Do dia de Natal aos outros nossos dias - Lectio Divina

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Ana Dias

Um livro para descobrir a beleza dos textos litúrgicos do dia de Natal, a partir do método de oração Lectio Divina.

Ana Dias

Na segunda parte, a Lectio Divina será aplicada aos quatro conjuntos de textos usados na liturgia do dia de Natal: Eucaristia da Vigília, Eucaristia da Noite, Eucaristia da Aurora e Eucaristia do Dia. Para cada uma das quatro leituras propostas (1ª leitura, salmo, 2ª leitura e evangelho) a autora faz contextualização literária, estrutural e teológica auxiliada por contributos de exegese bíblica. Após cada um dos textos do evangelho, a autora prossegue com os restantes passos da lectio divina. Sobre a autora: Ana Maria Sobral Dias é natural de Angola. É entre este país e Portugal que vive a sua vida de missionária. Encontrou a sua vocação no apostolado caritativo, itinerante, junto de pessoas carentes de apoio humano. Atraída pela prática da lectio divina, vai espalhando a proposta deste método orante e o amor pela Sagrada Escritura. Concluiu o Mestrado Integrado em Teologia e em Ciências Religiosas com Especialidade em EMRC, pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa no Porto. É da sua dissertação final que resulta este livro.

Do dia de Natal... aos outros nossos dias

Na primeira parte, o leitor conhecerá em profundidade este processo de leitura e meditação da Palavra de Deus nos 9 passos que o compõem: Statio, Lectio, Meditatio, Contemplatio, Oratio, Collatio, Discretio, Consolatio e Actio.

... aos outros nossos dias Lectio Divina

«Na tua Luz veremos a Luz»

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 225 365 750 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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Ficha Técnica:

Do dia de Natal ...... aos outros nossos dias - Lectio Divina © 2021 Ana Maria Sobral Dias Copyright desta edição: © 2021 Edições Salesianas Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto | Tel: 225 365 750 www.edisal.salesianos.pt editora@edicoes.salesianos.pt Imagem de capa: Dreamstime.com Capa: Paulo Santos / Claudine Pinheiro Paginação: João Cerqueira 1ª edição: Outubro de 2021 ISBN: 978-989-8982-77-3 Depósito Legal.: 489176/21 Impressão e acabamento: Totem Reservados todos os direitos. Nos termos do Código do Direito de Autor, é expressamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra por qualquer meio, incluindo a fotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos.


Ana Maria Sobral Dias

Do dia de Natal ... ... aos outros nossos dias Lectio Divina

«Na tua Luz veremos a Luz»


SIGLÁRIO ABREVIATURAS DA SAGRADA ESCRITURA 1Cor

Carta aos Coríntios

1Cr

Primeiro livro das Crónicas

1 Ped

1ª Carta de S. Pedro

1Rs

Iº Livro dos Reis

1Tim

1ª Carta a Timóteo

2Cor

2ª Carta aos Coríntios

1Rs

1º Livro dos Reis

2Rs

2º Livro dos Reis

2Sam

2º Livro de Samuel

Am

Livro de Amós

AT

Antigo Testamento

Act

Actos dos Apóstolos

Ap

Livro do Apocalipse

Dt

Livro do Deuteronómio

Fil

Carta aos Filipenses

Gal

Carta aos Gálatas

Gen

Livro do Génesis

Heb

Carta aos Hebreus

Is

Profeta Isaías

Jer

Profeta Jeremias

Jo

Evangelho de S. João

Jos

Livro de Josué

Lv

Livro do Levítico

Lc

Evangelho de S. Lucas

Mc

Evangelho de S. Marcos

Mt

Evangelho de S. Mateus

Mq

Profeta Miqueias

Neem

Livro de Neemias

NT

Novo Testamento 3


Nm

Livro dos Números

Os

Livro de Oseias

Rm

Carta aos Romanos

Rt

Livro de Rute

Sl

Livro dos Salmos

Tt

Carta a Tito

Zac

Profeta Zacarias

OUTRAS ABREVIATURAS a.C.

antes de Cristo

AO

Apostolado de Oração

BAC

Biblioteca de Autores Cristãos

BP

Biblioteca Patrística

CA

Carta Apostólica

Cap. Capítulo CBI

Comentário Bíblico Internacional

CBL

Comentario a la Biblia Liturgica

CE

Carta Encíclica

Cerf

Editions du Cerf

CIC

Catecismo da Igreja Católica

Col. Coleção DEAT

Dicionário Exegético do Antigo Testamento

DENT

Dicionário Exegético do Novo Testamento

DTD

Dicionário de Teologia Dogmática

DV Dei Verbum Constituição Dogmática sobre a Revelação

Divina (Vaticano II)

Dir Director Dir(es) Directores EA

Exortação Apostólica

EC

Ediciones Cristiandad

ED

Edições Dehonianas

Eds Editores 4


Inst. Labor Instrumento de t­ rabalho do sínodo Introd Introdução Lineamenta Documento de reflexão antes do sínodo LDC

Leccionário Dominical C

NDL

Novo Dicionário de Liturgia

NDTB

Novo Dicionário de Teologia Bíblica

NDTM

Novo Dicionário de Teologia Moral

par paralelo pref prefácio Rev revisão sec século SC

Sources Chrétiennes

SEA

Sociedade de Educación Atenas

Sec Século SGE

Secretariado Geral do Episcopado

SNAO

Secretariado Nacional do Apostolado da Oração

Trad. Tradutor Vat II

Concílio Vaticano II

VD

Verbum Domini

v. versículo vol volume Vv versículos

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Ana Maria Sobral Dias

Do dia de Natal ... ... aos outros nossos dias Lectio Divina

«Na tua Luz veremos a Luz»



Prefácio A prática da lectio divina foi sendo progressivamente reabilitada a partir do Concílio Vaticano II, ainda que nunca tenha deixado de ser usada na vida pastoral da Igreja nos séculos anteriores. Há que reconhecer que o impulso conciliar a partir das constituições Sacrosanctum Concilium (1963) e Dei Verbum (1965) foi decisivo para tal, primeiro com a reforma ­litúrgica e a tradução dos textos bíblicos usados na liturgia para as línguas vernáculas (SC 35; 51), e depois com o reconhecimento de que a Palavra bíblica de Deus é a “alma da teologia” (DV 24). É nesta longa tradição que somos inseridos com a obra que temos diante. A autora oferece-nos neste livro, com algumas reformulações, a sua dissertação de Mestrado Integrado em Teologia, apresentada aqui no Porto na Faculdade de Teologia da UCP. Tive o gosto de acompanhar todo esse processo e, por isso, quero felicitar a autora e a editora pela publicação, pois, finalmente vem à luz um esforço longo, aturado e dedicado de investigação, como se pode ver pela bibliografia final, a qual comprova essa longa tradição da lectio divina ao longo da vida da Igreja, desde o período patrístico, passando pela sua profusão no período medieval. Neste livro o leitor encontrará o trabalho académico em exercício numa prática pastoral desenvolvida pela própria autora e que enriqueceu a sua investigação, e, no caso presente, aplicado aos textos da celebração do dia do Natal do Senhor. A teologia é precisamente isto: esta ponte entre a fonte da Palavra de Deus e o mundo, e entre o mundo e a Palavra de Deus, auscultando a ambos para ajudar a ler o mundo com os olhos de Deus. Do ponto de vista metodológico e curricular, isto corresponde a uma teologia prática, que pratica a lógica do amor de Deus ao mundo traduzindo essa reve7


