organizadoras VOLUME quilombolasEpistemologias2
Cláudia Luísa Zeferino Pires Lara Machado Bitencourt
Volume II
Volume II
Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEABI)
Nelson Luiz Sambaqui Grüber, Diretor Paulo Roberto Rodrigues Soares, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA) Marcelo Argenta Câmara, Chefe do Departamento de Geografia
José Antônio dos Santos, Diretor do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS)
| www.ufrgs.br/nega DEDS PROREXT DEPARTAMENTODEEDUCAÇÃO EDESENVOLVIMENTOSOCIAL
Luis Carlos Espindula, Diretor da Gráfica da UFRGS Instituto de Geociências
Adelina Mezzari, Pró-Reitora de Extensão (PROREXT)
Frente Quilombola RS Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos Akkani – Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e atlasquilombosportoalegre@gmail.brEtnias
José Antonio Poli de Figueiredo, Pró-Reitor de Pesquisa (PROPESQ)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Carlos André Bulhões Mendes, Reitor Patricia Pranke, Vice-reitora Júlio Otávio Jardim Barcellos Pró-Reitor de Pós-Graduação e de Coordenação Acadêmica (PROPG)
Alan Alves Brito, Coordenador do Núcleo de Estudos
Cláudia Luísa Zeferino Pires, Coordenadora do Núcleo de Estudos de Geografia & Ambiente (NEGA) Fomento NEABI/UFRGSPROREXT/UFRGSCNPqCAPES/POSGEA Parcerias
ATLAS PRESENÇADA QUILOMBOLA EM PORTO ALEGRE/RS Volume CláudiaquilombolasEpistemologias2LuísaZeferino Pires Lara Machado Bitencourt organizadoras
OrganizadorasCláudiaLuísaSouza.Zeferino
Elaborado porMaurício Amormino Júnior CRB6/2422
Porto Alegre (RS). 2.Negros História Versão digital lançada em 15 novembro de 2021 | Versão impressa lançada em agosto de 2022 Cláudia Luísa Zeferino Pires Lara Machado Bitencourt Coordenação Técnica Cláudia Luísa Zeferino Pires Lara Machado Bitencourt Equipe Técnica Cláudia Luísa Zeferino Pires, Diego Mittmann Kaiser Barboza, Giulia Assunção Sichelero, Hiago Godoi Barth, Laísa Zatti Ramires Duque, Lara Machado Bitencourt, Laura Isabel dos Santos Flores, Mariana Nicolini Acosta, Matheus Eilers Penha, Winnie Ludmila Mathias Dobal e William de Oliveira Silva da Silva Revisão Gustavo Suertegaray Saldivar Capa e Ilustrações Gabriel Muniz de Souza Queiroz Projeto gráfico e Diagramação Editora Letra1 Impressão Gráfica da UFRGS versão digital DOI: 10.21826/978-65-87422-19-0
Organização2021
EDITORIAL
Rua(51)letra1@editoraletra1.com.brCNPJwww.editoraletra1.com.br12.062.268/0001-3733729222LopoGonçalves,554–Cidade
Baixa PortoLivroAlegre/RSpublicado
Pires, Lara Machado Bitencourt;ilustrador Gabriel MunizdeSouza Queiroz. Porto Alegre, RS:Letra1, 2021. 2v. 760p.:il.IncluibibliografiaISBN978-65-87422-19-01.QuilombosHistória
Adriana Dorfman Universidade Federal do Rio Grande do Sul Anderson Zalewski Vargas Universidade Federal do Rio Grande do Sul Hernan Venegas Marcelo Universidade Federal da Integração Latino-Americana Marcelo Jacques de Moraes
CONSELHO
em acesso aberto sob a licença Creative Commons CC-BY 4.0
90050-350
Universidade Federal do Rio de Janeiro Márcio Silveira Lima Universidade Federal do Sul da Bahia Miriam V. Gárate Universidade Estadual de Campinas Regina Coeli Machado e Silva Universidade Estadual do Oeste do Paraná Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) A881Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS [livro CDD305.89608165eletrônico]/
Porto Alegre (RS). 3. Negros Usos e costumes Porto Alegre (RS). I. Pires, Cláudia Luísa Zeferino. II. Bitencourt, Lara Machado. III.Queiroz, Gabriel Muniz de
Para o amigo, professor, geógrafo quilombista Andrelino Campos , que partiu tão cedo e que deixa muitas saudades, mas, sobretudo, os ensinamentos generosos, para ser mais.
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Capítulo 1 Espacialidades GEO-Quilombistas: percursos do nosso fazer CLÁUDIA LUÍSA ZEFERINO PIRES E LARA MACHADO BITENCOURT Capítulo 2 Uma
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IV N S OL SUMÁRIO Agradecimentos Quilombótica VIII • DUAN KISSONDE Prefácios Conhecimento e Justiça? Quem faz o conhecimento? • NELSON REGO Territorialidades cósmicas: tecendo histórias negras • ALAN ALVES BRITO O novo, por necessário e imprescindível, impõe-se! • BABALOLÁ DUMISSAI Apresentações Apresentação do Departamento de Educação e Desenvolvimento Social –PROREXT, UFRGS • JOSÉ ANTÔNIO DOS SANTOS Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas • CLÁUDIA LUÍSA ZEFERINO PIRES E LARA MACHADO BITENCOURT VOLUME 1 – CARTOGRAFIAS CONTRACOLONIAIS PARTEApresentação1–METODOLOGIAS E CARTOGRAFIAS CONTRACOLONIAIS
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Porto Alegre Quilombola: Seus mapas e suas narrativas • CLÁUDIA LUÍSA ZEFERINO PIRES, DIEGO MITTMANN KAISER BARBOZA, GABRIEL MUNIZ DE SOUZA QUEIROZ, GIULIA ASSUNÇÃO SICHELERO, HIAGO GODOI BARTH, LAISA ZATTI RAMIREZ DUQUE, LARA MACHADO BITENCOURT, LAURA ISABEL DOS SANTOS FLORES, MARIANA NICOLINI ACOSTA, MARÍLIA GUIMARÃES RATHMANN, MATHEUS EILERS PENHA, WILLIAM DE OLIVEIRA SILVA DA SILVA E WINNIE LUDMILA MATHIAS DOBAL Capítulo 3 • QUILOMBO DA FAMÍLIA SILVA Capítulo 4 • QUILOMBO DO AREAL XXVIXXIIXVII12999773734XIXVXXXXV
MOVIMENTO NEGRO E A CIDADE QUILOMBOLA
Capítulo Quilombos na cidade sob uma perspectiva afro-brasileira JOSÉ CARLOS DOS ANJOS
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Capítulo
Capítulo Os Quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola RAFAEL SANZIO ARAÚJO DOS ANJOS
Capítulo Movimento Negro e Direito à terra: quilombos como exemplos de resistência JOSÉ ANTÔNIO DOS SANTOS Capítulo Entrevista – Um Xangô Carioca nos terreiros do Sul, Dr. Onir, advogado quilombista – Entrevista com Onir de Araújo • CLÁUDIA LUISA ZEFERINO PIRES, GIULIA ASSUNÇÃO SICHELERO, LARA MACHADO BITENCOURT E LAURA ISABEL DOS SANTOS FLORES
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8 • QUILOMBO DOS FLORES Capítulo 9 • QUILOMBO DOS LEMOS Capítulo 10 • QUILOMBO FAMÍLIA DE OURO Capítulo 11 • QUILOMBO DA MOCAMBO Homenagem • ANCESTRALIDADE, MEMÓRIA E LUTA QUILOMBOLA DE PORTO ALEGRE VOLUME 2 – EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS PARTEApresentação2–DIÁSPORA,
Capítulo
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Capítulo Entrevista – As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender com Ubirajara Carvalho Toledo e o IACOREQ – Entrevista com Ubirajara Carvalho Toledo CLÁUDIA LUISA ZEFERINO PIRES, LARA MACHADO BITENCOURT, LAURA ISABEL DOS SANTOS FLORES
391476470461446427394374343313283253221193159
6 • QUILOMBO DOS FIDÉLIX Capítulo 7 • QUILOMBO DOS MACHADO
V N S OL Capítulo 5 • QUILOMBO DOS ALPES
Capítulo Interpretações da diáspora negra no Brasil • JOSÉ RIVAIR MACEDO
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PORTO
Capítulo 27 Para além das águas, corporalidade quilombola nas ilhas de Porto Alegre CRISTINA BAHI DE SOUZA
Capítulo 24 • Porto Alegre, Séc. XIX: presença negra na área central • DANIELE MACHADO VIEIRA Capítulo 25 • Resistências quilombolas na região de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) • TAÍS DE MEDEIROS SILVA
RECH 581561546542536514501493482595605619637
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VI N S OL PARTE 3 – CORPO, SONS E MOVIMENTO
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Capítulo 28 Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre de cidade branca e europeia que invisibilizam a escrita espacial negra dessa cidade Bonetto
Capítulo 23 ENTREVISTA – Mestre Paraquedas – O Griô do Samba – Entrevista com Eugênio Silva de Alencar, Mestre Paraquedas • SÉRGIO VALENTIM
Capítulo No jogo da capoeira a resistência para a vida DANUZA MENEGHELLO
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Capítulo 29 Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: de como as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo ÁLVARO LUIZ HEIDRICH
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• Helena
• AMANDA
Capítulo ao CORpo! CLARICE MORAES
