No limiar da vida

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No limiar da vida Por uma Palavra que acenda o coração



No limiar da vida Por uma Palavra que acenda o coração

ERMES RONCHI Tradução: Roseli Dornelles dos Santos


Título original: Sulla soglia della vita — Per una Parola che acenda il cuore © Edizioni San Paolo s.r.l. – Cinisello Balsamo (MI), 2008 Piazza Soncino, 5 – 20092 Cinisello Balsamo (Milano) – Italia ISBN 978-88-215-6316-4

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Ronchi, Ermes No limiar da vida : por uma palavra que acenda o coração / Ermes Ronchi ; tradução Roseli Dornelles dos Santos. -- São Paulo : Edições Loyola, 2015. Título original: Sulla soglia della vita - Per una Parola che acenda il cuore. Bibliografia. ISBN 978-85-15-04220-3 1. Vida - Aspectos religiosos - Cristianismo 2. Vida - Ensino bíblico I. Título. 15-11936

CDD-241.6

Índices para catálogo sistemático: 1. Vida : Ensino bíblico : Cristianismo

Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Walter Nabas Foto de Dan Collier/© PhotoXpress Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Revisão: Maria de Fátima Cavallaro

Edições Loyola Jesuítas Rua 1822, 341 – Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275 editorial@loyola.com.br vendas@loyola.com.br www.loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-04220-3 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015

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Sumário I

O evangelho da vida — 9 “No Verbo estava a vida, e a vida era luz” — 10 Significado do termo “vida” na Bíblia — 12

II

A fonte da vida — 15 O sopro de Deus — 16 Raízes no céu — 16 Deus ama a vida — 17 Viver das fontes — 19

III

A viagem na vida — 21 A Palavra como sentido da vida — 22 Viver é escolher — 25 A Palavra faz amar a vida — 27 A Palavra salva o desejo — 31 Da multiplicidade dos desejos ao desejo único — 33 Polifonia da existência — 36 A Palavra é e dá vida — 37 A boca de Deus — 38 Plenitude de vida — 39 Viver é dar vida — 41 A vida antes da lei — 43 Verdade e amor — 45 Pessoa e verdade — 46 Viver é cuidar de brotos — 48 A Palavra abre estradas — 50


A Palavra como caminho — 51 Diante de situações-limite — 53 Uma Palavra que acenda o coração — 55

IV

A meta da vida — 57 Vida eterna — 58 Lembrar das suas palavras — 60 O evangelho do corpo — 61 Deus dos viventes — 61 Ressurreição e vida — 63

V

Longos dias para saborear o bem — 65 Salvar a beleza — 66 O alfabeto da vida — 67 Respirar Cristo — 68 Deus é o vento, eu sou a vela — 69 Despedida — 71


“Não está mesmo de modo nenhum preparado para a contemplação de Deus (que leva ao arrebatamento do êxtase) quem não é, como o profeta Daniel, homem de desejos. Agora os desejos se inflamam em nós de duas maneiras: com o grito da oração e com o esplendor da reflexão.” Boaventura de Bagnoregio, Itinerário da mente em Deus



I O evangelho da vida “O caminho da vida tu me ensinas.” Salmos 16,11

U

ma palavra flui sob todas as palavras do Livro, como uma corrente subterrânea, uma nervura das páginas. Essa palavra que eu percebo como central para escutar e acolher, para saborear e desfrutar a mensagem da Sagrada Escritura é “vida”. A partir do livro do Gênesis, quando Adão se torna um ser vivo (Gn 2,7), naquele jardim cujo centro é constituído justamente pela Árvore da Vida (Gn 2,9); desde que Eva foi tentada justamente com a proposta de mais vida: “Não, não morrerás, ao contrário, terás uma vida semelhante à vida de Deus” (cf. Gn 3,5). Prosseguindo com as narrações do Êxodo, quando, nos dias de aliança, o Senhor diz: “Tens diante de ti a vida e a morte, escolhe!” (Dt 30,19), passando pelos Salmos, cuja súplica mais repetida é “Faça que eu viva!”, até os profetas, como o profeta menor Jonas, que se enfurece com Deus porque ele não é como um ladrão que rouba, mata e destrói, mas é como um pastor de vida abundante para os 120 mil da cidade de Nínive, que não sabem distinguir a direita da esquerda. Para chegar a Jesus: “Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). Jesus, que tem a audácia de atribuir a si mesmo, como nome próprio, como sua identidade, a vida: “Eu sou a vida” (Jo 14,6). Jesus, que escolhe a vida como sua missão específica: “Eu vim para que os homens tenham a vida, e a te9


