja soam vazias e até cansam. Essa maneira de julgar os acontecimentos, presente em vários documentos e posicionamentos eclesiais não exige muita investigação, nem reflexões mais profundas sobre a própria Igreja. Ela é bem adequada à mentalidade moderna. Ela leva os problemas colocados ao catolicismo para o nível social, econômico e político. Ela se ajusta à opinião de homens que só conhecem a realidade da Igreja do lado de fora, externamente. E, por isso mesmo, essas ideias são facilmente compartilhadas entre os católicos. Essa maneira de ver as coisas não obriga a nenhuma revisão ou mudanças internas maiores nos processos e ordenamentos pós-conciliares. Se as transformações sociais ocorridas no Brasil afastam as pessoas da Igreja, elas as levam para outras igrejas e seitas, bem ali, onde vivem. O povo não se tornou ateu, nem deixou o cristianismo. O divórcio é com a Igreja Católica Apostólica Romana. Ao mesmo tempo, a audiência da hierarquia eclesial junto à sociedade brasileira parece ter diminuído de forma mais do que proporcional à queda do número de fiéis católicos. As reuniões ou assembleias nacionais do episcopado não mobilizam mais a mídia e muito menos a opinião pública. O mesmo ocorre com seus documentos e manifestações. Quem os lê? Que repercussão efetiva eles produzem nas pastorais e ações eclesiais no Brasil? Algum fiel sabe sobre o quê e como se manifestaram os bispos em sua última assembleia? Quem avalia o destino e os resultados das reiteradas manifestações do episcopado sobre temas sociais? A redução da capacidade de mobilização interna parece afetar até a própria Campanha da Fraternidade. E os católicos podem ficar indiferentes a esse processo? A que estará reduzida a Igreja daqui a 50 anos? Qual será o balanço após um século do Concílio Ecumênico Vaticano II? A pretensa intenção de certos teólogos e pastores de refundar a Igreja após o Concílio parece ter logrado sim a afundar a “barca de Pedro”. E, mesmo assim, eles ainda falam de refundação da Igreja. Em alicerces feitos de quê? Voluntarismo? Neopaganismo? Anomalias de toda ordem? Denúncias ditas proféticas? Preconceitos, manipulações e simplismos? No final do século XX, a Igreja participou ativamente da oposição à ditadura na década de setenta e do processo de redemocratização do Brasil nos 14 Eu vim para servir


anos 1980. Criou comissões para contribuírem com os constituintes e com o Congresso Nacional. O episcopado, através da CNBB publicou documentos com posicionamentos e orientações. Dentre eles, “Por uma Nova Ordem Constitucional” (1986), “Exigências Éticas da Ordem Democrática” (1989) e “Ética: pessoa e sociedade” (1993). Neste início de século, a Igreja continua privilegiando o que chama de “diálogo com a sociedade”, por meio de suas pastorais sociais, semanas sociais etc. Ela acredita em seu pioneirismo de ser, há décadas, o que o papa Francisco agora apontou na Exortação Evangelii Gaudium como “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada”. Ela acredita ter “saído”. A Igreja saiu pelas estradas rumo às “periferias geográficas e existenciais” do Brasil?6 Se saiu, ela chegou a algum lugar, central ou periférico? E se chegou, aonde chegou? E nesse locus, a Igreja encontrou alguém interessado em dialogar ou aberto a se converter ao seu chamado? A frieza dos dados estatísticos mostra um panorama muito adverso, que se agrava a cada ano. Nas periferias geográficas, o catolicismo é abandonado numa taxa superior à média do Brasil. E, nas periferias existenciais, as pessoas buscam beber em outras fontes, em Novas Eras, no consumismo, no materialismo, em ideologias e ativismos, distantes da Igreja e mesmo do cristianismo, mesmo quando bebem areia como se fosse água. Está nos planos pastorais do episcopado ampliar o número de católicos no Brasil? Por que centenas de milhares de católicos deixam a Igreja? Por que há o sentimento de que a vida ou o viver nesta sociedade aparentemente melhora quando a pessoa deixa a Igreja e segue outras correntes cristãs? O que leva essas pessoas a firmarem sua opção e a se mobilizarem em atitudes proselitistas inexistentes quando estavam no seio da Igreja? Por que outros católicos seguem fiéis à Igreja? O quanto são adequadas as ações da Igreja em face desse processo? A maioria dos processos de transformação social no Brasil é irreversível. “Esta mudança de época foi causada pelos enormes saltos qualitativos, quantitativos, velozes e acumulados que se verificam no progresso científico, nas inovações tecnológicas e nas suas rápidas aplicações em diversos âmbitos da natureza e da vida. Estamos na era do conhecimento e da informação, fonte

6. Exortação apostólica Evangelium Gaudium. (46 e 49). In: <http://w2.vatican.va/content/fran cesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evange lii-gaudium.html>.

