Dom Bosco uma vida sem tempo

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Uma vida sem tempo


Domenico Agasso - Renzo Agasso - Domenico Agasso Jr.

Uma vida sem tempo


Ficha Técnica © Domenico Agasso - Renzo Agasso - Domenico Agasso jr. © Edições Salesianas. 2014 Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel: 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Tradução: Basílio Gonçalves Capa: Paulo Santos Paginação: João Cerqueira Impressão: Edições Salesianas D.L.: 384013/14 Todas as notas de rodapé são da responsabilidade do editor e específicas da edição portuguesa.


Prefácio Um jovem padre de 200 anos Duzentos anos é muito tempo. Especialmente numa época veloz como a nossa. O pó do tempo tende a apagar acontecimentos, datas e pessoas, enfraquecendo a memória. Para Dom Bosco, como para tantos outros santos que mudaram a história, não é assim. Passaram dois séculos desde aquele 16 de Agosto de 1815 em que ele veio ao mundo, numa terreola perdida no norte de Itália. Mas ele continua a ser um padre sem tempo, atual no seu sistema educativo, um homem de Deus, que ainda hoje aproxima de Deus homens e mulheres de todo o mundo. Filho de camponeses pobres, órfão de pai aos dois anos, conhece depressa o rosto duro da vida. Mas também o sorriso doce de sua mãe, Margarida. Ela vai ajudá-lo a dar asas ao seu sonho de se tornar o padre dos jovens de todo o mundo. Daquelas casas sobre a colina, João parte para trabalhar nas aldeias vizinhas. Depois irá para a cidade de Chieri, onde estuda e trabalha. Daí, avança até Turim, que se está a tornar 5


uma cidade industrial. Miragem para centenas de jovens sem pais, sem casa, sem trabalho. João, padre jovem, olha à sua volta e sente-se imediatamente atraído por aqueles rostos sujos e arruinados pela miséria. Arregaça as mangas e desde o primeiro encontro com Bartolomeu Garelli até ao final da sua vida, com 72 anos e cinco meses, vai ser devorado pela paixão de salvar os jovens, deixando de lado tudo o resto. “Da mihi animas, caetera tolle” será o seu lema. Dom Bosco sabe ler, através do sonho que teve em crianças, os sinais dos tempos, a mensagem que Deus lhe envia. Ele deve comunicar a proximidade e bondade de Deus àqueles que a sociedade considera “lixo”, “bocas inúteis”. Indo contra a corrente e arriscando-se a ir parar ao manicómio, torna-se seu amigo, seu confidente, professor, dador de trabalho, confessor, padre sempre ao alcance do coração. Entra nos bairros pobres, sobe aos andaimes dos trolhas, corre nos campos de jogo, visita as prisões, bate à porta dos salões da gente fina e dos políticos. Um único objetivo: salvar os jovens da degradação, empenhar-se na prevenção e devolvê-los à cidade como “bons cristãos e honestos cidadãos”. Para recuperar a memória deste grande santo, a editora salesiana confiou a uma “família” de jornalistas e escritores piemonteses a tarefa de escrever esta biografia. São avô, filho e neto. As suas páginas correm com a vivacidade de um romance e a seriedade da documentação histórica, fiel aos factos e às palavras. Os autores souberam unir a seriedade científica à curiosidade de quem entra gradualmente nos episódios e na 6


espiritualidade do padre de Valdocco. Dom Bosco não vive no vazio; é tempo de nacionalismo italiano, Turim está cheia de nobreza e miséria, há guerras de independência e unificação da Itália, políticos e papas. O leitor é envolvido, e fascinado, pela sequência de factos, episódios, testemunhos. Uma “brincadeira da Providência” como comentou Dom Bosco, com um sorriso. Uma aventura que hoje continua nos 132 países onde os seus filhos, os salesianos, continuam a trabalhar pelos jovens. Dom Bosco, duzentos anos depois do seu nascimento, continua a fascinar. Um santo para sempre e para todos. Sem barreiras e com tanta história a descobrir. Roma, 8 dezembro 2014 Ángel Fernández Artime Reitor Maior da Congregação Salesiana