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nham em abundância” (Jo 10,10), e que faz disso a medida do amor: “Não há amor maior do que dar a vida” (Jo (15,13). Paulo se insere nessa corrente quando afirma, em um dos seus preciosos momentos de poesia, que Jesus “fez a vida brilhar” (2Tm 1,10). E João, o discípulo amado, por sua vez, apresenta a si mesmo como alguém que em Jesus “tocou” a vida: “Aquilo que as nossas mãos tocaram do Verbo da vida, isto nós transmitimos também a vós” (1Jo 1,1-3). Como João, percorremos novamente os caminhos através dos quais a palavra “vida” se dissemina na Escritura, os diversos regatos com os quais ela embebe de si cada página e, então, da página se estende até o leitor, criando a primeira, a mais intensa e premente ligação entre o Livro e a existência do homem. O que tens a ver comigo, ó Livro de Deus? A resposta é até mesmo de uma ambição excessiva e desconcertante: Eu faço viver! Vamos agora procurar entender de que modo a palavra de Deus produz vida, recolhendo dela apenas algumas nuances de cores e sabores da inesgotável paleta que é a Sagrada Escritura. “No Verbo estava a vida, e a vida era luz” Vida e luz são dois termos tão ligados entre si que na linguagem comum para “nascer” também se diz “vir à luz”, morrer é “fechar os olhos à luz”. O Salmo também aproxima os dois termos: “Pois a fonte da vida em ti se encontra: graças à tua luz, vemos a luz” (Sl 36,10). A vida é luz, luz que permite ver os rostos amados, fim dos medos, gênese das cores e das formas, beleza, sentido, estrada, horizonte. Tudo isso estava no Verbo. Precisamos de luz? Abramos os olhos para a vida, para cada pessoa vivente, lâmpada do Altíssimo; para cada amor, porque as suas chamas são chamas de Deus (Ct 8,6). Da vida e da Palavra vem a luz como “lâmpada que brilha em lugar escuro, até clarear o dia e levantar-se a estrela da manhã em vossos corações” (2Pd 1,19). “Deus é luz” (1Jo 1,5). Mas o evangelho diz: o homem também é luz (cf. Mt 5,14-16), luz guardada em um vaso de barro. Por isso, instintivamente procura a luz e ao encontrá-la inebria-se dela. 10


O evangelho da vida

Jesus fala por parábolas, revelando a vida como mestra. A parábola dá voz à vida e nos diz para olharmos a vida para falar de Deus, não para olharmos para algum conceito cansativo. Jesus olhava para o semeador, e naquele gesto desmedido dizia a si mesmo: aqui há algo de Deus. A vida não é vazio, não é ausência: há algo de Deus na vida. Se tivéssemos olhos, se tivéssemos coragem para olhar a vida, se tivéssemos a profundidade dos olhos de Jesus, acho que nós também faríamos parábolas sobre a vida, falaríamos sobre Deus com poesias e parábolas, como fazia Jesus. A vida como palavra de Deus traz o evangelium vitae, a boa-nova que é a nossa própria existência, imagem e semelhança de Deus. Afirmar que no Verbo está a vida e a vida é luz significa também que o brilho da Palavra não é o brilho de uma luz ofuscante, mas de uma luz “longa” e “branda”, que se revela pouco a pouco com o passar dos dias; significa aceitar também a obscuridade e os claros-escuros, medir-se com a infinita paciência de uma “luz que é uma penumbra tocada pela alegria” (María Zambrano). Uma luz que não foi ainda totalmente dada, mas que se revela progressivamente, não como um fato, mas como um transformar-se. Entretanto, como o maná do deserto, como o pão cotidiano, a luz suficiente para cada dia e para cada passo nos é concedida. A nossa vida é uma travessia na penumbra, mesmo tendo a sua fonte no Verbo: “nele estava a vida” (Jo 1,4), e no Verbo tendo o seu esplendor: “ele veio e fez brilhar a vida” (2Tm 1,10). Não apenas iluminou o seu rosto e as suas vestes no monte Tabor, não apenas ilumina o futuro, os desejos e a esperança de eternidade, mas a vida secreta de cada pessoa, aqui e agora. Reacendeu a chama das coisas, deu brilho aos encontros, deu beleza às vidas, sonhos novos a cada homem. “Fez brilhar a vida”: ensinou canções lindas ao nosso sangue, fragmentos de estrela correm pelas veias do mundo, deu luz, beleza e fascínio à vida. E esse é um fato que não foi revogado, um decreto irrevogável. E fazer a vida resplandecer, dar novo encanto à existência também é nossa vocação. A Escritura apresenta sempre novas razões para nos deixar admirados e para sermos surpreendidos em relação à ideia que 11


