MARTA PEREIRA
Deus meteu-se comigo. Pregou-me uma partida. Uma valente partida. Um dia abri a minha janela. Deixei-O entrar todo. Nunca mais fui a mesma.
MARTA PEREIRA
Calma! Este livro não é sobre Deus. Também não é um livro sobre oração. Este livro é sobre o diálogo. Sobre um dos maiores tesouros da vida humana: a capacidade de se relacionar com o outro. Aqui vais encontrar uma série de diálogos. De conversas (des)confortáveis entre dois amigos. Entre dois corações. Que te vão ensinar que, apesar de até podermos estar sozinhos, nunca estamos sós. Que te vão incentivar a ires mais longe na descoberta e partilha do teu mundo interior. Porque o mundo precisa de conversar contigo e de saber o que te vai no coração.
Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 22 53 657 50 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt
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Ficha Técnica: Dialogar a vida © 2022 Marta Pereira Copyright desta edição: © 2022 Edições Salesianas Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto | Tel: 225 365 750 www.edisal.salesianos.pt editora@edicoes.salesianos.pt Capa: Paulo Santos Foto Capa: Dreamstime.com Paginação: João Cerqueira Publicado em Janeiro 2022 ISBN: 978-989-8982-85-8 Depósito Legal.: 494215/22 Impressão e acabamento: Totem Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.
Marta Pereira
NOTA DE INÍCIO Deus mete-se comigo. Há vidas que se assemelham a uma janela fechada com as persianas levantadas, num espaço todo apetrechado de móveis velhos. Uma janela assim caracterizada abre o espaço à luz e ao ar do dia... Mas não os deixa entrar. A luz não ilumina o suficiente e o ar não penetra num espaço fechado e vedado. Dias e dias. Meses e meses. Uns atrás dos outros num ciclo de uma apatia viciosa e lentamente mortífera. Um espaço com uma janela destas tende a ganhar pó e a cheirar a mofo com o passar do tempo. A luz não entra como deve de entrar. O ar não renova. Os móveis acumulam pó e lixo. O espaço fica, pouco a pouco, d esconfortável. Deteriorável. Alérgico. Vulnerável a agressões externas e internas. E porquê? Porque a janela está fechada. Uma janela fechada é uma vida estagnada. Um marasmo de repetições bafientas. Não há ardor; há obrigação. A existência cede, dolente, ao sorumbatismo do deixa andar. A cruz é, somente, escárnio e morte. Não há redenção; não há esperança de ressurreição. Qualquer pedrinha que atinja a janela, por mínima que seja, estilhaça o seu vidro. Multiplicadas as pedras, os estilhaços tornam-se quebras. Um estilhaço atrás do outro parte um vidro. Um vidro partido pode ser substituído por um vidro novo. Mas também pode ser remendado. É mais fácil e mais barato remendar. Os remendos caseiros aguentam a temporalidade suficiente até ocorrer um novo estilhaço. De que vale levantar as persianas, se impeço a luz e o ar de entrar? A luz de dentro deixa de iluminar e o ar de dentro satura por completo. De que me vale preservar o espaço da minha vida, se este é feito de janelas de vidros partidos e remendos d uvidosos? Já pensei baixar as persianas à janela. Mas assim, nem luz, nem ar. Nem sequer do lado de fora. Só o vazio. Só a escuridão. Um espaço moribundo. Baixar as persianas não é; não pode 3
ser alternativa. P orque o é manter uma vida de janelas estragadas, de vidros partidos, de buracos remendados e de espaços empoeirados à mercê de qualquer sorte ou azar? Deus mete-se comigo. Ele chega devagarinho. Em luz e em ar. Não se impõe. Anseia por poder entrar, mas espera fora da janela com paciência e misericórdia. Faça chuva ou faça sol. Entra ao ritmo da minha liberdade e da minha vontade. Pelas fendas que remendo uma, duas três... Inúmeras vezes, numa autogestão e autossuficiência aparentemente protetoras. Entra devagarinho. Aos poucos. Mas, se eu abrir a janela, entra todo. Ilumina o espaço com a luz do amor e da sabedoria. Leva-me a ler os meus acontecimentos à luz da inteligência da mente e do coração. Repara os vidros partidos, deixa-os como novos. Não os torna inquebrantáveis; torna-os, isso sim, mais fortes, mais resistentes às agruras das pedras que os atingem. Perfuma o espaço com um novo aroma de vida. Limpa o pó aos móveis e abrilhanta-os de alegria e esperança. As ações na minha vida guiam-se para um novo rumo. Tudo muda. A vida não permanece igual. Só saio a ganhar: na ternura que me abraça, no calor que me aquece e no perfume agradável que passo a exalar. Ele sempre esteve. Sempre está. No escuro e no mofo. Ama o escuro e o mofo. Ajuda-me a torná-los luz refulgente e ar puro. É do escuro e do mofo que se gera uma nova luz e um novo aroma para o mundo. E tudo isto... Se eu deixar... Se eu O deixar entrar. Se eu abrir a janela. Deus meteu-se comigo. Pregou-me uma partida. Uma valente partida. Um dia abri a minha janela. Deixei-O entrar todo. Nunca mais fui a mesma. Que Deus é este? Será que este Deus de tantos não terá rosto, formas e expressões humanas nos dias de hoje?
