Para ler a carta aos romanos

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Para ler a carta aos Romanos



Chantal Reynier

Para ler a carta aos Romanos

Tradução Enio Paulo Giachini


Título original: Pour lire la lettre de Saint Paul aux Romains © Les Éditions Du Cerf, 2011 24, rue des Tanneries, 75013, Paris, France ISBN 978-2-204-09192-3

Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Viviane B. Jeronimo Imagem de © Malgorzata Kistryn/Fotolia Fundo de © elxeneize/Fotolia Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue Revisão: Vero Verbo Serviços Editoriais

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ISBN 978-85-15-04271-5 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2015


Sumário

9

Introdução capítulo 1.

Abertura

Romanos 1,1-17

parte I.

PARTE DOGMÁTICA

27

33

Romanos 1,18–11,36

Introdução a Romanos 1,18–4

35

capítulo 2.

A justificação pela fé em Cristo

37

Romanos 1,18–4

Questões

54

Introdução a Romanos 5–8: A vida nova no Cristo

55

capítulo 3.

O fundamento da vida nova no Cristo

57

Romanos 5

capítulo 4.

Resposta às objeções

Romanos 6–7

capítulo 5.

Uma vida no Espírito

Romanos 8

Questões

67 81 92


Introdução a Romanos 9–11

93

capítulo 6.

Israel e as nações

95

Romanos 9–11

Questões

116

parte II.

PARTE EXORTATIVA

117

capítulo 7.

A existência filial e fraterna no Cristo

119

Romanos 12,1-13

Romanos 12–15,13

125

capítulo 8.

A existência filial na sociedade

Romanos 12,14–13,14

capítulo 9.

A existência filial e fraterna vivenciada no seio da comunidade cristã

Romanos 14–15,13

Questões

143

capítulo 10.

Projetos e saudações

145

Romanos 15,14–16,27

135

Conclusão: Os grandes temas da carta aos Romanos

159

Questionário de síntese

169

Respostas às questões

175

Léxico

179

Lista de textos comentados

181

Lista das fichas de trabalho

183

Lista dos quadros

185


Introdução

As circunstâncias

N

o Novo Testamento, as cartas de Paulo não foram alocadas segundo a ordem cronológica, mas em função de sua extensão. A razão por que a carta aos Romanos encabeça os escritos paulinos é por ser a mais extensa. No entanto, essa carta ocupa um lugar de primeira ordem, pela influência que exerceu no decorrer dos séculos, desde Santo Agostinho até Karl Barth, e pela importância que teve em debates e conflitos, sobretudo na época da Reforma, com os comentários de Lutero e Calvino. É um dos mais importantes textos para a fé e a teologia cristãs, merecendo afinal de contas seu posto primeiro, encabeçando os escritos paulinos! Contudo, é um texto de difícil leitura e que não pode ser abordado sem conhecimento do pano de fundo cultural, reli­ gioso e teológico.

Tratado ou escrito circunstancial?

O modo como se qualifica essa carta influencia a leitura que dela se faz. Se as cartas de Paulo são escritos circunstanciais, que propiciam ao Apóstolo a oportunidade de resolver os problemas concretos que surgem numa determi­ nada comunidade, não podemos reduzir a carta aos Romanos a um escrito endereçado à comunidade de Roma, tendo como único objetivo preparar a vinda do Apóstolo. A amplidão dos temas abordados e a solenidade do tom

A definição das palavras marcadas com um asterisco (*) encontra-se no Léxico.

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com que é escrita conferem-lhe uma aparência de tratado. Toda via, isso ainda não autoriza a que se veja essa carta como uma exposição sistemática da fé cristã ou então a reduzir seu conteúdo ao mero tema da justificação. A carta aos Romanos foi escrita num período bem preciso da vida do Apósto­ lo, em vista de circunstâncias particulares por que passava a comunidade de Roma. Isso deu ocasião a que Paulo refletisse sobre questões vitais para a fé cristã. No entanto, em vista da importância dos temas abordados, a carta aos Romanos dirige-se a toda a Igreja, sejam quais forem os lugares e as épocas em que se vive a fé no Cristo.

Unidade da carta

A unidade da carta jamais foi questionada. Apenas sua conclusão gerou dú­ vidas. Na verdade, a carta parece ter duas conclusões: Romanos 15,14-33 e Romanos 16. Em Romanos 15,14-33 Paulo apresenta algumas notícias, par­ tilha seus projetos e enfatiza seu propósito com um “amém” (Rm 15,33). To­ davia, o texto prossegue, apresentando uma extensa lista de cumprimentos (Rm 16,1-16), interrompidos por recomendações (Rm 16,17-20) e seguido de novos cumprimentos do Apóstolo e de seus colaboradores, na lista dos quais figura o secretário Tércio, que redigiu a carta (Rm 16,22). A carta só se encerra na verdade com a doxologia (Rm 16,25-27). Desse fato alguns concluíram que Romanos 16 não pertenceria à carta. É bem verdade que esse final não consta em certos manuscritos ou que em outros manuscritos está situado entre 14,23 e 15,1. A forma e o conteúdo desse capítu­ lo apresentam problemas. As recomendações e as saudações de Romanos 16 parecem ser um acréscimo posterior às palavras de 15,33, que aparentam ser uma conclusão. A relação dos nomes suscitou diversos questionamentos. Como Paulo poderia conhecer tantas pessoas de uma comunidade que ele jamais visi­ tara? Como poderia ele saudar Áquila e Prisca, visto que, segundo 1 Coríntios 16,19, esse casal vivia em Éfeso? Assim, imaginou-se que talvez esse ca­pítulo pu­ desse não fazer parte da carta aos Romanos e estivesse fazendo referência a ou­ tros destinatários. Apresentaram-se muitas hipóteses. Por exemplo: Romanos 16 seria um bilhete de saudação que acompanharia a missiva de uma cópia da carta aos Romanos, e seria destinado aos efésios — o que explicaria a men­ ção de Áquila e Prisca. Poderia mesmo ser a introdução da carta aos Efésios. Contudo, nada disso permite afirmar que Romanos 16 não pertence à carta. Esse capítulo mantém coerência com o conjunto da carta. No que se refere à 10