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CAPĂ?TULO I

72 Anos e cinco meses: Enviado por Deus aos jovens


Nasceu a 16 de agosto em Becchi de Castelnuovo d’Asti, no Piemonte: família de camponeses com poucas posses. Tinha dois anos quando lhe morreu o pai, Francisco, quase repentinamente aos 33 anos. Sua mãe, Margarida Occhiena, ficou viúva com três pequenos: António, filho do primeiro casamento do marido, e dois seus, José, de quatro anos, e João. João Bosco. Este aprende a escrever graças à ajuda de um camponês da localidade, frequentando depois a escola primária de Capriglio d’Asti, terra de sua mãe. Em fevereiro de 1827, sai de casa. O irmão António queria que João trabalhasse no campo. E assim acontece, mas não sob as suas ordens: vai para Moncucco, localidade vizinha, a servir de criado. Tem 11 anos e uma trouxa de roupa às costas.

Um sonho profético Aos nove anos de idade João tivera um sonho, que narrará por toda a vida: uma situação confusa, com uma turba violenta de rapazes e animais selvagens e enfurecidos; por fim aparecem Jesus e Maria, sua Mãe, que transformam aquelas feras em cordeiros brincalhões. Ele não entende, começa a chorar, e Maria tranquiliza-o: “A seu tempo compreenderás”. Interpretará sempre aquele sonho como o anúncio de que irá ser padre. Entretanto em Moncucco, na granja dos agricultores Moglia, trabalha e ocupa os serões guiando as orações no estábulo. E não só: fala, lê, explica coisas sagradas e outras. Depois de voltar para casa em novembro de 1829, encontra na terra um capelão que o ajuda a retomar os estudos. Agora sua mãe pode acompanhá-lo melhor, porque os irmãos trabalham por conta própria como rendeiros. Mas, inesperadamente, morre aquele capelão, padre Giovanni Calosso. 11


João tenta em vão retomar os estudos regulares em ­Castelnuovo. Mas eis que sua mãe põe mãos à obra: trabalha, fala, interessa famílias, promove peditórios para o filho. Em novembro de 1831, João entra no liceu público de Chieri, próximo de Turim, para recuperar os anos perdidos. Paga as suas despesas trabalhando como sapateiro, empregado de bar, pasteleiro. Torna-se chefe dos outros estudantes: aquele que os mantém alegres, que os defende, mesmo que seja a murro, que os envolve em desafios desportivos e em passeios ao campo, terminando sempre numa igreja. Por eles, estariam sempre com João, vão à sua procura, fazem equipa e tomam um nome sugerido por ele: Sociedade da Alegria.

Padre João termina o liceu aos 19 anos e pensa tornar-se franciscano, estando tudo bem encaminhado para isso. Mas segue o conselho do padre José Cafasso, também ele de Castelnuovo, e a 30 de outubro de 1834, João Bosco entra no seminário de Chieri. Aqui, a cada passo, doenças e depressão obrigam-no a ficar de cama, mas a recuperação é sempre bastante rápida. No dia 5 de junho de 1841, ei-lo sacerdote, ordenado pelo arcebispo de Turim, Luigi Fransoni, na igreja da Imaculada, rua do Arsenal. Entra no Convitto Ecclesiastico, junto da igreja de S. Francisco de Assis, dirigido pelo padre Cafasso. É uma escola de prática e de aperfeiçoamento para neo-sacerdotes, à base de compromisso, ministério e também estudo. Entre as suas primeiras tarefas no terreno, estava a visita às prisões de Turim, para falar, confortar, ajudar, e acompanhar os condenados à morte nas suas últimas horas, até morrerem na forca. 12


José Cafasso fá-lo com frequência: chamam-lhe “o padre da forca”. Mas Dom Bosco não consegue. Quando, pela primeira vez, acompanha um condenado ao suplício, cai desmaiado à vista do patíbulo. A sua escola são as ruas de Turim. Por volta de 1840, a cidade conta 130 mil habitantes e continua a crescer, chegando imigrantes das zonas pobres do Piemonte, quase todos jovens e muito jovens. Procuram trabalho num lugar onde se sentem estrangeiros para fugir à pobreza das suas terras, correndo o risco de cair na delinquência, no furto e na violência. Ninguém confia neles e eles desconfiam de todos.

