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Jasmin Ramadan
o porco entre os peixes 5
COPYRIGHT NOTICE © 2012 BY JASMIN RAMADAN Todos os direitos reservados à © 2012 Klett - Cotta/Tropen
Coordenação editorial - Elaine Maritza da Silveira Tradução do alemão - Luciana Waquil e Michael Korfmann Revisão - Conforme Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa - Clea Motti e Carla Araujo Projeto gráfico e editoração - Martina Schreiner
A tradução deste livro teve o apoio do Goethe-Institut, que é financiado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha. The translation of this work was supported by a grant from the Goethe-Institut which is funded by the German Ministry of Foreign Affairs.
R165p
RAMADAN, O porco entre os peixes./ Jasmin Ramadan: Tradução de Michael Korfmann e Luciana Waquil (do alemão). Porto Alegre: 8Inverso, 2013. 301p
ISBN 978-85-62696-27-5 1. Literatura alemã - romance 830-3
CIP – Brasil – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Eroni Kern Schercher- CRB – 10/1421)
Reservados todos os direitos de publicação a Editora 8INVERSO Rua Azevedo Sodré, 275 Passo D´areia CEP: 91340-140 Porto Alegre - RS T: (51) 3237-9588 8inverso@8inverso.com.br www.8inverso.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRASIL ISBN 978-85-62696-27-5
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Para os meus amigos. Bine, Jani, Nils e Heidi. E Wojtila.
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PRIMEIRA PARTE
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NÃO APENAS BONITINHA Foi na manhã do meu aniversário de 13 anos que Ramona, descongelando uma torta com o secador de cabelos, de repente, se atirou no chão: — Olhe aqui, Stine, eu vou lhe mostrar como se coloca um absorvente interno. Você não precisa nem experimentar os absorventes normais, pois a gente se sente como se estivesse de fraldas! Você se deita, joga as pernas por cima da cabeça, bem para trás — mais ou menos assim! A ponta dos pés tem que tocar no chão atrás da cabeça. Aí o rolinho entra bem reto, e a força da gravidade ajuda. Você conta até dez, até encaixar, e pode rolar de volta. Ela explicava o processo deitada com os pés por cima da cabeça, no chão da cozinha. No lugar de um absorvente, tinha uma vela na mão. No fim, errou na hora de rolar para trás e deslocou uma vértebra cervical de maneira tão infeliz que o meu pai teve que levá-la ao pronto-socorro. Fiquei sentada sozinha na cozinha, acendi minhas treze velas de aniversário e assoprei todas de uma vez só. Três meses depois, realmente veio a minha primeira menstruação. Não falei nenhuma palavra à Ramona sobre o assunto. Já chegava ela ter me feito treinar com um frasco de desodorante como desenrolar uma camisinha. Foi Reiner quem, enfim, me levou ao ginecologista. Sou grata a meu pai por ter me acompanhado. Ele ainda continuava vermelho quando fui encontrá-lo na sala de espera depois do exame. Na minha idade, Reiner não sabia praticamente nada sobre prevenção de gravidez. Também sobre a minha mãe de verdade ele não sabia muito — afora que ela se chamava Colombe e que era da França. Como não sabia pronunciar o nome dela, chamava-a de Bombe e só foi ler seu sobrenome pela primeira vez na minha certidão de nascimento. Na época, ela trabalhava como babá na 11
Alemanha. E pegar babás estrangeiras era um legítimo esporte para Reiner e sua turma. Eles eram todos filhos de zeladores e moravam com as suas famílias nos subsolos dos prédios art nouveau mais bonitos da cidade. Colombe foi a primeira — me contou Reiner uma vez — que ele achou não apenas bonitinha, e sim muito bonita. Além disso, sempre ressaltava, ela era particularmente inteligente: — Para mim, em todo caso, inteligente demais. Eu nunca tive muito freio na língua com mulher, mas com ela, de repente, comecei a colocar as palavras em ordem na cabeça antes de me atrever a dizer alguma coisa! Ela sempre ria das minhas piadas — só que às vezes eu não tinha bem certeza se estava rindo mais da piada ou de mim. Acho que se eu não fosse tão boa-pinta, você não estaria aqui hoje, Stine. O meu visual era a única coisa que ela não podia me tirar com sua lábia. Mas, numa dessas, eu ganhei a garota e logo depois terminei com ela, antes que ela fizesse isso comigo. Pelo menos neste ponto fui mais inteligente do que ela. O amor é assim. Primeiro a gente faz loucuras, até que depois vem o juízo e a gente se apaixona por uma pessoa como a Ramona! Eu nunca sabia quando Reiner estava falando a verdade. Quando falava da minha mãe, ele pigarreava a todo momento e, às vezes, chegava a ficar com os olhos úmidos. Mas seus olhos também ficavam úmidos quando ele mentia e os arregalava para não precisar piscar. Quem mente pisca mais do que o normal — ele havia lido isso uma vez em um artigo sobre linguagem corporal. Às vezes, tinha medo de que ele tivesse me encontrado assim como quem encontra uma gatinha abandonada em uma lata de lixo. Quando lhe contei isso, Reiner me disse para parar de bobagem e nunca ficar mais triste do que o necessário. Quando criança, em caso de necessidade, eu logo desatava a chorar, sem muito queixume. Era o único jeito de arrancar um pouco de atenção de Ramona e Reiner em sua gloriosa indiferença. 12
Meu pai preferia disparar um ditado sobre qualquer coisa antes de derramar uma lágrima. Ou então pigarreava sem parar, apertava os olhos, saía de casa e pegava a estrada, dirigindo por horas a fio. Quando morreu o seu pai, ele dirigiu durante várias horas sem parar, até chegar à primeira cidade grande. Ramona estava sempre bêbada demais para ficar triste. Mesmo assim, meu pai havia se casado com ela — uma mulher que, quando estava mal por ter bebido além da conta, contava em voz alta de trás para diante enquanto coçava a risca do cabelo. Eles se conheceram quando eu tinha quatro anos e nós ainda morávamos com os meus avós. Uma certa manhã, depois do seu turno na panificadora, meu pai parou no posto de gasolina mais próximo para analisar os anúncios de aluguel do jornal e tomar um café preto com bastante açúcar acompanhado de uns cigarros mentolados. Ramona estava de serviço e, em resposta ao seu simpático — Bom dia, princesa! — rosnou de volta, com a voz rouca: — Uma princesa eu estava ontem à noite! Com o coração batendo forte, ele olhou bem para ela: olheiras escuras ao redor dos olhos, vestido de stretch tigrado em amarelo-neon e preto, um cinto largo com fivela e um moicano. O coração de Reiner acelerou ainda mais quando descobriu uma carteira de sua marca de cigarros mentolados presa sob a alça do vestido. Tossindo, ela preparou-lhe um pão com Mettwurst1, cravou, com as suas unhas postiças, um pepino em conserva sobre a camada de carne moída, levantou os olhos e piscou para ele. Aí aconteceu: ele ficou vidrado. Ela ainda tinha um pouco de carne no dedo e, passando-o distraidamente atrás da orelha, riu e disse: — Eau de porcô! — O mais tardar neste momento, Reiner estava irremediavelmente perdido. 1 Mettwurst, ou simplesmente Mett, é uma massa de carne de porco crua moída, temperada com sal, pimenta e acompanhada de cebola picada.
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