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doxologia, trata-se de uma conclusão plenamente adaptada a uma carta que apresenta uma visão muito ampla da história da humanidade. Circunstâncias da carta

De acordo com o que Paulo escreve, a carta marca uma etapa em sua atividade missionária, uma vez que ele mesmo declara: “Desde Jerusalém e suas terras vizinhas até a Ilíria completei a pregação do Evangelho de Cristo” (Rm 15,19). Paulo partilha os novos projetos. Ele imagina chegar à Espanha, o que o levará a passar por Roma (Rm 15,24), onde espera receber auxílio material e encora­ jamento por parte da comunidade (Rm 15,24.28.30-32). Por outro lado, esse projeto não é novo, mas até então ele não pôde colocá-lo em prática (Rm 1,13; 15,22). Paulo busca, a qualquer preço, chegar à capital do Império, onde quer estabelecer uma nova base, parecida com a que estabeleceu em Éfeso, mas pre­ ferentemente voltada para o Ocidente. Ao redigir a carta aos Romanos, Paulo está certamente chegando de Éfeso, via Macedônia (2Cor 1,15–2,17). Está en­ tão pronto a ir para Jerusalém para levar a coleta (Rm 15,25-26). A sequência dos acontecimentos é bastante conhecida. Ao chegar a Jerusalém, Paulo é pre­ so. Vai efetivamente para Roma, mas será como prisioneiro e depois de uma viagem em que passa por muitas peripécias (At 27–28). É difícil determinar o lugar onde a carta foi escrita. Se Paulo escreveu a carta pouco antes de partir para Jerusalém, ele estaria em Corinto, como indicam certos manuscritos e sugerem certos detalhes da carta. É o caso de Febe, que mora em Cencreia, o porto de Corinto (Rm 16,1). É o caso também de Erasto (Rm 16,23), de quem se dizia usualmente ser o tesoureiro de Corinto. Enfim, Caio (Rm 16,23) é provavelmente aquele que Paulo batizou em Corinto (1Cor 1,14). Tudo leva a crer que a carta tenha sido escrita em Corinto ou nos ar­ redores dessa cidade, no final da terceira viagem de Paulo. A datação então poderia ser situada por volta de 55-56 ou 56-57. Depende do modo como se traduz Romanos 15,25: Paulo “já partiu” ou “está pronto para partir” para Jerusalém? Gramaticalmente as duas interpretações são possíveis. Qualquer que seja o local de sua redação, a autenticidade paulina da carta não sofreu contestação. Por conseguinte, a carta foi escrita entre 55 e 58. Destinatários

Paulo se dirige aos cristãos de Roma. Chama a atenção o fato de ele escrever uma carta a uma comunidade que ele não fundou. É um caso único nas car­ INTRODUÇÃO  •

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tas paulinas. Não só não fundou a comunidade de Roma como ainda não a visitou. Isso, porém, não o impede de lhe enviar essa carta em nome de sua autoridade apostólica. Paulo conhece bem a comunidade (Rm 16). As sau­ dações que ele endereça aos cristãos de Roma (Rm 16), assim como o fato de os cristãos virem ao seu encontro quando ele está se aproximando de Roma como prisioneiro (At 28,15) mostram bem suas relações com essa cidade. Ele conta com muitos amigos, entre os quais figuram membros de sua família ou judeus de Tarso, comerciantes da região. Ademais, se, como judeu e cidadão romano, Paulo não fosse beneficiado por uma rede de relações tão sólidas na capital do Império, não teria insistido perante as autoridades para compare­ cer diante de César (At 25,11).

Marcião (85-160), um gnóstico que reduz as Escri­ turas ao evangelho de Lucas e a dez cartas de Paulo.

Se a comunidade não foi fundada por Paulo nem por Pedro, quem a teria fundado? Os Atos dos Apóstolos atestam a presença de cristãos na cidade por volta do ano 59 (At 18,15). Eles justificam também a hipótese de que a comunidade cristã teria sido fundada por comerciantes judeus, presentes em Jerusalém por ocasião do Pentecostes (At 2,10), fato bastante plausível. Pressupõe-se a existência da comunidade cristã nos anos 50, a crer no prólogo inspirado dos discípulos de Marcião, que acabou sendo incluído na Vulgata*. Parece mesmo que uma comunidade cristã de origem samaritana e helenista estaria presente desde os anos 40. Quem faz alusão a isso são escritores pa­ gãos latinos, Suetônio e Orósio. A comunidade cristã, formada não só por judeus convertidos mas também por não judeus, distingue-se muito rapida­ mente da sinagoga. Apenas uma minoria parece conservar a observância dos preceitos alimentares (Rm 14,1-23). Os cristãos se reúnem nas “casas” (Rm 16,5). A aparição da comunidade cristã dentro da comunidade judaica não passou totalmente despercebida. A expulsão dos judeus de Roma por Cláudio em 49 é, sem dúvida, o resultado da pregação cristã na comunidade judaica da cidade. A comunidade de Roma seria então uma das primeiras comunida­ des cristãs. Ela existiria antes mesmo que Paulo empreendesse suas primeiras viagens para a Síria e para a Cilícia (Gl 1,21). è cap. 10

A comunidade judaica de Roma É estimada em aproximadamente 50 mil membros. É conhecida por causa das inscrições nas catacumbas e das fontes literárias (por exemplo, Flávio Josefo ou autores latinos como Marcial). Diversamente dos judeus de Alexandria, os judeus de Roma formam uma comunidade fragmentada e paradoxalmente integrada na cultura dominante. A maior parte desses judeus fala grego, mas também latim. Habitam em bairros

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bastante populares. Suas sinagogas, numerosas — contam-se pelo menos treze —, pertencem a correntes variadas. Algumas são bastante tradicionais, como a dos hebreus. Outras estão mais próximas dos ambientes pagãos, como a de Agripa. Alguns judeus podem ser provenientes da sinagoga dos libertos de Jerusalém, partidários dos helenistas, de que se fala em Atos 6,9. Essas comunidades atraem não judeus provindos de camadas populares ou de ambientes mais aristocráticos. Elas formam o solo de onde surgirá uma parte da comunidade cristã.

