Acreditar em Deus

Page 1

RUI ALBERTO

um estudo empÍrico-teológico das representações sociais dos adolescentes

Sobre o autor: Rui Alberto é salesiano sacerdote. Director editorial das Edições Salesianas desde 2014. Licenciado em teologia pela Univ. Católica (Lisboa) e Mestre em pastoral juvenil e catequética pela Univ. Pontifícia Salesiana (Roma). Fundou e dirigiu a revista catequistas (2004-2014), publicação mensal de formação para agentes pastorais, durante os dez anos da sua existência. Em 2015, obteve o doutoramento em Teologia, com especialidade em Pastoral Juvenil e Catequética, pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Autor de diversos livros na área da catequese, procura estabelecer pontes entre a evangelização, a educação e a comunicação.

RUI ALBERTO

ACREDITAR EM DEUS

Em que Deus acreditam os jovens que frequentaram os dez anos de catequese em Portugal? Que relação têm eles com Deus? Quais os processos e pessoas envolvidos na sua elaboração de fé? Foi a estas perguntas que o padre Rui Alberto se propôs responder na sua tese de doutoramento no âmbito da Teologia com especialidade em Pastoral Juvenil e Catequética, pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. As conclusões dessa investigação são agora editadas em livro, oferecendo-se como uma oportunidade de análise séria sobre a real experiência de fé dos adolescentes catequizados.

ACREDITAR EM DEUS um estudo empÍrico-teológico das representações sociais dos adolescentes

Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 | 4022-001 Porto Tel.: 22 53 657 50 Fax: 22 53 658 00 edisal@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

AcreditarEmDeusTESE-Capa.indd 1

05-09-2016 14:51:13



Rui Alberto

Acreditar em Deus Um estudo empírico-teológico das representações sociais dos adolescentes

acreditando em Deus.indd 1

9/8/2016 4:04:21 PM


Ficha Técnica © 2016 Rui Alberto © 2016 Edições Salesianas Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel: 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Publicado em Setembro 2016 Capa: Paulo Santos Paginação: João Cerqueira Revisão: Sofia Fonseca Impressão e acabamentos: Printhaus ISBN: 978-989-8850-02-7 D.L.: 414690/16

acreditando em Deus.indd 2

9/8/2016 4:04:21 PM


Conteúdos Conteúdos..............................................................................................................................................3 Prefácio...................................................................................................................................................5 Introdução.............................................................................................................................................9 1: Abordagem teológica à fé.............................................................................................................15 1. Fé em Deus: uma perspectiva bíblica...................................................................................16 2. Uma síntese contemporânea para a fé..................................................................................18 3. Os conteúdos sobre Deus.......................................................................................................35 4. Uma síntese sobre Deus e a fé...............................................................................................47 2: A abordagem das ciências humanas à questão de Deus.........................................................51 1. Ideologia e cultura...................................................................................................................52 2. O nível societal.........................................................................................................................62 3. Nível interpessoal....................................................................................................................88 4. Nível intrapessoal..................................................................................................................117 5. Resumindo: uma visão global das ciências humanas sobre Deus.................................125 3: A teoria das representações sociais...........................................................................................129 1. O conceito de representação social.....................................................................................129 2. Processos de formação das representações sociais...........................................................134 3. Desenvolvimentos posteriores............................................................................................143 4. Metodologia...........................................................................................................................147 5. A adequação das representações sociais para o estudo da fé.........................................153 4: Desenhar a investigação.............................................................................................................155 1. Classificação da investigação...............................................................................................156 2. Optar pela triangulação........................................................................................................160 3. Triangulação de dados..........................................................................................................160 4. Triangulação analítica ..........................................................................................................166 5: Resultados da investigação empírica.......................................................................................179 1. Representações de Deus. Vaga 1.........................................................................................179 2. Representações de Deus. Vaga 2.........................................................................................231 3. Os catecismos portugueses..................................................................................................247 4. Representações de Deus dos catequistas...........................................................................252 5. A esfera pública.....................................................................................................................260 6. Resumindo os resultados empíricos...................................................................................264 3

acreditando em Deus.indd 3

9/8/2016 4:04:21 PM


6: Representações sociais: interpretação dos resultados...........................................................265 1. Representações sociais como categoria analítica legítima....................................................265 2. Os conteúdos..........................................................................................................................267 3. Processos de formação: Objectivação.................................................................................279 4. Processos de formação: Ancoragem...................................................................................293 5. Representações sociais e acção............................................................................................302 6. Conclusões..............................................................................................................................303 7: Interpretação teológica dos resultados.....................................................................................305 1. Análise dogmático-teológica................................................................................................305 2. Análise teológico-prática......................................................................................................337 3. Observações conclusivas......................................................................................................369 8: Uma avaliação crítica dos ­resultados e procedimentos.........................................................371 1. O caminho feito......................................................................................................................371 2. Observações gerais................................................................................................................384 3. E depois?.................................................................................................................................388 Índice figuras....................................................................................................................................393 Índice tabelas....................................................................................................................................395 Bibliografia........................................................................................................................................399

4

acreditando em Deus.indd 4

9/8/2016 4:04:21 PM


Prefácio Na obra “Acreditar em Deus”, o autor propôs-se estudar os processos pelos quais os jovens portugueses acreditam em Deus. Acreditar em Deus como processo? Fiquei curioso. Estamos tão habituados a categorizações religiosas que distinguem claramente os “crentes” dos “não-crentes”, que até me atrevi a pensar se o título do livro não deveria antes ser ‘Acreditar ou não acreditar em Deus’. Faria sentido tendo por “chão” arrumações estatísticas que preenchem não apenas informações sobre as sociedades onde agem pessoas e grupos mas também – e sobretudo – as “camadas” em que organizam o seu relacionamento quotidiano, a informação que recebem e o conhecimento que procuram. Na impossibilidade de mudar o título, o melhor seria mesmo tentar perceber as razões que levaram o autor desta obra, o padre Rui Alberto, a deixar de lado as classificações dicotómicas e a optar pela inclusão das muitas vozes que se ouvem no mundo juvenil. Desde há anos que o autor, sacerdote salesiano, se interroga sobre que ideia têm de Deus os adolescentes e jovens, sobre o modo como “dizem” a sua fé, em Quem e no que acreditam e nas consequências da afirmação crente que professam no dia-a-dia. E ainda uma outra questão: o que fica de 10 anos de catequese nos que a frequentam? Estas perguntas relacionam-se com o tal “chão”. Foram todas colocadas novamente pelo autor na procura de respostas, afastando a tentação fácil de catalogar tudo e todos entre o “sim” e o “não” e acolhendo a atenção e o cuidado que é necessário colocar no “processo”, nas várias fases de um itinerário crente, identificáveis pessoalmente e em grupo. O resultado está neste livro, que identifica o “chão” crente dos adolescentes e jovens que dizem ter fé, nomeadamente os que frequentam os 10 anos do itinerário catequético. A metodologia seguida, o percurso temático desenvolvido e a estrutura de uma investigação que foi usada para a conclusão do doutoramento em Teologia, com especialidade em Pastoral Juvenil e Catequética, são referenciados ao longo de toda a obra, na introdução e em cada um dos oito capítulos. A grande abrangência do tema, que deveria causar constante perplexidade entre quem tem por responsabilidade cuidar a transmissão da experiência crente às novas gerações, motiva recorrentes focalizações da investigação no propósito inicial: em que e em Quem crê quem frequenta a catequese? Que ideia tem de Deus, de Jesus, do Espírito Santo? Que considerações faz sobre a mediação eclesial onde se realiza a experiência crente?

5

acreditando em Deus.indd 5

9/8/2016 4:04:21 PM


A possibilidade de identificar metodologias e opções temáticas ao longo de toda a obra, indicadas com pertinência pelo autor, permite agora uma referência a três tópicos: o ponto de partida para esta investigação, as conclusões propostas e o contexto em que surgem. A novidade principal desta obra está no ponto de partida da investigação. O “chão” que se procura identificar para, a partir daí, traçar novos projetos para a transmissão da experiência crente são 1250 entrevistas feitas a quem frequentou a catequese. A maioria, 800, foram dirigidas a quem concluiu o itinerário catequético, em 10 anos; cerca de duas centenas a rapazes e raparigas que passaram quatro ou cinco anos pelas salas de catequese; e cerca de outras duas centenas a quem não passou por lá ou apenas frequentou a catequese um ou dois anos. Em todos os casos, o autor procura descrever a fé dos adolescentes e jovens com indicadores sobre o modo como a vivem e a relacionam com o quotidiano e a densidade de expressões como “creio em Deus”, “creio em Jesus Cristo”, “creio no Espírito Santo”. O processo catequético é objecto frequente de análises, fóruns, seminários, congressos que têm em comum uma caraterística: a ausência dos adolescentes e jovens dessas discussões, sempre muito positivas e proveitosas para quem as promove. No entanto, mantêm ou aumentam a distância em relação aos protagonistas de um ciclo de transmissão da fé, os adolescentes e jovens, e insistem em resolver problemas de gerações mais novas com o raciocínio dos mais velhos, sem os ouvir sequer. Ao “dar a palavra” a quem “andou na catequese”, esta obra identifica a fé que os mais novos professam através das suas expressões, da sua visão do mundo e do transcendente, e das referências que lhes são próprias. E esse é o primeiro passo para inverter um ciclo de abandono após anos na catequese, estimulando atitudes de acolhimento desde as fases iniciais de todo o processo catequético, as que se relacionam com o planeamento de um itinerário de transmissão da fé, produção de conteúdos e metodologias de relacionamento. ”Acreditar em Deus”, ao adoptar o método empírico, centra-se nos dados recolhidos e analisados pelo autor, mas vai além dessa relevante informação. A obra interpreta as respostas obtidas a partir de um quadro teológico, que precede todo este trabalho, adiantando conclusões que transportam esta investigação do espaço universitário para os vários ambientes da pastoral, nomeadamente a catequética e juvenil. No último capítulo, o autor clarifica os conteúdos catequéticos inegociáveis, nomeadamente os que dizem respeito às Pessoas da Santíssima Trindade, e adianta os pressupostos para que a catequese seja uma boa experiência, que é muito mais do que uma exposição qualificada de conteúdos colocando-os à consideração de quem ouve. Diante de muitas experiências onde já assim acontece, o desafio está na activação de uma rede entre diferentes contributos existentes e no esforço de fazer de experiências isoladas uma prática habitual e comum. A investigação agora publicada dá também um contributo muito relevante a uma interrogação que permanece sem resposta, mesmo que formulada com frequência: quais as razões para o abandono dos jovens após 10 anos de catequese? A pergunta foi lembrada pelo Papa Bento XVI em 2007 e do Papa Francisco em 2015 6

