Feliz de ti que acreditaste

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JUAN JOSÉ BARTOLOMÉ

FELIZ DE TI, QUE ACREDITASTE ETAPAS DO CAMINHO DE FÉ DE MARIA


Ficha Técnica: © Juan José Bartolomé © Editorial CCS, Madrid © Edições Salesianas, 2015 Rua Dr. Alves da Veiga, 124 Apartado 5281 4022-001 Porto Tel. 225 365 750 Fax: 225 365 800 www.edisal.salesianos.pt edisal@edicoes.salesianos.pt Tradução: Aníbal Afonso, Antero Ferreira, António Gonçalves, David Teixeira, Delfim Santos Revisão: Joaquim Teixeira Paginação: Raquel Fragata Capa: Edições Salesianas Impressão: Tadinense Artes gráficas ISBN: ????????????????????????????????????????????????????? D.L.: ?????????????????????????????????????????????????????

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INTRODUÇÃO “Quero referir-me principalmente àquela peregrinação da fé, na qual a Bem-aventurada Virgem Maria avançou. (JOÃO PAULO II, Redemptoris mater 15.)

Maria, a bem aventurada A memória de Maria, que a nossa geração deveria fazer, teria que reproduzir a da geração apostólica, fixada na tradição evangélica. O valor exemplar de Maria não se baseia na sua experiência pessoal de Deus, uma vivência única e intransferível, remota e irrepetível: sendo virgem, poder ser mãe… de Deus! A relevância desta proeza de Maria não está na excecionalidade do acontecimento, mas na sua exemplaridade: Maria continua a mostrar-nos o que Deus exige àqueles que, como ela, avançam confiados nos seus planos e, sendo servos, se declaram dispostos a fazer o que Ele quer. Aventurar-se no mesmo destino é a oportunidade de qualquer crente. 1. Uma boa razão – divina! – para nos entusiasmarmos com Maria Seria bom que nos perguntássemos se as razões para nos entusiasmarmos com Maria são as mesmas que Deus teve ­quando ficou seduzido pela virgem de Nazaré. As mil boas razões que podemos ter coincidem com a razão que convenceu Deus a ­escolhê-la como mãe? Maria representa para nós o que significou para Deus? Atrevemo-nos a contemplá-la com os olhos do seu Deus, com o coração do seu Filho? Como amamos a Maria: como a imaginamos nós ou como aquela que seduziu o nosso Deus?

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Porque de pouco serviria uma devoção mariana, por mais arraigada e sincera que fosse, que não estivesse fundada no querer de Deus. Deveríamos perceber que foi Deus quem optou por Maria muito antes que a nós nos ocorresse pensar nela; foi Ele quem primeiro a elegeu para Mãe e, só depois, é que desfrutámos da sua maternidade divina; foi antes, muito antes, serva de Deus e só depois senhora nossa. Maria pode maravilhar-nos, certamente; mas não pelo que fez por Deus, nem – muito menos – pelo que pode fazer por nós, mas por tudo o que Deus fez nela. Maria é cheia de graça porque Deus lha concedeu gratuitamente, e não porque nós, por muito generosos que sejamos, lha atribuamos. 1.1. Contemplar Maria com os olhos de Deus Vendo bem as coisas, a única forma justa de ver e de venerar Maria é aquela que reflete o modo como Deus a contemplou e amou. O olhar para Maria que mais a respeita, a piedade que melhor a venera, o culto que se lhe deve, o amor que mais lhe convém, são os daqueles que mais se aproximam do olhar entusiasmado de Deus por Maria e que melhor o refletem. A devoção que Maria merece é a que copia a devoção que Deus sente por ela. Se em Maria descobríssemos o que encontrou o nosso Deus, o nosso amor por Maria seria, evidentemente, mais divino e a nossa devoção mariana seria, sem dúvida, mais evangélica. O que não é pouco. O Evangelho é, antes de mais, um desvelar de Deus, também nos episódios nos quais Maria está presente e adquire certo protagonismo. Tudo quanto a tradição evangélica recorda como acontecimento mariano está sempre ao serviço da manifestação divina: é palavra de Deus, revelação e promessa. Mais do que contar-nos como foi Maria, explica-nos como é Deus e como está empenhado em sê-Lo assim para nós. 6


1.2. Contemplar a Deus na vida de Maria A biografia evangélica de Maria pode parecer-nos escassa de notícias importantes e parca em situações portentosas. E é-o, de facto. Se a imagem evangélica de Maria é palavra de Deus para nós, conviria que nos concentrássemos no que Deus nos diz d’Ele falando de Maria, em vez de nos afligirmos com a escassez de notícias biográficas que dela nos transmitem os evangelhos ou em vez de nos surpreendermos pelo mitigado entusiasmo perante a pessoa histórica. Mais que inventar o inecessário, alimentando a curiosidade pelo factual, seria melhor escutar o fundamental1, ou seja, quanto nos diz Deus sobre Maria ou, formulado de modo mais preciso, descobrir, naquilo que se diz sobre ela, o que Deus espera de nós. A história evangélica de Maria vale, não pelo que nos conta dela, mas pelo que nos revela de Deus; na versão evangélica de Maria reflete-se o rosto autêntico do Deus vivo. A Maria do evangelho é, neste sentido, ícone do nosso Deus: o que Deus foi para Maria continua a querer sê-Lo para cada um de nós.