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Será que este Deus não tem outros nomes? Universo? Vida? Amor? Consigo antever o teu pensamento, sobretudo se não és cristão, se questionas a presença e a ação de Deus na tua vida, ou mesmo se nem sequer acreditas em Deus: esta menina escreve sobre Deus a alguém que não se identifica com Deus. A menina escreveu para a p essoa errada. Espera; não feches ainda este livro se não te identificaste com o que leste lá atrás e se a tua crença em Deus é questionável ou inexistente. Deus não é o centro deste livro. O livro que tens nas mãos não é um livro sobre Deus. Não é um livro sobre oração. Não é um livro de religião, nem o seu conteúdo se dirige exclusivamente aos crentes em Deus. Este é um livro sobre o diálogo. Sobre a relação: um dos maiores tesouros da vida humana. Um livro no qual a dimensão da relação humana se confronta com o ideal de ação. Eu ando por aí, dia após dia, numa busca e numa prática constantes e incessantes por ser feliz sendo, cada vez mais frequentemente, a melhor versão de mim mesma nas relações que construo e mantenho. E tu? Sentes também esta inquietação e desejo pelo cuidado das tuas relações? Este é um livro estruturado em diálogos. Diálogos que não são mais do que conversas (des)confortáveis entre dois amigos. Cada diálogo é, além de uma oportunidade de compreender acontecimentos e pensamentos à luz do espírito crítico de um Eu, uma oportunidade de viver a relação; de torná-la mais bonita e mais forte. Em cada diálogo está implícita a necessidade de cuidar e preservar a relação um com o outro... Não fosse cada diálogo uma oportunidade de dialogar a vida; uma conversa de coração para coração. Escrevi este livro para quem entende que cada relação sua é o combustível das viagens. O GPS em rotas de perdidos e achados. Para quem considera que não há caminho sem relação, que não pode haver desenvolvimento sem ligação ao outro.