A razão da carta

Paulo estaria escrevendo essa carta unicamente para anunciar sua próxima viagem a Roma? Essa hipótese é impossível, visto que a carta é ampla demais para ser reduzida a essa razão. Teria o objetivo de vencer as resistências judeucristãs alimentadas pelos adversários de Paulo? Isso parece pouco plausível, uma vez que os traços de divergências entre Paulo e os cristãos de Roma são menos visíveis que em outras cartas. Esses últimos, ao contrário, parecem es­ tar firmes na fé, mesmo que seja útil exortá-los em alguns pontos. Nessa carta endereçada aos romanos, Paulo prepara uma reflexão destinada à comuni­ dade de Jerusalém, onde deverá enfrentar adversários ferrenhos? Nesse caso, Paulo teria feito uma espécie de balanço de seu ministério. A carta mostraria aos cristãos de Jerusalém a importância simbólica da coleta da qual partici­ pam todas as Igrejas das nações. Essas diversas hipóteses buscam explicar a carta em função dos projetos de Paulo. É claro que não se deve negligenciar esses projetos, todavia, através dessa carta, Paulo exorta antes de tudo a comu­ nidade a crescer em seu compromisso com o Cristo. Ele lhes recorda alguns pontos fundamentais da fé, assim como da existência cotidiana. Aproveita a ocasião para tomar pé na história religiosa da humanidade como judeu con­ vertido ao mistério do Cristo. Com sua reflexão, aprofunda pontos essenciais da relação com Deus e das relações fraternas. Por intermédio dos cristãos de Roma, destinatários imediatos da carta, o que Paulo escreve diz respeito a todas as Igrejas, chegando até nossos dias.

Paulo e Roma Na época de Paulo, Roma conta com aproximadamente 1 milhão de habitantes. É a capital de um vasto Império pacificado. O estabelecimento de uma rigorosa estrutura administrativa e política é capaz de garantir essa unidade e essa paz. Para poder superINTRODUÇÃO  •

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visionar o espaço que ela controla e prover às necessidades vitais de sua população, Roma organizou uma malha de estradas e infraestruturas marítimas. E uma vez que não extrai seus víveres das regiões circunvizinhas, viu-se forçada a desenvolver no entorno do Mediterrâneo uma infinidade de armazéns. As viagens de Paulo estão condicionadas por esse conjunto de elementos exteriores de ordem política e econômica. A cidade é expressão de um mundo organizado e culturalmente em pleno desenvolvimento. No curso dos últimos anos da república surge a ideia, explorada por Augusto e por seus sucessores, de que a cidade é a “cabeça do mundo” (caput mundi). Não é de admirar, portanto, que o Apóstolo busque alcançar esse centro não em virtude da glória que ele representa, mas por causa de sua função política e cultural. Para Paulo, Roma não é um ponto de chegada, mas igualmente um ponto de partida rumo aos extremos do Ocidente latino. Como escrevia o poeta latino Ovídio: “O espaço de Roma é tanto o da cidade quanto o do mundo” (Fastos). Anunciar o Evangelho em Roma — fortalecer a comunidade cristã — é anunciá-lo num lugar que favorecerá sua propagação. Na carta aos Romanos, Paulo exprime claramente seu desejo de ir a Roma. De fato, segundo o testemunho de Atos 27–28, ele será conduzido para lá como prisioneiro depois de ser preso em Jerusalém. Depois de ter passado certo tempo em Roma sob prisão domiciliar, teria o Apóstolo ido à Espanha e à Ásia Menor? Nenhum documento escrito ou arqueológico permite afirmar ou negar esse fato com certeza. Os últimos anos de Paulo são desconhecidos. O que se tem atestado é somente seu martírio na via Ostiense, provavelmente por volta do ano 64.

Uma carta dirigida ao âmago da vida e da reflexão cristãs

De modo contínuo ou fragmentariamente, essa carta foi comentada no curso de toda a história. Citemos como exemplo Orígenes, João Crisóstomo, Teo­ doreto, Santo Ambrósio, Pelágio, Agostinho, Abelardo, Tomás de Aquino… Inspirou grandes debates, de modo especial em épocas decisivas: no século V, quando da crise pelagiana, e no século XVI, na época da Reforma. O comen­ tário à carta feito por Lutero em 1516 marcou o ponto de partida da Refor­ ma. Alguns anos mais tarde, Calvino, em Instituição da religião cristã (1539), dá determinação a seu pensamento com base na carta aos Romanos. Outro re­ formador, Melanchton, considera que Romanos apresenta o “resumo da dou­ trina cristã”. O próprio Calvino afirmava que, se compreendêssemos a carta aos Romanos, poderíamos “entrar até o tesouro mais secreto das Escrituras”, enquanto para Lutero ela representa o “âmago e o núcleo de todos os livros”. O Concílio de Trento fez menção a inúmeras passagens. A própria renova­ ção bíblica no século XX está referida à carta aos Romanos. O comentário do 14

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protestante Karl Barth (edição de 1922) influenciou de maneira decisiva as pesquisas bíblicas (protestantes e católicas). Por ocasião do grande trabalho da Tradução Ecumênica da Bíblia, a TEB, a carta aos Romanos foi o primeiro texto a ser traduzido, em razão das questões teológicas nela representadas. Católicos, protestantes e ortodoxos consideraram “uma graça e uma bênção o privilégio de poder traduzir e fazer anotações em comum, em profunda uni­ dade de espírito, desse texto que, no passado, foi motivo de tantas contro­ vérsias” (Prefácio de Romanos na TEB). Mencionemos ainda a repercussão da carta aos Romanos no pensamento ocidental, em particular na literatura (Racine, Dostoievski…).