Alimento o desejo – não ainda suficientemente respeitado – de uma santa: “Todos os sermões que tenho ouvido sobre a Santíssima Virgem deixam‑me fria. Como desejaria ser sacerdote para pregar sobre a Virgem Maria! ... Sobretudo, teria evidenciado até que ponto é desconhecida a vida da Virgem. Não teria que dizer dela coisas inverosímeis ou que não se saibam… Para que um sermão sobre a Santíssima Virgem produza fruto, é necessário que se mostre a sua vida real, tal como o evangelho nos deixa entrever, e não a sua vida hipotética; e adivinha-se muito bem que a sua vida real, em Nazaré, e mais tarde, teria que ter sido completamente normal… Mostram-nos a Santíssima Virgem inacessível…; teria que dizer que ela vivia como nós e sublinhar as provas tiradas do evangelho, onde lemos: ‘Não compreenderam as palavras que lhes disse’ (Lc 2,50) e também: ‘Seu pai e sua mãe estavam admirados com o que se dizia d’Ele’ (Lc 2,33).” (TERESA DE LISIEUX, Novissima Verba [Lisieux 1926] 154). 1

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Maria merece de nós, pois, algo mais que simples devoção. Maria merece maiores atenções do que as que lhe dedicamos. Não a veneramos pelo que nos possa conceder. Não são os ­favores que pode fazer-nos – as graças que, em nosso favor, pode arrancar de Deus – as razões que nos devem levar a honrá-la. Nunca seriam muito boas tais razões, por muito necessários que fossem para nós os seus favores. Motivos de sobra para admirar Maria terá aquele que contemple as maravilhas que nela Deus realizou. 2. Maria no Novo Testamento Por mais óbvio que seja, nem sempre nos damos conta disso: o NT presta escassa atenção a Maria, a virgem de Nazaré (Lc 1, 26-27), a mãe de Jesus (Jo 2,1). É mais que evidente o desequilíbrio que existe entre a veneração entusiasmada que a igreja tributa à mãe de Deus e o tratamento esporádico que a sua figura histórica recebe na tradição evangélica. Este facto, uma vez identificado, sem dúvida que dá que pensar. 2.1. O que o NT diz sobre Maria Ainda que não nos agrade, a presença de Maria no NT é e­ scassa. Um simples inventário das passagens e citações que a ela se referem demonstram-no-lo sobejamente. 2.1.1. Só dois textos não evangélicos Fora dos evangelhos (e Actos dos Apóstolos), só temos ­podido citar dois textos que poderiam fazer referência a Maria: Gal 4,4, onde Paulo confessa que Deus enviou o seu filho, ­nascido­­de mulher; e Ap 12,1-18, onde aparece a mulher vestida de sol que dá à luz o messias. Ambas as passagens são, no entanto, mais mariológicas que marianas: não se centram na pessoa concreta de Maria, a virgem de Nazaré.

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O texto paulino afirma a condição humana, frágil (cf. Jb 14,1) do filho de Deus; nada diz sobre o modo de tornar-se h ­ omem; nem a ausência de varão evoca a conceção virginal de Jesus, nem a menção de “mulher” obriga a negá-la. Paulo, que nas suas cartas não menciona Maria, guarda silêncio sobre a conceção virginal de Jesus. Em relação ao outro texto, o do Apocalipse, a descoberta da biblioteca de Qumrán contribuiu para e­ ntendê-lo melhor; a mulher é figura de um resto fiel de Israel, do qual se esperava que desse à luz o messias (cf. Is 54,60; Os 2,21-25; 1QH 3,7-12); o autor do Apocalipse vê cumprido nesse nascimento o dia de Páscoa; a mulher é símbolo de uma comunidade, mais celeste que terrestre. Ainda que seja proposta pela exegese p ­ atrística, celebrada na tradição litúrgica e popular na iconografia religiosa, a identificação direta com a mãe de Jesus só é pensável numa leitura acomodatícia do texto. 2.1.2. Apenas dois dos quatro evangelhos À exceção dos textos de Lc (1, 26-38.39-45.46-56; 2, 1-10.2140.41-52; 11, 27-28; Act 1,14) e Jo (2, 1-12; 19, 25-27), Maria não é recordada na tradição evangélica. E, sempre que aparece, é de forma tangencial. • Marcos O episódio sobre a verdadeira família de Jesus (Mc 3, 31-35; Mt 12, 46-50; Lc 8, 19-21), um relato sobre cuja historicidade ­básica não há dúvidas (cf. Jo 7, 5), denota uma distância real entre Jesus e os seus (cf. Mc 3, 20-21). No episódio, nem Maria nem os seus irmãos são citados ­pelos seus nomes; mas é evidente que para Marcos (e Mateus) a família de Jesus não se encontrava entre os que escutavam e faziam a vontade de Deus. Lucas, o evangelista que mais retocou o episódio, deixa entrever o esforço por aproximar os acontecimentos à imagem de Maria que lhe é própria (cf. Lc 11, 27-28).

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Outras referências aos pais de Jesus e/ou irmãos (Mc 6, 3; Mt 13, 55; Lc 4, 22; Jo 1, 45; 6, 42) são menos conclusivas. A gente que ouve Jesus pergunta-se pela sua família, aquela pelo qual ele é conhecido, o que constitui uma forte objeção para acreditar n’Ele. Enquanto Mt 13, 55/Lc 4,22 designam a Jesus como filho do carpinteiro ou filho de José, Mc 6, 3 identifica-O como carpinteiro, filho de Maria; tanto Mateus como Lucas, que mencionam explicitamente a conceção virginal de Jesus (Mt 1, 18. 20-23; Lc 1, 30-35), pretendem insistir na falta de fé dos seus conterrâneos, enquanto Marcos parece aludir aqui à conceção virginal. • Mateus Mateus não está demasiado interessado em Maria, a mãe de Jesus (Mt 2, 11). No chamado relato da infância de Jesus (Mt 1, 18-2,23), a sua personagem é José; ele é quem recebe o anúncio (Mt 1, 18-24) e as visões, que marcarão o destino do menino (Mt 2,13-15.19-23). Tal como Lucas, afirma a maternidade virginal de Maria (Mt 1, 18); o termo virgem deve ser entendido no sentido de donzela (cf. Is 7, 14), que excluiria relações sexuais. O motivo da maternidade virginal é uma variante do tema do nascimento impossível (Gn 18, 13-14; Lc 1, 34): mais que pronunciar-se sobre o estado da mãe, o texto afirma a natureza do filho, a sua origem divina; uma intervenção divina supre a incapacidade para gerar, devido à esterilidade ou virgindade: o menino que há de desempenhar uma missão salvífica em nome de Deus é querido só por Ele e por Ele é doado ao seu povo. 2.2. A imagem lucana de Maria Ninguém dentro do NT, evangelista ou não, concedeu a ­Maria uma atenção comparável à que Lucas lhe dedicou na sua obra. Há que reconhecer, contudo, que na obra lucana Maria nunca é tema central, nem motivo frequente sequer; contudo, chama a atenção a estreita vinculação ao mistério de Cristo que lhe atribui. 10