lação nas linguagens de cada época. Uma dessas linguagens é a da lectio divina, a qual, como lectio divina e eloquiae, tem uma tonalidade marcadamente bíblica. Isto está bem expresso no título e no subtítulo da obra: Do dia de Natal ... ... aos outros nossos dias. Lectio Divina. A obra está dividida em duas partes, em que a primeira visa preparar a segunda. Assim, na primeira parte dá-se uma definição do que é a lectio divina (no cap. I pp. 15-32), da sua génese e formação, e no cap. II (pp. 33-62) encontramos uma descrição dos nove passos que compõem a versão mais longa deste processo de leitura e de meditação da Palavra de Deus. Este elenco é necessário para ficarmos a conhecer em que consiste esta prática orante da Igreja, mas também porque este método vai ser aplicado na segunda parte aos textos do lecionário litúrgico do dia de Natal. Na segunda parte encontramos então a lectio divina ­aplicada aos quatro conjuntos de textos usados na liturgia eucarística do dia de Natal. Podemos falar de quatro estações, pois, tal como o soneto ilustrativo impresso na parte do primeiro violino nos concertos barrocos de AntonioVivaldi (1723), cada estação desenvolve o seu tema. A autora faz uma estação (statio) geral introdutória (pp.65-68) para as quatro seguintes: os textos da missa da vigília, os textos da noite de Natal, os da aurora, e os do dia. Para cada uma das quatro leituras propostas (1ª leitura, salmo, 2ª leitura e evangelho) em cada uma das quatro celebrações, a autora oferece o texto litúrgico para a lectio, seguido de uma contextualização literária, estrutural e contenutística, auxiliada pelos contributos da exegese bíblica, o que é muito útil para o leitor realizar a sua própria lectio divina. Após cada um dos textos do evangelho, a autora prossegue com os restantes passos da lectio divina. Mesmo ao longo do percurso por 8


esta leitura orante, o leitor encontra um diálogo com a exegese bíblica e patrística, o que enriquece sobremaneira a partilha deste exercício que a própria autora implementou. Em suma, encontramos nesta obra uma síntese feliz entre a exegese e a teologia, entre a teoria e a prática, entre o texto e a espiritualidade, deixando ao leitor o desafio de uma leitura orante da Palavra bíblica de Deus, a que a Tradição da Igreja chamou e chama de lectio divina. José Carlos Carvalho Docente da Faculdade de Teologia da UCP

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Introdução Disseram os dois discípulos que se dirigiram para a aldeia de Emaús: «Não ardia o nosso coração quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (Lc 24, 32). Com este versículo, lido dentro da narrativa de todo o percurso daqueles caminhantes (cf. Lc 24, 13-32), ouvimos Jesus convidar-nos a peregrinar com Ele, os caminhos habituais das nossas idas e vindas. Tal como os discípulos, que eram dois, e não um, sozinho, também nós poderemos fazer uma p ­ eregrinação orante, conjuntamente. É o que acontecerá com a partilha que aqui farei. Seguiremos o trajeto da metodologia da lectio divina. Primeiro, simplesmente, sem ligação a textos bíblicos. Depois, leremos os textos da Eucaristia do Natal guiados por aquele farol orante. Pelos textos do Lecionário do Natal e pelo roteiro da ­lectio divina, ser-nos-á dado ver a Manifestação do Amor de Deus iniciada na história de Israel e plenamente revelada em seu Filho, em nossa condição humana. Ajoelhando-se, cada um dos leitores, junto ao presépio do Menino com sua própria história pessoal, poderá percorrer a História da Salvação ao meditar o Natal como tempo de Memória do Rosto Revelado. Teremos de olhar sempre para o Nascimento de Jesus para vermos chegar Deus ao nosso mundo. E a ­bênção natalícia nos levará, com a leitura dos textos bíblicos, ao tempo da Pro­messa, ao tempo da Aliança, ao tempo do Messias. E assim, com os ouvintes de ontem, os do Antigo e os do Novo Testamento e com os leitores de hoje, acompanharemos a E ­ conomia do Amor Eterno que se fez Carne em Deus Menino. Nessa dinâmica da revelação, os textos lidos com o método da lectio divina farão que acolhamos o Amor de Deus de modo 11


performativo, isto é, como vivência real, dádiva do Projeto Salvífico. Como o Povo bíblico e como Jesus que viveram num detemi­nado tempo, histórico, geográfico e social – seu contexto vital –, também nós não poderemos ser feitos peregrinos bíblicos fora da nossa existência concreta. No pórtico desta peregrinação, cada um dos leitores poderá situar-se com questões da vida humana/cristã que, com certeza, o inquietam e o desafiam na conjuntura atual. Como por exemplo: bastará hoje sermos instruídos na doutrina para termos a consciência do Amor que o Pai nos consagra em seu Filho? E de que somos filhos de Deus? No mundo paradoxal da dúvida, da indife­rença, da mentira, da calúnia, da hipocrisia, do relativismo, do individualismo, da ­corrupção, e de todas as formas de violência, de desonestidade, de desumanidade, não escutaremos e acolheremos melhor a Boa Nova da verdade humana, se ­passarmos pela experiência do Espírito Santo? Como darei/daremos à abundante linguagem sobre solidariedade, a substância da comunhão, da caridade e da misericórdia evangélicas? Que tipo de justiça serei/ seremos chamados a viver, a testemunhar e a anunciar? Onde anda a misericórdia em minha, em tua, em nossa vida? Que relação existe entre mim e o Espírito Santo? O que é que, ou melhor, quem me orienta no quotidiano da vida? No âmbito destas e outras interrogações do leitor, o método da lectio divina, com seu ritmo responsorial, de escuta e de resposta, será praticado por mim e por vós, no espírito que a Tradição nos legou e, na experiência gratificante de que é um modo de ler e orar, proativo e livre. Proativo, por não deixar que o leitor orante fique inativo perante a Palavra. Livre, porque o leitor edifica o seu caminho de oração bíblica segundo o seu ser pessoal e a sua condição de vida real.