acreditando em Deus.indd 6

9/8/2016 4:04:21 PM


aos bispos de Portugal por ocasião da visita ad Limina, desafiados nas duas ocasiões a repensar os itinerários de formação cristã, nomeadamente das novas gerações. Esta obra fornece dados relevantes sobre o “chão” onde se podem construir novas propostas da transmissão da experiência crente às novas gerações, tendo em conta os dados sociológicos da sociedade actual que reconfiguram a emergência do factor religioso de forma bem diferente da que presidiu à elaboração de propostas catequéticas. De facto, as referências hoje são mais pessoais do que institucionais, as ligações acontecem em torno de grupos e não tanto de estruturas orgânicas e a transmissão faz-se mais por partilha do que por cuidados projetos de transmissão da fé. Um novo ambiente onde, mais do que saber se se acredita ou não em Deus, é estimulante fazer com que o quotidiano de cada pessoa aconteça ‘acreditando em Deus’. Este livro diz como a partir de quem crê! Paulo Rocha

7

acreditando em Deus.indd 7

9/8/2016 4:04:21 PM


Siglas e abreviaturas AFC

Análise factorial de correspondências.

AS

Análise de similitude.

AT

Antigo Testamento.

CEP

Conferência Episcopal Portuguesa.

CIC

Catecismo da Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 2003.

CCR

Ciência Cognitiva da Religião.

DGC

Congregação para o Clero, Directório Geral de Catequese, 1997.

DS

Denzinger-Schönmetzer. Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. 34 ed, Barcinonae, 1967.

DV

Concílio Vaticano II, Dei Verbum, Constituição dogmática sobre a divina revelação, 18 Novembro 1965.

EB Eurobarómetro. EG Francisco, Evangelii Gaudium, Exortação do Santo Padre Francisco ao episcopado, ao clero, às pessoas consagradas e aos fiéis leigos sobre o anúncio do evangelho no mundo actual, 2013. EMRC Educação Moral e Religiosa Católica. EN

Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, do Papa Paulo VI ao episcopado, ao clero, aos fiéis de toda a igreja sobre a evangelização no mundo contemporâneo, 1975.

ESS

European Social Survey.

EVS

European Values Survey.

FR

João Paulo II, Fides et Ratio, Carta encíclica aos bispos da igreja católica sobre as relações entre fé e razão, 1998.

IRP

Identidades Religiosas dos Portugueses.

ISSP

International Social Survey Programme.

IWM

Internal Working Model.

LF Francisco, Lumen Fidei, Carta encíclica aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos sobre a fé, 2013. LXX

Tradução grega do Novo Testamento.

NT

Novo Testamento.

NSYR

National Study of Youth and Religion.

PE

Psicologia Evolucionária.

PN Positivista-naturalista. RS

Representação Social.

TCS

Teoria Clássica da Secularização.

TER

Teoria da Escolha Racional.

TRS

Teoria da Representação Social

8

acreditando em Deus.indd 8

9/8/2016 4:04:21 PM


Introdução

Para o meu doutoramento em teologia (catequética e pastoral juvenil) tive a oportunidade de investigar a forma como os adolescentes portugueses que frequentaram o currículo catequético vivem, depois do fim da catequese, a sua fé. Que relação têm eles com Deus? Que imagem de Deus construíram? Quais os processos e pessoas envolvidos nessa elaboração de fé?

Motivação Este grupo de adolescentes é uma percentagem pequena da população portuguesa. Mas são, nas novas gerações, aqueles que estão mais perto das propostas eclesiais. A curiosidade em conhecer a forma como acreditam e a potencial utilidade das informações recolhidas foi motivação mais que suficiente para me meter ao caminho. Mas foi também uma forma de trazer para a praça pública e eclesial as vozes destes adolescentes que ousaram acreditar.

A história A Igreja em Portugal tem, desde o início dos anos 90 do século passado, uma oferta de 10 anos de catequese que culmina com o sacramento da confirmação. O objectivo central é habilitar as crianças e adolescentes a fazer este caminho para se tornarem crentes adultos, comprometidos com uma identidade cristã. Mas as mudanças sociais e religiosas que aconteceram em Portugal, somadas às possíveis fragilidades internas dos catecismos, põem em dúvida que esse objectivo esteja a ser atingido. Há uma diminuição da pertença eclesial, desarticulação entre fé e vida, desalento em muitos catequistas… Acerca deste tema há uma anedota: um padre lamenta-se com o seu bispo que há muitos morcegos no sótão da igreja. Diz ele que já tentou de tudo e não há maneira de os afastar. O bispo recomenda: “Crisma-os, que eles desaparecem de certeza”. Entre o engraçado e o amargo, esta anedota evidencia um problema importante na igreja portuguesa. Há um esforço sério por oferecer um currículo catequético com 10 anos de duração; a formação dos catequistas é feita com generosidade; os 60000 catequistas que somos fazem o seu trabalho com altruísmo e são uma das maiores experiências de voluntariado em Portugal. E, contudo, permanece uma sensação difusa de que algo não está bem.

9

acreditando em Deus.indd 9

9/8/2016 4:04:21 PM


Balanço crítico Mas todo este edifício catequético não está a dar grandes resultados. Há muitas vozes a queixarem-se que, depois do crisma e destes 10 anos, a identificação com a fé e a Igreja são muito fracas. E a situação é aborrecida porque dura, vai para mais de 20 anos. Ao mesmo tempo, há um consenso entre os especialistas que a adolescência está cada vez mais longa e que as pessoas estão a atrasar cada vez mais os processos de definição da identidade. O processo de catequese não tem mecanismos standard de avaliação para medir o sucesso dos objectivos propostos. O melhor que se consegue são umas impressões genéricas sobre a qualidade ou fracasso das ofertas, uma sensação difusa que estes adolescentes precisariam de melhores propostas pastorais. Acima de tudo, há uma profunda ignorância sobre as reais experiências de fé das novas gerações de cristãos. Este desconhecimento acerca das reais experiências religiosas impossibilita a existência de um debate sério sobre a fé em Deus, os conteúdos que se atribuem a Deus, e a qualidade de relação que com Ele se estabelece.

Que fé? No centro da experiência cristã e dos esforços evangelizadores da Igreja está a fé no Deus trinitário, revelado plenamente na pessoa, palavras e gestos, morte e ressurreição, de Jesus de Nazaré. De acordo com o Directório Geral de Catequese (= DGC), é a partir desta fé que pode crescer, com os adequados processos de inserção eclesial e educação-iniciação, uma identidade cristã, adulta e autónoma. Mas, insisto: sobre os adolescentes portugueses que seguiram o currículo catequético sabemos pouco sobre os conteúdos de fé que conhecem ou desconhecem, sobre a relevância que têm na vida. A necessidade de um melhor entendimento da realidade não é, principalmente, uma questão académica. É um tema importante para perceber a qualidade dos actuais processos pastorais. É um tópico decisivo para imaginar, pensar, projectar e implementar alternativas. Apesar deste cenário preocupante, é surpreendente que haja tão pouco conhecimento científico acerca deste grupo de adolescentes que frequentou a catequese. Muitas vezes, alguns circuitos eclesiais usam dados genéricos ou interpretações importadas da sociologia da juventude. Assumem que a juventude é uma realidade unificada e coerente e aplicam a todos os seus segmentos a mesma grelha. ­Sociologicamente, isto é muito fraquinho. Ignora as profundas fracturas que atravessam o continente juvenil. E esquece as especificidades dos processos de educação religiosa que foram activados com este grupo. Ou, pior, considera, sem perder muito tempo, que eles são irrelevantes.

10

acreditando em Deus.indd 10

9/8/2016 4:04:21 PM


Ao mesmo tempo, muita gente, boa gente, com diferentes níveis de competência e responsabilidade eclesial, não se conforma com o actual estado das coisas. Sentem que é seu dever procurar uma prática melhorada na Igreja.

Combater o desconhecimento A ignorância acerca da real experiência de fé dos adolescentes catequizados, a recusa em aceitar soluções simplistas e a solidariedade para com aqueles que estão empenhados numa renovação da pastoral levou-me a começar este projecto. Perceber como é que estes adolescentes assumem a fé da Igreja, quais as pessoas e processos envolvidos nessa apropriação, seriam descobertas úteis para todos aqueles que tentam estabelecer uma ponte entre a existência feliz do evangelho e o mundo dos jovens. A ignorância científica acerca da experiência religiosa dos jovens portugueses é assombrosa. Seria possível investigar os adolescentes portugueses como se fossem um grupo unificado. Mas escolhi estudar apenas aqueles que frequentaram os 10 anos de catequese. Eles são minoria. Mas são uma população interessante. São eles os mais identificados com a fé e a Igreja. Qualquer projecto de pastoral juvenil terá de lhes dar uma certa atenção. Saber quem são e como acreditam é tarefa obrigatória para melhorar a forma como fazemos pastoral juvenil.