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fazíamos de Deus. A Escritura é o Deus inesperado. A leitura põe a fé à prova, assim como põe a vida à prova. A Bíblia e a vida nos saciam de surpresas. Deus muda de rosto: não é mais aquele que dá a lei, que transmite ordens e proibições, é o Deus da vida que transmite luz. Não é um déspota onipotente diante do qual queremos nos ajoelhar, mas é a fonte alegre da matéria e do futuro. Não veio para trazer uma lista de verdades, mas a paixão infinita pelo vivente. Não é mais o Deus externo ao qual se adequar, mas um Deus que entrelaça a sua respiração com a nossa. “Deus é amor” (1Jo 4,16). Mas não será a palavra “amor” que salvará a verdade de Deus. A palavra tem somente o peso que a vida lhe confere. Uma palavra é verdadeira quando aceita atravessar, com toda a Bíblia e com toda a vida, as surpresas e os aspectos do amor mais opostos entre si: “o amor é forte como a morte” (Ct 8,6). A exegese de Deus é a vida, com as suas contradições e as suas maravilhas, a vida é a revelação da Revelação. Quem passou ao menos uma hora consolando o pranto de alguém que sofria está mais perto do mistério de Deus do que aquele que consultou todos os livros e conhece o sentido de todas as palavras. Quem conhece a vida conhece Deus. A vida é um lugar teológico. Significado do termo “vida” na Bíblia Limitaremos as breves indicações a seguir aos dois termos gregos com os quais o conceito de “vida” na Bíblia é preferencialmente expresso: bíos e zoé. O substantivo bíos, que no mundo clássico designa a vida nas suas manifestações concretas, a duração da vida individual e os comportamentos particulares que a caracterizam, nos anos 1970 traduz em geral o plural hebraico de jo¯m, dia, a expressão semítica “os dias do homem”, com seus componentes de fadiga, brevidade, mas sublinhando também o seu resultado positivo, em particular para os justos. O Novo Testamento faz um uso limitado do termo bíos, privilegiando a sua acepção concreta de “recursos”, “riquezas” (valha para todos o episódio da viúva pobre narrado em Mc 12,44). 12


O evangelho da vida

Mais ampla e articulada é a presença de zoé e dos termos que pertencem à sua constelação semântica. Já o grego clássico zoé indica a própria condição de viver, em particular do homem, marcada pela psyché (alma) ou pelo pneûma (espírito), de modo que alma e vida (e consequentemente alma e corpo) estão estreitamente unidas: a vida natural se compõe de alma e corpo, aos quais se une um terceiro elemento, o noûs (intelecto), que, por assim dizer, entra na vida humana pelo exterior, como um elemento divino. Diferentemente do mundo grego, Israel concebe a “vida” como um todo unitário e a vê como algo natural e terreno, mas não se limita ao puro fenômeno biológico, porque os dias da vida são dados por YHWH, que é o dono da vida. Típico da fé israelita é, portanto, louvar YHWH criador e fonte da vida, do qual provém toda a vida humana nas suas várias manifestações. No uso que o Novo Testamento faz da palavra zoé e dos termos a ela ligados (em particular záo/zô, viver, com o particípio zôn, que é utilizado para definir o Ressuscitado) são registrados muitos elementos presentes tanto no mundo grego quanto no Antigo Testamento. Para os sinóticos, a vida é uma categoria temporal, mas é um evento que pode ter sucesso ou falir. Ela depende da palavra de Deus, e uma vida vivida longe de Deus é como a morte. Diante da vida presente está a vida futura, que se apresenta como a “vida verdadeira” (ver, em particular, a parábola do juízo universal: Mt 25,31-46). No epistolário paulino, à luz da ressurreição de Cristo, se ressalta, em particular, que a vida dos cristãos não é tanto a vida própria, mas a vida em Cristo. A vida, portanto, não é mais a finalidade de si mesma, mas é vivida para Deus e para Cristo, é uma vida nova, que se realiza no presente, mas também na espera da sua plena realização futura. O apóstolo João, que interpreta o Cristo como vida eterna em Deus e para o homem e como encarnação da verdadeira vida, evidencia fortemente a fé: quem crê no Filho tem a vida, já passou da morte à vida, e manifesta a nova dimensão vital no amor fraterno, critério da verdadeira vida. “No Verbo estava a vida” é a expressão que guiará o nosso caminho e que procuraremos preencher, pouco a pouco, não 13


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com conceitos, mas com indicações vitais. Na palavra de Deus, mais do que verdades completas, procuraremos fragmentos de vida que nos ajudem a viver melhor, a responder melhor à nossa vocação de seres humanos.

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