A sede das pedras

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A SEDE DAS PEDRAS




© Cássio Pantaleoni, 2012 Coordenação editorial Elaine Maritza da Silveira Capa, projeto gráfico e editoração Juliana Dischke Revisão Aline Vanin – Conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

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PANTALEONI, Cássio. A sede das pedras. Porto Alegre: 8Inverso, 2012. 96 p. ISBN 978-85-62696-18-3 1.Literatura brasileira – contos . 2. Literatura sul-rio-grandense – contos I. Título.

CDU 869.(081) - 34

CIP – Brasil – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Eroni Kern Schercher- CRB – 10/1421)

Reservados todos os direitos de publicação à Editora 8INVERSO Rua Azevedo Sodré, 275 Cep 91340-140 – Porto Alegre, RS F.: 51 3237.9588 8inverso@8inverso.com.br www.8inverso.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRASIL ISBN 978-85-62696-18-3


Agouro, 7 O sangue das pedras, 17 Terço sentido, 25 “Ambarabaciccicoccò”, 33 Sede, 41 Infâmia, 55 Pulso, 61 O boi, é?, 67 Avessos, 79

“Inferno ou Céu, do beco sem saída Uma só coisa é certa: voa a vida, E, sem a vida, tudo o mais é nada. A flor que for logo se vai, flor ida.” Edward Fitzgerald (1809-1883)



Agouro Bem dia que se arrepende aquele. Deixou menos, acredite. Três defuntos: o Justino, o bem-amado, foi-se de mal súbito; o outro, o tal Festulato, encomendou-se de mal prometido; o terceiro: bem, esse ali era paciencioso, desapressado e, diferente assim, morreu de véspera. Fora do caso, vale dizer. Até não tivesse ela decidido o beijo e seria leve o pesar. Escutei, sim, verdade, que foi assunto em Porto Alegre. Muito antes, Corcina, menina de arredores, dos olhos tímidos, nos seus mais de vinte, nos descuidos daquela muito mais cidade de alegre porto, conheceu Justino Cezequer. Ele, moço trabalhador, da fala miúda, crente dos amores e valores de bem ser: um bom partido, diziam. Foi que se deu a paixão como cedeu – em plena luz do dia, na Protásio Alves, lá onde se confiavam os serviços bancários, na fila de espera mesmo, entre um cheque descontado e outras contas a pagar. “É que me cansa esse lugar!”. Sem aflição.


As combinações seguiram com os dias. Encaminharam-se. Tudo muito como apressa amor de juventude – repentes de nunca-sem e sempre-já. Três resoluções: casamento, casa e enxoval, na aflição de se gastarem um com o outro. Era tesão de dia em dia, paixão de fazer olho gordo, que não se encontra nos tantos dos outros. Se há esse sempre do destino, vingou-se a escrita, tudo de acordo, corriqueiro. Não fosse o imprevisto, repare. Um domingo, dia de mães, depois da comilança à mesa bondosa, do diz-que-diz-que disfarçado das conversas, o amado Justino, indisposto, descartou-se. Foi-se o moço assim, sem prévio aviso, entre um e outro mundo, de dor arfada, rezado entre os deságues da mulher e a amargura de gente que só aparece pra enterrar mais um. Descobriu-se viúva. Filha deitada em ventre, Corcina jurou retiro. Homem igual se tinha! Lembrava de comparar o tempo todo, se um que lhe apresentassem confeitado, como se promessa de bom futuro fosse retocar o passado. Ignorou que sobrava, forte que pensava que era. Foi ter o parto com a mãe. Pouco para aprender que vida não é o que cresce na barriga, mas o que pesa nas costas. Foi buscar serviço em firma ou residência, pelos trocados do leite, das fraldas, e dos tantos aniversários e natais 8

