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Jasmin Ramadan
A cozinha da
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COPYRIGHT NOTICE © 2009 BY JASMIN RAMADAN Todos os direitos reservados à © 2009 Blumenbar Verlag GmbH & Co. KG, Berlin
Coordenação editorial - Elaine Maritza da Silveira Tradução do alemão - Michael Korfmann e Miriam Inês Wecker Revisão - Conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - Clea Motti Capa, projeto gráfico e editoração - Martina Schreiner
R165c .
RAMADAN, Jasmin. A cozinha da alma. Tradução de Michael Korfmann e Miriam Inês Wecker. (do alemão). Porto Alegre: 8Inverso, 2013. 240p. 14X21cm. ISBN 978-85-62696-04-6
1. Literatura alemã – romance.
82.03-31 CIP – Brasil – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Eroni Kern Schercher- CRB – 10/1421)
Reservados todos os direitos de publicação a Editora 8INVERSO Rua Azevedo Sodré, 275 Passo D´areia CEP: 91340-140 Porto Alegre - RS T: (51) 3237-9588 8inverso@8inverso.com.br www.8inverso.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRASIL ISBN 978-85-62696-04-6
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Para Nadine 1975-1997
Agradecimento especial a Philipp Baltus Nils Kasiske Heidi Ramadan Claudia Schneider Fatih & Adam 7
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Os ingredientes da vida Um homem que teme pela sua existência não fode bem.
Desde o meio-dia de hoje, Zinos Katzanzakis bebia somente água quente com sabor de casca de limão. Sempre que queria perder alguns quilos ou acalmar seus nervos, ingeria quantidades absurdas. Udo Pavese, certa vez, chamou essa bebida de canário quente. Há muito tempo que não tinha mais pensado em Pavese. Com ele, Zinos tinha aprendido a cozinhar. O pai de Udo Pavese era de Turim, e foi lá que ele provou essa bebida pela primeira vez, ainda menino, com os homens nos cafés. Pavese colocava primeiro o bule de vidro sobre o réchaud, enchia-o com água fervente, descascava um limão do início ao fim e deixava a casca inteira deslizar na água. Contemplar a casca – como flutuava sobre a pequena chama da vela na água quente – tranquilizava Pavese. Era também essa bebida, quase sem sabor, que inibia a fome torturante e incontrolável que acometia Zinos com tanta frequência. Seu estômago já estava roncando de novo, e sentia-se um pouco tonto. Talvez devesse fumar um belo baseado. Isso talvez o deixasse com menos raiva de Nadine, que festejaria a sua despedida para então partir para Xangai. Zinos não estava em clima de festa. Tinha a certeza de perder Nadine. Como se podia ter uma relação sem ao menos viver no mesmo continente? 9
Na inauguração de seu restaurante, alguns anos atrás, Zinos teve esperanças de que sua odisseia pela vida finalmente tivesse chegado ao fim. Mas sua última viagem parecia ainda pesar sobre ele como uma praga. Não contou a ninguém o que realmente tinha acontecido no Caribe. Inúmeras vezes na vida pensou ter chegado. Ter encontrado o paraíso – não conhecia um lugar mais bonito que Adiós. Mas se tudo isso não tivesse acontecido, talvez não estivesse aqui. Não teria aberto o SOUL KITCHEN e não teria conhecido Nadine. Ela era a primeira mulher que amava, que não era narcisista, mentirosa, instável, viciada, louca ou puta. E agora, ela partiria. Talvez as suas vidas simplesmente não combinassem. Ele trabalhava, fritava, comia fritura, pensava na Receita Federal, fumava maconha, bebia algumas cervejas e ouzo, conversava com conhecidos e amigos, se sentava de vez em quando ao sol, saía por aí com seu carro, ouvia música grega com Sokrates até ficar cansado e dormia um sono sem sonhos. Essa era sua vida. Sempre se perguntou se isso bastava a Nadine. Dormir com ela sempre era bom, mas ultimamente tinham sido raras as vezes. Havia agora certas coisas das quais tinha que cuidar. Há semanas, questões financeiras o ocupavam. Um homem que teme pela sua existência não fode bem, mas um homem que não teme mais nada, também não. Era o que seu irmão mais velho Illias sempre pregava, como tantas outras coisas. Uma das sabedorias de vida de Illias, da qual Zinos poderia achar graça agora, mas seu irmão estava de novo atrás das grades. Zinos respirou fundo e fechou os olhos. Nesse momento, soou o apito de um navio, e a velha conhecida melancolia o sobressaltou como um raio. Sua vontade era de tomar o próximo vapor e ir embora. Jamais esqueceria Nadine. Da mesma forma como não saberia 10
esquecer todo o resto: todas as receitas que lhe recordavam o passado e todas as pessoas intimamente ligadas a ele.