As linhas centrais da carta A composição literária da carta 1,1-17: Abertura 1,1-7: Endereço 1,8-15: Menção de ação de graças 1,16-17: Tese ou proposição principal

É bom fazer uma leitura de conjunto da carta aos Romanos, e em seguida relê-la seguindo os capítulos, passo a passo. O plano detalhado da carta pode ser encontrado na p. 25.

1,18–11: Primeira parte: A humanidade justificada pela fé em Cristo 1,18–4: Judeus e gregos justificados pela fé em Cristo 5–8: A vida nova em Cristo 9–11: Israel e as nações 12–15,13: Segunda parte: A exortação a uma vida filial e fraterna no Cristo 12,1-13: A existência filial e fraterna no Cristo no seio da comunidade cristã 12,14–13,14: A existência filial na sociedade 14–15,13: A existência filial e fraterna no seio da comunidade cristã 15,14–16,27: Epílogo

Abertura da carta (Rm 1,1-17)

A carta aos Romanos inicia-se com a tomada de contato entre Paulo e seus destinatários. E uma vez que é uma carta redigida em boa e devida forma, co­ meça apresentando um endereçamento (Rm 1,1-7), o mais longo redigido por Paulo. O Apóstolo escreve aos cristãos de Roma em nome da missão que lhe foi confiada por Cristo, rendendo graças pela fé destes (Rm 1,8-15). Em forma de

Endereço: o endereço é um gênero literário que pode ser identificado por três elementos: o nome do autor, os destinatários e os votos. Menção de ação de graças: nas cartas da Antiguidade, é um gênero literário que figura sempre após o endereço. Pode ser reconhecido pelos seguintes indícios: o temo “render graças” (eucharistein em grego); os destinatários; as razões da ação de graças; o objeto desta; a menção de orações. INTRODUÇÃO  •

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Tese (ou proposição principal): aquilo que está em questão e que deve ser comprovado mediante argumentos.

tese (ou proposição principal), ele anuncia o assunto de sua carta (Rm 1,1617). Este assunto não se limita ao mero tema da justificação, mas trata dos planos de Deus para a humanidade.

Primeira parte: A humanidade é justificada pela fé em Cristo (1,18–11) Primeira parte: a maioria das cartas de Paulo se subdivide em duas grandes partes, uma que pode ser qualificada como dogmática, uma vez que coloca os fundamentos da fé, e outra como exortativa, visto que tira as consequências disso para o nível da existência.

Na primeira parte da carta (Rm 1,18–4), Paulo relê a história da humanidade em função da ressurreição de Cristo. À luz desse acontecimento, o passado da humanidade aparece em sua dimensão pecadora. Essa é a razão por que a primeira parte começa pela afirmação da cólera de Deus diante de toda injus­ tiça (Rm 1,18), tanto faz se esta foi praticada por não judeus ou por judeus. Subdivide-se em três outras seções: a justificação pela fé para todos, judeus e gregos (Rm 1,18–4); a nova vida do crente (Rm 5–8); as relações entre Israel e as nações (Rm 9–11).

Judeus e gregos justificados pela fé (Rm 1,18–4)

Paulo apresenta a justificação de toda a humanidade em duas etapas. Seja qual for sua origem, o homem não poderá salvar-se por si mesmo (Rm 1,18– 3,20). A justificação lhe é dada de maneira gratuita e poderá unicamente ser acolhida pela fé em Jesus Cristo (Rm 3,21–4). Não há justificação pela lei (Rm 1,18–3,20) — Primeiramente Paulo mostra que os

não judeus estão na injustiça, uma vez que, tendo o conhecimento natural de Deus (Rm 1,19-32), eles não o reconheceram. De igual modo, os judeus estão na injustiça, eles que conhecem Deus pela revelação (Rm 2,1-16). Deus não faz acepção de pessoas. Ele é justo para com todos. Tanto os judeus como os não judeus (chamados no texto de gentios ou gregos) estão “sob a ira de Deus”, visto que ambos são pecadores e por si mesmos incapazes de ajustar-se com Deus. Não podem isso nem mesmo os judeus piedosos, que creem ser justos, como imaginava ser Paulo antes de Damasco (Rm 2,17-29). Paulo conclui: “Ninguém será justificado pela lei” (Rm 3,20). Isso significa que ninguém po­ derá estar em comunhão com Deus por suas próprias forças. A justificação pela fé (Rm 3,21–4) — Em Jesus Cristo, “agora a justiça de Deus se manifestou sem a lei” (Rm 3,21). Essa “justiça de Deus”, em outras palavras, o 16

•  PARA LER A CARTA AOS ROMANOS


ajustamento pelo qual Deus nos coloca em comunhão consigo, diz respeito a todos os homens. Ela é dada por Deus, uma vez que por si mesmo o homem é incapaz de ajustar-se com seu criador, seja por sua vontade ou por seus méri­ tos. O que nos ajusta com ele é só a adesão ao Cristo, numa confiança absolu­ ta em Deus (fé). De modo nenhum a lei de Moisés poderá realizar esse ato de “justificar”, que Paulo chama de “justificação”. Para fundamentar uma afirmação tão audaciosa, Paulo busca apoio na Escri­ tura (Rm 4): Abraão não recebeu a promessa em razão de seus méritos ou de suas obras, mas em função de sua fé nesse Deus “que dá a vida aos mortos e chama o nada à existência” (Rm 4,17). À luz da ressurreição, Paulo pode afir­ mar que a fé de Abraão é a fé num Deus que doa a vida na ressurreição como o fez na criação. A fé “naquele que ressuscita dentre os mortos, Jesus Nos­ so Senhor, entregue por nossas faltas e ressuscitado para nossa justificação” (Rm 4,25), coloca-nos em comunhão com Deus. Assim, abre a possibilidade ao homem de entrar em uma nova existência, na qual encontra sua realização plena. É o que Paulo vai descrever em Romanos 5–8. è cap. 3