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A lectio divina, dos textos do Natal, em chave de leitura que a exegese bíblica propõe, nos proporcionará a contextualização bíblica da visão do Filho de Deus. Desse modo, o Mistério de Deus Humanado, de Deus que se fez Homem, começará a revelar-se ao leitor, pela esperança que Yhwh coloca no povo do AT, através da profecia de Isaías e pela visão do Menino na linhagem de David (textos da Vigília). Sê-lo-á apresentado no Menino que nos é dado pela Virgem Maria (textos da Noite). Ele O contemplará no Menino dos pastores (textos da Aurora). E, finalmente, acolherá plenamente esse Mistério Humanado, no Menino que ficou connosco (textos do Dia). O peregrino bíblico escutará, meditará e contemplará a terra, a história, o tempo e a esperança, mantidos vivos pelo AT e que, profeticamente, foram preparando a vinda do Messias. Através da Antiga Aliança verá passar diante dos seus olhos o povo eleito em favor de todas as nações e também o profeta que o consolava nas difíceis provas da história e da vida de cada dia. No NT encontrará Maria de Nazaré, protótipo da espera fiel de Deus e saberá que o êxito da profecia passou pela esperança e pela fidelidade de Maria, ao acolher o convite do anjo para ser Mãe do Messias. Reconhecerá que, desde então, Maria tornou-se Theotokos, Mãe de Deus. Saberá que pelo sim de Maria, Deus fundou um diálogo de privilégio universal e eterno pelo qual as gerações humanas, de todos os tempos, poderão olhar, já não somente para as palavras da Escritura, mas para a Palavra que se fez Carne e habitou entre nós (Jo 1, 1-18). Contemplará nos Evangelhos a plenitude da Promessa e da Aliança, o Deus Menino, o Filho de Deus. Contemplando Jesus, o leitor verá Deus feito Homem e então poderá encontrar-se consigo mesmo e com o próximo, semelhante a si. Lendo, meditando e contemplando, responderá a Deus na oração pessoal (individual ou comunitária); responderá no discernimento, na decisão 13


e na ação, fruto de todo o processo orante. No fim de tudo, estará disposto a ser e a viver com a arte da Vida e da Missão de Jesus de Nazaré nascido em Belém. Seguiremos a integridade dos textos, isto é, não só leremos os textos propostos pelo Lecionário Romano1, mas também as passagens bíblicas que os contextualizam e os interpretam. Por essa relação que se tecerá entre textos e parcelas de textos, a vida do leitor será atualizada pela Palavra de Deus, integrando o seu passado, iluminando o presente e projetando o seu futuro. A intercomunicão temporal da vida, será ícone da possibilidade da conversão, da santidade e da felicidade de todos os leitores orantes, seja qual for a sua condição humana. Na inclusão dos textos, integrados por agrafos literários, a própria Palavra de Deus incluirá a vida do cristão como caixilho da grande tela onde a humanidade do leitor será desenhada com a tinta do Verbo Misericordioso. E a pintura que nela r­ essurgir será não somente por causa do Filho/Criança que ­nasceu, mas igualmente por causa do Filho/Cristo que Morreu e R ­ essuscitou. Olharemos o Natal com a pergunta nascida junto ao Presépio e à Cruz. Porque é que Ele nasceu e se entregou por nós? Ao descermos com a lectio divina ao Povo de Israel e ao Dia do Menino, vamos fazendo um percurso espiritual dinâmico, pelo qual saberemos que a Salvação está antes e depois da vida humana, dos povos, dos profetas, dos apóstolos, dos evangelistas, da igreja e do leitor. Celebrando o Nascimento do Messias, receberemos a graça de nos deixarmos identificar com Cristo, efetivamente, em Seus gestos humanos. E o Natal passará a ser a Statio do leitor, isto é, a sua expetativa orante para com toda Os textos do lecionário são colocados antes das respetivas leituras que faremos. Elas não indicam os versículos, pelo que o leitor terá de os buscar e identificar na Bíblia. O mesmo fará para os textos e versículos mais alargados propostos pelos exegetas. 1

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a vida de Jesus Cristo. Celebrar o Natal, cada ano, significará ajoelhar e pedir ao Pai a graça de nos aproximarmos, cada vez mais intimamente, do Filho, também em Sua Vida Pública, Morte e Ressurreição. Os textos do Natal do Lecionário Litúrgico e a metodologia da lectio divina, serão certamente, um pórtico divino onde Deus nos espera e nos encontrará, na precedência permanente do Espírito Santo. E talvez, as páginas, da segunda parte desta partilha, possam ser lidas não só cronologicamente, no Natal, mas em qualquer tempo litúrgico, porque o Menino que escutaremos, contemplaremos, a Quem oraremos e seguiremos, deixará em nós a visão do Rosto da Palavra, Jesus de Nazaré. ­Diz-nos o Papa Bento XVI: «(...) O próprio Filho é a Palavra, é o Logos: a Palavra eterna fez-se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez-se criança, para qua a Palavra possa ser compreendida por nós». “Desde então, a Palavra já não é apenas audível, mas possui somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto que, por isso mesmo, podemos ver: Jesus de Nazaré” (EA – VD - A Palavra do Senhor, 12)2. Desde os rostos israelitas do Antigo Testamento ao Rosto do Filho de Deus, surgirá certamente um novo rosto: o rosto de cada um dos leitores. Aproximados, uns dos outros, ao aproximar-nos do Menino do presépio, seremos capacitados a entoar a experiência da oração sálmica: «É na tua luz que veremos a luz» Salmo 36 (35), 10. E todos poderemos ser luz, para os outros, do amor e da fraternidade recíproca.

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BENTO XVI, Exortação Apostólica (EA) Pós-Sinodal Verbum Domini

(VD). A Palavra do Senhor. Prior Velho: Paulinas, 2010; 2ª ed. 15


I PARTE PREPARAÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA LECTIO DIVINA



Capítulo I: Definição 1. O que é a Lectio Divina? Certamente terás uma Bíblia. Que lês ou que apenas vais folheando. Para agora, o importante é que a tenhas contigo. É este Livro que a lectio divina segue no seu trajeto de p ­ eregrinação orante. Precisamos de fazer a pergunta sobre a relação da lectio divina com a Sagrada Escritura. Mas comecemos pela definição e pelo sentido dessa expressão latina. Lectio Divina é a leitura da Palavra de Deus, escrita3, ou seja, a leitura da Bíblia, como Palavra de Deus. Enquanto tal, é uma leitura marcadamente estruturada pelo diálogo, à semelhança da Revelação de Deus ao seu Povo. Nesse modo de ler, a lectio divina vai sendo uma verdadeira ­oração bíblica4. Pelo diálogo orante, o leitor é orientado num ritmo de escuta e de resposta à conversa amorosa do Pai (DV 21). A intercomunicação entre Deus e o leitor requer que este se disponibilize para o diálogo. E quais os meios pelos quais ele efetiva a sua disponibilidade? Na tradição da lectio divina encontramos os meios e que são os chamados de momentos, tempos, degraus, níveis ou passos. São meios humanos – pelo facto de ser a pessoa quem toma os tempos, momentos e constrói os degraus com seu próprio ritmo. Como meios humanos, são a bússola do leitor, pelos quais ele vai sendo instituído em alguém que escuta e responde. Escuta, ao ler, ao meditar e ao 3 MOLINA, Francisco Contreras – Leer la Bíblia como Palabra de Dios. Claves teológico-pastorales de la lectio divina en la Iglesia. Estella (Navarra): Verbo Divino, 2007, p. 56. 4 MAGGIONI B.“Oração”, in NDTB. ROSSANO, P. ( et al.). Madrid: Paulinas, 1990, p. 1341-1342.