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Capítulo Corpos negros, corpos sonoros GABRIEL MUNIZ DE SOUZA QUEIROZ Capítulo Corpo e resistência pela capoeira, a pedagogia da ginga que educa a cidade de Porto Alegre PATRÍCIA GONÇALVES PEREIRA E LUÍS ROGÉRIO MACHADO CAMILO
Capítulo 22 Entrevista – Tantas, sou só uma e sou tantas… Mãe Bia, sereia das ilhas – Entrevista com Beatriz Gonçalves Pereira CLÁUDIA LUISA ZEFERINO PIRES, MARIANA NICOLINI ACOSTA E LAURA ISABEL DOS SANTOS FLORES
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Capítulo 30 Amor insurgente – De vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado NELSON REGO THIAGO BASSANI
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Capítulo 26 • Histórias que amenizam dores: a MOCAMBO resiste e se aquilomba em Porto Alegre CARLA BEATRIZ MEINERZ, MARIA ELAINE RODRIGUES ESPÍNDOLA, DUAN BARCELOS
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PARTE 4 – RESISTÊNCIAS URBANAS NA RELAÇÃO CENTRO – PERIFERIA
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Capítulo 31 • Entrevista – As várias faces da negra Porto Alegre nas trajetórias de Maria Clara Ênio da Restinga – Entrevista com Maria Clara Cardoso Nunes e Ênio Messias Nunes • CLÁUDIA LUISA ZEFERINO PIRES, LARA MACHADO BITENCOURT, MARINA VARGAS LEONHARDT E MARIANA NICOLINI ACOSTA
Capítulo 34 • Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre/RS TAÍSSA GOMES CARDOSO, BRUNO XAVIER SILVEIRA E DHARKSON DA ROSA SEVERO
Capítulo 36 • Entrevista – Pelas trilhas do Quilombo dos Alpes, através das pedagogias e das memórias quilombolas de Janja e Karina Ellias • Entrevista com Rosângela da Silva Ellias e Karina Rejane da Silva Ellias – LARA MACHADO BITENCOURT E TAÍS DE FREITAS MUNHOZ SOBRE AS AUTORAS E AUTORES – Volume 1 SOBRE AS AUTORAS E AUTORES – Volume 2
VII N S OL
PARTE 5 – SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UMA AGENDA PARA EDUCAR A MANIFESTOCIDADE
• Por amor aos nossos filhos • FRENTE QUILOMBOLA RS E APOIADORES
Capítulo 35 Território, Ancestralidade e Cultura Quilombola em Porto Alegre – apontamentos para uma Escola Quilombola CLÁUDIA LUÍSA ZEFERINO PIRES, KARINA REJANE DA SILVA ELLIAS, LARA MACHADO BITENCOURT E ROSANGELA DA SILVA ELLIAS
Capítulo 32 • Saberes da oralidade do Quilombo dos Alpes • VANDERLEI DE PAULA GOMES Capítulo 33 • Educação quilombola e Educação para as Relações Étnico Raciais – Aproximações, distanciamentos e potências • GLÁDIS ELISE PEREIRA DA SILVA KAERCHER E TANARA FORTE FURTADO
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N S OL
ATLAS PRESENÇADA QUILOMBOLA EM PORTO ALEGRE/RS Volume quilombolasEpistemologias2
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XIXI
Ao final desta etapa, alguns agradecimentos se fazem indispensáveis, pois cada qual, a seu modo, viabilizou a realização deste trabalho. Primeiramente, agradecemos Clarice Moraes que mediou o primeiro contato nosso com o chão do território pelo Quilombo dos Alpes. Assim, agradecemos a Rosangela da Silva Ellias, a Karina Rejane da Silva Ellias, a Daiane da Silva Ellias, a Eduardo Rodrigues da Silva Ellias, a Lígia Maria da Silva, a Sérgio Ivan dos Santos Fidélix, a Luís Rogério ‘Jamaika’ Machado Camilo, a Vanda Tamires da Silva Antunes, a Rodrigo Machado Camilo, a Elisandro Oliveira Vieira ‘Caçapa’, a Josiel Ferreira, a Katia Marques, a Marcos Aurélio Pia, a Maria Lúcia dos Santos, a Paulo Jorge Oliveira ‘Seu Bagé’, a Geneci de Lourdes Flores, a Gerson Flores, a João Batista da Costa Vasconcelos, a Nara Maria Vasconcelos de Mello, a Gustavo Flores, a William Flores, a Sandro Gonçalves Lemos, a Valéria Gonçalves Lemos, a Fabiane Figueiredo Xavier, a Patrícia de Lourdes Peres da Rosa, a Francine Suelen da Rosa Martins, a Glória Farias Gonçalves, a Maiara Priscila Peres da Rosa, a Mara Rejane Ribeiro, a Marilu Martins, a Paola Juliana Peres da Rosa, a Maria Elaine Rodrigues Espindola, a Daniela Espindola Rodrigues e a todas as famílias das comunidades do Quilombo dos Alpes, do Quilombo da Família Silva, do Quilombo Fidélix, do Quilombo dos Machado, do Quilombo da Família Flores, do Quilombo da Família Lemos, do Quilombo do Areal, do Quilombo da Família de Ouro e do Quilombo da MOCAMBO.
XI N S OL
Aos movimentos sociais quilombolas, que nos auxiliam nas aproximações e nas mediações com as comunidades, com especial destaque para a Frente Quilombola RS, para Onir Araújo e para Patrícia Gonçalves e para o Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo (IACOREQ-RS), com destaque para Ubirajara Toledo, Maria do Carmo Moreira Aguilar e José Itarajara Duarte Ferreira e ao Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnia (Instituto AKANNI), com destaque para Reginete Bispo. Aos pesquisadores, aos bolsistas e aos colaboradores do projeto: Ariel Rocha Lima, Diego Mittmann Kaiser Barboza, Gabriel Muniz de Souza Queiroz, Giulia Assunção Sichelero, Hiago Godoi Barth, Laisa Zatti Ramirez Duque, Laura Isabel Flores dos Santos, Mariana Nicolini Acosta, Marília Guimarães Rathmann, Matheus Eilers Penha, William de Oliveira Silva da Silva, Winnie Ludmila Mathias Dobal, Flora Chiarelli, Leonardo Fachel, Luciano Ferreira, Luisa Bassanesi, Marina Leonhardt Vargas, Marina Orlandi Goulart, Mateus Viegas, Meriene de Moraes, Natasha Moura, Raí Netto, Ravi Zanolla e Taís de Freitas Munhoz.
AGRADECIMENTOS
XII Agradecimentos N S OL Aos alunos da disciplina Organização e Gestão Territorial, que participaram dos mapeamentos da comunidade do Quilombo dos Alpes: Adriana Angnes da Silva, Caroline Guedes da Silva, Cecilia Bálsamo Etchelar, Daniel Machado Torresini, Daniele Machado Vieira, Dimitri Simundi Dobrachinsky, Flávia Dias de Souza Moraes, Luana de Lima e Silva, Lucas Diehl de Sant’anna, Ludmila Losada da Fonseca, Marcel Silveira Barbosa, Marcia Garcia Ferreira, Melina de Lima Müller, Pedro Toscan Pittelkow Contassot, Rosa Oliveira dos Santos, Thiago Missagia Knaack, Thomas Nery da Silva Teixeira, Carla Lisiane Webber, César Berzagui, Douglas Cassiano Brazeiro do Nascimento, Felipe Charczuk Viana, Felipe Daniel Dal Piva, Gregorio Franco Soares, Hanni Kettermann da Silveira, Janara Pontes Pereira, José Cristian Sobolevski, Juliana Carvalho Cardoso, Jurley Colares Ribeiro, Lucas Gottlieb Verginio, Luiza Helena Zogbi Lontra, Mauro Bestetti Otto, Mônica Tatiana Colombo, Tauã Israel de Lucena Rasia, Tomaz Netto Pereira, Rodrigo dos Reis, Elisa Caminha da Silveira Delfino, Felipe Daniel Dal Piva, Igor Dalla Vecchia, José Celso Griebler Júnior, Luana Tavares de Souza, Lucas Angellos, Maicon Fiegenbaum, Orley Barreto Medeiros, Pedro Teixeira Valente, Roberta Corseuil Duran, Robson Jordani Gama Peres e Sabrina da Silva Endres; e do Quilombo dos Machados: Alexandre Edson Perin Wentz, André Vicente Liz, Bruna Bianchi Cagliari, Bruna Zanatta Moraes, Bruno dos Santos Hofman, Cátia Cilene Pereira Froehlich, Claudio Evandro Bublitz, Daniela Santos da Rocha, Frederico Alférgi de Brito Schuh, Gabriel Augusto Breda, Ingrid da Silva Ronconi, Leonardo Cardoso Gomes, Lidia Aumond Kuhn, Lucas Dall’agnol Pedrassani, Norton Buscher, Pablo Ricardo Prandini, Péterson Oliveira Silveira, Raí Goulart Netto, Rosane Nunes dos Santos, Winnie Ludmila Mathias Dobal, Ana Rita Oliveira Hahn, Andres Felipe Vigoya Sarmiento, Ariel Rocha de Lima, Bruno dos Santos Hofman, Carlos Alberto Marcelino Andrade, Gabriel Zimmermann Vargas, Gerson Brezola da Silva, Janaina Isolde de Campos Noronha, Laisa Zatti Ramirez Duque, Leonardo Oliveira Sassi, Lucas Flores Luz, Marina Vargas Leonhardt, Paulo Roberto Antunes Manzzoni, Rita Coronel da Rosa Ribeiro, Sandra Milena Forero Castro, Carina Richardt de Carvalho, Cleo Cunha Antonio, Diego Mittmann Kaiser Barboza, Felipe Antônio Gräf, José Jorge Cavalcante Lopes, Lorenzo Seganfredo Albornoz, Luísa Amato Caye, Luisa de Antoni Bassanesi, Luisa Koetz Spolavori, Manoela Barboza Rodrigues, Mariana Fontana Santana Nunes, Mariana Nicolini Acosta, Miguel Angel Franco Hernandez, Pedro Amaral Reis, Pedro Massochin Medeiros, Richard dos Santos Afonso. Contribuições ao trabalho de campo: André Vicente Liz, Débora Bartz, Nicole Ferreira e Ramon Coelho.