A vida nova do crente no Cristo (Rm 5–8)

A segunda seção da primeira parte descreve a nova vida do crente, começan­ do por um exórdio (Rm 5,1-11). A justificação é um “acesso” incondicional a Deus. Deus não é inacessível em razão de sua santidade e sua transcendência. É Aquele que nos coloca em comunhão consigo e nos convida a partilhar sua glória. Para fazer tal coisa, Deus vem até nós, “derramando seu amor em nos­ sos corações” (Rm 5,5). O ato pelo qual Deus nos justifica não é portanto mera declaração. O homem justificado foi assumido e transformado pelo amor que o Espírito derramou em seu coração. É claro que a vida continua sendo uma provação para o homem, mas agora ele sabe não estar abandonado à própria solidão. Ele entra numa relação pessoal com Deus. — No plano argumentativo, essa perícope é uma narração. Ela serve de pano de fundo para a reflexão que Paulo vai fazer sobre a relação entre pecado/graça, pecado/lei. Deve ser lida mantendo liga­ ção com Gênesis 3. Visto ser o filho de Deus revelado em nossa carne, o Cristo nos ajusta com Deus. Ele tem o poder de cativar toda a humanidade a seguilo, humanidade da qual Adão é o representante simbólico, para com ele fazêla passar da morte para a vida. Esse texto torna-se referência para a definição do dogma do pecado original. Uma vez tendo estabelecido a relação Cristo/

A relação Adão/Cristo (Rm 5,12-19)

Exórdio: em termos de argumentação, trata-se de uma introdução ou de uma captatio benevolentiae.

Perícope: unidade textual. Narração: em termos de argumentação, trata-se da exposição de uma coisa aceita ou suposta como aceita e que serve de pano de fundo para o debate.

INTRODUÇÃO  •

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Adão, Paulo responde a todas as deduções, mesmo às mais improváveis, que se poderia colocar a esta afirmação: “Ali onde o pecado abundou, a graça su­ perabundou” (Rm 5,20). Paulo se empenha em combater a ideia de que o pe­ cado seria uma espécie de “garantia” da superabundância da graça. è cap. 3

Prova: em termos de argumentação, é o lugar onde se produzem os argumentos para refutar as objeções.

A esse contrassenso Paulo contrapõe respostas sistemáticas que ele organiza em quatro sequências expositivas. No plano argumentativo, suas respostas constituem a prova daquilo que ele antecipa. A vida nova (Rm 6,1-14) — Pelo batismo fomos ligados à morte e ressurreição de Cristo de tal maneira que entramos numa existência em que somos arran­ cados do domínio do pecado. É impossível, portanto, permanecer no pecado a fim de que se multiplique a graça. A graça não é proporcional ao pecado. Ela nos faz entrar noutra lógica, a lógica da superabundância.

— Paulo não pode deixar de tratar da Lei de Moisés. Antes de abordá-la por ela mesma, ele começa afirmando que pelo fato de pertencermos ao Cristo fomos subtraídos do domínio do pecado. A mudança de existência é compreendida então como uma transfe­ rência de propriedade. Dois exemplos ilustram essa nova situação, o exemplo do escravo e o da mulher casada. A transferência de propriedade (Rm 6,15–7,6)

E a Lei? (Rm 7,7-25) — Agora Paulo vai tratar da função da Lei (Rm 7,7-13). De­

pois de ter afirmado que a Lei não justifica, ou seja, que ela não nos introduz na comunhão com Deus (Rm 1–4), Paulo afirma que ela nos foi dada por Deus e que serve para que conheçamos o pecado. Se a Lei mantém seu valor, só Cristo se constitui na condição de nossa justificação. Na história, nossa identidade humana está em transformação (Rm 7,14-25). Ela não pode acon­ tecer, portanto, sem uma apropriação de nossa vocação. Essa liberdade é um combate, visto que estamos sempre na tentação de recusar nossa condição de criaturas e, por isso mesmo, de recusar o Cristo. è cap. 4 Nossa identidade é transformada e revelada no Espírito (Rm 8,1-30) — Se o cristão partilha a condição de todos os seres humanos, não deixa de ser convocado a viver no Espírito. Ora, o Espírito nos transforma em filhos (Rm 8,17), no sen­ tido de que a transformação que ele opera nos corações nos revela que somos amados pelo mesmo amor com o qual o Pai ama o Filho. Somos queridos por Deus nesse amor que une o Pai e o Filho unigênito. Isso também tem conse­ quências na relação entre o homem e a criação, à qual este está intimamente ligado (Rm 8,18-27). Essa visão da existência no Cristo revela os desígnios de 18

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Deus (Rm 8,28-30), ela é a chave para a compreensão de nossa identidade, presente e passada. Paulo conclui essa seção com uma peroração, que é um verdadeiro desafio lançado à criação (Rm 8,31-39). O amor de Deus, revelado em Jesus Cristo de modo eminente, é capaz de transformar de tal maneira a vida do homem que, de modo nenhum, ele precisa temer as provações que tem de enfrentar, e sequer precisa temer o universo do qual depende. è cap. 5

Peroração: em termos de argumentação, trata-se da conclusão do discurso.

Israel e as nações (Rm 9–11)

A terceira seção constitui a questão das relações entre Israel e as nações. Se o Cristo, e só ele, coloca o homem em comunhão com Deus, o que acontece com o povo eleito e a relação entre os judeus e as nações? Essa questão evoca outra: uma parte de Israel não reconheceu o Cristo, e nesse caso por que Deus escolheu um povo que se recusa a reconhecer seu Filho? Os planos de Deus — A essa questão Paulo responde que Deus é coerente. Ele relembra que no curso da história Deus não cessou de chamar segundo uma lógica paradoxal (Rm 9,6-29). Paulo esclarece melhor dizendo que os filhos de Abraão não constituem a totalidade de sua descendência. Ele introduz a noção de “resto” e insiste na total gratuidade da escolha de Deus, chamada “eleição”. O Israel que crê não é todo Israel, mas o “resto”. O chamado dos não judeus e a salvação do “resto” são, paradoxalmente, para Paulo a prova de que a palavra de Deus não fracassou. Mais do que de Israel, o que está em questão são os planos de Deus em relação a todos os homens.