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Este é um livro que demonstra que o relacionamento humano é uma solidão entre duas pessoas. Uma solidão que não isola. Pelo contrário, aproxima. De outras solidões. Um eu-tu que se fortalecem numa entrega e confiança mútuas, na verdade mais profunda de cada ser humano. Um eu-tu fermento da massa humana de outros eus e outros tus. Este livro pretende inspirar-te a ti e a mim a construir e a cuidar das relações humanas. No tempo e na abertura do dom de ti e do dom de mim ao dom do outro. No espaço: o mundo exterior. Mas, sobretudo, na partilha recíproca de todo um mundo interior que cabe num coração de gente. Na verdade, é da partilha que tudo nasce: os sinais que identificam, as palavras que orientam, os gestos que dão afeto... A empatia, o carinho, a confiança, o cuidado, o amor... Tudo nasce da autenticidade do mundo i nterior que somos e revelamos em relação. Este é um livro para todos. Trata-se de um percurso de cumplicidade, liberdade e partilha em conversas entre duas pessoas que, apesar de inspirado no cristianismo, vai muito além de qualquer cristianismo. O Eu, o Tu e o Amigo. Este caminho ultrapassa todo e qualquer cristianismo dos tempos antigos e dos tempos modernos. Não pretende converter, não pretende impor o que quer que seja. Pretende demonstrar que, por mais difícil que pareça, há sempre rumos para um caminho com sentido. Para o meu caminho. Para o teu caminho. Não por meio do diálogo sobre trivialidades do dia a dia, dos quais estarás, certamente, de ouvidos cheios. Não por meio da conversa gratuita, por meio da conversa de circunstância. Pretende demonstrar que, por mais que nos sintamos sozinhos, nunca estamos sós. Este livro pretende ser um meio para alcançar um fim de salvação pessoal. Pretende incentivar-te a ires cada vez longe na descoberta e partilha do mundo interior que és. Para te (re)descobrires agente promotor da humanização do mundo exterior à tua volta. Tudo por meio do diálogo interior verbalizado em palavras. Desejo que faças um bom caminho e ouses dialogar a vida aqui e agora. 6
PRÓLOGO De manhã, à porta da casa do Eu. O Tu surpreende-se ao ver o Eu apressado. É fim de semana. – Ainda é cedo. Onde vais? – pergunta o Tu. – Vou ali à igreja rezar um bocadinho. Falar com Deus... Tu sabes. – responde o Eu sorrindo timidamente. – Outra vez? Lá estás tu com essa conversa... Falar com Deus, com quem não vês?! – exclama e interroga o Tu num certo tom depreciativo. – Vais à igreja rezar? Mas podes rezar em casa! Não rezas sempre em casa? – Pois posso. Mas hoje é um dia diferente. Hoje o Senhor está exposto no Santíssimo Sacramento lá na igreja. – explica o Eu, confiante. Sorri mais abertamente. – Hoje vou conversar com Deus olhos nos olhos e de uma forma especial. – Olhos nos olhos? E de uma forma especial? – A expressão facial do Tu reveste-se ainda de mais estranheza e descrença. – Tu às vezes dizes cada coisa… Que cena mais estranha, isso que os crentes em Deus fazem. Por si só é estranho falar com quem não estás a ver diante dos teus olhos. Ainda para mais de uma forma “especial”. E não consegues fazer isso em casa? Sei lá... Podes sempre olhar para a cruz, acender uma vela, ir à janela e olhar para o céu... Pausa. O Tu procura mais exemplos para ilustrar aquilo que pretende transmitir; expressões que lhe foram, até então, referidos pelo Eu: – Agora até podes entrar na página de Facebook da tua paróquia e entrar no direto que devem estar a fazer desse momento... Podes também vê-lo nos olhos daquele vizinho nosso amigo durante uma das inúmeras conversas que têm... Não? Não é isso que dizes que acontece? – questiona o Tu com muito ceticismo e
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alguma provocação. – Ou podes, simplesmente, olhar para dentro de ti. Não és tu que dizes que o vês no teu coração? – Sim, consigo falar com Deus olhos nos olhos sem sair de casa. Muito bem, por sinal. Sim, consigo encontrar-me com Deus por meio desses artefactos e por meio dessas ações todas que acabas de dizer. E sim, claro que o vejo no meu coração. Mais do que ver; sinto-o. É lá onde sempre o sinto. Mas repara, não é bem a mesma coisa do que ir agora à igreja. Ir à igreja agora é ter uma oportunidade única de viver e fazer acontecer, no mais real que pode ser possível, uma amizade em imensa alegria. É como poder estar sentado com um amigo, um amigo de carne