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de novas formas de um poder muitas vezes anônimo”7. Sim. Isto posto, diante da crise e das transformações, muitos cristãos, mais politizados que espiritualizados, reiteram a tese da abertura e da adaptação das estruturas da Igreja à sociedade moderna. Ou seria necessário mudar o espírito com que se utilizam as estruturas eclesiais? Neste meio século de tempo pós-Concílio, tudo não foi exato ou adequado na Igreja do Brasil. Uma avaliação circunstanciada é necessária tanto quanto a superação de uma verdadeira idolatria cegante sobre o Concílio Vaticano II. As correções de rumo são possíveis e para isso é necessário humildade e conversão. É preciso acreditar no Espírito Santo, em sua ação paciente de purificação e de retificação dos homens fiéis. Fidelidade na Igreja nunca foi sinônimo de disciplina, nem de submissão. Surdas resistências e sonoras reações, mais frequentes e recentes no seio da Igreja, mostram pessoas convocadas por Deus à liberdade, à renovação, ao carisma, na verdade. Essa é a liberdade que cada um deve se esforçar para atingir. Ela é essencial para que se possa viver verdadeiramente “em espírito e verdade” de Deus. As transformações no relacionamento Igreja — Sociedade no Brasil suscitam interrogações e são fontes de contradições e controversas. O processo de abandono da Igreja e de envelhecimento do rebanho prossegue e tenderá a acelerar-se. O fermento de justiça e fraternidade, que tantos documentos episcopais reivindicaram como essencial na ação da Igreja na sociedade, não tem sido capaz de fazer crescer a massa do pão católico. Haverá para a Igreja tema mais relevante a ser debatido internamente sobre seu relacionamento com a sociedade do que o declínio dos que aderem à fé católica? Por que ocorre essa migração tão significativa dos fiéis católicos para outras denominações religiosas? Em que medida esse fenômeno é o resultado ou foi agravado pela forma como foi conduzida sua “abertura e diálogo” com o mundo moderno? Existem contextos ou pastorais onde essa sangria do redil tem sido estancada e até revertida? Grande parte dos católicos, ao invés de converter o mundo moderno como a Igreja e o Concílio Vaticano II os convidava, acabou convertida por ele. A maioria abandonou, não apenas a Igreja, mas a fé. Eles se interessaram muito mais pelas peripécias de seu combate pela justiça e pelas ideologias que propõem a mudança estrutural da sociedade. Essas mudanças idealizadas na

7. Exortação apostólica Evangelium Gaudium. (52). Ibidem.

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segunda metade do século XX parecem uma infantilidade (e às vezes um pesadelo) quando comparadas às transformações efetivas ocorridas no mundo e no Brasil nas últimas décadas. Transformações contraditórias

As transformações da sociedade brasileira têm sido e serão enormes nos próximos anos. A população brasileira ultrapassou os 200 milhões de habitantes, dos quais mais de 80 milhões estão na região Sudeste. A taxa de crescimento da população (natalidade) segue caindo, é inferior a 1%. Ela deve se tornar negativa em 2050. Quase 40 milhões de brasileiros vivem em regiões metropolitanas e 85% em áreas urbanas. O Brasil possui um grau de urbanização igual ao da França (85%) e maior do que os dos EUA (82%), da Rússia (73%), da China (47%) e da Índia (30%)8. O PIB do país é de US$ 2,5 trilhões e gera uma renda per capita superior a US$ 12.000. A economia brasileira é a maior da América Latina, do hemisfério Sul e é a oitava do mundo. Com o crescimento de 2,3% do PIB em 2013, o Brasil superou apenas a África do Sul, cujo PIB cresceu 1,9% e figura na 10ª posição, e o México, o 16º da lista, com crescimento de 1,1% entre as economias emergentes que compõem uma lista de 25 países9. Neste início de século, houve uma melhor articulação nas políticas públicas entre os objetivos econômicos e os sociais. Como consequência, 40 milhões de brasileiros mais pobres melhoraram de vida e ingressaram na chamada classe C. Ela agrega 55% da população total, com cerca de 100 milhões de integrantes. Uma série de políticas sociais, assistenciais e assistencialistas busca reduzir o contingente dos miseráveis e trouxe um avanço em índices de saúde e educação. O Brasil, por exemplo, atingiu a meta assumida no compromisso “Objetivos de Desenvolvimento do Milênio” de reduzir em dois terços os indicadores de mortalidade de crianças de até cinco anos. O índice de 53,7 mortes por mil nascidos vivos em 1990 passou para 17,7 em 201110.