O interesse de Lucas por Maria enquadra-se bem com a sua tendência de realçar as pessoas (Lc 7, 36-50; 10, 38-42; 19, 1-10; 23, 39-43), mulheres incluídas (Lc 8, 2-3), que acompanharam Jesus durante o seu ministério público e a vida da comunidade primitiva (At 16, 14-15.50; 18, 26). É até provável que, no ambiente de Lucas, a figura de Maria gozasse de certa veneração (Lc 1, 48; cf. 11,27). O motivo básico devemos buscá-lo, no entanto, na própria imagem que o evangelista oferece de Maria, a de crente exemplar, imagem que corresponde com o seu interesse mais amplo em exortar os seus leitores a uma fé inquebrantável (Lc 7, 50; 8,12-13.48; 17, 5-6.19; 18, 8; 23, 32). A imagem lucana de Maria sublinha, além disso, uma ­ imensão profundamente humana: é uma virgem já desposada, d que aceita uma maternidade que não estava nos seus planos, pela simples confiança no seu Deus; a sua pronta disponibili­ dade em atender o seu próximo, com a qual estreia a maternidade divina; a maternidade em Belém, em circunstâncias penosas; a perda e recuperação do seu filho durante uma viagem a Jerusalém; o progressivo distanciamento do seu filho, durante o seu ­ministério público; a ausência da mãe no relato da paixão. Uma ­verdadeira devoção mariana deveria saber repetir o acerto ­lucano, sem ­separar a sua exemplar disposição à obediência a Deus, da normalidade de uma vida quotidiana e, na sua maior parte, insignificante. Lucas é o autor do NT que mais influenciou a veneração eclesial de Maria. Isto não significa que a sua peculiar visão da figura da mãe de Jesus tenha sido assumida com fidelidade. Dois são os seus traços básicos: Maria é bem-aventurada por ter acreditado em Deus e ter-se mantido sempre crente n’Ele. Os escassos episódios que a tradição lucana nos recorda são marcos da sua aventura de fé; desde que toma conhecimento do plano que Deus tem para o seu povo até que, nas origens do novo povo de

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Deus, partilha esperanças e oração com os apóstolos, Maria é apresentada como a ouvinte de Deus e a sua melhor serva: faz o que e­ scuta, vive a obediência (Lc 1, 38); e, como tal, é imagem profética da nova comunidade (Lc 11, 28). 2.3. A imagem joanina de Maria Ainda que João empregue o nome de Maria umas quinze vezes para falar de três pessoas diferentes (Jo 11, 1. 2. 19. 20. 28. 31. 32. 45; 12, 3; 19, 25; 20, 1. 11: Maria, a de Betânia; ­Maria de Magdala; Maria, esposa de Cléofas), jamais o utiliza para ­designar Maria de Nazaré; para ele é sempre, e só, a mãe de Jesus (Jo 2, 1. 3. 5. 12; 19, 25.27). Parece querer identificar Maria mais pela sua relação com Jesus que por si mesma: a maternidade parece defini-la melhor que qualquer outro traço ou acontecimento pessoal. A presença da mãe de Jesus no quarto evangelho, ainda que escassa, é significativa. Ao contrário de Lucas, João não parece conhecer a conceção virginal de Jesus que, tanto na boca dos antagonistas (Jo 6, 42) como dos discípulos (Jo 1, 45), é chamado filho de José. João não tem necessidade de recorrer a ela para afirmar que Jesus procede de Deus (Jo 1, 1-18). Os dois episódios que o quarto evangelho recorda são desconhecidos na tradição evangélica. Mas o elemento mais característico não é este desconhecimento. João entende ambos os r­ elatos em relação à hora de Jesus e à fé/fidelidade do discípulo. O primeiro assinala o início da hora de Jesus (Jo 2, 11); o ­segundo, o seu cumprimento (Jo 19, 30). Em ambos, Jesus dirige-se à sua mãe chamando-a, simples e insolitamente, mulher (Jo 2, 4; 19, 26); mas a sua presença, ativa na aceitação do que Jesus diz, possibilitará uma nova relação de Jesus com os seus discípulos (Jo 2, 11; 19, 27). Maria não é, em nenhum dos dois episódios, a personagem principal (Jesus), nem sequer secundária (os discípulos); mas é imprescindível para que entre ambos surja ou se 12


mantenha uma relação de fé (Jo 2, 11) e de fidelidade (Jo 19, 27). Que mais se poderia dizer? 2.4. Uma primeira avaliação Não são poucos os que ficam surpreendidos, se não defraudados, ao tomarem consciência da escassa atenção que o Novo Testamento presta a Maria. Passam por alto dois factos que – mais que explicar tal desinteresse – ajudam a centrar a devoção pela mãe de Jesus mesmo no coração do evangelho. Não pode ser casual que tenham sido os evangelhos os únicos livros do Novo Testamento que nos recordem Maria e a sua aventura de fé. Não podia ter ficado mais bem colocada a evocação canónica de Maria; ali onde as primeiras testemunhas r­ ecolheram quanto sabiam sobre «as obras e os ensinamentos de Jesus, desde o princípio» (Act 1, 1), não pode faltar Maria. A memória apostólica de Jesus resgatou – e para sempre! – Maria do esquecimento. Por sóbria que se nos afigure a sua presença na tradição apostólica, ou pouco relevante o papel que lhe é atribuído, o facto é que isso mesmo obriga a manter o Cristo do evangelho perto daqueles que desejam aproximar-se da virgem de Nazaré. Ou seja, o crente há de ser mais evangélico se quiser ser verdadeiramente mariano. Não é fruto do azar, também, que tenham sido Lucas e João os dois evangelistas mais recentes, por assim dizer, os mais próximos de nós e portanto os mais afastados dos factos que narram, aqueles que nos transmitiram, mais que um relato biográfico da sua pessoa, o esboço da sua aventura de fé. Quanto mais débil se estava a tornar a memória apostólica, mais nítida aparece nela a figura de Maria; quanto mais provada a fidelidade das comunidades cristãs, mais exemplar a peregrinação de Maria (Lucas) e mais eficaz o seu acompanhamento na vida de fé dos discípu-