Método Objectivos Afirmar e viver de acordo com a fé no Deus que Se revelou em Jesus Cristo é essencial para a existência cristã e para a práxis eclesial. O meu projecto de investigação tenta verificar a qualidade da recepção que os adolescentes portugueses fazem do anúncio do mistério de Deus. Depois de fazer catequese 10 anos, que fé têm os adolescentes entre os 15 e 21 anos? Esta pesquisa tem três objectivos. O primeiro é identificar as imagens de Deus elaboradas pelos adolescentes e a relação que estabelecem com Ele. O segundo é entender os processos pelos quais essas imagens são geradas e adoptadas. E, em terceiro lugar, quero reflectir e avaliar, dogmática e praticamente, as reais experiências de acreditar em Deus.

Escolhas Sigo uma abordagem teológico-prática. Ao contrário das ciências humanas que pretendem ser neutras face aos objectos que investigam, eu assumo uma perspectiva teológica. Esta opção teológica não quer negar o mérito das ciências humanas. Pelo contrário. Como sempre, a teologia faz-se em colaboração com outros saberes: filosofia, literatura, história, direito… No meu caso, optei por fazer caminho com a teologia empírica. Esta corrente defende que a tarefa teológica pode ser feita usando 11

acreditando em Deus.indd 11

9/8/2016 4:04:21 PM


os “textos” produzidos pelos métodos empíricos acerca da realidade contemporânea. Esta atenção empírica assegura um diálogo genuíno entre diferentes saberes. Uma segunda opção é a perspectiva prática. Quero estudar a Igreja em acção. Não basta investigar, mesmo com suporte empírico, a conformidade cognitiva entre o corpo doutrinal da Igreja e a maneira como os adolescentes o recebem. Quero perceber como é que eles se tornam protagonistas da sua apropriação de fé, o que é que está a acontecer, quem é que está envolvido.

A sequência Seguindo o método empírico-teológico, organizei a minha pesquisa em três momentos. Na primeira parte ofereço os critérios teológicos para definir a fé, recolho as pesquisas feitas pelas ciências humanas que têm algo a dizer ao tema e apresento a teoria das representações sociais como a ferramenta eleita. Começo, no capítulo 1, por discutir a teologia da fé. Como é que nos relacionamos com Deus? O que sabemos sobre Deus? A recuperação das perspectivas bíblicas prepara o terreno para apresentar a síntese contemporânea, que tem no catecismo da Igreja católica um bom exemplo. No capítulo 2 apresento o state of the art das ciências humanas em relação ao tema de Deus. Infelizmente, não há pesquisas prévias sobre o mesmo objecto deste projecto. Mas tentei fazer um levantamento dos tópicos interessantes. Distribuí o material encontrado em quatro níveis: ideológico-cultural, societal, interpessoal, intrapessoal. O nível ideológico está centrado na realidade portuguesa mas enfrenta uma grande pobreza de dados empíricos e de análise. No nível social temos uma situação diferente: há muitos dados sobre a situação religiosa em Portugal mas o número de estudos interpretativo é pequeno. Isto obrigou-me a pegar nos números disponíveis e a fazer umas “continhas” com eles. Nos níveis inter e intrapessoal não temos dados gerados em Portugal. Mas a quantidade de literatura internacional é imensa. Neste capítulo 2 não fiquei pelo resumo do existente mas tive de discutir os pressupostos epistemológicos e antropológicos do que tem sido feito. O capítulo 3 apresenta a teoria das representações sociais, a sua lógica, legitimidade epistemológica e metodologias preferidas. Salientei os seus méritos e relevância heurística na complexidade sociocultural de hoje. Uma comparação entre o entendimento cristão da fé em Deus e as representações sociais mostrou a existência de um alto grau de isomorfismo entre os dois, o que faz da teoria das representações sociais uma boa ferramenta para enquadrar a pesquisa empírica. Na segunda parte estive à volta dos dados recolhidos. Depois dos três capítulos da primeira parte, mais virada para a dimensão teorética, na segunda parte foi tempo de deixar os dados falarem. O capítulo 4 descreve e justifica o desenho de investigação. A triangulação é um estímulo à qualidade. No meu caso, usei triangulação de dados e de análise. Para 12

acreditando em Deus.indd 12

9/8/2016 4:04:21 PM


conseguir um melhor entendimento do ecossistema onde os adolescentes vivem a sua fé, recolhi dados de três níveis: os adolescentes, a catequese e a esfera pública. O capítulo 5 descreve os procedimentos analíticos usados e os resultados da análise. A principal ferramenta de análise foi o método Alceste. O Alceste tem um suporte teórico sólido e permite uma análise rápida de dados não estruturados. A Análise de Similitude é um método complementar que ajuda a fazer sentido dos dados brutos. Ambos os métodos têm uma tradição sólida no campo da pesquisa em representações sociais. Por fim, terceira parte relaciono os resultados do estudo empírico com as questões iniciais. Foi aqui que consegui ler, interpretar e avaliar os dados recolhidos na segunda parte. O capítulo 6 identifica as representações sociais produzidas pelos adolescentes a respeito de Deus, de Jesus e do Espírito, quais as representações trinitárias que delas derivam e as configurações assumidas pelos processos de objectivação e ancoragem. O capítulo 7 faz a interpretação teológica das representações antes identificadas. Segui uma abordagem diferente para a interpretação dogmática e para a teológico-prática. Na análise dogmática, discuti as representações de cada uma das pessoas divinas. Avaliei a teologia da fé implícita na amostra. No segundo momento, interpretei a práxis de fé dos respondentes. Comentei as experiências mais relevantes, os parceiros que contribuem para o caminho da fé e as consequências vitais da fé.

Agradecimentos É de justiça reconhecer que esta investigação só foi possível com o apoio e o encorajamento de muita gente. Em primeiro lugar, agradeço a paciência e as sugestões dos professores Anthony Francis-Vincent (que me ensinou a gostar da teologia empírica), Antonio Castellano e Sara Schietroma. A seguir, quero agradecer a todos os animadores, dirigentes de escolas, chefes escuteiros, sacerdotes e estruturas diocesanas que me puseram em contacto com os adolescentes que responderam aos questionários. Uma palavra para o Andrew May que me ajudou com o inglês em algum capítulo da versão original e para a Sofia Fonseca que faz a revisão da versão portuguesa. À minha comunidade de Maria Auxiliadora, pela paciência e encorajamento ao longo dos seis anos que durou este projecto. Aos amigos do Tasàtoa pela paciência. Ao João de Brito e Artur Pereira pelo apoio (não é fácil ser provincial!). Ao João Chaves, Juan Freitas e Gonçalo Carlos pelo apoio e sugestões.

13

acreditando em Deus.indd 13

9/8/2016 4:04:21 PM


acreditando em Deus.indd 14

9/8/2016 4:04:21 PM


1: Abordagem teológica à fé

Ao investigar a experiência de fé dos adolescentes, uma reflexão teórica (teológica) sobre a fé pode ser redundante. A fé parece ser coisa evidente. Falsa impressão! É bom “esmiuçar” convenientemente o conceito de fé, antes de começar o trabalho empírico e a sua interpretação. Três razões justificam esta opção. “Fé” é palavra altamente polissémica na população portuguesa. O universo semântico de fé está saturado de opiniões diferentes e divergentes. As duas raízes latinas credo e fides geraram um conjunto de termos bastante equivalentes. De credo vem “acreditar”, “credo”, “crédito”, “crença”. De fides vem “fé”, “fiar”, “confiar”. “Acreditar” pode ter uma conotação religiosa (acreditar em Deus, nos santos…), uns cheirinhos mágicos (acreditar em pessoas especiais, em procedimentos mágicos), ou uma conotação narcisista (acreditar em si mesmo). Na raiz latina e no português de hoje está também presente uma referência a operações económicas. A segunda razão está na polissemia que existe dentro da comunidade científica. Tal como veremos com mais calma no capítulo dois, o uso que os cientistas da religião fazem de “fé” é ambíguo. Por ignorância ou motivados pelo desejo de usar conceitos que englobem tudo, a precisão e clareza terminológica perdem-se muitas vezes. A terceira razão está dentro da experiência cristã. O conceito de fé, na tradição judaico-cristã, é rico, denso e plural. E esta riqueza gerou, ao longo dos séculos, controvérsias, reducionismos, visões empobrecidas… mas também algumas sínteses harmónicas. O objectivo deste livro não é estudar a fé nem a imagem cristã de Deus. Mas antes de avançar, seria importante ter algumas ideias bem arrumadas. Outros autores são especialistas destes temas e escreveram coisas mais profundas e bem articuladas. Permito-me recomendar três títulos: A fé da Igreja (2014). Um grupo de professores de teologia portugueses, coordenados por João Lourenço, compilaram um conjunto de textos complementares sobre o tema da fé. Gosto da perspectiva interdisciplinar do volume. Homo credens. Para uma teologia da fé (2004). É o manual de teologia fundamental escrito por João Duque. Escrito em português é acessível a quem se inicia ao estudo da teologia mas vai suficientemente longe para nos pôr a pensar. Il fondamento delle cose sperate. Teologia della fede cristiana (1997). Este está em italiano mas há uma versão inglesa. Em português, ainda não há. É o clássico manual sobre a teologia da fé escrita pelo cardeal Dulles. Completo sem ser pesado. Uma obra de referência incontornável. 15

acreditando em Deus.indd 15

9/8/2016 4:04:21 PM


1. Fé em Deus: uma perspectiva bíblica Não tenho a pretensão de me substituir aos biblistas que investigam a forma como a Bíblia foi dizendo a fé ao longo dos séculos. Quero apenas recordar os tópicos mais consolidados. Se entendermos a fé como a resposta adequada à amorosa revelação de Deus (CIC 142), depressa nos damos conta que o vocabulário que a Bíblia usa para descrever essa resposta é muito variado, o que pode confundir qualquer investigação, mas também enriquecê-la.