8. População brasileira ultrapassa marca de 200 milhões, diz IBGE. In: <http://g1.globo.com/brasil/ noticia/2013/08/populacao-do-brasil-atingira-maximo-de-2284-milhoes-em-2042-diz-ibge.html>. 9. Ronaldo D’Ercole. Brasil tem 7ª maior economia, mas alta do PIB perde para emergentes. In: <http://oglobo.globo.com/economia/brasil-tem-7-maior-economia-mas-alta-do-pib-perde-paraemergentes-11743675#ixzz33bWojQpB>. 10. Lígia Formenti. Brasil atinge meta da ONU e reduz mortalidade infantil. In: <http://www.esta dao.com.br/noticias/geral,brasil-atinge-meta-da-onu-e-reduz-mortalidade-infantil,1170645>.

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Ao mesmo tempo, entre 2000 e 2013, o país registrou mais de sete milhões de casos de dengue. O início de 2014 teve recorde histórico de casos dessa doença, num país que ganhara o selo internacional de erradicação da dengue em 1958. Apesar de avanços, mais de 50% dos domicílios no Brasil não têm coleta de esgoto, e menos de 40% recebe algum tratamento. Para suprir o déficit de saneamento básico seriam necessários investimentos da ordem de RS$ 12 bilhões por ano, durante 20 anos consecutivos11. O Brasil tornou-se um enorme produtor de lixo como resultado da urbanização, das mudanças nos hábitos de consumo e da proliferação de todo tipo de embalagens. A falta de um destino adequado para o lixo urbano é uma fonte de diversos problemas sanitários e ambientais. O volume de lixo produzido no país cresceu de 213 mil toneladas por dia em 2007 para 273 mil toneladas em 201312. O lixo difuso arremessado nas ruas das janelas de coletivos e carros, em terrenos baldios, córregos, rios, ruas, estradas e passeios públicos agrava os problemas ambientais e sanitários. O setor econômico que mais cresce é o agropecuário. A produção de grãos aproxima-se de 200 milhões de toneladas/ano, o bastante para alimentar quatro vezes a população brasileira. Aliada à produção de tubérculos, frutas tropicais e temperadas, hortaliças, legumes, açúcar, palmito, castanhas, nozes, óleos, carnes, leite, peixes, ovos etc., a agropecuária do Brasil alimenta hoje mais de um bilhão de pessoas. Graças ao uso de tecnologias, um dos reflexos mais significativos dessa evolução na produtividade agrícola refletiu-se no preço da cesta básica, que caiu pela metade em 25 anos. A conjugação da queda no preço dos alimentos com o aumento do poder aquisitivo da classe C trouxe uma grande expansão do consumo de produtos agrícolas industrializados (iogurtes, queijos, embutidos, conservas, comidas congeladas, sucos, carnes processadas etc.) ou in natura. O crescimento da agricultura caminha com o desenvolvimento das indústrias de insumos agrícolas e das que beneficiam a produção agropecuária: agroalimentar, têxtil, vestuário, calçados, farmacêutico e de energia renovável (lenha, carvão, etanol, biodiesel, biogás e bioeletricidade). Além de abastecer amplamente o mercado

11. Sylvia Miguel. Censo 2011 revela as deficiências do Brasil em saneamento básico e a necessidade de mais investimentos. In: <http://www.ecodebate.com.br/2011/05/17/censo-2011-revelaas-deficiencias-do-brasil-em-saneamento-basico-e-a-necessidade-de-mais-investimentos/>. 12. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/meio-ambiente/444229producao-de-lixo-no-brasil-aumentou-em-60-mil-toneladas-desde-2007.html>.