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los do seu Filho (João). As primeiras gerações cristãs que descobriram Maria como crente exemplar e mãe de discípulos fiéis, ­viviam perseguidas na sua fé e tentadas pelo aparente abandono do seu Senhor. A sua devoção por Maria não foi um passatempo inútil nem jogo de sentimentos; foi, e deveria continuar a ser hoje, ocupação para tempos difíceis. Uma última, mas não indiferente, observação. A presença de Maria na tradição evangélica está sempre ligada a Jesus. Só em Act 1, 14, o único texto não evangélico do Novo Testamento que a menciona – já é casualidade! –, Maria aparece sem Jesus, mas está, em oração, junto aos seus representantes e d ­ iscípulos: a e­ xceção confirma a regra. Assim, para entender Maria não ­podemos passar por alto tal vinculação: não é casualidade que a denominação de Maria que substitui o nome próprio seja, em João, a de mãe de Jesus. O crente hoje, como os pastores em Belém um dia, depara-se com Maria sempre que e quando andar à procura do menino e caminhar até Ele (Lc 2, 12. 16). Este livro fala precisamente do caminho até Deus que consegue fazer-nos encontrar com Maria. Característico da imagem evangélica de Maria é o ter sido posta sempre em relação com Deus, subordinada a Ele. Mas o feito que melhor a define é que esta estreita relação não tivesse permanecido indiferenciada ao longo da sua vida. Foi, evidentemente, mais intensa nos inícios, antes e depois do nascimento de Jesus, tornou-se menos familiar durante a época do ministério público, e rara nos momentos finais, durante a semana da sua paixão e ressurreição. Dar-se conta disto deve tornar-se iluminador para quem quiser estabelecer, e manter, uma sã relação com o Deus de Maria. O crente que aspira a uma experiência de Deus terá que aprender a percorrer um caminho no qual seja Ele quem tome sempre a iniciativa, fixe as metas e imponha os meios. Uma experiência de Deus sem sobressaltos, que se converta em rotina, que se viva sem vazios ou silêncios de Deus, não tem garantia de repetir o modelo mariano. 14


PRIMEIRA ETAPA Nazaré (Lc 1, 26-38) A vocação, um chamamento ao impossível Nazaré é o ponto de partida da aventura de fé de Maria: aí vivia, virgem já prometida a José, e foi aí foi Deus lhe propôs o seu plano e pediu o seu consentimento. Maria soube que Deus pensava em salvar o seu povo no mesmo momento em que soube que Deus estava a contar com ela: o anúncio do nascimento de Jesus coincidiu, pois, com o convite a ser mãe de Deus; a salvação do povo de Deus concorria com a vocação de Maria. Ser chamada por Deus foi o início da aventura de fé que Maria percorreu; a assunção da própria vocação, o seu ponto de partida. Maria entra em contacto com Deus e os seus planos quando lhe concedeu audiência e os assumiu como próprios. Deus chamou-a ao impossível: ser mãe permanecendo virgem, dar à luz o seu primogénito, o unigénito de Deus. Queremos contemplar a nossa experiência vocacional à luz da vocação de Maria. Assim poderemos assumi-la e interpretá-la como ela, acolhendo a Deus e apropriando-nos do seu plano sobre nós. Para Maria, a vocação foi um chamamento gratuito: ser invocado por Deus é sempre uma graça. Na origem de toda a vocação está apenas Deus, que permanece como a sua exclusiva razão de ser. E se algo atraiçoa o facto de ser c­ hamado por Deus é a confiança que põe no chamado. Daí que este fique em dívida permanente de confiança: fiar-se é a ú ­ nica respos-

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ta válida. Pois, como Maria, quem é chamado «­encontrou ­graça diante de Deus» (Lc 1, 30). a vocação de Maria começa e realiza-se como diálogo, consiste basicamente numa conversa e termina quando – e se – não se continua a conversa. Todos os relatos bíblicos de vocação apresentam-se – mediata ou imediatamente – como diálogo com Deus, que escolhe a pessoa que chama e a missão que lhe encomenda, que se compromete pessoalmente com o chamado e que, inclusive, lhe facilita a resposta que dele espera. Responder a este diálogo possibilita aceder a Deus Pai, ter a Deus como Filho e possuir a Deus como Espírito. Nem mais nem menos: viver responsavelmente a própria vocação é caminho de experiência trinitária.

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NO INÍCIO, SEMPRE, UM DEUS SALVADOR QUE CHAMA (Lc 1, 26-38) I. O RELATO Interrompendo a narração, já iniciada, da conceção de João (Lc 1, 8-25. 57-80), Lucas apresenta a cena da anunciação do nascimento de Jesus (Lc 1,26-38). Ambas, efeito de uma intervenção divina extraordinária, têm um mesmo intermediário, ­Gabriel (Lc 1, 19.26). A superioridade do segundo anúncio torna‑se evidente na origem mais milagrosa do nascimento (Lc 1, 15. 35), na reação mais perfeita do escolhido (Lc 1, 18. 20. 34. 38), na dignidade pessoal do anunciado (Lc 1,15-32). Há que notar duas diferenças entre ambos os relatos. O segundo anúncio, dirigido a Maria, não é precedido pela descrição de uma situação infeliz dos pais (Lc 1, 7); Deus não intervém na vida de Maria por misericórdia. No anúncio a Maria não se louva a sua justiça pessoal, mas a graça divina (Lc 1, 6-28): a benevolência de Deus não tem aqui nenhum motivo prévio; o convite a ser mãe virgem é pura graça. O episódio de Nazaré é uma unidade literária e teológica. A estrutura formal do relato é clara: apresentação das ­personagens (Lc 1, 26-27), aparição do anjo e reação da virgem à saudação (Lc 1, 28-29), mensagem angélica e pergunta de ­Maria (Lc 1, 30-34), resposta do anjo e assentimento de Maria (Lc 1, 35-38a). A entrada do anjo (Lc 1, 26a) e a sua saída de cena (Lc 1, 38b) e­ ncerram um episódio onde ele teve sempre a iniciativa e Maria reagiu progressivamente, com a contemplação silenciosa (Lc 1,29), a pergunta aberta (Lc 1, 34) e o mais ­completo consentimento (Lc 1, 38). Por três vezes, o enviado desvela a Maria o projeto divino e outras tantas responde ela;