— Deus é fiel ao seu povo e à sua palavra (Rm 9,30–10,21). Afastando-se do Evangelho, que proporciona a justiça e a salvação, uma par­ te do povo praticamente se excluiu. Apresentando as razões cristológicas da situação de Israel, Paulo questiona se Israel teve a possibilidade de conhecer a mensagem evangélica. Se não existe nenhuma desculpa para a recusa ao Cristo, isso não significa que Deus não tenha compreensão ou que ele rejeite aquele que recusa o Cristo. Paralelamente à recusa de Israel, surge um enigma não menos intrigante, a saber, a obediência através da fé das nações.

A recusa ao Cristo

A salvação de todos — Assim como Deus soube aproveitar-se da recusa de Israel

para mostrar misericórdia às nações, do mesmo modo salvará seu povo (Rm 11). Deus não rejeitou Israel. O endurecimento do povo significa simplesmen­ te que a história continua inacabada. A situação atual de Israel permite às INTRODUÇÃO  •

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nações o acesso ao conhecimento do Cristo. Paulo reafirma que não há senão uma via de salvação, que é o Cristo. Essa abordagem deve ser compreendida no nível de uma simbologia que focaliza a salvação universal da humanidade. É daí que vem o hino final que celebra a insondável sabedoria divina e o mis­ tério (Rm 11,33-36). è cap. 6

Segunda parte: A exortação a uma vida filial e fraterna no Cristo no coração do mundo (Rm 12–15,13)

A parte exortativa vem sempre introduzida pelo ver­ bo grego parakalein (“convocar”, “exortar”). Este ver­bo possui a mesma raiz que Paráclito, outro nome dado ao Espírito Santo. Empregando esse termo, Paulo sugere que a parte exortativa é inspirada pelo Espírito Santo e que a vida cristã é uma vida no Espírito.

Depois de apresentar ampla visão histórica da humanidade dentro dos desíg­ nios de Deus, Paulo aborda a vida cristã sob o aspecto de sua simplicidade e de seu engajamento na realidade histórica concreta. O mistério de Cristo nos desígnios de Deus e na história não é questão de ideologia, mas de existência. Somos convocados a entrar na existência filial que nos foi revelada pelo Espí­ rito. Trata-se de “render um culto espiritual a Deus” (Rm 12,1-2). Isso signi­ fica que somos convidados a entregar nossa existência ao Cristo no Espírito, e a apropriar-nos dessa vida de filhos que nos foi doada. Essa segunda parte é dita “exortativa”. A fé no Cristo nos integra numa comunidade, que Paulo define como “corpo de Cristo” (Rm 12,4). Viver como filhos e como irmãos é entrar na kénose do Filho (Rm 12,3-21). Paulo descreve então o comportamento cristão segundo o modelo do Cristo das Bem-aventuranças. è cap. 7 Essa vida não nos subtrai das contingências históricas nem da sociedade no seio da qual vivemos. O cristão continua engajado no mundo. Deve comportarse com honestidade e consciência em relação a todos, inclusive às autoridades civis (Rm 13,1-7). O amor, visto ser ele próprio a vida de Deus, deve regular de forma absoluta as relações entre os seres humanos, de tal modo que se cumpra a Lei. Uma vez plenamente encarnada no mundo, a vida cristã se orienta segun­ do o retorno do Senhor, que marcará o fim da história (Rm 13,11-14). Essa é a razão pela qual esse tempo é caracterizado pela espera e pelo combate. è cap. 8 As considerações sobre a vida no interior da comunidade (Rm 14) relembram que aquele que é fraco na fé não pode ser desprezado, e que questões relaciona­ das com alimentação e calendário de modo nenhum devem ser motivo de escân­ dalo. A comunidade cristã está centrada no Cristo, que nos libertou da relação com essas questões de alimentação e de observâncias. É ele que regula a rela­ ção com o outro. A liberdade na qual ele nos introduz não pode provocar o es­

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cândalo no interior da comunidade, visto que nem todos os cristãos alcançaram o mesmo nível de fé. Cabe à Igreja nos educar nos costumes do Cristo. è cap. 9 Epílogo (Rm 15,14–16,27)

O epílogo está em coerência com os temas abordados na carta e faz eco à aber­ tura (Rm 1,1-17). O balanço traçado por Paulo de seu ministério, assim como seu projeto de viagem (Rm 15,14-33) não são anedóticos. Exprimem a resposta ao apelo singular recebido por Paulo. Nesse sentido, eles revelam os planos de Deus, que estão em questão ao longo de toda a carta. A saudação que Paulo dirige à comunidade de Roma permite melhor tomarmos conhecimento desse fato. Revela não só a importância histórica, mas também o funcionamento eclesial. O fim da carta é marcado por uma doxologia (Rm 16,25-27). Abre a revelação do “mistério envolto de silêncio nos séculos eternos e hoje manifes­ tado”. O que Paulo tem a missão de anunciar é essa revelação inaudita, não de­ dutível da natureza ou da cultura. A visão apresentada pelo Apóstolo ao longo de toda a carta a respeito da história da humanidade e sobre a existência cristã, revelando-nos os desígnios eternos de Deus, abre agora o louvor. è cap. 10 Questões e problemas