e osso e conversar à mesa de um café, num banco de jardim, na quietude da casa, frente a frente, e não apenas falar ao telefone, ou por videochamada, percebes? Fazer algo assim como estamos nós, tu e eu a fazer, estás a ver? Tu podes sempre telefonar a um amigo e conversar com ele o tempo que quiserem, onde quer que os dois estejam, certo? Mas se sabes que podes vê-lo, olháno nos olhos, senti-lo tão perto de ti e conversar cara a cara com ele, não saías de casa a correr para ir ao seu encontro? – Eh... Pois... Talvez. – balbucia o Tu pouco convencido. O Eu sorri e afirma decididamente: – Vou encontrar-me e partilhar a vida com um amigo especial. A este não o vejo com os olhos da cara, só o vejo com o coração. Mas este; este incentiva aquilo que de bom eu consigo ser para os outros. Por isso, vou inspirar-me nesse amigo para partilhar do mesmo modo a minha vida com os amigos que vejo com os olhos da cara. Até já! … Vivemos profundamente submersos numa era demasiado célere. As horas sucedem-se e fazem um dia; a rotina absorve a nossa força anímica até ao tutano. Nós dizemos que não temos tempo... Mas, na v erdade, o que não temos é coragem; coragem
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para o que verdadeiramente importa. Temos tempo para o supérfluo, mas falta-nos coragem para o essencial. E de pouco nos adianta negar ou esconder, será apenas tapar o sol com a peneira. Sobra-nos tempo para fazer scroll em todas as redes sociais várias vezes por dia e, entre “gostos”, “adoros”, “risos”, “coragem” e outros, reagir à imensidão de palavras que conseguimos debitar protegidos por um ecrã. Mas o tempo para olhar nos olhos, conversar cara a cara, longe de ecrãs e aplicações que embelezam o conteúdo interno da nossa humanidade... Esse falta-nos. Temos tempo para o virtual, mas não temos coragem para o real. Temos tempo para ler frases motivacionais e palavras bonitas em qualquer blogue, Facebook ou Instagram à distância de um clique. Até temos a coragem para as partilhar e torná-las acessíveis a um feed de notícias de centenas ou milhares de pessoas, por meio das nossas histórias ou das nossas cronologias. Mas não temos a coragem de as dizer aos individuais do dia a dia. E esses... Esses precisam muito mais delas do que os milhares de amigos virtuais que seguem as nossas páginas de Facebook e/ou Instagram. Temos tempo para conversar com palavras escritas a uma distância que configura o nosso espaço pessoal. Mas não temos coragem para dialogar com palavras faladas à distância de dois olhares e duas cadeiras da sala ou de um banco do jardim. Temos tempo para felicitar: pelo aniversário, pelos sucessos, pelos resultados. Somos capazes de escolher as melhores palavras e escrevê-las, ilustradas pelos melhores emojis ou pelo nosso melhor avatar. Mas ainda temos pouca coragem para fazê-lo pessoalmente. Como pode ser mais fácil e menos moroso organizar um discurso, em vez de olhar, sorrir, abraçar ou beijar? Procuramos tempo, e muito bem, para ler, aprender e melhorar as práticas humanas. Mas, e se procurássemos mais a coragem para acenar ou sorrir para o vizinho lá na rua? Para ouvir o 9
colega ou o amigo sem olhar para o telemóvel? Para, em atos mais audazes, atrever-me a calçar os sapatos do outro? Para dialogar a vida com aqueles de quem mais gostamos? O tempo hoje não é menor do que ontem. Cada pessoa tem, exatamente, o mesmo tempo de vida: vinte e quatro horas por dia. Não precisamos de tempo, precisamos de coragem. Coragem para encarar a verdade nua e crua; coragem para ousar ser e ir mais além; coragem para olhar nos olhos; coragem para dialogar. Que não nos falte mais a coragem para vivermos as virtudes do virtual na realidade da nossa vida. Que não usemos mais a falta de tempo como desculpa para não dialogar. Que não nos falte a coragem para dialogar com o outro. Não para conversar em circunstância. Não para falar das banalidades da rotina. Que não nos falte a coragem para dialogar, no sentido mais significativo da palavra: para partilhar o mundo interior que somos, capaz de enriquecer outros mundos interiores. Ainda que disso nos consideremos os mais céticos à face da Terra. Que não nos falte a coragem para relacionar-nos uns com os outros de olhar em olhar, de cara em cara, sem ecrãs, aplicações e redes sociais de intermédio. Precisamos de tempo para viver e coragem para dialogar. De (c)oração em (c)oração. Vamos a isso?