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ao Curso de Geografia e ao Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA/UFRGS), ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB/UFRGS) e ao Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS/UFRGS) e às Pró-reitoras de Pesquisa e de
Às autoras, aos autores e autorxs que contribuíram com suas reflexões acerca das epistemologias quilombolas.
Ao Onir Araújo, a Joseli Maria da Silva, ao Nelson Rego e ao Mestre Pernambuco, pelas revisões. Aos parceiros de pesquisa, que acompanharam o início deste projeto, em 2017: Álvaro Luiz Heidrich, Antônia Evangelista, Bruno Xavier Silveira, Clarice Moraes, Itarajara Ferreira, Larissa Oyarzabal, Taís Medeiros, Talita Fernandes e Theo Lima e aos que foram chegando na caminhada, para os apoios técnico e pedagógico: Carla Beatriz Meinerz, Carlos Aigner e Duan Porto Barcelos.
XIII Agradecimentos N S OL Extensão, por apoiar o desenvolvimento desse projeto, por meio de bolsas de Iniciação Científica e de Extensão e por meio de fomento para a editoração e impressão dessa obra.
Por fim, às nossas famílias e aos nossos amigos, que nos acompanham, ao longo desta jornada. A tod@s, todes e todxs, nossa GRATIDÃO!
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e à Fundação Estadual de Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), pela concessão de fomento ao projeto e a sua publicação.
Ao Departamento Municipal de Transportes em Porto Alegre (Metroplan), aos técnicos Mara Rejane Rivatto, Tiago Rutsatz Salomoni e Michele Carvalho Nunes da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (SMAMUS) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e ao Departamento Autônomo de Estradas e Rodagens – RS (DAER), pela cedência de aerofotografias. Aos colegas do Departamento de Geodésia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, à professora Flávia Farina, por auxiliar no acesso às ortoimagens, disponíveis no Geoportal Infraestrutura Estadual de Dados Espaciais (IEDE-RS), aos técnicos administrativos, o geógrafo Éder Luís da Silva Rodrigues e o geólogo Robson dos Santos Aquino, por dispor e operar o drone, para a obtenção da ortoimagem do Quilombo da Família Lemos. Ao coletivo O.B.R.A., que cedeu as imagens de drone do Quilombo dos Alpes. Ao Tiago Fischer, que cedeu as imagens de drone do Quilombo dos Machados. A Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG) do Estado do Rio Grande do Sul que disponibilizou dados atuais sobre quilombos.
A Dayane dos Santos, o Douglas Oliveira (Alass Derivas), a Elisa Delfino, a Luiza Dornelles, a Giovanna Jung, a Rita Coronel da Rosa e a Tânia Meinerz, por cederem os direitos de uso de imagem das fotografias de suas autorias.
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de muitos nomes; Silva,Alpes,Fidelix Lemos Areal, Mocambo Flores, Machado PalmaresOuro&de
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Duan Kissonde
N S OL QUILOMBÓTICA VIII
tecendo teia dessa ocasmalocascumbequilombo-convexaarquiteturadecomplexas–feitobanzode pedra. areal de comoindígenabrotaq/nuancemilongasbatuqueirosdedjélissub-reptícianaterraancestralumaflor-frutífera chocandonovoo ovo de outras novasliberdades.
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E JUSTIÇA: QUEM FAZ O NelsonCONHECIMENTO?Rego
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XVIIXVII
CONHECIMENTO
quem transitar pelas ruas de Porto Alegre, incluindo no trajeto os bairros que não costumam constar nos cartões postais, verá que a população da cidade é em grande parte composta por pessoas negras, porém, se caminhar nos campus das universidades porto-alegrenses, verificará que a porcentagem de juventude negra entre os estudantes é acentuadamente menor do que em comparação ao conjunto urbano, e descerá próxima ao zero se observar não os estudantes, mas os professores e diretores. O funil se repete em todas as cidades brasileiras que abrigam instituições de ensino superior, mesmo nas regiões de população majoritariamente negra – e, diga-se, o porcentual dessa população não é pequeno mesmo na Região Sul, que leva a imagem de ser branca muito mais por afastar o negro de seus cartões postais e congêneres do que por, de fato, ser assim branca como os clichês querem fazer acreditar. O funil que assola os afrodescendentes castiga também os indígenas e descentes de indígenas em vastas porções do território brasileiro.
Qual conhecimento crítico acerca desse funil pôde ser historicamente produzido se, até hoje, os maiores interessados em romper com a desigualdade são mantidos à margem das instâncias produtoras de conhecimento? Conhecimentos foram produzidos, sim, mas apenas pelas bordas: ou por alguns brancos que se construíram efetivamente solidários, ou por raros negros que, lutando contra todos os obstáculos, ascenderam às tais instâncias, ou produzidos fora da academia e, neste caso, conhecimentos que permaneceram ignorados pelo olhar que pretende ditar o que deve ser visível. A “invisibilidade” dos sem-privilégios é condição necessária para a reprodução da desigualdade.
Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS não é apenas uma obra sobre quilombolas: é uma obra com autorias textuais e cartográficas também quilombolas. Aí se encontra o cerne a partir do qual identifico diferentes áreas de encontros e trocas presentes no Atlas. É melhor, antes, mencionar o cenário ao fundo.Estecenário:
Instituto de Geociências – UFRGS
Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS demonstra que saber produzido na academia e saber popular estão a estabelecer conversações, trocas. Ganham ambos. Transformam-se. O saber popular avança ao conquistar conceitos que antes lhe faziam falta para melhor lutar e, portanto, para melhor viver. O saber produzido na academia cresce no conhecimento do empírico, em aquisição de experiência vivida e em finalidade, a finalidade é um poderoso guia para levar a teorização fútil ao estatuto de teorização práxica. Esse caminho de mão dupla – do popular em direção ao acadêmico, do acadêmico em direção ao
XVIII
Conhecimento e justiça: quem faz o conhecimento?
Indicado o cenário, retorno ao Atlas de escritas e cartografias realizadas também por autoras negras e autores negros que se empenham, com suas práticas, em quebrar a “invisibilidade” produzida à vista de todos através de muito tempo. Essa visibilidade não lhes foi “doada” pelo Atlas. É por que lutam sistematicamente por educação, trabalho, território, moradia, cidade, cidadania que autoras e autores aqui presentes forçam a “invisibilidade” forjada a ir se rendendo aos avanços e multiplicação dos protagonismos – por isso, estão reunidos neste Atlas de lutas e de encontros multiétnicos.
Uma primeira área de encontros e trocas é justamente essa constituída por lugares de fala e lugares de escuta. Autoras e autores negros, entre os quais, quilombolas, exercem seus lugares de fala nesta obra publicada e chancelada pela academia. Há, pois, afirmação de lugar de fala que, ao invés de limitado à condição de objeto de análise feita por outros, vem falar de si por meio de sua própria voz. Qual a dimensão dessa ruptura afirmativa? O tempo trará a resposta, dirá em que medida a atitude rara veiculada pela obra de agora se tornará mais frequente na produção acadêmica de conhecimentos e sobre os efeitos sociais desse conhecimento. A superação da desigualdade é indissociável do fortalecimento do lugar de fala dos que foram empurrados para o silêncio, esse fortalecimento é condição necessária para a mudança. Mas o que será do lugar de fala se não houver escuta atenta pelo outro, escuta que responde e se constitui em nova fala? O que será dos caminhos que o lugar de fala tenta abrir se não houver a resposta do diálogo? Autoras e autores negros, brancos, multiétnicos estão em diálogo nestes textos e mapas e isso conduz a leitura a outra área de trocas.
Essa outra área é a dos encontros entre os saberes da academia e os saberes populares. Como conceituar saberes? Aqui, novamente é preciso duvidar dos clichês que reduzem os saberes populares a crenças e superstições. Se os saberes incluem a capacidade de dar sentido – e rumo – ao emaranhado da acelerada multiplicação de estímulos informativos e contraditórios que dominam o cotidiano, então, é condição necessária para superar o funil perverso do contexto histórico-social elaborar perguntas e respostas: saber o quê, saber o porquê, saber como, saber para quê, saber para quem.
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também se encontram. Do passado, vêm tanto a diáspora e a desigualdade, a serem superadas, quanto a história e a cultura, a serem resgatadas, valorizadas. O presente costura a superação com o resgate. Para a ação do presente, são necessários encontros entre lugares de fala e lugares de escuta, saberes da academia e saberes de resiliência do povo negro. Há outro encontro especial. O encontro de tudo na geografia. Das intenções até as coisas e, na seta inversa, da disposição material do mundo aos condicionamentos das mentes – nas intenções aprisionadas a condicionamentos, nas intenções que rompem aprisionamentos, estão juntos no espaço geográfico: o minério extraído da natureza perfurada em minas, o café colhido na natureza mudada em plantação, as fábricas, as sacas e os portos, os donos de tudo, o exército e a polícia, o clero e a promessa de outro mundo para as almas, almas a criar canções sobre si, natureza, campo e cidade, os casebres onde habitam (ex) escravizados que põem fábricas, lavouras e construção civil em movimento e agora afirmam seu um pedaço de terra ainda com árvores à beira da cordilheira dos edifícios, para ali, na terra, conservarem a existência quilombola, para, a partir dali, transformarem a vida quilombola. Isso tudo está junto na geografia-espaço. E vai sendo ligado em conceitos e números pela geografia-conhecimento do espaço construído. A geografia-conhecimento é imprescindível para construir justiça no espaço geográfico. Há muitos outros encontros. Boa leitura.
