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Sergio Napp
Houve um ver達o
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Houve um verão... Saímos de Porto Alegre às seis da manhã em direção ao hotel-fazenda no interiorzão do estado. O ônibus sacoleja pela estrada esburacada. O percurso é longo, mas o ânimo dos viajantes continua intacto. Conversas, cantorias, piadas, alegria geral é o que nos embala. Pouco espaço para cochilos.
Férias! As tão sonhadas férias! E eu penso em aproveitálas da melhor forma possível. A grana curta não me permite o que imaginei durante o ano. Talvez uma prainha deserta em Santa Catarina ou um camping num lugar qualquer. Nada que lave a alma e acorde os hormônios, mas, não havendo remédio, bola pra frente. O segundo ano da faculdade não foi nada fácil. Mais do que nunca, penso merecer essas férias. Uma tarde, o Luís me alcança um folder com a clássica pergunta: – Vamos encarar? O folder afiança as excelentes qualidades do hotel e de sua área de lazer. Canchas de futebol, vôlei, basquete; piscinas adulta e infantil; ponte pênsil sobre as piscinas, o que pressupunha bons mergulhos; camping, churrasqueiras, lancheria; local para festas; área para rafting, trilhas em mata nativa. – Nada mais havendo... Por que não?
Agrada-me a paisagem bucólica. Os extensos campos verde-amarelados. A quietude cortada por pássaros solitários. Teria o pai, em suas viagens, cruzado por aqui? Qual seria a 7
sua visão sobre o que observo? Ele costumava contar histórias de índios guerreiros, de animais diferentes dos que eu conhecia, lendas sobre personagens misteriosos. A tudo eu ouvia ansioso por conhecer essas terras que ele tornava tão maravilhosas. Hoje, sei que a maioria delas foram invencionices de pai para agradar o filho. Mesmo assim, olhando a paisagem sob o sol do meio-dia, enquanto meus companheiros demonstram inconformidade com o calor, me agrada recordá-las. A verdade é que eu sinto saudades do pai.
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Fazenda O pai decide passar as festas de final de ano na fazenda. Uma ideia e tanto! Irmãos, tios, primos, sobrinhos, reunidos sob os olhares carinhosos dos avós. Uma semana de festas, cantoria, churrascos, passeios de canoa, pescarias. Chico e eu somos os menores. Eu tenho cinco anos, e ele, sete. Estamos sempre juntos em nossas brincadeiras. Corremos pelo pátio, depois até a cacimba, milho para as galinhas, balanço, andar de petiço. E muitas travessuras. Chico é meu primo, e sabe de muitas coisas: – Você sabe de onde vêm os rios? – ... – Sabe como nascem as árvores? – ... – E como se fazem os pintinhos? Estou mais interessado em tomar banho no rio, subir nas árvores para apanhar frutos, correr com o meu cavalo de vassoura. E comer ovos! Nessas andanças, descobrimos o peru. E dele não esquecemos. Frosina vai e vem, a toda hora, levando comida pro peru. – Por que você trata ele tão bem, Frosina? – Ah, é que ele tá sendo preparado pra janta. – Como assim, Frosina? – Ué, ocês não sabem? Toda janta de Natal tem peru na mesa. – Você quer dizer... 9
Olho para o Chico, que me olha apreensivo. – Então quer dizer... – balbucia o Chico. – É, a gente tá engordando ele porque no vinte e quatro nós vamos comer ele. Naquela noite não dormimos. Não podiam fazer aquilo com o peru. – Você viu, ele tava inquieto. Tenho certeza que ele sabe que vai morrer. – Vai ver, tá adivinhando. – Vão cortar o pescoço do coitado! – E vai correr um montão de sangue! – Depois arrancam as penas e assam ele pra comer... – Deus nos livre! – Quanta malvadeza! – Vamos deixar eles fazerem isso? Chico fica em silêncio. – Pode? – Temos que dar um jeito. – E logo. Tínhamos que fazer tudo direitinho. Não podíamos errar. Na madrugada da véspera do Natal, enquanto todos dormiam, pulamos a janela do quarto e fomos até o cercado. – Cuida bem, Gabriel. Qualquer barulho, avisa. Chico abre a porta de onde o peru está preso e fala baixinho: – Vá embora, seu peru, vá embora! O animal sai pelo campo num upa. Pela manhã, acordamos com um alvoroço. 10