Novos amigos Dom Bosco1 encontra-se com um destes rapazes no dia 8 de dezembro de 1841, na igreja de S. Francisco de Assis: não sabe para onde ir e tem frio. Só, pobre, analfabeto e desconfiado. Quatro dias depois, volta com mais oito rapazes como ele. Neste domingo de Turim nasce a obra de João Bosco. Mas, antes de encontrar uma sede, passar-se-ão quatro anos e meio. Os primeiros três sempre ali, em S. Francisco. Depois, os rapazes, já muito numerosos, fazem barulho, cantam e tocam – Dom Bosco procura os instrumentos – perturbando os hóspedes do Convitto e os vizinhos. Chega o momento de deixar aquela sua primeira casa. Entretanto o padre Cafasso c­onseguiu-lhe trabalho no Refúgio. Este é o nome de uma das “obras dos Marqueses”, ou seja, Giulia Falletti di Barolo, apelido de solteira Colbert de Maulévrier, aristocrata de França, e o rico e generosíssimo marquês Carlo Tancredi. As suas obras – casas, hospital, Em Itália, todos os padres são ainda hoje tratados com o título “dom”. Os bispos recebem o título de “monsenhor”. 1

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escolas – acolhem centenas de raparigas pobres para ajudá-las a defenderem-se na e da vida. E ajudam ainda outras centenas de ex-detidas e ex-prostitutas em busca de recuperação.

Oratório Dom Bosco, encontra também lugar para aquele conjunto de rapazes recolhidos da rua, a que ele dá o nome de “oratório”, literalmente: lugar de oração. Esta torna-se efetiva e abundante nas suas tardes juntos, nos dias de festa e algazarra. Mas com Dom Bosco a palavra oratório toma um significado novo, designando uma comunidade juvenil que vive intensamente a devoção e a alegria. E que bem depressa terá de enfrentar uma prova duríssima. Junto das instituições Barolo, a hospitalidade será forçosamente provisória. O espaço é pouco e diminui com o aumento do número de rapazes. Há desentendimentos entre Dom Bosco e a Marquesa. Assim, passados sete meses, o oratório está de novo sem teto. Mas com uma coisa que durará para sempre: o nome. Nas instituições Barolo, Dom Bosco reparou numa imagem de S. Francisco de Sales, bispo francês muito amado também no Piemonte pela espiritualidade alegre e otimista e pela delicadeza com que enfrentou mesmo as provas mais duras. A ele Dom Bosco vai buscar o nome da sua associação errante: “Oratório de S. Francisco de Sales”. E chamar-se-ão para sempre salesianos aqueles que com ele e depois dele vierem a trabalhar com os jovens. Uma casa definitiva será por fim encontrada na zona periférica turinesa de Valdocco. Entretanto, Dom Bosco torna-se conhecido na cidade: chamam-no a pregar e a confessar nas paróquias e nas casas religiosas. Muitas famílias dão apoio às suas obras, “encon14


trando bons patrões para aqueles rapazes que não sabiam onde trabalhar”, como ele mesmo recorda. Mas também a polícia de Turim se interessa pelo padre João Bosco, temendo que entre os seus rapazes possam esconder-se jovens subversivos. Até no clero turinês há desconfianças e aversões, que por vezes se transformam em conjuras: como aconteceu quando alguns sacerdotes tentam metê-lo no manicómio. O responsável pela polícia, marquês Michele Benso di Cavour, manda vigiá-lo e depois tenta fechar o Oratório. Impede-lho uma ordem do rei Carlos Alberto. Mas os filhos do marquês, Gustavo e Camillo Benso di Cavour, visitá-lo-ão muitas vezes.