Conhecimento e justiça: quem faz o conhecimento? S OL vivido e vívido – pode ser lido nas páginas deste Atlas que não é obra terminada, é obra em Passadoprocesso.epresente
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Instituto de Física – UFRGS
Alan Alves Brito
XX N S OL
Tecnologia social respaldada em fundamentos teóricos, metodológicos e ontoepistemológicos, o Atlas desestabiliza o racismo epistêmico que opera nas lógicas e nos processos de educação e de acesso à educação (em ciências) no Brasil. É uma síntese contundente e mágica da vitalidade, responsabilidade e princípios que orí-entam os projetos NEAB Brasil afora. Um registro intelectual e sensível da luta quilombola em Porto Alegre, capital de um dos Estados brasileiros mais complexos do ponto de vista dos seus processos históricos e sócio-antropológicos no que concerne a politicidade dos lugares de pertença racial.OAtlas, ressignificado em sua semântica, é um tratado de cosmopolítica plasmado pela oralidade e, tal qual as tramas cósmicas, tece peles de papel que trazem inquietações e indagações; observa cuidadosamente o entorno e, dele, formula e propõe perguntas inovadoras; envolve-se o tempo inteiro com a investigação, numa outra lógica sujeito-objeto-sujeito; descreve, incluindo forma, tamanho, número, rostos, vidas; compara, classifica e ordena, sensivelmente; registra as observações por meio das palavras, das imagens, dos sons, ditos e não ditos, tabelas e gráficos; usa variadas ferramentas para entender o que se observa a partir de múltiplos olhares e perspectivas, pelas lentes das cosmopercepções; identifica padrões e relacionamentos nas teias quebrantadas do discurso fajuto da democracia racial; desenvolve explicações, especulações e ideias provisórias, que seguem a dinâmica da vida e das lutas e disputas contínuas; trabalha colaborativamente para enfrentar sistemas caóticos e complexos que tentam, o tempo inteiro, desmantelar identidades forjadas na resistência; discute e compartilha afetos e, mais importante, dá vez e voz, numa escuta ativa, sensível e revolucionária, em que a fusão de mundos (in)visíveis se faz presente.
TERRITORIALIDADES
CÓSMICAS: TECENDO HISTÓRIAS NEGRAS
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O Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, trabalho coletivo coordenado pela geógrafa, professora e pesquisadora Cláudia Luísa Zeferino Pires, integrante do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos (NEAB) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é uma tecnologia social necessária nestes tempos tenebrosos de acirramento da necropolítica.
O Atlas traz a voz da ancestralidade e da memória de um Porto-que-se-quermais-Alegre, reconhecendo-se negro, em matrizes afrodiaspóricas. É preciso avançar. Perceber. Sentir. Comunicar. Sonhar junto. Aquilombar-se nessas narrativas, nessas histórias de lutas e r(existências), para dar-nos conta que se a realidade não dá origem ao imaginário, é o imaginário que dá sentido ao mundo.
XXI N S OL O Atlas, trata-se, portanto, de trabalho científico primoroso, cujos principais cientistas e pensadores são as mestras e os mestres dos saberes-fazeres, que dialogam o tempo inteiro com o ensino e a extensão, num tripé (três pontos), que entre geografias e cartografias definem um plano territorial, a própria geometria dos Universos possíveis. Nele, o local (Porto Alegre) é universal, e as periferias são de fato o centro, na lógica quilombista de coabitar o mundo, sagrado e profano, partilhando espaços e ideias com as plantas, com as folhas, com as pedras, com os outros animais e os fenômenos todos, tangíveis e sensíveis, com suas potências e deslocamentos, com a sua poesia negra própria.
cósmicas: tecendo histórias negras
Espero que estas narrativas solidifiquem as texturas das experiências e a instituição de um outro sistema-mundo, mais feliz, menos desigual e mais socialmente justo, em que a ética do eu sou, porque nós somos nos inspire e nos esperance. Tal como Ananse, o Atlas é um contador de histórias, plasmando e potencializando outras realidades emancipatórias para o Brasil do século XXI. São estas encruzilhadas que nos levarão longe. Laroyè! Há-braços quilombistas.Territorialidades
A história, sabemos, é contada pelos vencedores! E estes, pelos arbítrios, pelas violências, pelas injustiças e pela desumanização que promovem nas suas conquistas, negam, ao povo, a verdadeira História. Cabe a todos nós, que temos consciência da nossa escravização, a responsabilidade da conquista da nossa alforria. Para conquistá-la, temos que fazer uma revisão criteriosa, no sentido de promover a descolonização das inverdades impostas pela academia nos livros didáticos!
Os desafios que a vida nos apresenta, filho, são para serem suplantados!” Ensinamento das matrizes indígenas da minha mãe Madeira de lei não dobra; quebra!“ Ensinamentos das matrizes afro-centradas do meu pai Então, é bem assim. Por isto, lá vamos nós! Fui instigado a fazer uma fala quilombista sobre um trabalho acadêmico, rico, desafiante, afoito, que desvela, de forma inquestionável, as entranhas de uma sociedade inconclusa, desumana, falida! Sociedade que nega aos seus filhos sua própria História. Sociedade, cuja base estruturante dos seus pilares foi construída nas chacinas coletivas de nações indígenas e africanas. Violências que se perpetuam na nossa contemporaneidade! Sociedade que se nega a evoluir, mantendo-se arraigada, presa a valores sociais, éticos, morais, culturais seiscentistas! Mudou-se a metodologia da escravização, mas essa permanece incólume! Negros, indígenas, sociedades periféricas; somos, sim, escravizados pelo sistema deles, dos racistas predadores, dos machistas, dos fascistas, dos corruptos! As senzalas, hoje, aos milhares, aos milhões, estão tipificadas nos morros, nas palafitas, nas CoHabs, nas ruas, embaixo dos viadutos e das marquises dos grandes magazines! O açoite a fustigar sobre a vida dos eternos criminalizados negros e oprimidos em geral está caracterizado no salário de fome, um dos responsáveis pelos gargalos sociais, que afligem nosso cotidiano.
Babalolá Dumissai
A vivência nos ensinou: “Povo que não sabe da sua própria história, é povo escravizado!” Daí, nossa pequenez, como nação, diante das potências do primeiro mundo. Somos uma nação subalternizada, de coluna vertebral
XXII N S OL O NOVO, POR NECESSÁRIO E IMPRESCINDÍVEL, IMPÕE-SE!
Sigamos!Sankofa= Voltar ao passado! Entender o Presente! Projetar o futuro! Há cinco mil anos, em África, as civilizações tinham esse entendimento: conhecer o ontem, para entender o hoje e, assim, projetar o amanhã! Ensinamentos que as eméritas professoras Cláudia Luiza Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt buscaram seguir a rigor e produziram uma obra de altíssima qualidade científica e mais, bem mais: uma obra humana e humanizante.
A nossa “santa indignação”, até aqui exposta, tem, como objetivo único, dar ênfase, dimensionar a amplitude e a magnitude do trabalho realizado com rigor científico, por conseguinte, sedimentado na real história do Brasil, produzido pelas mentes lúcidas das professoras Cláudia Luiza Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt. Lê-lo foi um bálsamo! Um alento revigorador das vozes e das energias interiores, já cansadas e violentadas pelo silêncio criminoso das universidades brasileiras, com temas de altíssima relevância, para saber quem somos, por que somos e o que seremos, como nação!
XXIII O novo, por necessário e imprescindível, impõe-se! N S OL dobrada! Consequência dessa narrativa histórica propositadamente obscura, inverídica, responsável pela manutenção dos poderes constituídos, (todos), através das imoralidades éticas, promovidas pelas mãos das castas que dominam, secularmente, os espaços de poder e de mando no Brasil!
Lembro o Magnífico Reitor (esse, sim, Magnífico) Darcy Ribeiro, que denunciou, com pertinência, o descaso de grande parcela dos eruditos, dos meritocratizados brasileiros, com relação aos valores materiais, imateriais e simbólicos do Brasil: “A universidade brasileira está de costas para o povo, de costa para o Brasil!” (Darcy Ribeiro). Verdade inconteste! A fala do emérito antropólogo e professor Darcy Ribeiro é um libelo, claro, de espanto e de indignação ao descaso e ao desrespeito da academia brasileira no trato dos valores, que dão sustentação às raízes fundantes da nossa brasilidade!
A obra Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, na sua essência, humaniza a Geopolítica! Explicita, de forma inequívoca, os valores nobres dos seres humanos aquilombados no trato das suas relações sociais, das suas formas de vivenciar seus sagrados, seus jeitos próprios e seu respeito para com a natureza que os cerca. Suas ligações com suas ancestralidades, seu cuidado, seu zelo e seu carinho com que tratam e seu cuidado com os griôs, seus mais velhos, e, o mais importante: emana, dessa obra, o sentimento de uma territorialidade não ligada à cartografia oficial, burocrática, cartorial, e, sim, o espaço geográfico, como uma extensão do próprio ser humano aquilombado. O Quilombo, o território, é o ser humano! Os seres humanos, aquilombados, são o território; são o Quilombo! Não há dicotomia entre o espaço geográfico, a territorialidade e os seres humanos aquilombados! A simbiose entre os humanos e a territorialidade
O sentimento e a ênfase dados aos valores do coletivo nos quilombos propiciam uma vivência harmoniosa, tendo, como pilares, as filosofias política, social e cultural quilombista, lincada, presa aos quilombos seiscentistas, que pautavam sua visão de sociedade no bem comum, no comunalismo, no comunal, no sentido de que tudo pertence a todos. Não bastasse a humanização da ciência geopolítica, as eméritas professoras Cláudia Luiza Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt ampliam, de forma radicalizada, a importância das suas exposições, quando fazem o enlace entre a geopolítica quilombista e o percurso do nosso fazer. Colocarei aqui, em caixa alta, PERCURSO DO NOSSO FAZER, pois vêm daí nosso alento e nossa esperança na mudança desse mundo desumanizado para um mundo, a que possamos nominar mundo humanizado! Essa complementariedade ao título do capítulo um vislumbra algo exponencial a ser conquistado. Há, sim, agora, uma luz, ao final do túnel!