1.1 Fé no Antigo Testamento Ao nível da divulgação teológica é tentador apresentar uma visão sintética do que seria a fé veterotestamentária (Pié-Ninot, 2004). O problema é que, à nossa unidade conceptual da fé, não corresponde a respectiva unidade vocabular do texto bíblico. Aquilo a que o Antigo Testamento (e nós) chama “fé” diz-se com um amplo conjunto de expressões: ‘aman (estar sólido, seguro, fiel), batah (confiança), hasah (encontrar refúgio), qawah (desejar), hakah (esperar), jahal (antecipar)… (Ardusso, 2002, p. 611). Esta nuvem semântica exprime, em todas as suas nuances, a relação desejada entre Deus e a humanidade. Nesta relação é Deus que estabelece as “regras do jogo” e é a partir d’Ele que o crente deriva a sua existência. Mas esta definição ampla “levaria (…) a considerar quase todos os conceitos básicos do Antigo Testamento como «fé»” (J. Duque, 2004, p. 61). Para chegar a uma compreensão razoável é preciso usar um entendimento restrito de fé, que pode ser dado pelo radical ‘mn, que é usado com um sentido semelhante ao nosso. Os LXX (a versão grega do Antigo Testamento) traduzem hæ’æmin (o hifil de ‘mn) por pisteuein (= acreditar). Mesmo no uso profano significa “ter um apoio para a vida”. Este suporte, esta salvação, é exterior ao sujeito (individual ou comunitário). Em termos teológicos, YHWH é a fonte única para esse apoio; quem recebe esse suporte deve aceitá-lo numa atitude de fé. As experiências de relação com Deus que estão por detrás do AT ocorreram ao longo de muitos séculos. São plurais e exprimem-se de muitos modos. Mas há alguns pontos de convergência que chegaram até nós. A fé tem um carácter vinculativo. Ela está ligada à qualidade e à possibilidade da vida (Se não acreditardes, não subsistireis Is 7, 9). Além desta entrega confiada a Deus (que é fonte de vida), fé é também aceitação de conteúdos objectivos: «É para que eles acreditem que te apareceu o Senhor, o Deus dos seus pais, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob.» (Ex 4, 5). Ter fé em Deus é reconhecer as coisas maravilhosas que Deus fez no passado e confiar que Ele as fará hoje. Mas o fracasso sociopolítico de Israel e Judá, o exílio em Babilónia, a destruição do Templo, pareceram pôr em causa a viabilidade da fé em Deus. Em vez de seguir o caminho fácil (que seria declarar a fé como irrelevante), o exílio enriqueceu a experiência de fé, abrindo-a à dimensão do futuro e da esperança.

16

acreditando em Deus.indd 16

9/8/2016 4:04:21 PM


O entendimento veterotestamentário de fé é muito rico de matizes. A tese, simplista, de Martin Buber (Buber, 1995) em que o hebraico ‘emûnah (fé como confiança) se oporia ao grego pistis (fé como conteúdo) não tem fundamento.

1.2 Fé no Novo Testamento O Novo Testamento herda do Antigo as grandes intuições sobre a fé. E acrescenta a adesão à pessoa de Jesus de Nazaré. Há continuidade, pois ambos os Testamentos vêem a fé como acolhimento de Deus, a fonte única de salvação e vida em abundância. E porque Deus sempre pede confiança e entrega totais. Mas, ao mesmo tempo, há inovação: o Deus em que Se acredita está necessariamente conotado pelo evento cristológico. O Novo Testamento assiste a uma inflação do uso da raiz pist-. Pisteuein aparece 214 vezes, pistis 243 e pistós 67 vezes. Surgiram três distintas hipóteses para explicar este uso intensivo de pist-. A primeira baseia-se na história das religiões. A fé seria uma experiência comum a todas as experiências religiosas; todas as religiões estariam baseadas no desejo humano de atingir o divino; os esforços missionários da Igreja nascente forçaram ao uso desta categoria para conseguir relevância cultural no contexto cultural helenista. Uma segunda hipótese ignora o contexto religioso e valoriza sobretudo a continuidade com o Antigo Testamento: Pist- seria apenas a palavra grega escolhida para exprimir a antiga síntese de fé. A terceira hipótese tenta fazer uma ponte entre o empenho missionário da Igreja (e o inevitável diálogo com as palavras e categorias gregas) e a herança espiritual do Antigo Testamento, sem pôr em causa a especificidade do Novo Testamento. O Deus fiel em quem confiámos manteve as suas promessas em Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado. A fé como confiança mantém-se mas fica mais claro qual o objecto dessa confiança: Jesus Cristo. Ardusso propõe como síntese a categoria de fides Jesu (a fé de Jesus), ­popularizada por von Balthazar e, mais recentemente, por Sequeri (Ardusso, 2002, p. 615).1 Com facilidade, a fé como conteúdo e a fé como confiança são meramente justapostas, sem continuidade nem articulação entre ambas. A fé tem sempre uma dimensão personalista e relacional. Mas isto não deve ser entendido a partir das relações humanas. A fé cristã deve ser compreendida a partir da relação que Jesus estabelece com o Pai. A fé que salva, como conteúdo e como relação, é, para o crente, apropriação da mesma experiência de fé que Jesus fez. Os textos bíblicos nunca apresentam Jesus como sujeito do verbo acreditar. Mas, para lá do nível filológico, ela é evidente. É a um nível existencial-teológico onde a intensidade da relação de Jesus com o Pai se torna normativa para nós. Uma curiosidade que se detecta ao ler a maioria dos comentários e obras de síntese sobre a fé: a perspectiva trinitária está ausente. A teologia da Trindade Pode-se usar O’Collins (O’Collins & Kendall, 1992) e Fries (Fries, 1996, pp. 74-76) para uma síntese bíblica deste conceito. Wallis oferece uma boa síntese do ponto de vista evangélico (I. G. Wallis, 1995). 1

17

acreditando em Deus.indd 17

9/8/2016 4:04:21 PM


presente na Bíblia não tem o nível de desenvolvimento que atingirá posteriormente nos primeiros quatro concílios ecuménicos, mas é estranho que o enquadramento trinitário da experiência de fé não seja sublinhado ao mesmo nível que o balanço entre fides qua e fides quae ou que a concentração cristológica.

2. Uma síntese contemporânea para a fé Uma boa síntese contemporânea do que é a fé está no Catecismo da Igreja Católica (= CIC) e em documentos eclesiásticos posteriores que têm o CIC como ponto de referência. O capítulo 3 da 1ª secção (142-157) chama-se “Homo Deo respondet”. O título é adequado porque a fé é entendida como um diálogo constante entre o Deus que Se revela a Si mesmo (CIC 142) e a humanidade que tenta responder adequadamente à revelação de Deus (CIC 143).

2.1 Credo: eu acredito Esta atitude de fé obediencial está enraizada na Bíblia e o CIC refere os exemplos de Abraão (145-147) e de Maria (148-149). A fé é apresentada na sua dupla perspectiva de adesão pessoal a Deus e de assentimento livre a toda a verdade por Ele revelada. O CIC prefere a expressão adesão (adhaesio personalis), com o seu carácter relacional e forte carga existencial. O CIC não usa explicitamente a expressão clássica fides qua e fides quae mas está claramente a referir-se a essas duas faces da fé: mais relacional ou mais cognitiva. Ambos os processos de confiança relacional e assentimento são amplamente estudados. O DGC 92 parece quase um desenvolvimento de CIC 150: “A fé cristã, mediante a qual uma pessoa pronuncia o seu «sim» a Jesus Cristo, pode ser considerada sob um dúplice aspecto: – como adesão a Deus que se revela, dada sob a influência da graça. Neste caso, a fé consiste em confiar na palavra de Deus e em abandonar-se a esta (fides qua); – como conteúdo da Revelação e da mensagem evangélica. A fé, neste sentido, exprime-se no empenho em conhecer sempre melhor o sentido profundo daquela Palavra (fides quae).”

Estes dois aspectos não podem, por sua própria natureza, ser separados. O amadurecimento e o crescimento da fé exigem o seu orgânico e coerente desenvolvimento. Todavia, por razões de ordem metodológica, os dois aspectos podem ser considerados separadamente.

2.1.1 Fides qua e fides quae Dentro do mainstream teológico há um consenso sólido defendendo uma forte articulação dos dois aspectos da fé. As sínteses agostiniana e tomista não excluem o elemento fiducial (Dulles, 1997, pp. 256-257). Fé é a homenagem ao Deus que Se revela, é aceitação da sua autoridade (credere Deo). Mas é também concordância com tudo o que Deus revelou (credere Deum). E é, finalmente, entrega e confiança (credere in Deum). Estes aspectos não são três actos distintos mas estão presentes em

18

acreditando em Deus.indd 18

9/8/2016 4:04:21 PM


qualquer experiência de fé. O Vaticano II, sublinhando a linguagem bíblica, insiste no mesmo tópico (DV 5). A exigência de balanço e harmonia entre os dois termos é permanente.2 Mas na prática eclesial há constantes tensões e diferentes prioridades. O modelo tridentino deu prioridade aos conteúdos, esperando, a partir daí, gerar uma nova qualidade de relação com Deus. “Alicerçado na sociedade tradicional, o Concílio cuidou para que fosse redigido o catecismo dos párocos (1566), uma espécie de síntese doutrinal empreendida pelo Concílio, que se tornou modelo para os catecismos que, em número crescente, vieram a ser redigidos nos séculos seguintes. A finalidade desses catecismos era transmitir a sagrada doutrina católica. Tal prática catequética servirá de ponto de partida para a elaboração do primeiro paradigma, que se caracteriza pela transmissão da fides quae por meio do ensinamento para se chegar à fides qua” (Carmo, 2012, p. 81).