Ideias claras em tempos confusos Em Valdocco, na casa Pinardi, começam em 1846 as aulas noturnas de Dom Bosco, e chegam os primeiros alunos internos, como num colégio. Deles se encarrega sua mãe, Margarida Occhiena, viúva, que agora reside com o filho. E chega 1848, ano de revoluções na Europa e da primeira guerra de independência italiana. O padre turinês Giovanni Cocchi alista duzentos rapazes: chegarão à frente de combate já com a guerra terminada, depois da trágica derrota de Novara e da abdicação do rei Carlos Alberto em favor de seu filho Vítor Emanuel. Por sua vez, Dom Bosco mantém-se longe da política, não participando nas festas patrióticas. As lutas de 1848 dividiram o clero turinês e, mais tarde, o arcebispo Fransoni será mesmo preso e expulso do reino, após duras controvérsias com o governo do Rei. Permanecerá no exílio durante doze anos em Lyon, em França, recusando sempre demitir-se. Dom Bosco manter-lhe-á sempre fidelidade e obediência. Não toma partido nas divisões entre o clero: já tomou partido pelos rapazes 15


pobres. Acusam-no de clerical, papista e até obscurantista. Mas os mesmos ferozes laicistas tomam parte nas festas escolares do Oratório e enviam inspeções do governo que terminam em louvores e prémios. Refrearam um pouco as relações com a marquesa Barolo, mas de vez em quando Sílvio Pellico vem pedir uma oração ou uma exortação para qualquer ocasião especial e traz uma oferta da parte da nobre senhora. No Oratório abrem-se oficinas de sapataria e de alfaiataria. E para Dom Bosco começam os problemas: precisa de padres jovens e capazes de educar a juventude. Pensa consegui-los em casa, e a 26 de janeiro de 1854, em segredo, reúne quatro dos seus jovens mais empenhados e propõe-lhes “uma prova de exercício prático de caridade para com o próximo, para chegar depois a uma verdadeira promessa e, em seguida, se for possível, transformá-la em voto ao Senhor. Desde essa noite, deu-se o nome de Salesianos àqueles que se propuseram e virão a propor-se a tal exercício”: assim escreveu o aluno e clérigo Miguel Rua, que um dia será o primeiro sucessor de Dom Bosco. É já um passo, ainda que muito tímido, para o cumprimento de um desígnio ambicioso: uma nova família religiosa. Mas por enquanto, oficialmente, aquele grupito de jovens trata apenas de fazer uma “prova de exercício prático da caridade”. O clima do momento, na diocese e na Igreja, não permite mais. Dom Bosco, entretanto, exercita-se também na imprensa, convencido como está da eficácia da palavra, mesmo escrita. Não se trata apenas de prédicas, mas também de textos de outro género. Escreve também diálogos simples e eficazes sobre ocorrências práticas, como por ocasião da introdução do sistema métrico decimal no Reino da Sardenha, quando publica 16


Índice

Prefácio...................................................................................5 I: 72 Anos e cinco meses: Enviado por Deus aos jovens...........9 II: 1815 – 1841: Um padre não vai sozinho para o céu.........29 III: 1841 – 1847: Se tivesse um amigo...................................61 IV: 1847 – 1850: Um “precário” de sucesso..........................89 V: 1850 – 1853: Uma nova igreja........................................115 VI: 1854 – 1856: Viveiro de santos.....................................143 VII: 1857 – 1860: Início da Congregação Salesiana............173 VIII: 1860 – 1870: Esta é a minha casa...............................199 IX: 1870 – 1875: Rumo à Argentina...................................231 X: 1876 – 1880: Mais e mais colaboradores.......................257 XI: 1880 – 1885: O meu tempo está a acabar ....................285 XII: 1886 – 1888: Espero a todos no paraíso......................313

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Domenico Agasso - Renzo Agasso - Domenico Agasso Jr.