XXIV
O novo, por necessário e imprescindível, impõe-se! N S OL é explícita; visível para quem quiser ver! Ou, melhor, para quem está em sintonia com o amanhã, com as mudanças, que, inexoravelmente, virão!
Desponta dessa obra a possibilidade real de podermos construir uma nação soberana, pujante, tendo, como suporte para essa demanda imprescindível, centenária e urgentíssima, a simbiose entre a excelência dos conhecimentos acadêmicos brasileiros e universais e os acúmulos das experiências empíricas, vivenciadas, não, só, pelos negros e pelas negras quilombolas, mas por todos os extratos sociais, hoje, excluídos e postos à margem da sociedade. Para que essa utopia viável venha a acontecer, há que se horizontalizar os saberes acadêmicos e os saberes empíricos! Ocorrendo, assim, o proposto na obra Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS. Então, e só assim, acontecerá o rompimento da crosta centenária do obscurantismo seiscentista. Os valores e os conhecimentos originados nas excelências das ciências universais, adequados e em consonância com as raízes da nossa brasilidade, em harmonia e em respeito com as experiências empíricas, induzirão ao surgimento de um novo patamar civilizatório, de uma nova correlação de forças entre o acadêmico e o empírico, assim como entre o capital e o trabalho. Resta-me parabenizar as professoras Cláudia Luiza Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt pela lembrança do nosso nome, para a tão dignificante tarefa de apresentar esta obra, e agradecer, penhoradamente, pelos momentos gratificantes da sua leitura, ao tempo em que renovo minha esperança no surgimento de uma sociedade, em que os valores das diversas matrizes dos conhecimentos estejam em sintonia fina e horizontalizadas e em que, como seres humanos reflexivos, sejamos todos respeitados na nossa integralidade de humanos e valorizados pelo que somos e, não, pelo que temos! Esperança que almejo e sonho a se concretizar. Abraço quilombista fraterno!
Ao Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS) da PróReitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como instância pública, que nasceu para realizar e para promover ações de interlocução entre a sociedade e a universidade, só nos resta agradecer ao Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA) pela iniciativa.
O Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS tornou palpável um dos mais caros pilares da defesa da universidade pública brasileira: a extensão universitária, como promotora do diálogo respeitoso com as comunidades. Como resultado, há a troca de conhecimentos e de saberes, que oxigenam o ensino e a pesquisa, plasmada em obra, que pereniza demandas e conquistas que são de todos(as) nós.
XXV N S OL
É com muita honra e com muita alegria que apresentamos o Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS, livro que já nasce como um marco neste gênero de publicação.Porumlado, em virtude das dimensões grandiosa e inédita de organizar uma coleção com 21 artigos, dez trabalhos técnicos, cinco entrevistas e um manifesto. Por outro, ao incorporar reflexões e práticas, oriundas dos mais diversos âmbitos da construção de conhecimentos, desde os militantes, os intelectuais, os técnicos e as lideranças das comunidades remanescentes de quilombos da capital do Rio Grande do Sul.
O Atlas se consolida como trabalho de grande magnitude política, pois traz à público reivindicações e marcos histórico-territoriais de nove comunidades quilombolas. Ao dar nomes e sobrenomes a pessoas e a coletivos, então desconhecidos da maioria dos porto-alegrenses, esta obra se torna uma referência incontornável para as futuras pesquisas sobre a cidade.
APRESENTAÇÃO DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO SOCIAL/ PROREXT/UFRGS
XXVXXV
José Antônio dos Santos Pró-Reitoria de Extensão – UFRGS
Muito obrigado!
Cláudia Luísa Zeferino Pires
Logo, a apropriação espacial está pautada em processos de conscientização e de emancipações política e social, pois o território em construção se estabelece pelo conflito entre diferentes interesses e pela produção da cidade em seus múltiplos usos, de modo que as práticas do sistema colonizador foram sempre acompanhadas pelas dominações simbólica e espacial. No espaço da cidade de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a colonização é acompanhada pela ideologia racial, presente no processo de formação socioespacial brasileira, que justificou a subordinação, a exploração, a exclusão e o extermínio da população negra, colocada às margens dos processos de desenvolvimento econômico, social e espacial brasileiros.
Lara Machado Bitencourt Organizadoras
Longe de ser homogênea, na cidade, temos a presença quilombola, sustentando suas terras e seus territórios, que se constituem pela resistência.
Enquanto acadêmicas, ocupamos nosso lugar de privilégio, a partir do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA/UFRGS), para aprender a ler o espaço geográfico, desvendando as máscaras sociais, que o envolvem e que o aprisionam. Nesse movimento, criamos redes de solidariedade e de produção de conhecimento, que se desenvolvem, a partir do mundo vivido e da sabedoria popular, e que, por sua vez, tecem outros mundos possíveis, que emergem das disputas, que, cotidianamente, se impõem às dinâmicas do espaço geográfico.
Desse processo, inúmeros conflitos emergem do embate entre a hegemonia do sistema da propriedade privada, por parte dos que detém maior poder econômico, e os modos de fazer das comunidades quilombolas. Colocando em xeque a possibilidade de se vincular à terra e ao território, através do processo de regularização fundiária no espaço urbano.
Essas resistências compreendem os movimentos no espaço, criados pelas conexões afetivas, familiares, territoriais, religiosas, e muitas outras práticas, que dão suporte à vivência dos territórios quilombolas.
XXVI N S OL VOU APRENDER A LER, PARA ENSINAR MEUS CAMARADAS XXXXVIVI
É nesse contexto que, a partir de 2011, iniciam os trabalhos com os quilombos urbanos em Porto Alegre (RS). Em 2013, o trabalho com as comunidades quilombolas se consolidou, com o convite da comunidade do Quilombo dos Alpes, para a realização do mapeamento participativo do seu território quilombola, e, posteriormente, com o desenvolvimento de projetos de educação geográfica em parceria técnica com o projeto habitacional. A partir dessa aproximação com os territórios quilombolas e com as suas demandas, o NEGA também se torna parceiro e apoiador de ações importantes, relacionadas ao Movimento
O NEGA E OS QUILOMBOS URBANOS
N S OL XXVII Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas
O Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente (NEGA), do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), foi criado em 2003, com o objetivo de tratar as questões ambientais na sua relação com a pesquisa, com o ensino e com a extensão. Seu trabalho está pautado numa perspectiva dialógica de trabalho coletivo, com diferentes grupos sociais e espaços, que historicamente estão submetidos à exclusão e à opressão sociais. O grupo se expressa em diversas e diferentes ações e projetos, voltados à educação e ao planejamento do espaço geográfico, com ênfase nas questões ambientais e territoriais, sobretudo, aquelas ligadas às injustiças sociais, a que diferentes grupos estão submetidos. Essas são as questões que permeiam os debates, dentro do Núcleo, e elas conduzem nossas práticas, vinculadas às pesquisas na dimensão ambiental, na educação, na Geografia e na Cartografia Social, enquanto metodologia de luta no e pelo espaço.
Com experiências, relacionadas a práticas de gestão e ao uso dos recursos hídricos na Reserva Extrativista Chico Mendes (AC) e no Parque Nacional da Tijuca (RJ), com participação nas discussões sobre a regularização fundiária e com o mapeamento participativo na Amazônia (FLONA de Tefé), aos atingidos por barragens no Rio Grande do Sul, às comunidades ribeirinhas no Delta do Jacuí e a projetos desenvolvidos na Região Metropolitana de Porto Alegre, com destaque para estudos nos bairros Restinga, Rubem Berta, Sarandi, entre outros, incluindo experiências com educação geográfica e antirracista, o trabalho do núcleo tem, por objetivo, instrumentalizar as comunidades estudadas, a fim de promover a popularização da ciência e o acesso à justiça social.
A cartografia social, de caráter participativo e que se desenvolve, através da escuta e do registro das narrativas dos interlocutores sobre o seu lugar, tem, por objetivo, promover o reconhecimento e a demarcação dos territórios presentes e em disputa na multifacetada paisagem geográfica. Os protagonistas dos mapeamentos são as comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhas, periféricas da cidade e do campo, que procuram e que demandam do NEGA uma parceria na luta popular.
1 PARDO, Fernando López. Un nombre fenicio para Atlas. Gerión – Revista de Historia Antigua, Madrid, v. extra, p. 133-141, 2007.
ATLAS DA PRESENÇA QUILOMBOLA EM PORTO ALEGRE
Entretanto, atlas também aparece na Cordilheira do Atlas, localizada ao norte do continente africano, e é nessa perspectiva que retomamos seu significado nesta obra. Segundo Pardo (2007)1 , a toponímia grega atlas pode estar associada a contextos dos povos fenícios e imazighen do Norte da África. Os povos denominados Imazighen (homens livres), também denominados, pela visão colonizadora, de Berberes (bárbaros), que vivem na Cordilheira do Atlas, designam atlas como adrar ou “montanha”. Sempre resistiram aos sistemas colonizadores, fundamentando sua resistência, principalmente, no mundo árabe, através do território e da organização social igualitárias e da valorização dos valores ancestrais. Para os fenícios, atlas deriva de addirim e seus significados relacionam-se com “poderoso, forte, magnífico, principal”. (PARDO, 2007)
Social Frente Quilombola do RS, ao Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombos – RS (IACOREQ-RS) ao Instituto de Pesquisa e Assessoria em Direitos Humanos, Gênero, Raça e Etnia (Instituto AKANNI). É a partir dessa inserção e do diálogo, construído com as comunidades e com o movimento social quilombola, que o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS se apresenta, como resultado desse acúmulo de experiências do grupo de trabalho, com atuação junto aos territórios quilombolas, composto por acadêmicos dos cursos de graduação e de pós-graduação em Geografia.