A convergência de tantos movimentos de renovação eclesial ao longo do século XX (bíblico, litúrgico, laicado…) faz apelo a um novo paradigma de transmissão da fé, capaz de superar as aporias do divórcio entre Igreja e modernidade. Segundo Ramos, este novo paradigma não está primariamente preocupado com a integralidade, sistematicidade e organicidade da mensagem cristã. Opta por deslocar o centro do conteúdo para o sujeito e para a forma como estes se relacionam com Deus (Ramos, 1998, pp. 363-376). É fácil identificar os limites dos modelos pastorais que dão a prioridade ora a um, ora a outro dos termos. É fácil reagir e sublinhar os limites percebidos. Mas persiste a sensação que o balanço harmonioso auspiciado pelo CIC está longe de ser atingido. A encíclica Lumen Fidei (=LF) tenta, em diálogo com os desafios da sociedade contemporânea, uma síntese harmoniosa. “O homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros os nossos passos. Seria uma linda fábula, a projecção dos nossos desejos de felicidade, algo que nos satisfaz só na medida em que nos quisermos iludir; ou então reduzir-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz de sustentar um caminho constante na vida.” (LF 24)

“Acreditamos com o coração” (Rom 10, 10). O coração, centro existencial da pessoa (“o corpo e o espírito, a interioridade da pessoa e a sua abertura ao mundo e aos outros, a inteligência, a vontade, a afectividade” LF26) capacita a pessoa para a experiência de fé, onde o conhecimento de Deus e a relação com Ele estão em harmonia e se tornam fonte de um novo estilo de vida. Há, obviamente, excepções. Pode-se citar, num âmbito mais filosófico, Derrida (fé sem objecto), Jean-Luc Nancy (fé como relação com o nada) ou Marion (fé no nome) (Horner, 2009; Titans, 2010). Na área da psicologia temos Fowler a defender que a fé tem um carácter genérico. Seria uma marca universal, comum a toda a humanidade. Ele reduz a fé à capacidade de confiar no absoluto, independentemente de quaisquer conteúdos. Dulles faz uma boa uma avaliação teológica de Fowler, sublinhando as suas debilidades (Dulles, 1997, pp. 341-345). 2

19

acreditando em Deus.indd 19

9/8/2016 4:04:21 PM


2.1.2 Fé: uma experiência específica de Deus A experiência da fé, na sua dimensão dual de conhecimento e relação confiada, tem análogos na experiência humana. Escreve Sesboüé: “o crer faz parte do quotidiano das nossas vidas… não podemos viver sem crer naquilo que os outros dizem”(2000, p. 44). Vários autores defendem os méritos da crença cognitiva, distinta do conhecimento empírico e científico (Sequeri, 2006, p. 3991). A confiança, no âmbito das relações interpessoais e sociais, é também essencial à condição humana (Marková & Gillespie, 2007; Sztompka, 2003). Mas que valor têm estas experiências humanas para a fé teológica? Uma leitura horizontalista acentuaria tal continuidade entre os dois polos que a fé teológica seria mera manifestação do humano. Em sentido oposto, a teologia dialéctica sugere que não há qualquer ponto de contacto entre a fé cristã e as experiências antropológicas. A teologia católica sempre procurou posições mais equilibradas. A origem sobrenatural da fé, a prioridade da iniciativa de Deus neste diálogo com a humanidade, não é posta em causa por nenhuma corrente significativa. E a resposta dada pela humanidade é realmente humana, com “a estrutura antropológica de uma experiência realmente humana, individual e social, existencial e histórica” (Sequeri, 2013, p. 106). Segundo o CIC 154, “O acto de fé só é possível pela graça e pelos auxílios interiores do Espírito Santo. Mas não é menos verdade que crer é um acto autenticamente humano. Não é contrário à liberdade nem à inteligência do homem confiar em Deus e aderir às verdades por Ele reveladas.” O que torna a experiência de fé em Deus (no duplo sentido relacional e cognitivo) diferente de outras experiências interpessoais de fé? O seu “objecto”. A fé, quando tem Deus por destinatário, ganha um carácter absoluto. “Enquanto adesão pessoal a Deus e assentimento à verdade por Ele revelada, a fé cristã difere da fé numa pessoa humana. É justo e bom confiar totalmente em Deus e crer absolutamente no que Ele diz. Seria vão e falso ter semelhante fé numa criatura.” (CIC 150). É só com o Deus único e absoluto que a fé se torna uma experiência única. Neste sentido, a fé é uma experiência qualitativamente diferente de outras experiências de conhecimento ou confiança.

2.1.3 O enquadramento trinitário da fé cristã O CIC apresenta a fé como uma realidade trinitária. Este enquadramento trinitário consegue-se com os títulos paralelos de números consecutivos: Creio só em Deus (150), Creio em Jesus Cristo filho de Deus (151), Creio no Espírito Santo (152). Acreditar em Deus é, inseparavelmente, acreditar em Jesus, o filho e perfeito revelador do Pai. A formulação usada em CIC 151 refere-se genericamente à fé e pode incluir a fides qua e a fides quae. Deus apresenta o seu filho como digno de fé e Jesus reclama para Si a mesma fé que é devida a Deus. A Lumen Fidei desenvolve bastante a experiência de fé em Jesus. A história de Jesus é a plenitude da revelação de Deus. “Todas as linhas do Antigo Testamento se concentram em Cristo: Ele torna-Se o «sim» definitivo a todas as promessas, fundamento último do nosso 20

acreditando em Deus.indd 20

9/8/2016 4:04:21 PM


«Amen» a Deus.” (LF 15) A história de Jesus como experiência revelatória de Deus tem o seu ponto alto na morte por amor. “Jesus ofereceu a sua vida por todos, mesmo por aqueles que eram inimigos, para transformar o coração.” (LF 16) A história de Jesus não é apenas uma fonte de informação sobre Deus; é também interacção com Ele. A ressurreição de Jesus evidencia até que ponto o Pai é fiável. “Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu corpo, não seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas da morte.” (LF 17) A ressurreição de Jesus mostra como Deus actua no mundo e é encontrável, aqui e agora: “… os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que actua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo.” (LF 17) LF 18 vai ainda mais longe, descrevendo o papel de Cristo no processo de fé do crente: “na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar.” (LF 18) No processo de fé, Jesus não é somente o revelador para quem olhamos; Ele é também o modelo que nos ensina a acreditar. Acreditar é acreditar como Jesus acreditou. (Costadoat, 2007) “A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver.” (LF 18) Esta intimidade de fé entre Jesus e o crente permite à Lumen Fidei aplicar a Cristo a clássica distinção credere Deo, credere deum, credere in Deum: “Juntamente com o «crer que» é verdade o que Jesus nos diz, João usa mais duas expressões: «crer a (sinónimo de dar crédito a)» Jesus e «crer em» Jesus. «Cremos a» Jesus, quando aceitamos a sua palavra, o seu testemunho, porque Ele é verdadeiro. «Cremos em» Jesus, quando O acolhemos pessoalmente na nossa vida e nos confiamos a Ele, aderindo a Ele no amor e seguindo-O ao longo do caminho.” (LF 18)

O número 151 do CIC apresenta o papel do Espírito Santo no processo da fé. É o Espírito quem nos revela quem é Jesus. O acesso a Deus e ao seu mistério só acontece no e através da acção do Espírito. “Nós cremos no Espírito Santo, porque Ele é Deus.” (CIC 152) Esta ideia ressurge nos números 683 e 687. Persiste alguma ambiguidade na interpretação. CIC 152 pode ser lido como fides quae mas também como fides qua. “Este conhecimento da fé só é possível no Espírito Santo. Para estar em contacto com Cristo, é preciso primeiro ter sido tocado pelo Espírito Santo.” (CIC 683) A Lumen Fidei traz uma perspectiva similar. O Espírito é a condição de possibilidade pelo qual temos acesso à fides Jesu: “o cristão pode ter os olhos de Jesus, os seus sentimentos, a sua predisposição filial, porque é feito participante do seu Amor, que é o Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão própria de Jesus. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito que o infunde nos nossos, é impossível confessar Jesus como Senhor.” (LF 21)

João Duque tenta equacionar a relação fides qua – fides quae dentro do enquadramento trinitário: 21

acreditando em Deus.indd 21

9/8/2016 4:04:21 PM


“a fé cristã tem para com a Trindade uma relação analógica, de participação e correspondência; essa analogia funda a fé, na sua forma e no seu conteúdo, como processo analógico no ser humano, entendida aqui a analogia como relação de diferentes. Assim, por analogia com a Trindade, a relação de diferenças é o modo de ser da fé cristã, seja como fides quae seja como fides qua. Essa determinação da fé realiza-se concretamente no acolhimento do ser como doação de outro (relação à alteridade como origem ou memória), na modalidade do ser com o outro (relação à alteridade como caminho ou presente) e na doação do ser ao outro (relação à alteridade como meta ou esperança)” (J. Duque, 2007, p. 277).

2.1.4 Dom e tarefa Uma das insistências da teologia da fé é o seu carácter sobrenatural. Insiste-se que o objecto da fé é divino mas que também a nossa resposta à comunicação por Deus iniciada só é possível pela graça. Há uma forte continuidade entre Orange II, Trento, Vaticano I e Vaticano II afirmando que a fé é um dom de Deus (Dulles, 1997, p. 309). Na disseminação popular desta ideia, a graça de Deus que possibilita a fé tornou-se um conceito vago e impessoal. O CIC ajuda a reconduzir a graça à pessoa do Espírito Santo: “Para prestar esta adesão da fé3, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo, o qual move e converte o coração para Deus, abre os olhos do entendimento, e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’.” (CIC 153, citando DV 5).