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contemplar. E responde, ao orar, ao discernir/decidir e ao agir perscrutando o que a Palavra lhe faz ver em sua própria vida. A noção de degraus e de níveis sugere o envolvimento em crescendo de que a lectio divina é facilitadora. E, os tempos, momentos e passos indicam a liberdade interior de quem se predispõe percorrer o itinerário de leitura bíblica, na vida quotidiana. Tempos, momentos e passos podem ser ainda uma referência ao tempo e à hora de Deus, que supreendem o leitor. Também sugerem a Gratuitidade bíblica da graça de Deus. Molina diz-nos isso: “É preciso que a leitura da Bíblia se converta num acontecimento Salvífico: Kairós, um acto pelo qual Deus nos recria e nos faz partícipes de sua vida”5

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Como leitura orante, a lectio divina é fonte de vida espiritual. Desta feita, a abordaremos a partir de referências concretas da Tradição orante e, não de simples descrições, que serão sempre teóricas e fechadas. Como experiência orante, consiste na entrega de alguém, eu, tu, ao texto, lendo e escutando com ouvidos de discípulo de Jesus. Na entrega à palavra bíblica, o Espírito de Deus leva-nos a descobrir o que a Palavra é para cada um, não só como leitor real (lendo ou ouvindo ler) mas também como leitor implícito, isto é, leitor implicado na mensagem, leitor produzido e suposto pelo texto6. Sabendo-se interlocutor bíblico desde a Criação (Gen 1, 26-31), dedica-se a uma peregrinação interior, por caminhos da Palavra. Penetra-os com todas as suas faculdades, ora vendo ora não, porém, com consciência e persistência, na memória de outros cristãos que os percorreram com coragem e com alegria orante. 5

MOLINA – Leer la Biblia como Palabra de Dios, p. 31.

COMISSÃO PONTIFÍCIA BÍBLICA – A Interpretação da Bíblia na Igreja. Discurso de sua Santidade, o Papa João Paulo II e documento da Comissão Pontifícia Bíblica. SGE, Lisboa: Rei dos Livros, 1994, p. 50-51. 6

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No diálogo com o Pai e com o Filho, mediado pelo Espírito, a lectio divina vai sendo um caminho espiritual, isto é, realizado no Espírito de Deus. Por isso, será sempre pessoal, quer se pratique individualmente ou em grupo. Fascina-nos o seu valor de serviço. Serviço do Espírito ao leitor e do leitor à Palavra. Do Espírito, que serve o manjar da Palavra de Deus. E do leitor, que comendo desse manjar, partilhará do que mastiga e saboreia, irradiando-o na vida e anunciando-o por palavras. Comer, mastigar, saborear, irradiar e anunciar evocam os momentos específicos do método, que narraremos no nosso texto. Dizemos narrar em vez de descrever, por se tratar de uma experiência pessoal, íntima e indizível. Este limite não significa que ela não seja profunda, real e verdadeira. São assim tantas das nossas experiências existenciais que nos absorvem em nossa totalidade sem que os outros se apercebam ou compreendam, mesmo quando as contamos. Embora apresentemos, separadamente, os momentos são uma realidade sistémica, onde o todo da lectio divina é mais forte e mais eficiente/frutífero do que a soma das suas partes. O que seria a meditação sem a contemplação? E esta sem a oração? E sem a ação? O que seria de todos eles, se algum não acontecesse? Este todo implica que se reconheçam os vários passos dentro de um processo dinâmico em que cada um contribui para o seguinte e faz parte dele. E assim sucessivamente, até à resposta de vida em fé responsorial – ação – que, por sua vez, se transforma em nova atenção orante à Palavra de Deus. Por esta relação envolvente, não conseguimos deter-nos em nenhum deles e não distinguimos com clareza a passagem de um para outro momento. Acontece, por vezes, que segundo os nossos cálculos humanos, deveríamos estar neste ou naquele e encontramo-nos em um outro. Esta constatação fundamenta a fé de que é o Espírito Santo Quem ilumina, leva a escutar, a 21


contemplar, a rezar e a viver a Palavra, de modo pessoal, singular e atual. Enquanto técnica de contacto com o texto sagrado, a definição da lectio divina descreve as suas regras. Regras compostas pela postura do leitor e do contacto com o texto. Poderá estar sentado ou de pé. Com o texto na mão ou pousado na mesa. Lê, sublinha, faz associação de ideias, de mensagens e de textos paralelos. Interroga o texto e deixa que a Palavra o questione. O silêncio acompanha-o do princípio ao fim do exercício orante. Faz anotações para si, para a sua vida. Permanece fiel a todos os momentos da lectio divina. Entre a Palavra lida e o desejo da Verdade da Palavra, por parte do sujeito/leitor (indivíduo, comunidade), existirão dificuldades quer da parte do sujeito quer do texto. É ao que Masini chamará de sombras entre luzes7. Sombras que se vão dissipando pela luz do verdadeiro motivo pelo qual o leitor lerá a Bíblia. Ele sabe que poderá aceder ao dabar bíblico ou seja à Palavra/Acontecimento8, mediado pelo Espírito, mantendo-se ele ao Seu dispor.

2. Fundamento e génese A definição da lectio divina engloba o seu fundamento e génese. O fundamento da lectio divina é a própria Palavra de Deus. Observamos a passagem do AT (Neem 8, 1-12). O povo de Israel lê a Bíblia com Esdras, sacerdote e escriba, juntamente com os levitas. Durante todo o dia, ele lia e o povo ouvia atentamente. Esdras explicava o sentido da leitura para que o povo MASINI, Mário – La Lectio Divina. Teología, espiritualidad, método. Madrid: BAC, 2001, p. 51- 58. 7

8 ARTOLA, Antonio M. – CARO, José Manuel Sánchez – Biblia y Palabra de Dios. Introduccion al estudio de la Bíblia. Estella: V D, 1995, p. 33.