A composição literária ressalta o caráter unificado da carta. Consequente­ mente, é impossível deixar de lado um capítulo, ainda menos uma parte. É só a leitura completa da carta que permite que se apreenda as grandes articula­ ções e, com isso, a sua dinâmica própria. Ao final dessa primeira abordagem da carta aos Romanos, surge certo número de questões que se constituem em problemáticas essenciais tanto para a vida do cristão como para a teologia. Nessa carta, o tema está bastante focado na ques­ tão da “justiça” que vem de Deus. Essa palavra não é acessível assim de imediato. Numa carta em que a salvação do ser humano constitui o tema supremo, podese perguntar por que Paulo começa por abordar a “cólera de Deus”. Esse aspecto coloca a questão a respeito da fisionomia de Deus e da fisionomia do homem. Se somos justificados pela fé em Cristo, que, sendo o Filho, tem o poder de nos colocar em comunhão com Deus para sempre, não podemos impedir-nos de perguntar por que vivemos ainda sob a ação do pecado. Paulo afirma que a justiça é alcançada “sem a Lei”. Um pouco mais abaixo, ele vai escrever que “a Lei é santa e boa”. Será que ele se contradiz? Se a justiça é INTRODUÇÃO  •

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alcançada pela fé e não pela Lei, que lugar ocupa a Lei na vida cristã? De que “lei” se trata? Será que o emprego intenso de categorias jurídicas (“justiça”, “justificar”, “jus­ to”, “justificação”) permite que se deduza que essas categorias exprimem plena e unicamente o sentido da vida cristã? Quando se diz que o cristão está “justifi­ cado”, será que já se disse tudo? As relações entre os judeus e as nações, abordadas nos longos capítulos 9 a 11, tratarão da ruptura do cristianismo com Israel ou, ao contrário, inscrevem as nações na continuidade de Israel? Será que elas não colocam a questão de outras religiões e a questão de todos os homens que não conhecem o Cristo? Depois de ter explicado o sentido da justificação, Paulo retoma situações concretas a fim de exortar a comunidade sobre pontos aparentemente sem relação com as grandes afirmações sobre a graça, o pecado, a Lei ou o Espírito Santo. Por que, no seio da comunidade, abordar as relações, entre outras, sob a perspectiva de sua ligação com a alimentação? Quando Paulo afirma que a vida cristã deve ser vivida como “uma oferenda agradável a Deus”, será que ele está reduzindo a vida a uma dimensão cultual, ou melhor, a uma perspectiva sacrifical? Quando ele pede para que se submetam às autoridades civis, será que ele compreende com isso sujeitar-se a um tipo de poder político? A carta aos Romanos é indispensável para conhecer aspectos do mistério de Cristo que ignoraríamos sem ela. Se ela nos suscita questões, significa, entre ou­ tras coisas, que ela revela um rosto de Deus fora dos clichês que podemos ter. Por isso, ela nos oferece outra compreensão do ser humano: longe de poder ser redu­ zido ao seu pecado, seja quem for, o homem é convocado a se abrir a uma gran­ deza que o ultrapassa e que portanto o constitui. Enfim, a comunidade na qual se vive a fé descobre o lugar que é o seu num mundo que, em regra, a ignora e às vezes também a despreza. Mais do que nunca, a leitura da carta aos Romanos é indispensável para pensar e viver os grandes desafios do cristianismo de hoje.

Para ler a Carta aos Romanos Qual texto vamos ler? Para conseguir fazer uma leitura integral da carta aos romanos, será de utilidade precisar algumas noções, fornecer algumas chaves de leitura e explicitar o modo de utilizar essa obra.

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Para acompanhar a leitura dessa obra, é indispensável ter diante dos olhos o texto bíblico. As traduções utilizadas são as da Bíblia de Jerusalém (nova edição, 2000) ou da TEB (11ª edição, 2010). Pode-se utilizar também a Nouvelle Bible


Segond (edição de 2008). A versão grega Nestlé-Aland (27ª edição, 1999) é o texto de referência sobre o qual se baseiam as traduções. NB.: Em geral, Paulo cita o AT segundo a versão grega da LXX (Septuaginta*), versão que nem sempre corresponde à tradução de nossas Bíblias, as quais seguem o texto hebraico.

Diversas abordagens

Todo e qualquer estudo de textos bíblicos deve conjugar diversas abordagens. Aqui vamos limitar-nos às abordagens mais importantes e às que mais se adaptam à leitura a que nos propomos. Trata-se da abordagem literária e da abordagem histórica.

Abordagem literária

Uma vez que o texto se constitui primeiramente de palavras e que a palavra jamais aparece isolada, numa primeira aproximação é importante identificar as palavras mais frequentes da passagem em questão, classificá-las em função das famílias a que pertencem, do número de vezes em que figuram, assim como das imagens que elas veiculam (análise semântica*). Numa segunda aproximação, convém observar a sintaxe, ou seja, a organiza­ ção das palavras em frases, para compreender de que modo elas se coadunam entre si. Então será possível evidenciar a estrutura literária* do texto e com­ preender a estrutura argumentativa, ou seja, a maneira como o texto é cons­ truído para provar ou defender uma tese. Esse tipo de esclarecimento permite que se descubra o modo pelo qual se organiza o pensamento de Paulo, como ele apresenta os argumentos, qual sua lógica e qual seu ponto de vista.

A abordagem histórica

Essa abordagem deve levar em conta diferentes pontos de vista: o ponto de vista do autor e o de seu entorno. No correr da leitura, é importante ter pre­ sentes ao espírito as seguintes questões: Onde e quando escreve Paulo? A que comunidade ele se endereça? O que sabemos dessa comunidade? Que liga­ ção possui o Apóstolo com ela? Os cristãos que constituem a comunidade de

Cada etapa dessa abordagem coloca ao leitor questões que ele deveria notar sem, no entanto, procurar responder a elas de imediato.