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interno (o país deixou de importar alimentos), a agropecuária também garante o saldo positivo da balança comercial brasileira, graças às suas competitivas exportações na ordem de 100 bilhões de dólares por ano13. Com políticas fiscais e monetárias menos restritivas, o crédito aumentou, sobretudo para as camadas de menor renda. Novas parcelas da sociedade têm acesso a diversos tipos e a novas modalidades de crédito: aposentados, beneficiários de programas sociais, cartões diferenciados do BNDES para pequenas empresas, programas de microcrédito etc. promovidos por diversas instituições bancárias, além do já oferecido tradicionalmente pelo comércio. Houve um aumento real do salário mínimo, queda do desemprego e redução dos índices de trabalho precário. Mais do que os programas de assistência social (Bolsa Família etc.), o mercado de trabalho — responsável por 3/4 das rendas das famílias brasileiras — foi quem exerceu um papel fundamental na redução da pobreza e da desigualdade social14. O aumento da renda média do brasileiro nos últimos anos levou à substituição dos alimentos naturais pelos industrializados e a novos hábitos alimentares. Esses fatores, aliados a maiores níveis de estresse e sedentarismo, estão por trás do crescimento dos índices de obesidade na população. As taxas de excesso de peso passaram de 42,7%, em 2006, para 48,1% em 2010, enquanto os índices de obesidade saltaram de 11,4% para 15%15. O perfil das causas da mortalidade também mudou no Brasil. Apesar e com todas essas transformações globalmente positivas (nunca os brasileiros comeram tanto, estudaram tanto e viveram tanto), nas pesquisas de opinião pública, a maior preocupação da população brasileira em relação à sociedade é a questão da violência e da criminalidade. Não é a saúde, nem a educação, a alimentação, a moradia ou o transporte. E não é sem razão. O Brasil apresenta uma taxa de 20,4 homicídios por 100 mil habitantes, a oitava pior marca entre 100 nações com estatísticas confiáveis sobre o tema. As mais

13. Evaristo E. de Miranda. A agricultura brasileira no século XXI. São Paulo, Metalivros, 2013. 14. Gilberto Costa. Especialistas divergem sobre ascensão da nova classe média. In: <http://me moria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-10-02/especialistas-divergem-sobre-ascensao-danova-classe-media>. 15. Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Números da Obesidade no Brasil. In: <http://www.endocrino.org.br/numeros-da-obesidade-no-brasil/>.

19 Que país é este?


altas taxas de homicídios estão em Alagoas (55,3), Espírito Santo (39,4), Pará (34,6), Bahia (34,4) e Paraíba (32,8)16. O Brasil vive uma expansão qualitativa e quantitativa de todas as modalidades de criminalidade. As mortes violentas, antes concentradas em grandes centros urbanos como Recife, São Paulo, Salvador, Vitória e Rio de Janeiro, se espalharam pelo país. São 50.000 mortes violentas por ano. Pouquíssimas são esclarecidas. Mais de meio milhão de brasileiros estão detidos no sistema carcerário. A maioria é jovem, do sexo masculino, com poucas chances de reintegração social. Existem centenas de milhares de mandados de prisão para serem executados. O país é hoje o maior consumidor mundial de drogas como o crack e o segundo de cocaína. O consumo devastador de drogas chegou a cidades do interior do Nordeste e da Amazônia. Multiplicam-se as cracolândias. Em meados de 2014, 350 mil pessoas usavam crack regularmente em São Paulo17. Nenhum país no mundo possui mais de um milhão de viciados em crack como ocorre no Brasil. O país responde sozinho por 20% do mercado mundial de drogas. Antigamente, o Brasil era uma rota de passagem para a cocaína da Colômbia, Bolívia e Peru para os EUA e a Europa. Hoje, ela para por aqui: 60% da droga produzida na Bolívia tem o Brasil como destino. O tráfico de entorpecentes está fortemente organizado, com dimensões sociais e culturais nunca vistas e com capilaridade nos mais diversos segmentos da sociedade brasileira. Novos fenômenos sociais degradantes emergem associados ao uso de drogas e ao consumismo desenfreado e contribuem para o crescimento mais agudo da violência, ampliando o espectro das vítimas e da criminalidade. São os atos de vandalismos generalizados, os sequestros relâmpagos, os crimes por motivo fútil ou ligado ao consumo de drogas, a destruição de patrimônio público e privado, as quadrilhas especializadas (roubo de cargas, ataques a carros-fortes, invasão de condomínios, explosão de caixas eletrônicos etc.) e os ataques coletivos por meio de bondes e arrastões e outros atos, em parte suscitados por fortes organizações criminosas.

16. Jailton Carvalho. Mapa da violência 2013: Brasil mantém taxa de 20,4 homicídios por 100 mil habitantes. In: <http://oglobo.globo.com/brasil/mapa-da-violencia-2013-brasil-mantem-taxa-de204-homicidios-por-100-mil-habitantes-7755783#ixzz33bT26EFh>. 17. Ricardo Brandt. Crack. A invasão da droga nos rincões do sossego. In: <http://infograficos. estadao.com.br/especiais/crack/index.html>.

20 Eu vim para servir


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