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a compreendesse. Desta fonte, a Sagrada Escritura, também a Espiritualidade Antiga buscava o alimento para a vida quotidiana. Tratava-se da busca de Deus. Nessa dinâmica de relação com os textos da Escritura e com o zelo da resposta a Deus, surge a primeira sugestão de um método de leitura orante. É atribuído a Orígenes de Alexandria, escritor eclesiástico do Oriente. Orígenes terá usado, pela primeira vez, o termo grego – theía anágnôsis, lectio divina, em latim. Sendo mestre de Gregório, inicia o discípulo (séc. III) na arte de evangelizar em contexto adverso ao cristianismo nascente. Em tal condição, aconselha-o a seguir duas vias que seriam incontornáveis. Por um lado, a da própria cultura e filosofia helénicas, como meios para tornar compreensível e aceitável a mensagem cristã por parte dos seus ouvintes9. Por outro lado, a da Sagrada Escritura, que ele próprio seguiria segundo orientações precisas do mestre. Ouvimos: “Tu, pois, meu senhor e filho, aplica-te principalmente à leitura das divinas Escrituras: a­ plica-te bastante a ela. […]. Entregando-te à leitura com a intenção de crer e de agradar a Deus, bate à porta que estiver fechada e abrir-te-á o porteiro do qual Jesus disse: «A quem chama, o porteiro abre» (Jo 10, 3) para compreender as coisas de Deus. É para nos exortar a elas que o salvador disse, não somente: «batei e abrir-se-vos-á» e procurai e encontrareis», mas também: «pedi e dar-se-vos-á […]. Aplicando-te a esta divina leitura, procura com rectidão e com uma confiança inquebrantável em Deus, o sentido dos divinos 9 GRÉGOIRE le Thaumaturge, Saint – Remerciement à Origène. Lettre d’Origène a Grégoire (trad. Henri Grouzel). Paris, SC, 148 ; 1969, cap. XIII, 1, p.187-189.

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Escritos, oculto a grande número de pessoas. Não te contentes com bater e procurar, porque é absolutamente necessário orar para compreender as coisas divinas”10. No século IV, no Ocidente, Santo Ambrósio recomenda a leitura como alimento da Palavra do Verbo. Restringe-a, porém, a alguns textos bíblicos. De igual modo, Santo Agostinho fala da leitura bíblica como necessária à vida espiritual. É o que, por exemplo, recomenda a Antonino na orientação a dar à esposa em vista da busca da vontade do Senhor11. Por essa altura, já existiam, nas Regras monásticas de origem grega, prescrições sobre a leitura da Sagrada Escritura. Ouvimo-las afirmar que só à luz da Escritura se alcança a felicidade perfeita. Assim o referiu Serapião: “... porque a misericórdia do Senhor enche a terra», e uma multidão numerosa está em marcha em direção à bem-aventurada vida perfeita, o melhor será obedecer ao que o Espírito Santo prescreve, porque sozinhos não podemos tornar firmes as nossas próprias palavras, a não ser que, os nossos propósitos se apõem firmemente sobre a firmeza das Escrituras”12. Ainda no ocidente, no século VI, S. Bento (480-574) prescreve a leitura divina como regra da vida monástica e indica-a 10 GRÉGOIRE le Thaumaturge – Remerciement à Origéne. Lettre à Gregoire, SC, 148, p. 193. 11 AGOSTINHO, Santo – Obras completas de San Agustín vol.VIII (1º), 1-123, carta 20, 3. Trad. Cilleruelo, Lope. Madrid: BAC, 1986, p. 91

VOGÜÉ Adalbert de – Trois Règles du VIe siècle incorporant des textes lériniens. Introducion, texte, traduction et notes. Paris, Cerf, 1982, vol. 2, p. 581. 12

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como uma das boas obras do monge pela qual escutaria de boa vontade as santas leituras13 e estruturaria a vida monacal. E de tal forma os monges se comprometeram com ela, que deixaram implantada no ocidente cristão a prática de leitura orante da Palavra de Deus. No século XII, Guigo, monge e nono prior da Grande Cartuxa fundada por S. Bruno, desenvolve-a como um método ­sistemático. É-lhe atribuída a autoria da chamada scala claustralium e das méditationes, onde ele aparece como um estudioso assíduo da Sagrada Escritura14. Contrariamente a outros autores que usavam a palavra Escritura, para significar, juntamente com a Bíblia, os escritos dos Padres da Igreja e dos Comentadores, Guigo reserva a designação de Sagrada Escritura para a Bíblia. Esse juízo preferencial dá a Guigo autoridade para indicar a Bíblia como o lugar onde a inteligência deve procurar. Ele próprio iniciou a experiência ascendente dos degraus orantes, que o auxiliavam a subir da leitura à meditação e desta à oração e à contemplação15. Surge, deste modo, a génese dos quatro primeiros degraus do método da lectio divina: leitura, meditação, oração e contemplação. A conservação da denominação latina, lectio divina, estabelece o sentido intemporal desse método sistemático. Desse modo, a leitura orante da Bíblia mantém-se viva, tendo superado os períodos em que foi reduzida a uma prática descontínua ou parcial. Mais do que uma definição, a expressão lectio divina nos oferece um dos tesouros de vida espiritual, historicamente identificável em seu exercício secular. BENTO, Santo – La Règle de Saint Benoît. Trad. VOGUÈ, Adalbert de. Paris: Cerf, 1972; SC; vol I, nº181, cap 4, 55, p. 461. 13

GUIGUES II le Charteux - Lettre sur la vie contemplative. L´échelle des moines, suivi de Douze méditations. Introduction e texte critique par E. Colledge, O.S.A. et James walsh S.J. Paris, 1980; SC, 163, p. 83-85. 14

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GUIGUES – Lettre sur la vie contemplative. Scala, 3, p. 33-34 25


3. A metodologia: premissas, objetivo e método. A metodologia da lectio divina é constituída pelas premis­ sas, objetivo e pelo método. Ao conhecer tais elementos, tomaremos consciência do lugar que nos é cedido ao lermos q ­ ualquer texto da Sagrada Escritura. As premissas, realidades pessoais e inalienáveis da vida cristã, estão presentes no processo da metodologia, do princípio ao fim, criando o contexto de leitura e de escuta da Palavra de Deus. Definimo-las, de imediato, para que as acolhamos como imprescindíveis no exercício orante que faremos. A primeira premissa é a fé. A fé como religiosa abertura a Deus nessa graça acolhida, constitui a pessoa em ouvinte que escuta a Palavra desde a sua estrutura íntima16. Pode ler-se a Bíblia sem fé, mas sem fé não se pode escutar a Palavra de Deus. O sínodo sobre a Palavra de Deus assumiu a escuta religiosa da Sagrada Escritura para iniciar e prosseguir tão singular acontecimento. Desejando-a, previamente, podia antever-se o sínodo como um tempo bíblico orante e de reflexão para a vida da Igreja e para a sua missão. A disponibilidade na fé foi um olhar preparatório, um kairós, uma graça de abertura ao Texto Sagrado. Desse modo, afirmava-se e atualizava-se a verdade do diálogo entre fé e razão. Recuperamos esta relação, no seu texto de trabalho: “... a razão, portanto, interpela a fé e é levada por esta a colaborar para a verdade e a vida, em consonância com a Revelação de Deus e as expectativas da humanidade”17. 16