A tradição da Igreja sempre sentiu a necessidade de afirmar que a fé é um dom de Deus e não uma possibilidade autónoma do homem. Mas, ao mesmo tempo, reconhece-se que a fé é um acto realmente humano. A resposta humana ao diálogo iniciado por Deus não é um eco automático, um reflexo condicionado (Colombo, 1993). Na fé, só possível pela graça de Deus e pela presença do Espírito, a pessoa humana age com toda a sua liberdade, inteligência e confiança. O carácter plenamente humano da fé está ligado à sua liberdade: “Para ser humana, «a resposta da fé, dada pelo homem a Deus, deve ser voluntária. Por conseguinte, ninguém deve ser constrangido a abraçar a fé contra vontade. Efectivamente, o acto de fé é voluntário por sua própria natureza»”. (CIC 160)

2.1.5 Fé e inteligência Na sequência da participação humana no acto de fé, surge o tópico da relação entre fé e inteligência. Porque é que acreditamos? Qual o papel da inteligência e da racionalidade no acreditar? O debate entre racionalistas e fideístas leva séculos de duração. Hoje, mais do que posições assumidas por alguém de forma sistemática, elas mantêm-se como polos opostos de diferentes sensibilidades. Para os racionalistas, a escolha da fé nasce de uma justificação racional. Para os fideístas, a confiança amorosa em Deus não precisa de outra justificação que a divina revelação. Quase todas as traduções falam apenas de “fé”; só a versão portuguesa europeia usa “adesão de fé”. 3

22

acreditando em Deus.indd 22

9/8/2016 4:04:21 PM


A divina revelação não é imediatamente verdadeira para a razão humana. Acreditamos apoiados na fé e confiança que temos em Deus e não em consequência de uma qualquer operação mental. “Nós cremos «por causa da autoridade do próprio Deus revelador, que não pode enganar-se nem enganar-nos».” (CIC 156) E o CIC continua a citar a síntese elaborada pela Dei Filius, defendendo uma certa articulação entre fé e razão: «Contudo, para que a homenagem da nossa fé fosse conforme à razão, Deus quis que os auxílios interiores do Espírito Santo fossem acompanhados de provas exteriores da sua Revelação». No processo da fé, há espaço para os sinais históricos de credibilidade que permitem à fé não se reduzir a uma aposta às cegas. Sem resolver inúmeras questões académicas, a Dei Filius limita-se a fazer três afirmações: os argumentos intrínsecos não podem demonstrar a verdade da revelação; a sua credibilidade é demonstrável; o motivo da fé não é a força dos argumentos mas a autoridade de Deus que Se revela a Si mesmo. É longa a história da apologética, da procura de um fundamento para a fé, capaz de lidar com os desafios externos que a fé encontra nos diferentes lugares, tempos e culturas. Nos primeiros séculos da Igreja, esta aliança entre fé e sinais de credibilidade, foi usada para defender e justificar a superioridade da experiência cristã sobre a restante “competição” religiosa. Com o advento da modernidade, foi preciso mudar de estratégia e tornou-se necessário justificar até a possibilidade da revelação.4 Formalmente, o CIC segue a Dei filius mas deve ser interpretado à luz da teologia da fé do Vaticano II. Trento e o Vaticano I surgem num contexto de combate ideológico e cultural, onde o principal objectivo é “derrotar” as “ideias erradas”. O clima mais “sereno” do Vaticano II propiciou uma síntese mais compreensiva. Por outro lado, a aliança entre a linguagem bíblica e a perspectiva personalista favoreceram uma deslocação das razões de credibilidade externas para os motivos de credibilidade internos (Gelabert Ballester, 2005). Fides et Ratio (= FR) é significativa desta nova orientação. Num contexto pós-moderno de relativismo e descrença em valores sólidos, João Paulo II sublinha a procura da verdade. Mas de uma verdade que é muito mais do que Adaequatio rei et intellectus. É verdade que deve ser capaz de dar resposta “àquela exigência de sentido que, desde sempre, urge no coração do homem” (FR 1). Esta verdade que a revelação oferece “não é o fruto maduro ou o ponto culminante dum pensamento elaborado pela razão. Pelo contrário, aquela apresenta-se com a característica da gratuidade, obriga a pensá-la, e pede para ser acolhida, como expressão de amor. Esta verdade revelada é a presença antecipada na nossa história daquela visão última e definitiva de Deus, que está reservada para quantos acreditam n’Ele ou O procuram de coração sincero.” (FR 15)

O tema da credibilidade tem feito oscilar a sua morada entre a teologia fundamental e a teologia prática. Mas muita da produção da teologia fundamental limita-se a recordar a história e os méritos desta categoria, empurrando a pastoral e a catequética para a redução deste tema a uma operação metodológica. 4

Para uma abordagem histórica: (Dulles, 1997, pp. 282-286; J. Duque, 2004, pp. 201-214). 23

acreditando em Deus.indd 23

9/8/2016 4:04:21 PM


Fides et Ratio 67 identifica quatro factores de credibilidade: (1) o conhecimento natural de Deus, (2) a possibilidade de distinguir a divina revelação de outros fenómenos, (3) a capacidade da linguagem humana se exprimir de forma verdadeira e significativa mesmo a respeito de coisas que transcendem toda a experiência humana, (4) a procura pelas condições em que a pessoa se pergunta, por sua iniciativa, acerca do significado da vida, o rumo que lhe quer dar e o que o espera depois da morte (Pié-Ninot, 2004, pp. 186-187). Gelabert apresenta uma proposta estruturada em torno de dois vectores: a atenção ao contexto histórico-cultural e a perspectiva trinitária. Credibilidade é algo que uma pessoa ou instituição tem e que a torna merecedora de fé ou confiança (Gelabert Ballester, 2007). A credibilidade é uma realidade fluida, não determinista. Depende da interacção entre a seriedade dos que pedem confiança e a atitude positiva do destinatário. Em consequência, o pedido concreto por razões de credibilidade presta atenção ao universo social, económico e cultural onde a proposta de fé ocorre. Um dos problemas da apologética clássica era a falta de atenção às condições em que a pessoa poderia aceitar a revelação de Deus. Dentro de cada horizonte cultural surgem alguns critérios para garantir credibilidade. O primeiro é a razoabilidade. Assegura que não há incompatibilidade entre a fé e a razão. Isto permite distinguir o movimento pedido pela fé da ingenuidade, superstição ou irracionalidade. Outro critério, ainda mais importante, é o significado, o sentido, que a fé oferece à existência. A fé aparece como credível se permite antever a possibilidade de salvação, de uma vida com maior qualidade. Mesmo quando a proposta da fé aparece como “inacreditável”. Obviamente esta oferta de salvação deve ser inculturada. Mas esta inculturação tem de ter mais espessura que uma simples “moda”. Deve ser significativa, aos níveis mais profundos. É inútil tentar uma acomodação da fé que se fica pelos aspectos exteriores ou epidérmicos (Uríbarri, 2003). A fé deve aparecer como verdadeira e desejável. Mas mais do que demonstrar a necessária existência de Deus ou a factualidade deste ou daquele evento, a credibilidade alcança-se clarificando a imagem de um Deus “que faz escolhas”, que Se coloca do lado da possibilidade e qualidade da vida. É evidente, contudo, que a credibilidade enfrenta limites. Limites impostos, antes de mais, pela qualidade do testemunho eclesial. Se a prática dos crentes é inconsistente com a fé proposta, a credibilidade torna-se difícil (Rom 2, 24; GS 19.21). Há ainda os limites do destinatário. Certas situações, perspectivas, preconceitos, tornam árduo o acesso à fé. Uma postura existencial fechada ao amor tende a bloquear a abertura a uma proposta que é, no fundo, o anúncio de um Deus amoroso (Ef 3, 17-19). O processo da fé faz sempre apelo a uma conversão. Não esquecendo o estilo pedagógico de Deus (na história da salvação e na vida pessoal de cada crente), a fé pede sempre uma transformação profunda e radical. A rejeição desta possibilidade mina a credibilidade da fé. Há ainda um limite associado à estrutura da fé: a fé, mesmo quando segura, coexiste com a possibilidade da dúvida. Sendo experiência luminosa, é também obscura.

24

acreditando em Deus.indd 24

9/8/2016 4:04:21 PM


Quais seriam os motivos de credibilidade que hoje facilitam o acesso ao Deus Trindade? Na apologética clássica, a procura destes motivos serviria, para lá do exercício académico, apenas para os não-crentes. A formulação usada pelo CIC sugere que este tópico é relevante também para aqueles que estão já envolvidos na experiência de fé. Obviamente não basta limitarmo-nos a repetir as fórmulas que o magistério e a reflexão teológica sedimentaram. Temos de procurar o ponto de encontro entre a revelação de Deus e as aberturas humanas. O primeiro e melhor testemunho do mistério trinitário é Jesus de Nazaré. Da credibilidade de Jesus tudo depende. A sua vida, práxis, palavra, as suas atitudes (tal como recordadas e interpretadas pela comunidade dos seus seguidores) são um sinal poderoso da sua credibilidade (Gallo & Miranda, 2007). Em Jesus acontece o mix de “credível” (Ele merece a nossa confiança e o que Ele diz parece ser confirmado pelo seu teor de vida) e de “incrível” (Ele abre-nos a um horizonte maior do que poderíamos imaginar) que sugere estarmos à beira do mistério.