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que se revezariam. De muito em raro, arranjou-se – um trabalho mais nobre, de carteira assinada e décimo terceiro. Empregou-se, bem justa, desocupada dos galanteios, dos rodeios de voz grossa. Mal fosse tarefa fácil privar o corpo de um e outro toque ou deslembrar do cheiro senão pela decência de honrar o finado Justino. Debutada a filha, desmorreu. Viu-se, em tanto, como antes, no quem procura a juventude no traço escondido por detrás das olheiras, dos vincos nos contornos, pelo de novo da vontade. Incerta manhã, caprichou no cabelo, nos cílios, na boca desacostumada do batom. Escolheu vestido e sapato, fingiu no espelho a menina aquela enquanto lá de Farroupilha. Se no serviço chamasse atenção, e também antes, no curso da lotação, conquistou olhar e sorriso. Pois um alto e loiro, do queixo contornado pelos fios de barba rala, lhe pediu prosa. Devolveu o sorriso, uns reparos no jeito de dizer. Reapresentou-se. Ele era homem de prenome simples, qualquer Pedro que fosse, para dar impulso ao nome de família que guardava o traço da origem italiana – Festulato, fez questão. Trazia no gesto os cacoetes, e na fala aquele jeito em si cantado – “Pelo charme”, supôs Corcina. Das coincidências, tiraram o lugar de preferência de almoçar, sem pressa e com A SEDE DAS PEDRAS

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pouco custo. Logo, então, meio que inteiramente dividindo as intenções, combinaram o tempo certo, sem pressa no se ver de novo – pra não parecer tão fácil, explicaria à filha. Que lhe encantara, o homem! Os entretantos é que já não sabia mais daquelas coisas. Muito tempo sem flerte e trejeitos deixa medo. Preocupava. Por receio do despraticado, sabe? Pediu orientação à menina. De juventude certa e folgada, a filha achou tudo romance e aventura, e, pra descomplicar: “Namoro é assim mesmo, mãe. Tudo se ajeita. Não precisa ensaio”. No encontro, sem prova: foi do almoço ao jantar, do jantar ao aconchego, e daí para o amarrotamento dos lençóis. Entregou-se, num desamparo que deu dó. Porém, para Corcina já aquilo era amor jurado outra vez e cada espelho depois daquela noite se tornou amigo de moça. Nos dias que largou a alma-viúva reganhou o viço, a cor e o tempero de mulher solteira. Pouco menos se esbaldava para então acudir os anos e os vestidos dormidos no guarda-roupa. A filha notou, e, próximo aos dias da nova fatalidade, recomendou: “A gente tem que viver enquanto vive”. Nos acabamentos de um agosto de chuva, Festulato confessou: o doutor lhe prescrevera um par de meses, nem mais. Tem desses prejuízos os sarcomas e, de tão irreversíveis, se apegou na pouca vida pra deixar de si alguma lem10

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brança, antes que se fosse de volta à terra. Corcina nem viu doença ou sentença. Queria o que queria, sem perda ou reparo, que não lhe roubasse a alegria que agora era outra, mais forte. Ele desprometeu. E, no décimo dia de setembro, se foi sem menos-nem-mais. Naquele mesmo dia, Corcina reconsiderou. Quem pensasse? Tanta luta e vida é isso? A filha viu, a filha ouviu, a filha despediu-se da felicidade da mãe, ali, ao pé da cama, no juramento de não mais prestar pra homem ou paixão que fosse. Tempo ao tempo e já o extraordinário ocupa uma ou outra vida. Pois merece mais essa história. Quando a filha pôs-se em profissão, no jeito de seguir do mundo, e ela já pintava os cabelos pra esconder os brancos, convencida de que o amor adolescente de Justino e que a paixão breve de Festulato era tudo, aconteceu. Naquela época, ela vivia mais só. A filha voltava na hora da cama e partia com o cedo da manhã, e aos sábados e domingos pouco a via, pois, se não era namoro, era quase, e menina jovem procura, mal se sabe. Por conta, Corcina gostava de prosa, na feira, no supermercado, na farmácia: uma compra aqui, nenhuma outra ali, muito assunto sobre a filha pra desocupar o tédio. Alguma manhã de quarta-feira, entre o nada de fazer e o pouco de inventar, decidiu testar receitas. Bolo de abacaxi com recheio de hortelã, quem prove. A SEDE DAS PEDRAS

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