SÍNODO DOS BISPOS. XII ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA –

A Palavra de Deus na Vida e na Missão da Igreja. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2008. Instrumentum Laboris (Inst. Labor.), conclusão, 34. 17

XII ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA – A Palavra de Deus na

Vida e na Missão da Igreja. Inst. Labor. II, 20. 26


Podemos olhar para essa fé viva da Igreja como um estímulo para quem inicia o exercício da lectio divina. Assim t­ambém, pela fé, disponível está o crente, sentado ou de pé, para nela entrar com o coração bíblico de servo atento e obediente (1Rs 3, 5-14). A premissa da fé ou da falta de fé é essencial para se distinguir a Bíblia e a Palavra de Deus. Com fé, escuta-se a Palavra de Deus; sem fé, apenas pode ler-se a Bíblia como se lê q ­ ualquer obra escrita (Inst. Labor. III, 26). Esta convicção é uma luz para o leitor diante da Sagrada Escritura, e à porta da lectio divina. O Papa Bento XVI recoloca-nos nessa porta da fé sempre aberta. E nós podemos descobrir ou ­redescobri-la e, assim, brilhar a alegria e o renovado entusiasmo de nos e­ ncontrarmos com Deus em Cristo (Porta Fidei 1, 2). Na fé, o leitor orante acolhe a Palavra de Deus, medita, discerne e responde. E a lectio divina torna-se fonte permanente dessa mesma fé e, também, de esperança e de consolação. A segunda premissa é a unidade dos dois Testamentos no ­ istério Pascal de Cristo. Na luz da Páscoa desvela-se o MisM tério de Cristo oculto sob a letra do Antigo Testamento, interpretando-se com Cristo as figuras simbólicas da Antiga Aliança no único plano divino (CIC 128-129; 1094). O ensinamento da Igreja, sobre a correlação dos dois Testamentos, sanará as dúvidas que possamos colocar e, pelas quais, nos deixemos eventualmente inquietar a respeito do Antigo Testamento. Esclarece-nos: “Quanto, pois, ao Antigo Testamento, este deve ser entendido como uma etapa no crescimento da fé e da compreensão de Deus. O seu carácter figurativo e a sua relação com a mentalidade científica e histórica do nosso tempo precisam de um esclarecimento. Do mesmo modo, muitas 27


das suas passagens contêm uma força espiritual, sapiencial e cultural única que permitem fazer uma rica catequese sobre as realidades humanas e mostram as etapas do caminho da fé de um povo. O conhecimento e a leitura dos Evangelhos não excluem o facto de o aprofundamento do Antigo Testamento dar à leitura e à inteligência do Novo Testamento uma profundidade cada vez maior” (Inst. Labor. II, 18, f). Na unidade do Antigo Testamento e dos Evangelhos expressa pelo Cristocentrismo, ou seja, pela totalidade da pessoa de Jesus de Nazaré em sua missão Redentora, vemos Jesus não só no Novo Testamento, mas também no Antigo, que nos ilumina sobre o sentido da encarnação redentora18. A terceira premissa é a comunhão em Igreja e com a Igreja. As duas preposições significam a comunhão, em si mesma, e depois, o reconhecimento dessa comunhão, pelo fiel cristão. Embora a lectio divina não se desenvolva no âmbito da Liturgia, é feita na comunhão da Tradição à qual pertence o leitor de qualquer tempo eclesiológico. Nessa íntima união com a Igreja, quando o cristão lê a Escritura, é a própria Igreja que a lê, e como tal, se eleva à caraterística comunitária a lectio divina realizada em grupo. A quarta premissa, a conversão é, ao mesmo tempo, condição e efeito da leitura orante. Da Palavra nasce o espírito de conversão e de penitência (CIC 1437) que na lectio divina converge para o discernimento com decisão para a vida. Na condição de leitor atento à Palavra que Deus lhe dirige, olha para si 18 BERNARD, Charles, André.Trad. Alfonso Ortiz – Teología espiritual. Hacia a la plenitud de la vida en nel Espíritu. Madrid: ed. Paoline, 1989; col. Síntese 6/3, 2ª ed. p. 365.

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e nesse olhar acontece a metanóia, ou seja, a mudança interior, com consequente conversão. Nasce, então, uma vida diferente como resposta ao anúncio do Reino, devido à nova vinculação da fé19. Finalmente, a quinta premissa, interpretação espiritual da Escritura (CIC 113). Como a presença do Espírito Santo na Liturgia, a lectio divina torna-se ação do Espírito, que, doando a inteligência espiritual da Palavra, impede que a Escritura seja letra morta. É o Espírito quem situa o leitor cristão na comunhão com Deus, e o leva a escutá-Lo. Mantém-no em relação íntima com Cristo, transformando em vida, o sentido que ele ouviu e viu em todo o processo orante (CIC 1101). A Graça do Espírito destrona, em qualquer época da existência e do pensamento, o limite que o Homem julgar poder impor-Lhe tal como à Palavra. E assim é, porque a caraterística da fé bíblica, do Ruah e do Dabar (hebraico), isto é, do Sopro do Espírito e da Palavra/Acontecimento, são duas formas de revelação permanentemente contemporâneas20. A lectio divina – leitura da Palavra no Espírito – suscita e alimenta a resposta do leitor, construindo-se o sentido teológico-antropológico da Palavra: Deus revela-se e a pessoa, ao ver Deus, responde-Lhe. É esta aproximação da Voz de Deus e do ouvido do leitor orante, que vai moldando, gradualmente, um método de sentido espiritual. A espiritualidade bíblica com a qual somos agraciados é expressa pelos textos, lidos e orados, no contexto pascal de Cristo e da vida nova que dela deriva, 19 MERKLEIN H. “Metanoia”, in DENT II. (BALTZ, Horst – SCHNEIDER, Gerhard eds.). Tradução Constantino Ruiz Garrido. Salamanca: Sígueme, 1998, p. 253-254 . 20 MOLINA – Leer la Biblia como Palabra de Dios, p. 160. Molina parafrasea a relação do Espírito e da Palavra, a partir da nota de André Neher, no livro, la esencia del profetismo.