2.1.6 Fé e salvação No ponto anterior vimos “porque” acreditar. Importa também perceber “para quê” acreditar. CIC 161 sugere a necessidade da fé para a salvação. É só na adesão ao Deus que vem ao nosso encontro para nos “dar vida e vida em abundância”, que a nossa existência pode superar a opressão do mal (e de todas as suas versões categoriais), agora e para sempre. Esta é uma das noções mais centrais da Escritura e da tradição eclesial. Mas esta centralidade é, na percepção das pessoas, mais aparente do que real. Por muitas razões, o conceito de salvação cristã foi distorcido e fracturado. De uma experiência que deveria permear toda a existência, foi “adiada” para a eternidade, fazendo do presente um mero prelúdio da salvação futura. De uma proposta dada “a todos os homens e ao homem todo” tornou-se uma questão privada. De uma oferta que se propunha transformar a pessoa toda, em linha com a antropologia bíblica, promoveu a fractura corpo-alma. Além disso, o conceito de salvação é hoje contestado por outras propostas religiosas e espirituais. Já na Escritura encontramos a tensão entre auto-salvação e salvação como dom de Deus. Comentando o conflito entre Paulo e os judaizantes, a Lumen Fidei escreve: “Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas, coloca-se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus.” (LF 19) Culturalmente, este debate continua activo. A sensibilidade new age está marcada por um certo narcisismo individualista e pela crença prometaica que a salvação, perfeição, é atingível pelas próprias forças. “A perfeição (…) significa atingir a auto-realização, de acordo com uma ordem de valores que nós próprios criámos e que atingimos pelas nossas próprias forças: podemos falar de um eu auto-criador” (Pontifício Conselho para a Cultura & Pontifício Conselho para o Diálogo Interreligioso, 2003, p. 2.3.4.1). Um outro problema acerca do que é a salvação surge com a sua reificação. A fé é vista como uma “coisa”, como algo que Deus dá. É uma terceira entidade transferida 25

acreditando em Deus.indd 25

9/8/2016 4:04:22 PM


entre Deus e o homem. Não é este o entendimento da tradição eclesial. “Ao aceitar o dom da fé, é transformado numa nova criatura, recebe um novo ser, um ser filial, torna-se filho no Filho.” (LF 19) Mais do que uma lista, mais ou menos extensa, de bens, a salvação oferecida por Deus é a possibilidade de identificação com Jesus na sua condição de Filho amado. É a reconfiguração da identidade pessoal tornada possível pela adesão ao mistério do Deus Triuno. Esta perspectiva mais relacionaltrinitária não exclui uma perspectiva mais histórica do Reino. “Jesus, de facto, anunciou o Reino de Deus: uma nova e definitiva intervenção de Deus, com um poder transformador tão grande e até mesmo superior àquele que utilizou na criação do mundo. Neste sentido, «como núcleo e centro da sua Boa Nova, Cristo anuncia a salvação, esse grande dom de Deus que é não somente libertação de tudo aquilo que oprime o homem, mas é sobretudo libertação do pecado e do Maligno, na alegria de conhecer a Deus e de ser por Ele conhecido, de vê-Lo e de se entregar a Ele».” (DGC 101)

É a partir deste impacto soteriológico da fé que o tema da relação entre fé e ortopraxis deve ser articulado. A experiência da fé, relação com o Deus Tri-uno que Se manifesta plenamente em Jesus de Nazaré, oferece ao crente uma dupla novidade. Em primeiro lugar, ele vê os seus critérios, os seus valores, as suas prioridades alteradas de acordo com a lógica do Reino. E em segundo lugar, ele encontra na intimidade com Deus um amplo espectro de novos recursos existenciais, que o capacitam para uma práxis inovadora. Lohfink reflecte argutamente sobre a forma como este processo moldou a Igreja desde o início (Lohfink, 1986, pp. 92-156). Na mesma linha vai González Faus: “A novidade desse Homem [Jesus] converteu-se então para todos em promessa, em exigência e em revelação: Promessa de que a transformação do mundo num lugar de fraternidade, de justiça e de liberdade, tem força e razão de ser mesmo que a vida pareça destruir todas as expectativas daqueles que o desejam (…) Exigência de viver para o mesmo que Ele, à espera do seu dia; de aniquilar todos os poderes que amarram o homem, e de converter a sua forma de vida na atmosfera da própria vida (…) Revelação do projecto de Deus sobre o mundo e os homens, do ser de Deus como comunhão e doação de si, e da verdade divina do homem que consiste na sua entrega e amor aos outros”(González Faus, 1994, pp. 577-578).

A Lumen Fidei sublinha a ligação entre a fé e o amor feito acção. Acção entendida também a nível social, empenhada na transformação das estruturas. “A luz da fé coloca-se ao serviço concreto da justiça, do direito e da paz.” (LF 51) O encontro com o amor criativo e gerador de Deus aponta novos percursos para as nossas sociedades.

2.2 Credimus: Nós acreditamos O pronome “nós” tem algo de ambíguo. “Nós” pode designar um sujeito realmente social e colectivo. Mas pode ser apenas uma abstracção que designa a soma de diferentes sujeitos individuais. Quando dizemos “nós fomos jogar futebol”, estamos a usar um “nós” colectivo; mas quando dizemos “nós lemos o livro tal”, 26

acreditando em Deus.indd 26

9/8/2016 4:04:22 PM


“nós” é apenas a agregação de vários indivíduos. Quando dizemos “nós acreditamos”, quem é este “nós”? A soma dos crentes individuais ou uma ekklesia real?

2.2.1 A Igreja como lugar da fé pessoal O CIC insiste que não há crentes isolados; a fé, como toda a vida, acontece dentro de um processo de transmissão social, onde todos estão activamente envolvidos: “Ninguém se deu a fé a si mesmo, como ninguém a si mesmo se deu a vida. Foi de outrem que o crente recebeu a fé; a outrem a deve transmitir.” (CIC 166) O CIC usa a metáfora da corrente para descrever a perspectiva comunitária da fé. O que é recebido, é também transmitido. “Não posso crer sem ser amparado pela fé dos outros, e pela minha fé contribuo também para amparar os outros na fé.” CIC 167 começa por apresentar a variedade dos sujeitos dos credos primitivos. “Eu creio” (credo) no símbolo dos apóstolos e “Nós cremos” (credimus) no Credo de Niceia. Mas esta dualidade não é contraditória e o texto tenta harmonizá-la: “«Eu creio»: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: «Eu creio», «Nós cremos».” (CIC 167) Kelly e Ratzinger detectam, por detrás da dupla formulação “Eu-nós”, o contexto dialógico da profissão de fé. “Por um lado trata-se de um acontecimento altamente pessoal, cuja insubstituível peculariedade vem claramente à luz no triplo «eu creio», como aliás no precedente «eu renuncio» (…) Mas além do elemento pessoal encontramos logo um segundo elemento, isto é o facto que a decisão tomada pelo eu se exprima sob a forma de resposta a uma pergunta, no intercâmbio entre «acreditas?» e «acredito!»” (Ratzinger, 2003, p. 54)

Kelly estabelece um paralelismo entre as fórmulas interrogativas e declarativas (Kelly, 2006, pp. 114-115). Schonborn, prestando mais atenção aos conteúdos, recorda que a expressão de fé é sempre pessoal mas na profissão pessoal de fé não se exprimem ideias privadas mas sim a fé que é comum a toda a Igreja (Schönborn, 1997, p. 33). Há uma continuidade entre credo e credimus. A natureza comunitária da fé, quer como conteúdo quer como processo, colide com o individualismo contemporâneo. Fisichella (1993) identifica problemas que brotam do subjectivismo radical, da indiferença religiosa e da exigência de autenticidade. Este autor dá um contributo interessante ao tentar justificar teologicamente a natureza social da pessoa. O CIC faz uma afirmação de facto: somos seres sociais e isto sustenta a exigência do carácter eclesial da fé. Nisto segue o que seria um suposto consenso acerca de uma antropologia saudável.5 Mas isto não é muito eficiente diante de uma antropologia de pendor mais individualista, que torna irrelevante o horizonte eclesial na experiência da fé. Fisichella sugere que a perspectiva trinitária é crucial à hora de nos definirmos como pessoas. Fomos feitos à imagem do Deus comunhão e, independentemente “As ciências humanas e até as teológicas dedicaram particular atenção à dimensão social e dialogal; o homem se faz homem permanecendo em comunhão com outros homens, isto é, com pessoas como ele que vivem com os outros e para os outros”. (Goffi, 1989, p. 510) 5

27

acreditando em Deus.indd 27

9/8/2016 4:04:22 PM


das experiências psicológicas ou culturais que nos moldam, permanecemos seres de relação (Fisichella, 1993, pp. 73-80). A Igreja não deve ser considerada como mais uma instituição social em competição com a autonomia do sujeito. Ao recuperarmos a reflexão paulina sobre a nova condição dos crentes (Gal 3, 26-28) detectamos que, a partir da experiência da fé, o entendimento que temos da nossa identidade pessoal e social foi transformado. Os parâmetros etno-políticos (judeu-gentio), socio-económicos (escravo-livre) ou sexuais (homem-mulher) perdem peso na sua capacidade de definir a nossa identidade de sujeitos (Gallo & Miranda, 2007, pp. 23-32). Factualmente, essas clivagens mantêm-se mas a fé e o baptismo introduzem os crentes “em Jesus Cristo”. A identidade pessoal encontra um novo horizonte de significado. Agora somos “um” em Cristo Jesus (Gal 3, 28b). Esta unidade essencial e constitutiva com Cristo não deve ser entendida como uma vaga e mística pertença. A Igreja é realmente o espaço salvífico onde cada um de nós vive a sua relação com Cristo. Ao falarmos de um “eu” crente, falamos de alguém que, pelo acto de acreditar, tem a sua identidade redefinida no horizonte da Igreja. A Igreja entende-se como mais do que mera comunidade sociológica dos crentes mas como o lugar actual onde o “objecto” da fé (Cristo que nos leva à Trindade) pode ser experimentado e “interagido”. A Igreja entende-se como lugar histórico que prolonga no tempo a presença de Cristo mesmo. Assim, as formulações plurais da fé (credimus) têm também um sujeito singular (a Igreja) e não um “nós” anónimo e genérico. A fé é professada pelo “eu” eclesial. E é dentro deste horizonte que a profissão de fé dos “eu” individuais acontece.