Por que atlas? Usualmente, a referência que se tem para a palavra atlas vem da mitologia grega, com a representação de Atlante, o titã que sustenta o mundo sobre os ombros. Em nosso mundo ocidental, esta representação se consolidou no imaginário sobre a representação do Atlante, porém imersa nos processos de colonização, em que os ombros sustentam um excesso de obrigações e de tarefas. Desta forma, também representa a coleção de mapas, devido aos seus conhecimentos de cartografia e dos caminhos das terras distantes.
Estamos reapropriando o sentido da etimologia da palavra atlas pelos povos do norte do continente africano para significar o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS, pois seus significados enfatizam força e grandeza magníficas. Portanto, o que podemos dizer sobre os quilombos de Porto Alegre, senão enaltecer suas forças, suas grandezas perante suas resistências, suas restaurações da liberdade coletiva? Além disso, temos o feminino, como força da mulher, que sustenta os territórios em seus ombros e que engendra as lutas com a cidade por seus filhos e por sua comunidade, edificando a política, a economia e as relações sociais dos territórios.
XXVIII N S OL Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas
Nestes territórios de memórias, encontramos experiências e narrativas de cosmogonias, que contribuem para a construção de outro olhar sobre a cidade Fonte: Acervo de Rita Coronel da Rosa (2018)
Não vamos encontrar muitos textos e conceitos com discussões ampliadas sobre este tema, porém encontramos na oralidade destes povos a ideia sobre a qual esta publicação se sustenta. Nosso objetivo, ao construir este material, é de propor uma Geografia quilombola, compartilhada pelas encruzilhadas teórico-metodológicas, junto a quem produz a cidade, observando que corpos são esses, que a ocupam, e aprendendo as múltiplas formas, pelas quais eles a produzem e a sustentam.
N S OL XXIX Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas
As narrativas sobre os territórios, e o ato de dizê-lo, bem como sobre as diferentes formas de resistência, são próprias das comunidades. Respeitamos seus “lugares de falas” e seus protagonismos, para narrar seus quilombos, seus territórios e, assim, problematizar suas existências, através do “lugar de escuta”, que ocupamos, ou seja, como a/os pesquisadoras/es-extensionistas do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) apoia os movimentos quilombolas da cidade. Sem realizar essa leitura apenas pela ótica dos sujeitos, que compõem a Universidade, essa relação se sustenta por uma Geografia da ação, portanto, compreende a práxis dialógica com os territórios quilombolas e as suas interfaces com os movimentos sociais.
O material está dividido em dois volumes, com conteúdos diferentes, porém integrados. No primeiro volume do Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS,
XXX N S OL Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas e de um projeto de sociedade menos universalista, entremeado pela dialógica de saberes no combate ao racismo. Como diz nosso geógrafo Milton Santos no documentário Encontro com Milton Santos: O mundo global visto do lado de cá (2006)2 , “[...] o papel ativo do território pode impor ao mundo uma revanche”. Eis o que esperamos que este material proporcione.
São inúmeras as disputas narrativas, a que estão sujeitadas as disputas territoriais cotidianas nos quilombos e em muitas outras comunidades, assim como o é a própria metodologia de cartografar no campo da Geografia e de outras ciências, que utilizam o mapa para representar o mundo. As leituras dos territórios invisibilizados de Porto Alegre não estão confinadas ao ponto de vista das comunidades quilombolas, que, apesar das suas particularidades, possuem questões em comum com as demais comunidades periféricas da cidade. Logo, faz-se indispensável a ampliação das cartografias quilombolas para as demais comunidades e, também, para a cidade, enquanto um todo integrado, ao qual se justapõem as territorialidades quilombolas. Do mesmo modo, faz-se indispensável a ampliação das metodologias em cartografia social, ajustando o foco e o fazer cartográficos, de acordo com as necessidades e com a interlocução de cada território. Assim, o Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS é composto por uma coleção de textos, de trabalhos técnicos, de entrevistas e de um manifesto coletivo sobre a presença quilombola em Porto Alegre e sobre a influência das cosmovisões afro-indígenas na formação territorial brasileira. Destacamos o profundo impacto social, causado por esta publicação, no que tange ao reconhecimento e à valorização das geografias quilombolas na transformação do espaço urbano brasileiro e porto-alegrense, reunidas e analisadas para nos provocar, pedagogicamente, acerca das relações da produção de conhecimento e da reprodução desses conteúdos, a partir e para além da Geografia.
2 Encontro com Milton Santos: O mundo global visto do lado de cá, dirigido por Silvio Tendler (2006).
As cartografias contracoloniais, que surgem do processo do mapeamento coparticipativo, representam as narrativas territoriais das atuais nove comunidades quilombolas de Porto Alegre, pois cada qual, com suas particularidades, guarda consigo o registro das permanências e das resistências, que se entrelaçam em um panorama de segregação e de sobrevivência no e ao ambiente urbano, que é fortemente invisibilizado na cidade de Porto Alegre. Trata-se de mais uma das potencialidades de fortalecimento e de afirmação dos territórios quilombolas, através da narrativa e da representação do território quilombola, que é tão disputado, porém tão pouco discutido entre os atores sociais.
QUILOMBOLAS, de modo a articular uma constelação de pesquisadoras e de pesquisadores, que, ao longo de suas trajetórias profissionais e de suas atuações políticas, junto aos movimentos sociais, compartilham conhecimentos acumulados em suas experiências de pesquisa, de ensino e de extensão.Assim,convidamos
N S OL XXXI Vou aprender a ler, para ensinar meus camaradas apresentamos a trajetória de trabalho desenvolvida pelo Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA/UFRGS), junto às nove comunidades quilombolas de Porto Alegre (RS), destacando as CARTOGRAFIAS CONTRACOLONIAIS, construídas com e a partir de cada comunidade quilombola da cidade: Quilombo da Família Silva, Quilombo do Areal, Quilombo dos Alpes, Quilombo da Família Fidélix, Quilombo dos Machado, Quilombo da Família Flores, Quilombo da Família Lemos, Quilombo da Família de Ouro e Quilombo da MOCAMBO. Chegamos ao final dessa obra com o início de mais dois autorreconhecimentos de comunidades quilombolas na cidade Porto Alegre: o Quilombo Santa Luzia, localizado no Jardim Cascata/Bairro Glória, e o Quilombo Kédi, localizado no bairro Três Figueiras que certamente possibilitará a continuidade de novos mapeamentos. No segundo volume desta obra, apresentamos diferentes formas e possibilidades de compreender os quilombos e os seus movimentos, permeando questões teóricas e metodologias, que se inscrevem na resistência, na resiliência e na formação da construção de territórios quilombolas, através das chamadas
toda a comunidade geográfica, acadêmica e, principalmente, quilombola de Porto Alegre e do Brasil a desfrutar dos ensinamentos e das aprendizagens contidos nesta obra. Desejamos, também, que essas páginas fortaleçam as compreensões do projeto político de organização espacial quilombola, visando à efetivação de medidas de reparação histórica e geográfica a todos os povos secularmente segregados, ao longo da formação socioterritorial brasileira.
VivaVivaDandara!Zumbi!
Viva a cultura popular! Pedimos licença e as bênçãos para apresentar esta obra.
EPISTEMOLOGIAS
Volume
Epistemologias2quilombolas
Destacamos as Epistemologias Quilombolas, como os saberes e os fazeres, combinados com os legados, com as heranças históricas, com as corporeidades, com as tradições, com a religiosidade e com as dimensões políticas e sociais, que contornaram e que contornam processos de dominação nas dobras da sociedade racista, criando caminhos para resistir às opressões. Os caminhos originários da resistência, dos lugares de luta e da restauração da liberdade desafiaram e desafiam o pensamento ocidental e instauram práticas de (re) existências individual e coletiva quilombolas, subvertendo a ordem manifestada pelo domínio colonial.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado. Epistemologias quilombolas. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 392-393 392392
A segunda parte do Atlas da Presença Quilombola em Porto Alegre/RS apresenta diferentes formas e possibilidades de compreender os quilombos e os seus movimentos, permeando questões teóricas e metodologias, que se inscrevem na resistência, na resiliência e na formação, principalmente, de territórios quilombolas. Compreende a participação de pesquisadoras e da pesquisadores, que, ao longo de suas trajetórias profissionais e de suas atuações políticas, juntos aos movimentos sociais, compartilham conhecimentos acumulados em experiências de pesquisa, de ensino e de extensão.