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a um maior aprofundamento da oferta corresponde uma maior aproximação da resposta. Ao sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, 27 a uma virgem desposada com um homem chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria. 28 Ao entrar em casa dela, o anjo disse-lhe: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo.» 29 Ao ouvir estas palavras, ela perturbou-se e inquiria de si própria o que significava tal saudação. 30 Disse-lhe o anjo: «Maria, não temas, pois achaste graça diante de Deus. 31 Hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. 32 Será grande e vai ­chamar-se Filho do Altíssimo. O Senhor Deus vai dar-lhe o trono de seu pai David, 33 reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim.» 34 Maria disse ao anjo: «Como será isso, se eu não conheço homem?» 35 O anjo respondeu-lhe: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a sua sombra. Por isso, aquele que vai nascer é Santo e será chamado Filho de Deus. 36 Também a tua parenta Isabel concebeu um filho na sua velhice e já está no sexto mês, ela, a quem chamavam estéril, 37 porque nada é impossível a Deus.» 38 Maria disse, então: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.» E o anjo retirou-se de junto dela. 26

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1. Entrada de Deus na vida de uma virgem Crónica de uma missão divina, mais que simples narração de uma aparição angélica, o episódio inicia uma grande riqueza de circunstâncias, entre as quais se privilegia um dado: o anúncio a Maria não é o primeiro, dista seis meses do anúncio a Zacarias (Lc 1, 8-20). 1.1. As personagens (Lc 1, 26-27) A primeira personagem que assoma no relato é Gabriel, o mensageiro (cf. Lc 1, 11); é Deus quem está na origem da embaixada, Ele é o seu ponto de partida (cf. Lc 1, 19). O destinatário da missão angélica é uma donzela de Nazaré; antes, o anjo tinha-se dirigido a um sacerdote justo enquanto realizava o seu ministério no Templo, agora tem como interlocutora uma jovem ­prometida, que vive numa aldeia remota (Lc 2, 4.39; Mt 2, 23), de fraca reputação (cf. Jo 1, 46). E, no entanto, é aí, a ela, aonde se deve dirigir o enviado de Deus. Semelhante eleição choca com o que poderia esperar um judeu piedoso: é pura graça. Antes de a identificar com o seu nome, o narrador des­creve o seu estado; menina em idade núbil, Maria está prometida – concedida já a sua mão (Lc 2, 5; Mt 1, 18) – a um varão da linhagem de David (Lc 2, 4). Desde o mero início do relato, Maria fica identificada como a jovem mulher que tem como projeto de vida o matrimónio (Lc 2, 5);2 a virgindade, à qual se aludirá mais tarde (Lc 1,34), não será impedimento, mas, pelo contrário, requisito

Segundo o costume judeu acedia-se à vida conjugal depois de um ano de compromisso; os prometidos, ainda que habitassem separadamente, eram considerados esposos; a morte de um enviuvava o outro; com a cerimónia de introdução da noiva na casa do noivo consumava-se o matrimónio (Mt 1, 20, 24. 25). 2

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(cf. Mt 1, 18-24) para o projeto divino. Deus vai-lhe propor planos para os quais não estava preparada. José, o seu prometido, vem mencionado no Novo Testamento sempre em relação à origem de Jesus (Lc 1, 27; 2, 4.16; 3, 23; 4, 22; Mt 1, 16-24; 2, 13. 19; Jo 1, 45; 6, 42). A linhagem davídica do esposo legitima, antecipadamente, a origem do filho (Mt 9, 27; 12, 23; 15, 22; 20, 30. 31; 21, 9. 15; Mc 10, 47-48/Lc 18, 38-39): só a linha paterna garantia a procedência real da família (Lc 1, 32; cf. 3, 23; 4, 22; Mt 22, 42-45). Ao assegurar ao filho de Maria a ascendência davídica, José dá sólida base à reivindicação cristã do messianismo para Jesus. 1.2. A saudação angélica (Lc 1,28) Introduzindo-se na sua presença, o anjo não duvida saudar a jovem. A saudação a uma mulher não era práxis óbvia entre os judeus; e a que a donzela recebe não tem paralelo no Antigo Testamento (cf. Gn 16, 8; Jdt 13, 3). Era costume na Palestina desejar-se a paz (Lc 10, 5; 24, 36; Jo 19, 3; 20, 19. 26). O anjo utiliza a forma grega, comum na Palestina (Act 15, 23; 23, 26; Tg 1, 1), que permite um jogo de palavras: saúde para ti, que experimentaste a salvação. Mas mais que desejo, a saudação é exortação à alegria: alegra-te (Lc 1, 14; 2, 10). Antes que se lhe anuncie o filho e a salvação ao povo, impõe-se-lhe o privilégio; a sua implicação pessoal começa com a alegria imposta. A alegria é o sentimento adequado para quem vai saber-se a eleita de Deus. Cheia de graça, ainda que repita o modelo da saudação b ­ íblica (cf. Dn 9, 23), afirma muito mais. Particípio perfeito passivo no original (cf. Ef 1, 6) indica tanto o agir benévolo de Deus como o estado de graça resultante; designa um estado de plenitude do favor divino (Act 6, 8), que é consequência da eleição divina,