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Dialogar a vida :: 1
O rumo do caminho – Custa-me ver. Fico sempre com as lágrimas nos olhos cada vez que os vejo caídos num canto da casa a suportar a ressaca. Mas custa-me muito mais acreditar no que eles se tornaram. Pior: dói-me o coração saber que eles negam qualquer ajuda que lhes é oferecida com generosidade. Pausa. O Eu franze o sobrolho, carrega o semblante e aumenta o tom de voz: – Como é que eles chegaram a este ponto? Como é que eles foram cair num poço tão fundo? E como é que eles não se querem levantar para sair de lá? Conversámos tantas vezes sobre este assunto! Eles eram os primeiros daquele grupo a afirmar uma repugnância quase visceral pelo jogo e por qualquer tipo de adição. Suspira. Faz uma pequena pausa e respira fundo. Baixa o tom de voz: – Não consigo compreender. Quero dar-lhes uma mão, mas já não sei como o fazer. Eles não aceitam nenhuma ajuda. Como é que foram atrás daquilo que outrora condenavam? – A mente humana é algo de muito complexo, meu amigo. – diz o Amigo enfatizando a palavra “muito”. – O que parece claro e explícito para uma pessoa pode ser completamente confuso e descabido para outra. Mas sabes, e sabes bem; há que cuidar a coerência entre o que se diz e o que se faz. É muito fácil deixar-se aprisionar pela incoerência e muito difícil resolver os conflitos causados por ela. Pode ser muito perigoso dizer “nunca”. – A minha mãe dizia-me muitas vezes em pequeno “nunca digas nunca”. A verdade é que isso sempre me parecia estranho; 11
como é que uma palavra aparentemente insignificante pode determinar toda uma conceção individual? Agora a luz do discernimento mostra-me que as palavras podem ser armas usadas contra nós próprios. Pausa. O Eu ganha coragem para cingir-se ao essencial: – Mas deixa-me voltar ao principal: custa-me ver aqueles dois jovens a passar dificuldades e sentir que não posso fazer nada que altere o rumo dos seus caminhos. Eu sei, eu sei que isso não tem nada que ver comigo, que eu não devia opinar sobre a vida dos outros, que eu devia era ocupar-me dos meus assuntos e de tudo o que realmente deveria ser objeto da minha ação. Efusivo. Aumenta o tom de voz, quase descontrolado: – Mas o que é que tu queres? Não consigo controlar. Pior; acho que não consigo aceitar esta situação. Se calhar é porque conheço bem os dois. – Compreendo. – afirma o Amigo numa calma oposta à do jovem. – Compreendo e, embora não seja aquilo que eu acho que eles deveriam querer, aquilo que eu entendo por bem, respeito e aceito que esse seja o caminho deles, caso seja a decisão por eles tomada. O Eu arqueia as sobrancelhas e abre ligeiramente a boca mostrando incredulidade. Demonstra surpresa e incompreensão pelo que acaba de ouvir. O Amigo continua calmamente: – Sabes, o ser humano é absolutamente livre para fazer as suas escolhas individuais. Na tua vida tens duas opções para o teu caminho: ou escolhes um caminho de verdadeira felicidade, ou escolhes um caminho de aparente felicidade. Ou seja, falsa. Como quero o melhor para ti, eu proponho que tu escolhas o caminho dos teus sonhos, o caminho que te fará feliz. Não é um percurso linear; é feito de altos e baixos, níveis e desníveis mais fáceis ou mais difíceis. Mas, em todo esse caminho, tu tens as tuas oportunidades para realizar os teus sonhos e seres feliz neste mundo. Só se espera que tu partilhes os teus talentos pessoais na construção de um mundo melhor. 12
Pausa. O Amigo sorri e continua: – Penso que percebes que me refiro ao caminho da vida, o caminho que, passo a passo, entre percursos planos, subidas íngremes, descidas acentuadas, estradas de alcatrão, estradas enlameadas e com obstáculos, aprendes como podes e deves ser um melhor ser humano. O rumo do caminho é determinado pelas escolhas. As escolhas que eu faço não têm de ser iguais às escolhas que tu fazes. – Deixa-me ver se te estou a perceber: na nossa vida o caminho é feito de escolhas? É isso que dizes? A vida leva-me a fazer escolhas, eu já fiz umas quantas. Eu escolho o caminho que me permite ser feliz e realizar-me na minha individualidade, evidentemente. O caminho da entrega aos outros na realidade dos dias do quotidiano é o que nos permite crescer em sabedoria e, sobretudo, no amor ao mundo. Tudo isso é certo e faz sentido para mim. Mas em que é que isto se reflete na