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Ficha Técnica © Domenico Agasso - Renzo Agasso - Domenico Agasso jr. © Edições Salesianas. 2014 Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel: 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Tradução: Basílio Gonçalves Capa: Paulo Santos Paginação: João Cerqueira Impressão: Edições Salesianas D.L.: 384013/14 Todas as notas de rodapé são da responsabilidade do editor e específicas da edição portuguesa.


Prefácio Um jovem padre de 200 anos Duzentos anos é muito tempo. Especialmente numa época veloz como a nossa. O pó do tempo tende a apagar acontecimentos, datas e pessoas, enfraquecendo a memória. Para Dom Bosco, como para tantos outros santos que mudaram a história, não é assim. Passaram dois séculos desde aquele 16 de Agosto de 1815 em que ele veio ao mundo, numa terreola perdida no norte de Itália. Mas ele continua a ser um padre sem tempo, atual no seu sistema educativo, um homem de Deus, que ainda hoje aproxima de Deus homens e mulheres de todo o mundo. Filho de camponeses pobres, órfão de pai aos dois anos, conhece depressa o rosto duro da vida. Mas também o sorriso doce de sua mãe, Margarida. Ela vai ajudá-lo a dar asas ao seu sonho de se tornar o padre dos jovens de todo o mundo. Daquelas casas sobre a colina, João parte para trabalhar nas aldeias vizinhas. Depois irá para a cidade de Chieri, onde estuda e trabalha. Daí, avança até Turim, que se está a tornar 5


uma cidade industrial. Miragem para centenas de jovens sem pais, sem casa, sem trabalho. João, padre jovem, olha à sua volta e sente-se imediatamente atraído por aqueles rostos sujos e arruinados pela miséria. Arregaça as mangas e desde o primeiro encontro com Bartolomeu Garelli até ao final da sua vida, com 72 anos e cinco meses, vai ser devorado pela paixão de salvar os jovens, deixando de lado tudo o resto. “Da mihi animas, caetera tolle” será o seu lema. Dom Bosco sabe ler, através do sonho que teve em crianças, os sinais dos tempos, a mensagem que Deus lhe envia. Ele deve comunicar a proximidade e bondade de Deus àqueles que a sociedade considera “lixo”, “bocas inúteis”. Indo contra a corrente e arriscando-se a ir parar ao manicómio, torna-se seu amigo, seu confidente, professor, dador de trabalho, confessor, padre sempre ao alcance do coração. Entra nos bairros pobres, sobe aos andaimes dos trolhas, corre nos campos de jogo, visita as prisões, bate à porta dos salões da gente fina e dos políticos. Um único objetivo: salvar os jovens da degradação, empenhar-se na prevenção e devolvê-los à cidade como “bons cristãos e honestos cidadãos”. Para recuperar a memória deste grande santo, a editora salesiana confiou a uma “família” de jornalistas e escritores piemonteses a tarefa de escrever esta biografia. São avô, filho e neto. As suas páginas correm com a vivacidade de um romance e a seriedade da documentação histórica, fiel aos factos e às palavras. Os autores souberam unir a seriedade científica à curiosidade de quem entra gradualmente nos episódios e na 6


espiritualidade do padre de Valdocco. Dom Bosco não vive no vazio; é tempo de nacionalismo italiano, Turim está cheia de nobreza e miséria, há guerras de independência e unificação da Itália, políticos e papas. O leitor é envolvido, e fascinado, pela sequência de factos, episódios, testemunhos. Uma “brincadeira da Providência” como comentou Dom Bosco, com um sorriso. Uma aventura que hoje continua nos 132 países onde os seus filhos, os salesianos, continuam a trabalhar pelos jovens. Dom Bosco, duzentos anos depois do seu nascimento, continua a fascinar. Um santo para sempre e para todos. Sem barreiras e com tanta história a descobrir. Roma, 8 dezembro 2014 Ángel Fernández Artime Reitor Maior da Congregação Salesiana