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como que se vai concretizar a seguir (Lc 1, 30-37): foi favorecida por Deus. O apelativo – não habitual nos relatos de anúncio (cf. Gn 16, 8; Mt 1, 20) –, funciona como título, que caracteriza quem o recebe; define a donzela como aquela que recebeu a graça, não em atenção ao que ela já é, mas pelo que Deus pensa para ela (cf. Jdt 6, 12). A virgem goza de uma situação incomparável, que surge da relação benevolente de Deus com ela e que tem por finalidade o que Deus espera dela. A vocação à maternidade é efeito do amor benevolente de Deus. Não é este o momento da conceção virginal, que o seria se a saudação fosse já palavra eficaz e não exigisse, previamente, obediência (Lc 1, 38); a possessão da graça que agora se proclama tem, pois, que ver com a obediência de Maria, previne-a e prepara-a; a intervenção gratuita de Deus preenche a vida da virgem. Já que conta com a benevolência de Deus, é hora de Deus contar com a sua confiança. O terceiro elemento da saudação, o Senhor está contigo, é ­habitual (Jz 6, 12; Rt 2, 4). Aqui é uma declaração, não um ­augúrio; mais que desejo, lavra a ata do acontecimento. A fórmula e­xpressa a assistência ativa de Deus a pessoas que vão atuar em seu nome e são assim sustentadas no seu empenho (cf. Ex 3, 12; Jz 6,1 2.15-17); o Deus que pensa em encarnar ­entre os ­homens está com a virgem. Deus anuncia a sua presença apresentando o seu plano e, através dele, apresentando-se a si ­mesmo: vocação pessoal e revelação de Deus coincidem. A saudação angélica é tão insólita como a missão que vai introduzir. Mas, isso sim: antes de dizer à donzela o que Deus quer dela, manifestou-lhe quanto a quis; antes de dar-lhe a ­incumbência, revelou-lhe a eleição. Gabriel fala da graça de Deus, não dos méritos de Maria. Inicia-se, pois, a história da vocação de Maria (cf. Jz 6, 12-24), assegurando-lhe Deus a sua assistência antes de lhe identificar a tarefa. O serviço que Maria 21


há de prestar inicia-se com alegria. Porque a sua missão, o filho, será a alegria do povo (Lc 2, 10). 1.3. A reação de Maria (Lc 1, 29) São as palavras, e não a visão do anjo (Lc 1, 12), que perturbam Maria. A sua reação é complexa, emotiva (perturba-se) e racional (questiona-se) ao mesmo tempo. A comoção é profunda; o que a provoca não é o temor perante o divino, ainda que a palavra de Gabriel o suponha (Lc 1, 30); nem, muito menos, o receio pela presença do anjo. Simplesmente, Maria i­nquieta-se perante o que se lhe acaba de dizer. A benevolência divina, inesperada, dá-lhe que pensar; um Deus tão gratificante também lhe causa estranheza. Semelhante reação poderia indicar que, ao ­menos inicialmente, intuíra as implicações da saudação; porque, de outro modo, não se entenderia bem tanta perturbação perante palavras tão positivas (cf. Mt 2, 2-3). Prova da sua maturidade é a reação que mantém, algo sem paralelo nos relatos de anunciação (cf. Jz 6, 13). Põe-se em atitude de procura do sentido das palavras que ouviu, enfrenta a nova situação com maior reflexão, pondera as circunstâncias na procura de uma conclusão (cf. Lc 3, 15). Não há angústia, desgosto ou descrença; embora não entenda bem o que lhe foi dito, leva-o a sério. 1.4. O Filho de Deus como proposta (Lc 1, 30-33) À pergunta de Maria responde o anjo com uma nova revelação, com a qual procura animá-la, manifestando-lhe quanto Deus a quer: não temas, porque encontraste graça. Se o temor é a reação natural de quem pressente Deus próximo, aqui vem proibido porque não há razão para tal: Maria conta com o beneplácito de Deus. Ao não referir nenhuma ação de Maria, a

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gratuidade da eleição é mais evidente. Deus está para iniciar um diálogo com Maria que ela não tinha pedido nem podia sequer imaginar. Ao intuir algo sobre o que se lhe vai pedir – e essa é a graça que Deus lhe fez – Maria começou a preocupar-se (cf. Gn 15, 1; 26, 24; 28, 30).3 A graça alcançada é razão suficiente para livrá-la da preocupação: antes de saber o que Deus lhe pede, Maria sabe que dispõe da sua benevolência; sabe que conta com Deus antes de saber para que conta Deus com ela. A graça não se ­esgota na missão, alcança a pessoa; porque é agraciada, terá uma graça para desfrutar, uma tarefa a cumprir. Depois da confirmação do seu estado de graça ­anuncia-se-lhe o motivo, recorrendo a modelos veterotestamentários (Gn 16, 11; Jz 13, 3. 5; Is 7, 14): uma maternidade que há de vir. Para que não haja dúvidas, mencionam-se os três atos fundamentais: conceção, parto e imposição do nome. A virgem conceberá o filho, que não é fruto de vida matrimonial (Lc 1, 35); ela, não o pai (cf. Gn 30, 1.21; Jz 13, 24), há de dar ao menino o nome que Deus escolheu; aqui não se dá a explicação do nome escolhido (cf. Mt 1, 21), mas o facto de ser Deus a impô-lo assinala a relação pessoal reservada ao menino. Maria é agraciada antes de chegar a ser mãe; o filho está já pensado por Deus, antes de poder ser desejado pela sua mãe. A mensagem angélica centra-se agora no filho que vai nascer de Maria. Já o tinha concebido Deus antes que a virgem o conceba. As afirmações, autêntico centro nevrálgico do relato, Ter achado graça (cf. Gn 6, 5-8; Ex 33, 12.13.16.17; 34, 9; Nm 11, 11.15) é originalmente, uma expressão cortesã e, por analogia, cultual (Gn 18, 3; 19, 19); só em episódios relacionados com Noé e Moisés é que a fórmula aparece na boca de Deus (Gn 6, 8; Ex 33, 12); em ambos os casos, a vinculação com Deus está relacionada com uma tarefa a fazer. 3