situação destes meus amigos? – pergunta o Eu, ainda não totalmente convencido. – Estas ideias convergem numa única forte e decisiva: o livre-arbítrio. Ou, numa palavra mais simples e próxima da nossa linguagem quotidiana, a liberdade. Tu tens a hipótese preciosa de escolher o rumo que queres para o caminho da tua vida. Isso significa que podes seguir de livre vontade as opções que quem gosta de ti e se preocupa contigo te propõe. Mas isso também significa que pode não ser essa a tua opção. Tu és livre para escolher o rumo do teu caminho. Os teus amigos são livres para fazê-lo. As nossas escolhas não têm de coincidir. Pausa. O Amigo conclui com firmeza: – De qualquer das formas, tu és sempre responsável pela escolha do rumo do teu caminho. As escolhas são escolhas, não são as pessoas. O Eu repete, manifestando concordância: – Sou sempre responsável pela escolha do rumo do meu caminho. As escolhas não são as pessoas… 13
Dialogar a vida :: 2
Problemas ou pedras no sapato – Aquela conversa com o rapaz daquele bairro perto da minha casa deixou-me perturbado. Uma pessoa tão jovem, a quem um acidente lhe levou a mão esquerda, e com uma jovialidade e uma postura tão altruísta perante o futuro... Que pode agarrar apenas com uma mão! Safa! Aquele testemunho que o moço deu está a fazer pensar-me muito. – Conta lá, o que se passou com esse rapaz? – A pergunta do Amigo é feita para abrir caminho ao desabafo. O Amigo apercebe-se da inquietação do Eu pelo que está a sentir. – Pelos vistos trabalhava numa fábrica com uma máquina altamente cortante. Um dia, a meio de um serviço que lhe atribuiram, a máquina que estava a usar certamente estava mal calibrada e, num golpe muito rápido e repentino, atingiu-lhe de tal forma a mão esquerda que, ao chegar ao hospital, nada havia a fazer a não ser amputá-la. Umas dores, uma situação terrível, que até me dói só de imaginar. Mas sabes o que me angustia tanto? Não é o acidente em si ou as sequelas que deixou ao rapaz... É, antes, o otimismo e a serenidade dele perante os factos. Eu não sei; eu não conseguiria seguir o meu caminho por diante com tanta serenidade e lucidez e, ao mesmo tempo, a consciência de que fiquei para o resto da vida sem uma mão, sem um membro do corpo imprescindível ao meu quotidiano. Não sei... Acho que me revoltaria em porquês infindáveis. Pausa. O Eu coloca a mão no queixo e continua: – Dou por mim a pensar: o que são as minhas dificuldades perante, por exemplo, este problema?
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– É tudo uma questão de perspetiva, meu caro. – responde o Amigo prontamente. – As circunstâncias têm a condição e a dimensão que lhes atribuimos. Em todos os momentos, em todas as ocasiões. As realidades menos boas são aquilo que fazemos delas: problemas ou pedras no sapato. As pedras no sapato retiram-se numa questão de segundos: descalçando e sacudindo o sapato. Os problemas... – Os problemas são bem mais sérios, não se resolvem apenas ao descalçar e sacudir o sapato. Sabes que perceção tenho? Pausa. O Amigo ajeita a sua postura corporal, disposto a escutar o Eu com todo o cuidado que o caracteriza. O Eu responde: – Estamos a falhar muito em duas situações: na conceção que fazemos das circunstâncias menos agradáveis das nossas vidas e na forma como, sobre elas, nos pronunciamos. Barafustamos muito e contestamos pouco. Sabes o que eu acho? Acho que devíamos proceder ao contrário. Devíamos contestar muito e barafustar pouco. O Eu apercebe-se que a expressão facial do Amigo tornou-se mais animada. Continua: – Barafustar e contestar podem parecer ações idênticas, mas não as vejo tão idênticas assim. Barafustar é protestar sobre uma qualquer realidade menos boa, mas sem criar alternativas de melhoria. Quando barafustamos podemos criar muito mal estar, muitas vezes sem motivo nenhum. E, se virmos bem as coisas, só barafustamos quando temos alguma carapaça protetora: um ecrã, um espaço fechado ao qual ninguém mais pode aceder... Barafustamos por cobardia. Contestar é diferente. Contestar é, também, protestar, mas apresentar alternativas de solução para a realidade que pomos em xeque. Contestar dá trabalho e, para surtir verdadeiro efeito, tem de ser cara a cara, olhos nos olhos... Na verdade da estrutura humana que somos; dispostos a assumir as nossas forças e as nossas fraquezas perante os outros.