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isto é, da vida no Espírito21. É esta última realidade – vida no Espírito – que torna o cristão fiel à Palavra, para a vida plena em Deus, por Jesus (Jo 17, 1-3). O Espírito que nos acompanha na lectio divina realiza, efetivamente, o nosso ser humano/ cristão, assemelhando-nos a Jesus de Nazaré. Ao falarmos da premissa do Espírito, inevitavelmente pensamos no exegeta que, com o leitor atual, andará pelos caminhos do hagiógrafo (autor) do texto bíblico. E tanto eles como o teólogo, todos nós somos convidados a buscar a inteligência cada vez mais ­profunda da Escritura, como leitores do Espírito, inflamados no amor de Deus (DV 12.23). O Espírito prometido por Jesus (Jo 14,15-17), precede e acompanha a Igreja, o exegeta e o cristão. Todos poderão deixar-se envolver e guiar pelo exercício orante da Palavra de Deus. As cinco premissas fazem da lectio divina, leitura e oração simultaneamente. E, do leitor orante, sujeito uno, único e responsável. Ele é chamado a responder, dentro da liberdade pessoal, típica da oração cristã. Oração que, por sua vez, é uma das vivências que mais exige essa mesma liberdade e onde ela mais se concretiza. Pela caraterística pessoal, quer da liberdade quer da oração, a oração é sempre diferente entre as pessoas que oram. Poderá haver uma semelhança no tipo de oração – adoração, louvor etc -, mas não na sua realização. E tratando-se da mesma pessoa, modos diferentes de orar a podem surpreender, porque a oração é uma iniciativa de Deus. Ele conhece-nos e sabe o que mais nos convém neste ou naquele momento ou período da nossa vida22. E a lectio divina também goza dessa providência e cuidado divinos. O modo pessoal de orar a Pala21

COMISSÃO PONTIFÍCIA BÍBLICA – A Interpretação da Bíblia na

Igreja II, B, 2, p. 96-97 22 MARTINI, Carlo Maria – A sede de Deus. Lectio Divina de alguns Salmos. Lisboa: Paulinas, 2003, p.15.

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vra autoriza que se possa afirmar que a lectio divina é indizível e inexplicável; que se compreenda a sua trajetória ligada a pessoas e a experiências concretas, do passado e dos nossos dias; que se veja a sua prática nascida nos começos do cristianismo, permanecendo viva em Igreja, na comunhão do Espírito Santo. Um dos objetivos da lectio divina consiste em criar e alimentar a comunhão com Deus. Comunhão no Mistério do Amor e da Glória da Trindade, no Sim insondável do Pai e do Espírito, ao Filho e, deste à Humanidade. Assim sendo, dizemos: Mistério, não porque Deus nos seja inacessível e não ­possamos pensar n`Ele, pois que, em Jesus, temos a revelação do diálogo do Pai, do Filho e do Espírito Santo23. Na comunhão do Sim da Santíssima Trindade, o leitor participa do intercâmbio do amor divino. A voz do Senhor chega ao seu coração, aos sentimentos, aos afetos, aos anseios e à questão do sentido da sua vida. Tudo acontece na profundidade do ser e na totalidade da sua existência. E é a Totalidade da Vida de Deus, o seu Mistério e, a totalidade da nossa vida, o nosso mistério humano, de mulheres e de homens, que se encontram e se narram. Pelo silêncio espiritual, o Espírito escuta o leitor e este revela-Lhe a própria vida. Por tal permuta, acontece o círculo da hermenêutica do Espírito, chegando a voz de Deus ao crente e a do crente a Deus. Neste movimento espiritual, o silêncio propicia-lhe a síntese de tudo quanto vai escutando e acolhendo, fazendo-o ser humano como Jesus. Deste modo, realiza-se o outro objetivo da metodologia, a humanização do leitor. 23 BREUNING, Wilhelm (dir. BEINERT, Wolfgan) – “Mistério de Deus”, in DTD. Barcelona: Herder, 1990, p. 457.

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A lectio divina expandir-se-á à pastoral da espiritualidade bíblica. Isto é, o leitor orante torna-se sedento em anunciar a sua vida de discípulo como resposta à Palavra de Deus. Nesse modo de ser discípulo e testemunha, simultaneamente, o cuidado da relação pessoal com Deus, evitará o risco da leitura simplesmente científica e teórica, quer da exegese quer da hermenêutica e quer da leitura espiritual. Experimentaremos que só uma leitura sistémica, isto é, de totalidade e de integração das várias lectiones, a lectio da exegese, a lectio da teologia e a lectio do orante, se manterá fiel a Deus e ao leitor. Nesse horizonte de totalidade, o princípio da materialidade – visibilidade e significado da letra – buscado pela exegese, juntamente com o princípio teológico, sapiencial e pessoal, construirão uma verdadeira oração bíblica. Esta relação de texto bíblico e encontro espiritual traça a missão da lectio divina como uma das mediações da Teologia da Revelação, onde fé e razão se iluminam reciprocamente. Como no Mistério do Verbo Encarnado, onde a carne em Cristo torna visível a presença Salvadora de Deus, cardo salutis caro, quer dizer, a carne é o eixo da salvação24, também o texto, o sentido literal, é indispensável para o conhecimento do desígnio amoroso da Salvação. Este valor da letra exige que se vele por ela. Qualquer frase ou palavra guarda o Mistério da Presença Divina que, na lectio divina, é a graça de A contemplarmos. Na veracidade do encontro por que anseia, o leitor senta-se com a Bíblia na mão, familiariza-se com ela, deixando que o Espírito Santo o faça participante da vida que nela percorre. Está sozinho ou com outros leitores orantes. Tais movimentos e atitudes atraem-no, permanententemente, para a Palavra. E deixa-se ser envolvido pelo gosto e pelo fervor de escutar a voz de Deus. 24 GARGANO Innocenzo – Iniciación a la «Lectio Divina». Um itinerario para acercarse a la Palabra de Dios. Madrid: SEA, 1996, p. 12.

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Na segunda parte, faremos coincidir os dois objetivos da lectio divina, a comunhão com Deus e a humanização do leitor, com a lectio divina dos textos do Natal. Com tal identificação, poderemos prever que o leitor apreciará a lectio divina como necessária à vida de fé e descobrirá a Pessoa do Verbo como a única Palavra que lhe constrói a condição filial com o Pai, no Espírito Santo e lhe concede o sentido da sua vida fraterna. Molina ajuda-nos a entender tais encontros, quando afirma: “Quando num ato de fé lemos a Bíblia, não lemos só palavras, mas uma presença misteriosa e próxima ao mesmo tempo sai ao nosso encontro: é Jesus Cristo, o Senhor da Vida”25. A metodologia da lectio divina será um incentivo de fidelidade às caraterísticas pessoais, dos catequizandos, na catequese; dos fiéis, nos ensinamentos, na formação e nas celebrações. E de fidelidade ao próprio anúncio de Cristo. Para além de ser um caminho, ela expressa a integração harmoniosa do crente. Pensamos na beleza da verdade de quem a ela se entrega com a consciência de que, a peregrinação bíblica é ação do Espírito e também atitude pessoal do leitor. O leitor, com seu desejo, disposição, tempo, paragem, silêncio, recolhimento, leitura, escuta, reflexão e ação, autoriza que se possa apelidar de método ao conjunto dos momentos da lectio divina. O método, portanto, é construído pelo leitor orante. Recorrendo novamente à tradição, reencontramo-lo no monaquismo clássico com designações específicas, como leitura, meditação, oração e contemplação. Guigo, ao encetar tal sistematização, resume cada momento na interligação dos quatro degraus. Recuperemo-los: “A leitura é o estudo atento das Escrituras, feito por um espírito aplicado. A meditação é uma 25