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são cristológicas. O anjo confessa a fé da comunidade cristã que aqui insiste no messianismo davídico de Jesus (cf. 2 Sm 7, 12-16; Sl 2, 7; 89, 27-30); com títulos não muito correntes, mas derivados do Antigo Testamento, indicam-se as qualidades pessoais do menino e da missão. Grande, usado em absoluto (cf. Lc 1, 15), é um qualificativo divino (Sl 47, 1; 76, 14; 95, 4; 134, 5; 144, 3); o menino ­anunciado será grande como Deus, quando for filho de ­Maria. Filho do ­ Altíssimo4 é uma variação lucana de filho de Deus (Lc 1, 35.76; 6, 35; Act 7, 48; 16, 17), título messiânico; será ­reconhecido messias pelo mesmo Deus: é seu filho e assim será aclamado pelo Altíssimo. Aqui, e diferente da profecia de Natan (2 Sm 7, 12-16), menciona-se antes a filiação divina que o t­rono ­davídico, símbolo da soberania; coloca-se na filiação divina, não na ­supremacia que lhe compete, a razão do messianismo de ­Jesus; por isso, supera qualquer outro messias. O filho de Maria será da linhagem de David (Lc 1, 27) e, portanto, legítimo pretendente messiânico; mas a sua consagração é decisão única do Pai. Jesus cumpre as expetativas religiosas reinando sobre o povo de Israel, mas a sua legitimidade não provém da sua linhagem davídica, mas da sua origem divina. E o facto de o seu reinado não conhecer limite temporal (Lc 1, 33) não assegura, contrariamente à profecia, um futuro à dinastia; mas anuncia o fim da dinastia messiânica ao conceder a um dos seus descendentes um poderio sem fim. Toda a aspiração política em Israel é superada aqui; se é verdade que nenhum reinado prevalecerá sobre o de David, não é menos certo que o senhorio eterno cabe a um só dos seus descendentes, ao messias Jesus. No plural atribui-se a pessoas que, pelo seu comportamento ou qualidades, se assemelham a Deus (Lc 6, 35-36; 20, 36; Mt 5, 9.45; Rm 8, 14. 19; 9, 26; Gl 3, 26; 1 Jo 3, 1). 4

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2. A certeza dada por um Deus omnipotente Ao desvendar a dignidade do menino, Maria reage sobriamente, sem entusiasmo nem dúvidas; pergunta apenas pela possibilidade da sua conceção (cf. Jdt 6, 15). Não é por não acreditar no que seria o filho anunciado, é por não compreender bem como poderia nascer-lhe um filho; enquanto permanecesse virgem, não vê como a promessa se tornará realidade; na situação pessoal em que se encontra, entende que não é possível a anunciada maternidade. Com a sua pergunta, Maria não questiona a mensagem recebida; manifestando a sua incapacidade de compreender a viabilidade do projeto divino, torna-se necessária uma ulterior explicação angélica. 2.1. Procurando entender a Deus (Lc 1, 34) A pergunta de Maria, que pertence intrinsecamente à narrativa (cf. Gn 15, 8; Ex 6, 12), confirma o seu estado de virgindade e aponta, indiretamente, para uma extraordinária intervenção de Deus. Maria não publicita a sua intenção de permanecer virgem; a fórmula não expressa um propósito para o futuro mas regista o seu estado atual.5 A sua pergunta sublinha o contraste entre o que lhe foi anunciado e o que ela é e pode; foi-lhe antecipada uma maternidade que não lhe parece factível. Leva a sério o anúncio, até ao ponto de questionar a sua possibilidade; a sua posição manifesta uma total abertura à mensagem, é consequência da sua escuta atenta. A pergunta de Maria é, provavelmente, um recurso literário que encontra paralelos nos relatos de anunciações; na narração Nem a virgindade era um ideal de vida para uma mulher judia nem é lógico supor que Maria, já noiva, o tivesse adotado. Mais inverosímil ainda, por não ter o apoio nos dados bíblicos à disposição, seria de supor que, antes do anúncio, o jovem casal se tivesse posto de acordo (cf. Mt 1, 18. 20). 5

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lucana faz-se eco da suposta pergunta dos ouvintes e prepara-os para a revelação seguinte (Lc 1, 35); nem há, pois, voto de virgindade perpétua nem previsão de maternidades futuras (cf. Mc 6, 3). Reafirma-se a impossível maternidade duma virgem como meio para concentrar a atenção no modo admirável da conceção do menino anunciado. O escolhido não pode, sendo apenas um simples chamado, responder por aquilo para que foi chamado; se Deus não entra na sua vida, não cumprirá a sua missão. Maria não pediu um sinal para poder crer; desejou uma ulterior revelação, que, concedida, lhe exigirá ainda maior fé. Quanto mais Deus lhe desvenda os seus planos, mais necessário será para Maria confiar n’Ele. 2.2. Nascido de Maria, filho de Deus (Lc 1, 35-36) A resposta do anjo vai para além do que lhe foi pedido, pois aclara o modo da conceção do filho de Maria declarando-o filho de Deus (Lc 1, 35). Confirma, além disso, a excecionalidade do nascimento, apresentando como prova a maternidade de Isabel (Lc 1, 36), que ratifica o poder omnímodo de Deus (Lc 1, 37). A primeira afirmação angélica tem duas partes. Diz com imagens como se conseguirá a conceção num paralelismo sinonímico (descida do Espírito, cobrimento pela sombra do Poder) e daqui conclui a natureza do filho concebido desse modo. Ainda que a declaração se refira ao filho de Deus, o agente é Deus Pai; define-se o nascido de Maria pela sua vinculação a Deus: é Deus o único que pensou e quis o filho de Maria. Em vez da procriação natural, o filho de Maria será possível por singular criação, por mais insólita que seja (cf. Lc 1, 18), graças a uma intervenção do Espírito (Gn 1, 2; Sl 33, 6; Ez 37, 14). A geração de Jesus é pura criação; a presença do Espírito no seio virginal cria a possibilidade mesma de vida nova. O modo