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CAPĂ?TULO I

72 Anos e cinco meses: Enviado por Deus aos jovens


Nasceu a 16 de agosto em Becchi de Castelnuovo d’Asti, no Piemonte: família de camponeses com poucas posses. Tinha dois anos quando lhe morreu o pai, Francisco, quase repentinamente aos 33 anos. Sua mãe, Margarida Occhiena, ficou viúva com três pequenos: António, filho do primeiro casamento do marido, e dois seus, José, de quatro anos, e João. João Bosco. Este aprende a escrever graças à ajuda de um camponês da localidade, frequentando depois a escola primária de Capriglio d’Asti, terra de sua mãe. Em fevereiro de 1827, sai de casa. O irmão António queria que João trabalhasse no campo. E assim acontece, mas não sob as suas ordens: vai para Moncucco, localidade vizinha, a servir de criado. Tem 11 anos e uma trouxa de roupa às costas.

Um sonho profético Aos nove anos de idade João tivera um sonho, que narrará por toda a vida: uma situação confusa, com uma turba violenta de rapazes e animais selvagens e enfurecidos; por fim aparecem Jesus e Maria, sua Mãe, que transformam aquelas feras em cordeiros brincalhões. Ele não entende, começa a chorar, e Maria tranquiliza-o: “A seu tempo compreenderás”. Interpretará sempre aquele sonho como o anúncio de que irá ser padre. Entretanto em Moncucco, na granja dos agricultores Moglia, trabalha e ocupa os serões guiando as orações no estábulo. E não só: fala, lê, explica coisas sagradas e outras. Depois de voltar para casa em novembro de 1829, encontra na terra um capelão que o ajuda a retomar os estudos. Agora sua mãe pode acompanhá-lo melhor, porque os irmãos trabalham por conta própria como rendeiros. Mas, inesperadamente, morre aquele capelão, padre Giovanni Calosso. 11


João tenta em vão retomar os estudos regulares em ­Castelnuovo. Mas eis que sua mãe põe mãos à obra: trabalha, fala, interessa famílias, promove peditórios para o filho. Em novembro de 1831, João entra no liceu público de Chieri, próximo de Turim, para recuperar os anos perdidos. Paga as suas despesas trabalhando como sapateiro, empregado de bar, pasteleiro. Torna-se chefe dos outros estudantes: aquele que os mantém alegres, que os defende, mesmo que seja a murro, que os envolve em desafios desportivos e em passeios ao campo, terminando sempre numa igreja. Por eles, estariam sempre com João, vão à sua procura, fazem equipa e tomam um nome sugerido por ele: Sociedade da Alegria.

Padre João termina o liceu aos 19 anos e pensa tornar-se franciscano, estando tudo bem encaminhado para isso. Mas segue o conselho do padre José Cafasso, também ele de Castelnuovo, e a 30 de outubro de 1834, João Bosco entra no seminário de Chieri. Aqui, a cada passo, doenças e depressão obrigam-no a ficar de cama, mas a recuperação é sempre bastante rápida. No dia 5 de junho de 1841, ei-lo sacerdote, ordenado pelo arcebispo de Turim, Luigi Fransoni, na igreja da Imaculada, rua do Arsenal. Entra no Convitto Ecclesiastico, junto da igreja de S. Francisco de Assis, dirigido pelo padre Cafasso. É uma escola de prática e de aperfeiçoamento para neo-sacerdotes, à base de compromisso, ministério e também estudo. Entre as suas primeiras tarefas no terreno, estava a visita às prisões de Turim, para falar, confortar, ajudar, e acompanhar os condenados à morte nas suas últimas horas, até morrerem na forca. 12


José Cafasso fá-lo com frequência: chamam-lhe “o padre da forca”. Mas Dom Bosco não consegue. Quando, pela primeira vez, acompanha um condenado ao suplício, cai desmaiado à vista do patíbulo. A sua escola são as ruas de Turim. Por volta de 1840, a cidade conta 130 mil habitantes e continua a crescer, chegando imigrantes das zonas pobres do Piemonte, quase todos jovens e muito jovens. Procuram trabalho num lugar onde se sentem estrangeiros para fugir à pobreza das suas terras, correndo o risco de cair na delinquência, no furto e na violência. Ninguém confia neles e eles desconfiam de todos.