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O Eu olha para o ar, à procura da conclusão adequada para o seu raciocínio. Encontra-a e sentencia: – De pouco nos vale barafustar. – É preciso que as pessoas olhem mais à sua volta e se lamentem menos. – responde o Amigo com assertividade. – O mundo precisa, cada vez mais, de mais respeito pelo outro e mais gratidão pela vida de todos os dias. O mundo precisa, como dizes, de quem conteste muito e barafuste pouco. Se cada um trocar mais vezes o egoísmo pelo altruísmo, tudo vai correr melhor. O Amigo procura o olhar do Eu algo perdido pelo espaço. Ao encontrá-lo, olham-se demoradamente e em silêncio. O Amigo sorri e afirma: – Conto contigo para estendermos mais mãos e apontarmos menos dedos. Mas preciso que estejas disposto a ver o lado bom da chuva que cai e a dançar por entre os seus pingos. Mesmo que molhe. Às vezes terá de molhar! – Tens razão. A água da chuva, quando molha, pode ajudar a que alguma poeira possa assentar. Pausa. O Amigo apercebe-se que o Eu não desabafou tudo. Sorri. O Eu continua: – Ainda voltando ao rapaz: não lhe ouvi um único lamento, não lhe vi por uma única vez um sobrolho franzido. Não o senti revoltado, e muito menos resignado à sua sorte futura. Vi antes um sorriso que transbordava simpatia, muita ponderação e vontade de viver a vida fazendo uso dos talentos de que dispõe, certamente. Vi muita vontade de viver a vida num jovem que terá, espero, muitos anos de vida pela frente. Senti um nó na garganta e vergonha por alguns pensamentos que já tive, sabes? Como posso elevar à condição de problema aquilo que na verdade é, simplesmente, uma pedra no sapato? O que serão as minhas dificuldades perante os limites de quem tem apenas uma mão para agir? Senti-me entre a espada e a parede, mas com o aba16
não necessário para a lucidez que quero ter perante o mundo em que me insiro. – Ninguém pode iludir-se com a ideia de que a vida, para ser vida, tem de ser fácil, feliz e forte. A tua vida e a vida do mundo não são sempre lugares de beleza exteriores. Mas tu podes fazer com que a tua vida e a vida do mundo sejam lugar de beleza exteriores. E acredita: sê-lo-ão, certamente, se forem lugares de riqueza interior. – returque o Amigo. O Amigo levanta-se e aproxima-se do jovem, diminuindo a distância. O Eu fica na expectativa. O Amigo coloca uma mão no ombro mais próximo do Eu e diz: – Na lucidez da razão e do pensamento, não deixes de reconhecer, humildemente, que, diante das dificuldades que qualificas como problemas, existe sempre quem as tenha bem piores do que as tuas. Consegues viver com conforto, apesar das dificuldades? Então quando caires, olha para cima, levanta-te e agradece. Tens tudo o que é preciso para seguir em frente. E está tudo dentro de ti.