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da geração é, pois, espiritual, efeito de uma vinda do Espírito (Act 1, 7).6 A consequência é óbvia; o que o menino é, deve-o à sua origem. Quem foi assim concebido será reconhecido, uma vez nascido, santo, globalmente pertencente à esfera do divino (Ex 13, 12; Nm 23, 2. 37; Is 4, 3; 35, 8; 62, 12), e, de forma mais pessoal, filho de Deus. Gerado pelo Espírito, a existência de Jesus está ancorada no Deus Espírito, é sua obra e propriedade e, como filho, pertence a Deus ainda antes de nascer.7 2.3. O próximo em necessidade, prova da omnipotência de Deus (Lc 1, 37) A pergunta de Maria não pedia qualquer sinal; não exigia apoio para crer na mensagem. Contudo, Deus não lhe pede uma fé cega; e o anjo concede um sinal que ratifica a mensagem: proclama o estado de gravidez de Isabel. Pela primeira vez, menciona-se o parentesco que une as duas mulheres (cf. Ex 6, 23; 15, 20). Irmanadas também pela sua incapacidade de procriar (Isabel foi estéril e é anciã, Maria é virgem), a maternidade de Isabel, agora que é visível, prova a possibilidade da conceção virginal, e nada mais; para que se realize, basta a omnipotência divina. A datação precisa da maternidade de Isabel Tanto a descida do Espírito sobre a virgem (Gn 1, 2: Act 1, 8; 2, 1-13) como o cobrimento pela sombra (Ex 40, 35; Nm 10, 34; Sl 90, 4; 139,8) do ­poderio do Altíssimo dizem respeito à ação criadora de Deus no seio de Maria (Lc 1, 31). Se a primeira imagem evoca uma geração do nada, a segunda alude a essa eficaz presença, benéfica, de Deus no meio do seu povo; nada há que tenha a ver, nem de longe, com uma relação sexual. 7 Aqui a confissão da filiação divina de Jesus, nascida da experiência pascal (cf. Rm 1, 4; Heb 1, 5), retrocedeu até ao momento da sua conceção histórica. A fé que tem a comunidade cristã, ao tornar-se narração, transformou-se em crónica. 6

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torna evidente o milagre; ao tornar-se pública a sua gravidez, a conclusão é inevitável; nada, nem mesmo a esterilidade mais inveterada, é óbice a um Deus que está para vir (Gn 18, 14; Zc 8, 6); a sua palavra é, quando aceite, criadora. A palavra do anjo conclui a mensagem. Com ela o narrador deseja evitar aos seus leitores a discussão sobre a possibilidade da maternidade virginal; pô-la em dúvida equivaleria a questionar a potência de Deus. 3. Mãe porque serva O consentimento de Maria encerra o diálogo, tornando desnecessário o enviado de Deus, que abandona a cena. Ao contrário de Zacarias (Lc 1, 18), Maria não precisa de provas para acreditar no que lhe foi anunciado. Mas é a ela que cabe a última palavra. A desposada com um varão confessa-se serva do seu Senhor. 3.1. Dar consentimento a Deus (Lc 1, 38) Maria é a única personagem bíblica que aceita a sua vocação com a fórmula: eis a serva. Passa do depender do homem da sua vida para o estar ao serviço de Deus, que nela se faz homem. A virgem aceita o que escutou e permite que Deus, realizando o seu querer, seja o Senhor; a única razão para obter o consentimento de uma serva é a vontade do seu dono. A fórmula com que aceita (Gn 30, 34; Js 2, 21; Jz 11, 10; Dn 14, 9) manifesta concordância. O projeto divino verifica-se no momento em que encontra consentimento no escolhido; depois, será já reconhecida como mãe (Lc 1, 43). Maria superou a (primeira) prova, ao pôr a sua vida, e os seus projetos, nas mãos do seu Deus. Deus é gerado no ventre de uma virgem obediente. Contudo, e há que anotá-lo, o relato não menciona sequer a conceção do filho, termina declarando a dis-

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ponibilidade de uma virgem para ser mãe. Com isso é que Deus não contava ainda; quando obteve o seu consentimento, iniciou o seu plano. Jesus não foi, como qualquer outro homem, fruto de um encontro de amor humano, mas da confiança duma virgem em Deus (cf. Lc 1, 24) e da obediência duma serva ao seu Senhor (Lc 1, 38). 3.2. Personagens secundárias fora de cena Uma vez Deus presente no seio de Maria, sai da sua presença o mensageiro de Deus (cf. Lc 1, 28). Mais que duma aparição (Lc 1, 11), tratou-se duma visita (Gn 18, 1-16). Quando Deus encontra servos, sobram-lhe os enviados; a escrava não precisa de intermediários, basta-lhe conhecer a vontade do seu Senhor. O encontro entre Deus e Maria é direto e imediato, porque existe obediência. Quando o projeto divino encontra acolhimento, o impossível realiza-se: a virgem começa a ser mãe.

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Índice INTRODUÇÃO: Maria, a bem aventurada.....................................................5 PRIMEIRA ETAPA: Nazaré (Lc 1, 26-38)................................................... 15 NO INÍCIO, SEMPRE, UM DEUS SALVADOR QUE CHAMA (Lc 1, 26-38)........................................................................................................... 17

SEGUNDA ETAPA: Ain Karem (Lc 1, 39-56).............................................51 O SERVIÇO COMO MISSÃO (Lc 1, 39-45)................................................. 53 EVANGELIZAR ORANDO, MISSÃO MARIANA (Lc 1, 46-56).............70

TERCEIRA ETAPA: Belém - Jersualém (Lc 2, 1-20. 21-40)........... 89 CONTEMPLAR A DEUS, OFÍCIO DE MÃE (Lc 2, 1-20)..........................91 UMA ESPADA NA ALMA, SALÁRIO DO SERVIÇO CUMPRIDO (Lc 2, 21-40).......................................................................................................... 108

QUARTA ETAPA: Jerusalém (Lc 2, 41-52) Galileia (Lc 8, 9-11; 11, 27-28)................................................................... 127 PERDER O FILHO E ENCONTRAR-SE COM DEUS (Lc 2, 41-52)....129

QUINTA ETAPA: Caná (Jo 2, 1-11) - Calvário (Jo 19, 20-27)...167 COM MARIA, E NUM BANQUETE, É MAIS FÁCIL SER CRENTE (Jo 2, 1-11)............................................................................................................ 169 O PREÇO A PAGAR PARA TER MARIA COMO MÃE (Jo 19, 26-27)....................................................................................................... 178

ÚLTIMA ETAPA: Cenáculo (Act 1, 14).......................................................185 MARIA, ENTRE APÓSTOLOS QUE REZAM (Act 1, 14)

CONCLUSÃO: UM CAMINHO BEM-AVENTURADO DE FÉ.............193

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