Novos amigos Dom Bosco1 encontra-se com um destes rapazes no dia 8 de dezembro de 1841, na igreja de S. Francisco de Assis: não sabe para onde ir e tem frio. Só, pobre, analfabeto e desconfiado. Quatro dias depois, volta com mais oito rapazes como ele. Neste domingo de Turim nasce a obra de João Bosco. Mas, antes de encontrar uma sede, passar-se-ão quatro anos e meio. Os primeiros três sempre ali, em S. Francisco. Depois, os rapazes, já muito numerosos, fazem barulho, cantam e tocam – Dom Bosco procura os instrumentos – perturbando os hóspedes do Convitto e os vizinhos. Chega o momento de deixar aquela sua primeira casa. Entretanto o padre Cafasso c­onseguiu-lhe trabalho no Refúgio. Este é o nome de uma das “obras dos Marqueses”, ou seja, Giulia Falletti di Barolo, apelido de solteira Colbert de Maulévrier, aristocrata de França, e o rico e generosíssimo marquês Carlo Tancredi. As suas obras – casas, hospital, Em Itália, todos os padres são ainda hoje tratados com o título “dom”. Os bispos recebem o título de “monsenhor”. 1

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escolas – acolhem centenas de raparigas pobres para ajudá-las a defenderem-se na e da vida. E ajudam ainda outras centenas de ex-detidas e ex-prostitutas em busca de recuperação.

Oratório Dom Bosco, encontra também lugar para aquele conjunto de rapazes recolhidos da rua, a que ele dá o nome de “oratório”, literalmente: lugar de oração. Esta torna-se efetiva e abundante nas suas tardes juntos, nos dias de festa e algazarra. Mas com Dom Bosco a palavra oratório toma um significado novo, designando uma comunidade juvenil que vive intensamente a devoção e a alegria. E que bem depressa terá de enfrentar uma prova duríssima. Junto das instituições Barolo, a hospitalidade será forçosamente provisória. O espaço é pouco e diminui com o aumento do número de rapazes. Há desentendimentos entre Dom Bosco e a Marquesa. Assim, passados sete meses, o oratório está de novo sem teto. Mas com uma coisa que durará para sempre: o nome. Nas instituições Barolo, Dom Bosco reparou numa imagem de S. Francisco de Sales, bispo francês muito amado também no Piemonte pela espiritualidade alegre e otimista e pela delicadeza com que enfrentou mesmo as provas mais duras. A ele Dom Bosco vai buscar o nome da sua associação errante: “Oratório de S. Francisco de Sales”. E chamar-se-ão para sempre salesianos aqueles que com ele e depois dele vierem a trabalhar com os jovens. Uma casa definitiva será por fim encontrada na zona periférica turinesa de Valdocco. Entretanto, Dom Bosco torna-se conhecido na cidade: chamam-no a pregar e a confessar nas paróquias e nas casas religiosas. Muitas famílias dão apoio às suas obras, “encon14


trando bons patrões para aqueles rapazes que não sabiam onde trabalhar”, como ele mesmo recorda. Mas também a polícia de Turim se interessa pelo padre João Bosco, temendo que entre os seus rapazes possam esconder-se jovens subversivos. Até no clero turinês há desconfianças e aversões, que por vezes se transformam em conjuras: como aconteceu quando alguns sacerdotes tentam metê-lo no manicómio. O responsável pela polícia, marquês Michele Benso di Cavour, manda vigiá-lo e depois tenta fechar o Oratório. Impede-lho uma ordem do rei Carlos Alberto. Mas os filhos do marquês, Gustavo e Camillo Benso di Cavour, visitá-lo-ão muitas vezes.