RECEITA: CANÁRIO QUENTE
VOCÊ VAI PRECISAR DE - um bule de vidro resistente ao calor - um réchaud, uma a três velas lamparinas - uma faca pequena e afiada - uma xícara de chá pequena - no mínimo um litro de água fervida - um limão grande - algumas horas de tempo MODO DE FAZER Primeiro acender uma vela, colocá-la no réchaud, levar a água ao fogo e lavar o limão com água quente. Despejar a água fervente no bule e colocá-lo sobre o réchaud. Descascar o limão, acrescentando a casca diretamente na água; cuidar para que não rasgue. Guardar o limão descascado na geladeira; ele apodrece rapidamente sem a casca. Contemplar a casca no bule até ficar por completo imersa. Esse é o tempo de infusão. Não retirar a casca de limão e beber aos poucos a infusão durante o dia. Pode-se acrescentar mais água quente, sempre que necessário. De vez em quando, verificar a vela e substituí-la se estiver apagada. Quando o bule estiver vazio, cheirar sem falta a casca de limão mais uma vez, com os olhos fechados. À noite, comer bem e em abundância.
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Martim-pescador e AC/DC
A insegurança é o primeiro passo para o conhecimento.
Desde os seus dez anos, Zinos temia que nada em sua vida mudasse algum dia. Seu irmão Illias, que era somente dois anos mais velho que ele, há muito que não se interessava mais pela pista de autorama. As tentativas de Zinos de reavivar o seu interesse foram em vão. E pensar que o autorama sempre tinha sido o melhor pretexto para pancadarias que lavavam a alma – e fortaleciam a união entre irmãos. Em vez de, como antigamente, logo depois de acordar, brincar com Zinos – até a mãe ameaçar levar o café da manhã aos pobres na rua –, Illias treinava agora por alguns minutos com uma corda de pular, antes de sair de casa, logo em seguida. O quarto ocupado pelos dois tinha quase vinte metros quadrados. Aos seis anos, Illias já fazia questão de dormir na cama que ficava voltada para a porta. Naquela época, ele já tinha que se manter sempre alerta: em todas as brincadeiras com bonecos de ação, Zinos tinha que fazer o papel dos agentes do FBI, da tropa de intervenção internacional, do policial babaca. Illias era quem sempre estava em fuga e, no final, ele eliminava as tropas de Zinos com um único golpe aniquilador. Zinos estava farto dessa distribuição de papéis. Mas até mesmo os seus dois porquinhos-da-índia, Rummenigge e Maradona, 13
tinham que fazer sempre a mesma rota pelo velho tonel de sabão em pó Ariel. O porquinho-da-índia de Zinos sempre ficava no tonel porque Illias lhe cortava a frente com um caminhão Playmobil. Maradona morreu muito antes de Rummenigge. Mas isso foi um breve triunfo para Zinos. Após um dia de luto, Illias simplesmente adotou o bichinho de seu irmão. Zinos teve que assinar três vezes um desenho a lápis de cor. Na folha, havia o desenho de um porquinho-da-índia e ao lado uma seta que apontava para um homenzinho grande e forte, chamado Illias. Não que Illias tivesse um interesse especial em pintar e desenhar – não, na verdade tinha grandes dificuldades em escrever, as quais ele não superou até o quarto ano. Com as letras não sabia fazer muito mais que escrever o seu nome. Os pais se negaram a submeter o seu filho a testes que provavelmente teriam revelado uma dislexia. Naquele tempo, mal sabiam falar alemão. Era provável que simplesmente não entendessem o assunto que preocupava a professora. Também era provável que acreditassem saber melhor o que era bom para uma criança. A mãe, pelo menos, ensinou Illias desde cedo a superar perdas. Ela jogou Maradona, ao menos embrulhado em papel de presente, no contêiner de lixo no pátio. Zinos foi incumbido por seu irmão de procurar o pacotinho florido; com os pés presos sob os braços de Illias, pendia sobre o contêiner de lixo. Ao puxar o pacotinho para cima, Maradona escorregou para fora. Illias tratou então de pular para dentro do contêiner para resgatar o cadáver. Segurou mais uma vez a lâmina de seu canivete em frente à pequena boca para certificar-se do fim do animalzinho. Maradona foi então cremado no mictório da pracinha. Foi nessa noite, no ano de 1983, que Zinos viu seu irmão chorar pela última vez. 14