QUILOMBOLASEPISTEMOLOGIASCOMOCITAR:
Assim, reunimos em quatro capítulos, que discorrem sobre as múltiplas faces das epistemologias quilombolas, vinte artigos, escritos por geógrafas/ os, por historiadores, por sociólogos, por professoras/es, por dançarinas/os, por capoeiristas, por quilombistas e por quilombolas, que nos falam sobre os modos de ser e de fazer quilombola. Deste modo, o capítulo 3 traz textos sobre a Formação sócio-espacial de um país quilombola, através das contribuições de Rafael Sanzio, de José Rivair, de José Carlos dos Anjos, de José Antônio dos Santos, de Onir Araújo e de Bira Toledo; o capítulo 4 traz textos sobre o Corpo, sons e movimentos, com contribuições de Clarice Moraes, de Danuza Meneguello, de Gabriel Muniz, de Patricia Gonçalves e de Mãe Bia das Ilhas; o capítulo 5 traz textos sobre as Resistências urbanas na relação centro-periferia, com contribuições de Daniele Vieira, de Taís Medeiros, de Carla Meinerz, de Maria Luísa Zeferino Pires Lara Machado Bitencourt
Cláudia
393
N S OL
Elaine Rodrigues, de Duan Porto Barcelos, de Amanda Bahi, de Helena Bonetto, de Álvaro Luiz Heidrich, de Seu Ênio e de D. Maria Clara da Restinga; e, por fim, o capítulo 6 abre com um manifesto pela educação quilombola, redigido pela Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e traz textos sobre Saberes e fazeres quilombolas: uma agenda para educar a cidade , com contribuições de Vanderlei Gomes, de Gládis Kaercher e Tanara Furtado, de Bruno Xavier, de Taissa Gomes Cardoso e Dharkson da Rosa Severo, de Cláudia Luísa Zeferino Pires e Lara Machado Bitencourt, de Nelson Rego e Thiago Rech e de Karina e Janja Ellias.
Epistemologias quilombolas
DIÁSPORA, MOVIMENTO NEGRO E CIDADE QUILOMBOLA
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
EXISTÊNCIA NA ÁFRICA BRASILEIRA: REFERÊNCIAS DE UMA QUILOMBOLAGEOGRAFIA
COMO CITAR: ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 395-426 395395
Rafael Sanzio Araújo dosOS QUILOMBOS E A (IN)
Detalhe de mandala de cipó feita na Região do Recôncavo – BA. Foto: Prof. Rafael Sanzio dos Anjos, 2006.
ANJOS
INTRODUÇÃO
O território, visto como uma instância concreta das acumulações desiguais dos distintos tempos, é o principal revelador dos espaços visíveis, oficialmente, ou seja, dos espaços aceitos e dos espaços formalizados pelo sistema dominante, e dos invisíveis, que correspondem aos territórios usados, que não devem ser mostrados na Cartografia e na paisagem geográfica oficial, associados a expressões territorializadas pejorativas, como o das favelas, o do povo da periferia, o dos pobres, o dos mocambos, o dos quilombos, entre outros. No bojo destes dois “Brasis” (formal/informal ou incluído/excluído) estão as populações e os territórios de matriz africana, secularmente à margem dos projetos do país, com tratamento “residual” e com políticas de invisibilidade, cuja inexistência é uma das estratégias mais fundamentadas. Estas são instâncias concretas no QUILOMBOLAS
Os mapas, principais produtos da Cartografia, são representações e interpretações gráficas do mundo real, que se firmam, como ferramentas eficazes na leitura do território, possibilitando revelar as construções sociais e
Lembro de que, no conceito de território, estão agregados os sentimentos de apropriação de uma porção do espaço, assim como o seu limite, a sua fronteira.
396 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola conjunto amplo das contradições, que têm, como “pano de fundo”, as referências dos cinco séculos de sistema escravista criminoso (aqui, incluímos os quatro séculos do Brasil Colonial e os 100 anos do século XX do Brasil República, de mentalidade escravocrata), ainda não resolvidas no país. Neste sentido, as demandas, para a compreensão desta complexidade, são grandes e existem poucas disciplinas mais bem colocadas do que a Geografia e a Cartografia, para auxiliar na representação e na interpretação das inúmeras indagações nesta primeira metade do século XXI.
A Geografia continua sendo o melhor instrumento de observação do que aconteceu, porque apresenta as marcas da historicidade espacial; do que está acontecendo, isto é, tem registrado os agentes, que atuam na configuração espacial atual, e o que pode acontecer, ou seja, é possível capturar as linhas de força da dinâmica territorial e apontar as possibilidades da estrutura do espaço no futuro próximo (ANJOS, 2011). A Geografia Afrobrasileira, de que tratamos, nessa oportunidade, não é uma fatia de pizza de um parcelamento geográfico, mas tem, como perspectiva, ser um componente estrutural e revelador da Geografia real, que faz o resgate de um dos principais “Brasis secularmente invisíveis”, ou seja, de povos e de territórios, que existiram e que se mantêm sobreviventes, mas de uma maneira marginal, oficiosa e residual, ou seja, não oficial na sua plenitude. Esta Geografia, que traz a espacialidade da exclusão e do conflito secular da nação, é o que questionamos, aqui, e motivo pelo qual propomos outras leituras e outras representações do espaço geográfico, em que a complexidade conflitante da África existente-resistente no Brasil seja devidamente considerada. Neste sentido, caracterizar e interpretar espacialmente as estruturas existentes na formação territorial do Brasil e do seu povo diverso, tomando, como referência, os aspectos geográficos da herança africana, reveladora no território brasileiro, é a premissa básica da Geografia Afrobrasileira.
O território é o suporte da existência humana! Ele é, na sua essência, um fato espacial e social secularmente atrelado a uma dimensão política, permeado de identidade, possível de categorização e de dimensionamento. Nesta direção, no território afrobrasileiro estão gravadas as referências culturais e simbólicas das matrizes da África na sua coletividade, ou seja, é o espaço multiescalar (cadastral, urbano, municipal, regional e nacional), construído e materializado, a partir das suas referências identitárias e de pertencimento territorial, em que sua população tem um traço predominante de origem étnica e social.
A Cartografia e a Geografia do mundo foram profundamente modificadas, ao longo dos séculos XV, XVI, XVII, XVIII e XIX, sobretudo, pelos novos territórios a ele incorporados, pelas “novas” fronteiras, constituídas e impostas, e pela
ESPACIAIS BÁSICAS DA GEOPOLÍTICA DOS BRASIS
COLONIAL-REPUBLICANO
A fotografia, como registro documental, é outro recurso estratégico no processo do conhecimento geográfico, sobretudo, pelas representações e pelas interpretações do tempo, do espaço, da sociedade, que não se cristalizam e que não são estáticas. No registro fotográfico de um ambiente ou de uma matriz cultural, é possível constatar as referências de uma estrutura social, que nos possibilita observar se esta é rica ou pobre, se é justa ou discriminatória, entre outras possibilidades de interpretações espaciais. Seja nos detalhes das matrizes africanas, seja nas paisagens dos fatos geográficos, as fotografias não se restringem a um mero congelamento do momento, mas trazem a uma forma de olhar e de sermos olhados. Por isso, entendemos a foto como um instrumento fundamental no processo de conhecimento do que aconteceu e do que acontece no território Tomamos,afrobrasileiro.comopremissa, que tratar do Brasil Africano, nos contextos geográficos, cartográficos e fotográficos, buscando reconhecer, valorizar e superar o racismo estrutural existente, é ter uma atuação sobre um dos mecanismos fundamentais da manutenção das seculares exclusões territorial e social do Brasil Colonial sobrevivente. Neste capítulo, buscamos auxiliar na ampliação dos conhecimentos e das informações sobre as referências geopolíticas conflitantes do Brasil Africano contemporâneo, assim como trazer outros elementos geográficos, para o entendimento das configurações espaciais e da governança dos territórios quilombolas do país. Algumas das referências sobre a geopolítica do modelo institucional e da Geografia quilombola do Brasil Colonial são tratadas a seguir.
REFERÊNCIAS
N S OL 397 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola as feições naturais do espaço e, por isso, mostram os fatos geográficos e os seus conflitos. Estes são imprescindíveis, por constituírem uma ponte entre os níveis de observação da realidade e a simplificação, a redução e a explicação, além de fornecerem pistas, para a tomada de decisões e para a busca de soluções, para a governança. Neste sentido, a Cartografia Afrobrasileira é, sobretudo, uma ferramenta estratégica básica para a cidadania, secularmente negada, uma vez que este instrumento, de certa maneira, “fala” e torna “visível” o “Brasil Africano”, de que muitos e muitas não querem “ouvir” e nem “ver, cuja construção e existência são possíveis! Por isso, a Cartografia não é somente um desenho: ela produz documentos, ou seja, pode mostrar como a sociedade funciona, como andam a cidade, o município, o Estado, a nação e onde estão os excluídos e os incluídos no sistema.
E OS QUILOMBOS
O processo de pulverização das distintas matrizes africanas no território colonial brasileiro, pelo Estado escravagista, também tinha, como estratégia, dificultar a organização social, extinguir a língua de origem e impossibilitar a continuidade das culturas, ou seja, foram criados dispositivos reais, para que as populações, oriundas da África, perdessem as suas referências identitárias e,
398 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola evolução significativa das técnicas. Este longo período da história dos seres humanos vai se caracterizar por uma nova fase de relações entre estes e a natureza e é neste contexto que a Ciência Geográfica vai se desenvolver e servir ao grande projeto de dominação justificada global. O grande triângulo dos fluxos econômico-comerciais do século XV ao XIX, envolvendo a Europa, a África e a América, tinham o Oceano Atlântico como grande espaço de ligação e por seus mares navegavam as mercadorias da Europa, do Oriente, das colônias e os “navios negreiros”, que saiam da rede de portos europeus e da costa e contracosta do continente africano. As figuras 1, 2 e 3, a seguir, mostram as principais referências territoriais, de origem na África, nos séculos do tráfico, bem como a Geografia da Diáspora, que se configurou e que se estruturou, com base na dinâmica do sistema escravocrata, nas margens do Atlântico e do Pacífico e no interior do continente americano, mesmo com as contradições sociais, políticas e econômicas. No fluxo Europa-África-Europa, os navios, saídos dos portos escravagistas europeus, levavam armas, tecidos, bebidas e outras mercadorias, e, dos portos africanos, vinham o sal, pedras preciosas, café, açúcar, marfim, entre outros produtos tropicais, e seres humanos. O fluxo América-África-América se caracterizava, prioritariamente, pelos deslocamentos dos distintos grupos étnicos, com suas bagagens culturais e tecnológicas, para a ocupação e para a formação dos novos territórios coloniais, e, da sua costa oriental, eram exportados fumo de corda, aguardente, batata, amendoim, entre outros produtos. Do fluxo América-Europa-América saiam açúcar, aguardente, cacau, tabaco, café, borracha, pedras preciosas, algodão, batata, girassol, tomate, milho, pimenta, baunilha, etc. e, para o Novo Mundo, eram encaminhados cevada, gado, aveia e centeio. Os pontos fixos de articulação e os “nós espaciais” se caracterizaram, principalmente, pela rede de cidades e de portos, que vão dar suportes locais e regionais à Geografia da Diáspora. No Brasil, esses fatos geográficos seculares mostram como a consolidação da sociedade escravagista conseguiu se estabilizar e se desenvolver, mesmo, com os conflitos políticos e com as contradições socioeconômicas e territoriais. Aqui está a matriz fundamental da exploração perversa da natureza, conduzida por um modelo, cujo controle dos meios de produção, dos capitais, dos recursos tecnológicos e da concentração de terras vai se cristalizar por cinco séculos, tendo a manutenção das desigualdades como “pano de fundo” permanente.