MOLINA – Leer la Bíblia como Palabra de Dios, p. 130. 33


operação da inteligência, procedendo da investigação de uma verdade escondida, com a ajuda da própria razão. A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus para afastar os males e obter os bens. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, elevada acima de si mesma e saboreando as alegrias da doçura eterna”26. Esclarece ainda: ... a leitura traz um alimento substancial à boca, a meditação mastiga e tritura este alimento, a oração obtém o gosto, a contemplação é a própria doçura que alegra e refresca”. E indicando a espiritualidade de cada um deles, prossegue: “a leitura busca a doçura da vida bem-aventurada, a meditação encontra-a, a oração pede-a e a contemplação saboreia-a”27. No nosso itinerário de leitura orante, optámos por nove degraus, incluindo a statio. Esta abre o leitor à totalidade da metodologia, podendo torná-lo decidido e alegremente perseverante. A imagem da fome e da sede ajudarão a perceber quanto ela é indispensável neste método de leitura. Embora narremos os passos, separadamente, na prática, desenvolvem-se incluídos uns nos outros, em íntima e natural relação. Este ritmo de leitura que aproxima o texto e o leitor, simbolizará a disponibilidade do crente à vida de comunhão com Deus e, à verdade do seguimento de Cristo e da vida fraterna.

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26

GUIGUES – Lettre, II, 32-39, p. 85.

27

GUIGUES – Lettre, III, 42-48. p. 85-87.


Que estas primeiras páginas te movam a prosseguir a ­leitura com uma abertura interior, para que leias no Espírito que te habita. Que Ele te leve a encantares-te com a Bíblia. Foi naquele modo de relação com a Palavra, que em Lucas 24,13-35, os discípulos de Emaús reconheceram Jesus. Que esse texto, ícone da lectio divina, faça que tu queiras fazer o caminho de Jesus e que renoves a tua disponibilidade para continuares a lê-Lo. Desde esta possibilidade humana e divina, o itinerário bíblico da lectio divina merece que reflitamos cada um dos momentos do método.

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Índice Siglário....................................................................................3 Prefácio...................................................................................7 Introdução............................................................................11 I PARTE Preparação para o Exercício da Lectio Divina .....................17 Capítulo I: Definição........................................................19 1. O que é a Lectio Divina?.........................................19 2. Fundamento e génese...............................................22 3. A metodologia: premissas, objetivo e método..........26 Capítulo II: O ITINERÁRIO DO MÉTODO...................37 1. Statio ......................................................................37 2. Lectio ou leitura......................................................40 3. Meditatio ou meditação...........................................48 4. Contemplatio ou contemplação...............................50 5. Oratio ou oração.....................................................53 6. Collatio ou partilha ................................................54 7. Discretio ou discernimento com decisão .................56 8. Consolatio ou consolação .......................................58 9. Actio ou ação ..........................................................59 10. Em chave de síntese orante....................................61 199


II PARTE

Lectio Divina dos textos do natal..........................................67 Introdução e Statio...........................................................69 Capítulo I: Eucaristia da vigília........................................73 1. Livro de Isaías (Is 62, 1-5) ......................................73 2. Salmo 88/89, 4-5.16-17. 27 e 29..............................81 3. Actos dos Apóstolos (At 13, 16-17. 22-25) .............85 4. Evangelho de S. Mateus (Mt 1,1-25) .......................91 Capítulo II: Eucaristia da noite ......................................111 1. Livro de Isaías (Is 9,1-6) .......................................111 2. Salmo Sl 95 (96) 1-2a.2b-3.11-12.13.....................116 3. Epístola de Paulo a Tito (Tt 2, 11-14) ...................123 4. Evangelho de S. Lucas (Lc 2, 1-14) .......................126 Capítulo III: Eucaristia da aurora...................................145 1. Livro de Isaías (62, 11-12) ....................................145 2. Salmo (96/97) 1.6.11-12........................................146 3. Carta a Tito (Tt 3, 4-7) .........................................149 4. Evangelho de S. Lucas (Lc 2, 15-20) .....................152 Capítulo. IV: Eucaristia do dia.......................................163 1. Livro de Isaías (Is 52, 7-10) ..................................163 2. Salmo (Sl 97/98) 1.2-3ab.3cd-4.5-6.......................165 3. Epístola aos Hebreus (Heb 1,1-6) .........................171 4. Evangelho de S. João (Jo 1, 1-18) .........................175 Epílogo................................................................................189 Bibliografia.........................................................................193 200


Ana Dias

Um livro para descobrir a beleza dos textos litúrgicos do dia de Natal, a partir do método de oração Lectio Divina.

Ana Dias

Na segunda parte, a Lectio Divina será aplicada aos quatro conjuntos de textos usados na liturgia do dia de Natal: Eucaristia da Vigília, Eucaristia da Noite, Eucaristia da Aurora e Eucaristia do Dia. Para cada uma das quatro leituras propostas (1ª leitura, salmo, 2ª leitura e evangelho) a autora faz contextualização literária, estrutural e teológica auxiliada por contributos de exegese bíblica. Após cada um dos textos do evangelho, a autora prossegue com os restantes passos da lectio divina. Sobre a autora: Ana Maria Sobral Dias é natural de Angola. É entre este país e Portugal que vive a sua vida de missionária. Encontrou a sua vocação no apostolado caritativo, itinerante, junto de pessoas carentes de apoio humano. Atraída pela prática da lectio divina, vai espalhando a proposta deste método orante e o amor pela Sagrada Escritura. Concluiu o Mestrado Integrado em Teologia e em Ciências Religiosas com Especialidade em EMRC, pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa no Porto. É da sua dissertação final que resulta este livro.

Do dia de Natal... aos outros nossos dias

Na primeira parte, o leitor conhecerá em profundidade este processo de leitura e meditação da Palavra de Deus nos 9 passos que o compõem: Statio, Lectio, Meditatio, Contemplatio, Oratio, Collatio, Discretio, Consolatio e Actio.

... aos outros nossos dias Lectio Divina

«Na tua Luz veremos a Luz»

Rua Duque de Palmela, 11 4000-373 Porto Tel.: 225 365 750 editora@edicoes.salesianos.pt www.edisal.salesianos.pt

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