Ideias claras em tempos confusos Em Valdocco, na casa Pinardi, começam em 1846 as aulas noturnas de Dom Bosco, e chegam os primeiros alunos internos, como num colégio. Deles se encarrega sua mãe, Margarida Occhiena, viúva, que agora reside com o filho. E chega 1848, ano de revoluções na Europa e da primeira guerra de independência italiana. O padre turinês Giovanni Cocchi alista duzentos rapazes: chegarão à frente de combate já com a guerra terminada, depois da trágica derrota de Novara e da abdicação do rei Carlos Alberto em favor de seu filho Vítor Emanuel. Por sua vez, Dom Bosco mantém-se longe da política, não participando nas festas patrióticas. As lutas de 1848 dividiram o clero turinês e, mais tarde, o arcebispo Fransoni será mesmo preso e expulso do reino, após duras controvérsias com o governo do Rei. Permanecerá no exílio durante doze anos em Lyon, em França, recusando sempre demitir-se. Dom Bosco manter-lhe-á sempre fidelidade e obediência. Não toma partido nas divisões entre o clero: já tomou partido pelos rapazes 15


pobres. Acusam-no de clerical, papista e até obscurantista. Mas os mesmos ferozes laicistas tomam parte nas festas escolares do Oratório e enviam inspeções do governo que terminam em louvores e prémios. Refrearam um pouco as relações com a marquesa Barolo, mas de vez em quando Sílvio Pellico vem pedir uma oração ou uma exortação para qualquer ocasião especial e traz uma oferta da parte da nobre senhora. No Oratório abrem-se oficinas de sapataria e de alfaiataria. E para Dom Bosco começam os problemas: precisa de padres jovens e capazes de educar a juventude. Pensa consegui-los em casa, e a 26 de janeiro de 1854, em segredo, reúne quatro dos seus jovens mais empenhados e propõe-lhes “uma prova de exercício prático de caridade para com o próximo, para chegar depois a uma verdadeira promessa e, em seguida, se for possível, transformá-la em voto ao Senhor. Desde essa noite, deu-se o nome de Salesianos àqueles que se propuseram e virão a propor-se a tal exercício”: assim escreveu o aluno e clérigo Miguel Rua, que um dia será o primeiro sucessor de Dom Bosco. É já um passo, ainda que muito tímido, para o cumprimento de um desígnio ambicioso: uma nova família religiosa. Mas por enquanto, oficialmente, aquele grupito de jovens trata apenas de fazer uma “prova de exercício prático da caridade”. O clima do momento, na diocese e na Igreja, não permite mais. Dom Bosco, entretanto, exercita-se também na imprensa, convencido como está da eficácia da palavra, mesmo escrita. Não se trata apenas de prédicas, mas também de textos de outro género. Escreve também diálogos simples e eficazes sobre ocorrências práticas, como por ocasião da introdução do sistema métrico decimal no Reino da Sardenha, quando publica 16


Índice

Prefácio...................................................................................5 I: 72 Anos e cinco meses: Enviado por Deus aos jovens...........9 II: 1815 – 1841: Um padre não vai sozinho para o céu.........29 III: 1841 – 1847: Se tivesse um amigo...................................61 IV: 1847 – 1850: Um “precário” de sucesso..........................89 V: 1850 – 1853: Uma nova igreja........................................115 VI: 1854 – 1856: Viveiro de santos.....................................143 VII: 1857 – 1860: Início da Congregação Salesiana............173 VIII: 1860 – 1870: Esta é a minha casa...............................199 IX: 1870 – 1875: Rumo à Argentina...................................231 X: 1876 – 1880: Mais e mais colaboradores.......................257 XI: 1880 – 1885: O meu tempo está a acabar ....................285 XII: 1886 – 1888: Espero a todos no paraíso......................313

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