2.2.2 Fé na Igreja factual Descobrimos como o processo da fé acontece necessariamente num horizonte eclesial. Mas esta “alta eclesiologia” do acto de fé arrisca-se a negligenciar a Igreja histórica, concreta e culturalmente situada. Uma ligação entre o conceito de Igreja e a Igreja local, concreta, histórica pode ser encontrado com o uso da noção de Igreja como comunidade de prática. A partir de um entendimento neo-aristotélico de práxis, Root e Bertrand apresentam a Igreja como o lugar onde as práticas divinas e humanas se encontram (2011, p. 223). As comunidades de prática são formadas por pessoas empenhadas em processos de aprendizagem colectiva numa empresa partilhada. “As comunidades de prática são grupos de pessoas que partilham uma preocupação, um conjunto de problemas ou uma paixão por um assunto e que aprofundam o seu conhecimento e mestria nessa área ao interagir com continuidade.” (Wenger, Mcdermott, & Snyder, 2002, p. 4) Os esforços de Root e Bertrand são úteis para perceber o papel da comunidade local no processo de fé, não apenas como uma realidade sociológica ou psicosocial mas como realidade especificamente teológica. O CIC sublinha o realismo da Igreja com os números sobre a linguagem da fé (170-171) e sobre o tópico da unidade e pluralidade dos conteúdos (172-175). A forma eclesial da fé manifesta-se sempre em linguagens histórica e culturalmente conotadas. 28

acreditando em Deus.indd 28

9/8/2016 4:04:22 PM


Mas insiste-se que a fé não está focalizada na materialidade (sempre contingente) das formulações mas sim nas divinas realidades a que as formulações se referem. A fé não incide nas fórmulas proposicionais mas nas realidades subjacentes. Estas formulações têm um papel eminentemente pedagógico. É hoje aceite a distinção entre a verdade de certa realidade de fé e a sua formulação linguística. “… derivam ainda tais dificuldades do condicionamento histórico que incide sobre a expressão da Revelação. A propósito de tal condicionamento histórico, deve observar-se, antes de mais nada, que o sentido das enunciações da fé depende em parte da peculiar força expressiva da língua usada, em determinado tempo e em determinadas circunstâncias.” (Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, 1973, p. 5)

Sem perder de vista o horizonte normativo das formulações de fé, fica claro que a não adesão ou não entendimento das fórmulas linguísticas da fé não equivale a uma rejeição da fé. Este tema aparece com frequência no contexto do debate teológico para determinar a ortodoxia (ou falta dela) de algumas posições. Mas deve ser aplicada também ao estudo da fé dos simples (fides rudibus). As limitações da cultura religiosa, combinadas com processos de catequese frágeis, podem levar os crentes a desviar-se das formulações definidas pela tradição da Igreja. É necessário um esforço honesto de discernimento para detectar, no meio da debilidade das expressões, a presença (ou ausência) da verdadeira fé cristã. Outra dimensão a ter em conta é o aspecto “tradicional” da fé. Quer o processo de transmissão da fé, quer os conteúdos associados a essa mesma fé, exigem um contexto de transmissão. Cada um de nós acede à fé, ordinariamente, contactando com outros crentes ou com as suas expressões. Há uma tradição viva que nos dá o que recebemos. A opção de acreditar acontece dentro de uma longa cadeia de irmãos que fizeram a mesma experiência que nós. E com os conteúdos sucede o mesmo: a fé em que acreditamos chega-nos através de um contexto de tradição eclesial. A tradição, segundo a Dei Verbum (7-10), coloca o sujeito crente como parte de uma comunidade que o precede e que continuará depois dele. Isto acontece ao mesmo tempo que requer e possibilita uma forte ancoragem no presente. Sem este contexto de tradição, toda a experiência de fé se torna refém de um estéril presentismo subjectivista. A tradição da Igreja deve ser entendida como um processo constante de traditio-reditio. Um processo constante nunca reduzido à repetição conformista do passado, que é apropriação responsável da herança de fé e compromisso face ao futuro através da sua transmissão às novas gerações e culturas. É este horizonte de tradição eclesial que assegura a unidade da fé na variedade dos tempos e dos contextos culturais. A unidade da fé não significa o “mínimo denominador comum” das suas infinitas manifestações através dos tempos. É esta prioridade lógica da fé eclesial que assegura unidade no meio da pluralidade de expressões.

2.2.3 Uma fé educável A insistência no carácter eclesial da fé liga-se também à sua educabilidade. Vimos como a fé é, simultaneamente, dom de Deus e tarefa humana. É um diálogo 29

acreditando em Deus.indd 29

9/8/2016 4:04:22 PM


em que Deus toma a iniciativa e nos chama à intimidade com Ele. Mas neste diálogo a nossa resposta é essencial. Uma resposta que acontece sempre dentro da nossa condição humana. Uma abordagem que valoriza em excesso a dimensão teologal e gratuita da fé tende a desvalorizar o papel da educação no processo de fé. A fé seria um dom de Deus de tal modo imenso que nada que pudéssemos fazer seria minimamente relevante comparado com o poder salvador de Deus. Alberich descreve bem esta posição: “(…) a natureza teológica da fé e na iniciação cristã parece excluir a ideia de influir pedagogicamente, desde o exterior, na realidade interna da fé, que é fruto do encontro entre a graça de Deus e a liberdade humana ” (Alberich, 2009, p. 133). Alguns textos dos bispos portugueses, lidos fora de contexto, parecem estar perto desta atitude: “Em boa verdade, a fé não se transmite. É dom de Deus àquele que O acolhe. Brota do diálogo misterioso entre Deus que se revela e o acolhimento do homem que procura a luz e a salvação. A iniciativa vem de Deus que espera uma resposta livre e comprometida do homem. Deste modo, a fé tem uma dimensão transcendente que está para além das nossas possibilidades.” (Conferência Episcopal Portuguesa, 2005, p. 2).

Mas não tem sido este o entendimento da Igreja, que sempre defendeu a educabilidade (ao menos indirecta) da fé. A educação da fé é mais do que mera instrução religiosa ou transmissão de conteúdos. Diz o DGC: “Esta formação orgânica é mais do que um ensino: é um aprendizado de toda a vida cristã, «uma iniciação cristã integral», que favorece uma autêntica seqüela de Cristo, centrada na Sua Pessoa. Trata-se, de fato, de educar ao conhecimento e à vida de fé, de tal maneira que o homem no seu todo, nas suas experiências mais profundas, se sinta fecundado pela Palavra de Deus. Ajudar-se-á, assim, o discípulo de Cristo, a transformar o homem velho, a assumir os seus compromissos batismais e a professar a fé a partir do «coração».” (DGC 67)

É claro que nenhuma acção humana, per se, leva à fé em Deus. Mas podemos falar de educação à fé num sentido secundário e instrumental. Há acções eclesiais que facilitam, ajudam, removem obstáculos, no processo de despertar e amadurecer da fé. Estas acções são sempre secundárias em relação ao processo primeiro que é o diálogo estabelecido entre Deus e a liberdade do sujeito. Mas é dentro desta perspectiva humilde da educação na fé que a Igreja coopera, continuando a missão que Cristo deu aos apóstolos. É responsabilidade da Igreja o processo de propor e acompanhar na fé. “A salvação vem só de Deus. Mas porque é através da Igreja que recebemos a vida da fé, a Igreja é nossa Mãe. «Cremos que a Igreja é como que a mãe do nosso novo nascimento (…) É porque é nossa Mãe, é também a educadora da nossa fé.” (CIC 169) Esta responsabilidade educativa da Igreja enfrenta dois desafios sérios. O primeiro é de âmbito teológico: podemos valorizar de tal modo o modelo transcendental, que a possibilidade de um “cristianismo anónimo” esvazia a atenção ao “cristianismo assumido”. O segundo desafio é de ordem prática e reduz a evangelização à inércia social. 30

acreditando em Deus.indd 30

9/8/2016 4:04:22 PM


RUI ALBERTO

um estudo empÍrico-teológico das representações sociais dos adolescentes

Sobre o autor: Rui Alberto é salesiano sacerdote. Director editorial das Edições Salesianas desde 2014. Licenciado em teologia pela Univ. Católica (Lisboa) e Mestre em pastoral juvenil e catequética pela Univ. Pontifícia Salesiana (Roma). Fundou e dirigiu a revista catequistas (2004-2014), publicação mensal de formação para agentes pastorais, durante os dez anos da sua existência. Em 2015, obteve o doutoramento em Teologia, com especialidade em Pastoral Juvenil e Catequética, pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Autor de diversos livros na área da catequese, procura estabelecer pontes entre a evangelização, a educação e a comunicação.

RUI ALBERTO

ACREDITAR EM DEUS

Em que Deus acreditam os jovens que frequentaram os dez anos de catequese em Portugal? Que relação têm eles com Deus? Quais os processos e pessoas envolvidos na sua elaboração de fé? Foi a estas perguntas que o padre Rui Alberto se propôs responder na sua tese de doutoramento no âmbito da Teologia com especialidade em Pastoral Juvenil e Catequética, pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. As conclusões dessa investigação são agora editadas em livro, oferecendo-se como uma oportunidade de análise séria sobre a real experiência de fé dos adolescentes catequizados.

ACREDITAR EM DEUS um estudo empÍrico-teológico das representações sociais dos adolescentes

Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 | 4022-001 Porto Tel.: 22 53 657 50 Fax: 22 53 658 00 edisal@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

AcreditarEmDeusTESE-Capa.indd 1

05-09-2016 14:51:13


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.