INTRODUÇÃO  •

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Roma, por sua vez, provêm de meios judaicos e gentios. Sua fé é forjada pelas Escrituras, que Paulo conhece de modo admirável. Esses cristãos vivem na capital do Império. Para compreender certas passagens da carta não se deve esquecer também o conhecimento do ambiente judaico do século I em Roma. As comunidades judaicas de Roma são distintas das de Jerusalém, de Corinto e de Éfeso, pelo simples fato de viverem num contexto político, social e reli­ gioso diferente… É necessário igualmente situar a carta no universo romano dos anos 50-60 d.C., uma vez que os cristãos não vivem fora de determinada sociedade. Ora, o Império possui uma organização política, social, econômi­ ca, cultural e religiosa que lhe é própria. É marcado, entre outras coisas, pelo politeísmo religioso e pela dissimetria das relações sociais. É contra esse cená­ rio que, para os cristãos, colocam-se as questões sobre a relação com as autori­ dades (Rm 13,1-7), sobre a vida em sociedade (Rm 6,15–7,6) e mesmo sobre a ética (Rm 7; 12–15). Essa abordagem supõe o conhecimento não só de certos grandes acontecimentos do Império, mas também de algumas passagens cen­ trais da literatura clássica antiga ou contemporânea de Paulo.

Ler hoje a carta aos Romanos

Nossa leitura atual é tributária de leituras anteriores que, muitas vezes de for­ ma inconsciente, influem fortemente em nossa leitura. Na verdade, se deve­ mos praticar uma leitura pessoal do texto bíblico, não somos os primeiros leitores dele. Muitos outros antes de nós leram esse texto e interpretaram-no em função dos problemas com quais se viam confrontados. Somos herdeiros desses leitores do passado, como Agostinho ou Lutero. É importante portan­ to não ignorar as interpretações propostas pelos que nos precederam. Elas nos esclarecem algumas de nossas reações. No mais, a carta aos Romanos é um texto atual. Ela foi escrita para os cris­ tãos de Roma do século I, mas atravessa a espessura dos tempos, alcançando nossos dias. E visto que esses textos assumem uma relação vital conosco, não podem senão interrogar e esclarecer nosso pensamento e nossa existência, no lugar mesmo onde somos confrontados com novos problemas.

Algumas pistas para abordar um texto

Uma leitura aprofundada supõe passar pelas seguintes etapas: Ler o texto e perceber as questões que ele nos coloca. 24

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Situar o texto na carta.

Qualquer uma dessas etapas supõe a outra. Encontraremos exemplos de análises nos “estudos de texto”.

Definir a unidade textual. Fazer uma abordagem semântica* (procurar famílias de palavras: p. ex. vo­ cabulário jurídico [“lei”, “justo”, “justificar”, “justiça”, “justificação”…] ou o vocabulário próprio do conhecimento [“conhecer”, “ignorar”, “saber”, “crer”, “fé”…]). A palavra possui uma tessitura e um veio que fazem sentido. Pouco a pouco vamos notando as questões colocadas por essa abordagem. Analisar a divisão desse vocabulário em função de sua sintaxe; isso permitirá que se compreenda como o texto está composto. É importante prestar aten­ ção às partículas argumentativas. Note-se igualmente as questões que o texto suscita em sua composição.

Na maioria das vezes é suficiente deixar-se guiar pelas fichas de trabalho propostas ou seguir o comentário do texto apresentado. Os termos mais difíceis são definidos à margem ou no Léxico (*). Informações mais específicas são expostas em caracteres menores, enquanto os quadros fornecem informações de pontos precisos. Ao fim de cada um dos grandes blocos da carta encontram-se pistas de trabalho com questões (as respostas encontram-se nas p. 166-168) que permitirão testar o leitor. No final dessa obra propomos um Questionário que permitirá estabelecer uma ponte entre a leitura da carta, suas problemáticas e seus desafios.

Analisar o texto assim estruturado em função da argumentação. Ressaltar as citações bíblicas, vendo como Paulo utiliza essas referências (De qual livro bíblico ele as toma emprestado? Como se situa essa passagem em seu livro de origem? Paulo modifica a citação? Relaciona essa passagem com que outra citação?). Quando essas citações forem abundantes, indicaremos as referências veterotestamentárias precisas. Recorrer à história (eventos, pensamentos, cultura…) para esclarecer certos temas. Descobrir as problemáticas e os desafios, retomando as questões colocadas na primeira leitura.

Plano detalhado 1,1-17: Abertura 1,1-7: Endereço 1,8-15: Menção de ação de graças 1,16-17: Tese ou proposição principal 1,18–11: Primeira parte: A humanidade justificada pela fé em Cristo 1,18–4: Judeus e gregos justificados pela fé em Cristo (A) 1,18–3,20: Judeus e nações diante da cólera de Deus 3,21–4,25: A justiça de Deus manifestada em Jesus Cristo 5–8: A vida nova em Cristo (B) 5,1-11: A identidade cristã 5,12-21: A relação Adão-Cristo INTRODUÇÃO  •

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6,1–8,30: A vida no Cristo: Resposta às objeções 6,1-14: Permanecer sob o pecado? 6,15–7,6: Uma liberdade irreversível 7,7-25: E a Lei? 8,1-30: Uma vida no Espírito 8,31-39: O desafio à criação 9–11: Israel e as nações (A) 9,1-5: A dor de Paulo 9,6-29: A lógica paradoxal do apelo divino (A) 9,30–10,21: A situação de Israel (B) 11,1-32: Deus soube tirar proveito da recusa de Israel (A’) 11,33-36: Hino 12–15,13: Segunda parte: A exortação a uma vida filial e fraterna no Cristo 12,1-13: A existência filial e fraterna no Cristo no seio da comunidade cristã (A) 12,14–13,14: O testemunho dado pelos cristãos na sociedade (B) 12,14-21: Relação com os não crentes (a) 13, 1-7: Relação com as autoridades políticas (b) 13,8-14: Relação com os não crentes (a’) 14–15,13: A existência filial e fraterna no seio da comunidade cristã (A’) 14,1-13: Acolher os fracos (a) 14,14-23: Uma questão de fé (b) 15,1-13: Sustentar os fracos (a’) 15,14–16,27: Epílogo 15,14-33: O ministério de Paulo 15,14-21: Balanço do ministério 15,22-33: Projetos 16,1-16: As saudações 16,17-20: Exortações e votos 16,21-23[24]: Novas saudações e post-scriptum 16,25-27: Doxologia

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