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NOTA DE FIM A família e os amigos são aqueles a quem agradecemos o bem que são, o bem que nos fazem e o bem que nos levam a sentir. A vida é generosidade na abertura dos dons que somos e temos: de mim a cada um deles, de cada um deles a mim. Permite-me a irreverência e o atrevimento nesta nota. Quero fazer apenas um agradecimento. Um e único. Agradeço a quem cuida, a quem ama incondicionalmente e a quem perdoa toda a miséria de gente que às vezes consigo ser. A quem ouve as minhas inúmeras palavras, as minhas incontáveis baboseiras e me move nas inspirações que me inspira. Ao Amigo. Ao Amigo das palavras e do silêncio. Ao amigo com quem dialogo a vida. Ao Amigo, encarnado em amigos e amigas deste mundo, agradeço tudo. Agradeço a clareza de espírito para compreendê-l’O e senti-l’O próximo da realidade do meu caminho. Agradeço a graça de ser todo forma e vida humana nos dias de hoje. Agradeço o bem que me faz por meio das ações tão maravilhosas quanto humanas, no contexto real da minha vida. Ao Amigo que cria em mim todos os dias um desejo ardente de ser a melhor pessoa que consigo ser a cada momento e me suscita ousadias tão grandes como humanizá-l’O na literatura e colocarLhe palavras na boca, gestos e ações em diálogo. A ti, Amigo: peço-Te que me perdoes, além dos meus disparates, os pedaços de vida menos felizes que aqui te atribuí em diálogo. À família, aos amigos e aos companheiros de todos os meus círculos de vida, a quem fez este caminho em paralelo comigo e a ti, que me leste do princípio ao fim, simplesmente dou afeto: um abraço quentinho da ternura que existe no meu coração. Este silêncio estreito de amor é, sempre, a melhor expressão que sei para demonstrar a minha profunda e inesgotável gratidão. Estamos juntos. Sempre. 118
Índice NOTA DE INÍCIO.......................................................................................... 3 PRÓLOGO.................................................................................................... 7 Dialogar a vida :: 1
O rumo do caminho...........................................................................11 Dialogar a vida :: 2
Problemas ou pedras no sapato......................................................14 Dialogar a vida :: 3
O que sai de ti, a ti volta...................................................................18 Dialogar a vida :: 4
A nova tirania dos pobres em espírito.............................................23 Dialogar a vida :: 5
Cajados humanos.............................................................................25 Dialogar a vida :: 6
O medo de arriscar............................................................................28 Dialogar a vida :: 7
Faz o que tens a fazer.......................................................................32 Dialogar a vida :: 8
Adiar o inadiável................................................................................36 Dialogar a vida :: 9
O tempo da vida................................................................................39 Dialogar a vida :: 10
O coração a arder..............................................................................42 Dialogar a vida :: 11
Eu cá tenho a minha fé.....................................................................46 Dialogar a vida :: 12
Casar e ter filhos...............................................................................50 Dialogar a vida :: 13
Relação ou ralação?.........................................................................54 Dialogar a vida :: 14
Ser forte na fraqueza........................................................................57 119
Dialogar a vida :: 15
Pecado(r) que sou.............................................................................60 Dialogar a vida :: 16
Esse amor..........................................................................................64 Dialogar a vida :: 17
Conhecer profundamente o que transmitimos...............................67 Dialogar a vida :: 18
Saber de experiências feito.............................................................. 71 Dialogar a vida :: 19
Preguiça intelectual.......................................................................... 74 Dialogar a vida :: 20
Assumir compromissos.....................................................................77 Dialogar a vida :: 21
(Des)Controlo.....................................................................................81 Dialogar a vida :: 22
Uma certa comichão mental............................................................84 Dialogar a vida :: 23
Bom(zinho).........................................................................................87 Dialogar a vida :: 24
Competição ou cooperação?............................................................90 Dialogar a vida :: 25
Uma fonte de mal entendidos..........................................................94 Dialogar a vida :: 26
Que é a verdade?..............................................................................97 Dialogar a vida :: 27
Uma coisa muito séria....................................................................101 Dialogar a vida :: 28
A pior doença.................................................................................. 106 Dialogar a vida :: 29
Quem és, deixa marca................................................................... 109 Dialogar a vida :: 30
As coisas do coração..................................................................... 112 EPÍLOGO .................................................................................................114 NOTA DE FIM.......................................................................................... 118 120
MARTA PEREIRA
Deus meteu-se comigo. Pregou-me uma partida. Uma valente partida. Um dia abri a minha janela. Deixei-O entrar todo. Nunca mais fui a mesma.
MARTA PEREIRA
Calma! Este livro não é sobre Deus. Também não é um livro sobre oração. Este livro é sobre o diálogo. Sobre um dos maiores tesouros da vida humana: a capacidade de se relacionar com o outro. Aqui vais encontrar uma série de diálogos. De conversas (des)confortáveis entre dois amigos. Entre dois corações. Que te vão ensinar que, apesar de até podermos estar sozinhos, nunca estamos sós. Que te vão incentivar a ires mais longe na descoberta e partilha do teu mundo interior. Porque o mundo precisa de conversar contigo e de saber o que te vai no coração.
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