N S OL 399 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 1 – Referências espaciais da diáspora África-Brasil 1 (séculos XV-XIX). Fonte: Anjos (2014)
400 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 2 - Referências espaciais da diáspora África-Brasil 2 (séculos XV-XIX). Fonte: Anjos (2014)
N S OL 401 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 3 - Referências espaciais da diáspora África-Brasil 3 (séculos XV-XIX). Fonte: Anjos (2014)
402 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola por conseguinte, para que houvesse uma diluição da identidade étnica africana. Esse é mais um fator geográfico, que colabora para a falta de uma referência ancestral de origem, por parte da população afrobrasileira, com interferências profundas na sua cidadania e no seu sentimento de pertencimento territorial.
No Uruguai e no Brasil, eram e são denominados mocambos, calhambos e quilombos; na Colômbia, no Equador, no México e em Cuba são os palenques; cumbes, na Venezuela; marrons, no Haiti, no Caribe, no Suriname, nas Guianas, nos Estados Unidos e na Jamaica; cimarrons, em diversas outras partes da América, que fala espanhol; e Bush Negrões, na Guiana Francesa (ANJOS, 2010).
Na América escravocrata, o quilombo significava a expressão geográfica concreta e mais significativa dos conflitos, junto ao sistema dominante, e representava a reconstrução e a elaboração de um tipo de organização territorial existente na África meridional, que vai se consolidar no território. A grande extensão dos povoados “livres”, que vão se desenvolver nas margens brasileiras do Oceano Atlântico, têm em comum a referência de um espaço seguro e protegido, não necessariamente, isolado, com igualdade de condições na maioria das relações comunitárias, com liberdade de acesso à terra e com uma base possível de ter confrontos e guerras.
No Brasil Colonial, esses territórios étnicos organizados, independentes e numerosos eram uma ameaça à estabilidade da classe senhorial e, justamente por isso, foram duramente reprimidos, estimulando à criação de capitães do mato e de expedições, para a destruição dos seus territórios. As cartografias da Figura 7, com o registro dos movimentos sociais territorializados dos povos africanos e dos seus descendentes, e da Figura 8, mostrando a cartografia cadastral do antigo Quilombo do Buraco do Tataú nas imediações da cidade de São Salvador de Bahia (1744 a 1764), revelam a extensão da concentração dos quilombos no território de dominação portuguesa, pontuados e com manchas regionais das várias manifestações contrárias ao sistema escravocrata e, numa outra escala (detalhe), a Geografia quilombola, mitificada como “desorganizada”, mas que revela, neste documento cartográfico, complexos sistemas de proteção e de defesa, que reafirmam que estes espaços tinham os seus componentes de organização de atividades e de funções. Estes são dados relevantes para o processo de desmistificação da imagem e das histórias construídas sobre os quilombos, associados, pelo sistema dominante, à baderna social e à desorganização territorial.
As figuras 4, 5 e 6 reconstituem, com muita propriedade, a Geografia quilombola dos antigos territórios de resistência. Neste sentido, o quilombo africano e o quilombo americano apresentam semelhanças fundamentais. Esses sítios africanos na América eram um fato espacial de extensão continental e tinham um desejo coletivo de resistir às sociedades de opressão e de exclusão.
Fonte: Anjos (2010)
Figura 5 - Fotografia de referências do fogão e do forno de lenha no antigo quilombo do Brasil Colonial. Espaço do Quilombo no Museu do Cerrado, em Goiânia (GO).
N S OL 403 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
Fonte: Anjos (2010)
Fonte: Anjos (2010)
Figura 6 - Fotografia de aspecto do cemitério no antigo quilombo do Brasil Colonial. Espaço do Quilombo no Museu do Cerrado, em Goiânia (GO).
Figura 4 - Fotografia de aspectos da tipologia e da distribuição das habitações no antigo quilombo do Brasil Colonial. Espaço do Quilombo no Museu do Cerrado, em Goiânia (GO).
404 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 7 - Mapa das principais zonas e sítios dos quilombos e movimentos sociais dos povos africanos e seus descendentes no território – séculos XVI - XIX. Fonte: Anjos (2010)
Fonte: Anjos (2010)
Figura 8 - Mapa de reconstituição da organização socioespacial de um quilombo brasileiro.
N S OL 405 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
É oportuno lembrar de que o Brasil Colonial foi o país que mais importou, forçosamente, seres humanos africanos de distintas matrizes étnicas e culturais
Apesar de, no Brasil, ocorrer apenas em 1850, a primeira metade do século XIX se caracterizou pelos vários tratados, visando a abolir o tráfico negreiro. Pelo quadro de ilegalidade e de clandestinidade, os dados estatísticos dos movimentos demográficos são bem imprecisos e, por pressões geopolíticas europeias, esse é o período, em que são desfeitas as ligações bilaterais entre os continentes africano e americano, sendo destruídas as rotas do tráfico triangular. Entretanto, o Brasil, por 66 anos, e os Estados Unidos, por mais 90 anos, continuaram escravistas, depois das independências. A Geografia de Estado do Brasil vai se desenvolver sobre esses contextos seculares de dominação e de exploração dos territórios e dos povos subjugados e inferiorizados, apostando, portanto, nas desigualdades e na ineficiência das ações governamentais, restringindo os acessos à educação e à saúde e exigindo obrigações dos segmentos menos favorecidos. Mesmo com esta geopolítica de proteção da classe, que detém o capital e os meios de produção, o Brasil Colônia era extremamente frágil, porque dependia da força de trabalho dos povos africanos e tradicionais da floresta para se manter.
Nas relações espaciais das regiões de produção colonial e na distribuição da população do Brasil atual (ANJOS, 2014), a constatação espacial mais evidente é a de que o “espalhamento” quantificado do nosso povo (IBGE, 2010) se processa, ainda, nos mesmos espaços coloniais, ou seja, os outros territórios continuam sob o controle ou a serem controlados pelos segmentos dominantes, e o setor decisório ineficaz (o Estado) não conseguem alterar esta Geografia colonial “branca”, estrutural, perversa e ainda dominante (Figura 9).
406 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola e também foi o último a sair do sistema escravista, resolvido institucionalmente com a assinatura da Lei Áurea (1888), devido a pressões internacionais e a um contexto interno de tensão entre segmentos, com interesses distintos, por parte da sociedade dominante, e com desdobramentos traumáticos no território brasileiro, nesses 132 anos “carregando” as referências do escravismo criminoso (ANJOS, 2019). É evidente que a Lei “Áurea” visava a consolidar uma Geografia oficial das desigualdades, ao “engessar” uma estrutura de privilégios seculares. Neste sentido, os marcos da Lei nº 001, de 1837, que institucionalizava que os africanos e os seus descendentes não podiam estudar e que proibia os mesmos de frequentarem escolas públicas; da primeira Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), que tinha, como premissa geopolítica, inviabilizar a possibilidade de propriedade e de compra-aquisição de terras, pelos povos africanos e por seus descendentes; a Lei Saraiva Cotegipe (1885), que impõe que analfabeto não tem direito a voto; a lei da vadiagem (1890), que institucionalizada o uso da violência; e a “Política de Embranquecimento”, desenhada a partir dos resultados do 1º Censo Demográfico (1872) e oficializada, pelo Estado brasileiro, no Congresso Internacional das Raças (Londres, 1911), são referências jurídicotemporais, que visavam a promover a extinção do povo de matriz africana pela fome, pela deseducação, pela desterritorialidade e pela inexistência no sistema dominante.Estesfatos mostram por que o Brasil vai se manter com um pensamento social dominante preconceituoso, pautado em um conceito errôneo, generalizado na nação continental, até os dias atuais, materializado em ações e em fatos de discriminações, em praticamente todos os segmentos da sociedade. Importante, também, é o reconhecimento da sobrevivência desta geopolítica colonial no Brasil, que saiu do período escravocrata “zangado”, portanto resistente e contrário, na sua maioria, a deixar as regras dos privilégios institucionais e sociais do sistema político econômico-social escravista, cuja resistência não resolvida de cinco séculos ainda se configura, de forma predominante, na sociedade e no território multiescalar contemporâneo, com um racismo estrutural, ou seja, com uma crença comportamental de seres superiores (existentes, visíveis e oficiais) e de seres inferiores (inexistentes, invisíveis e marginais).
Na Geografia Africana invisível no Brasil contemporâneo, destacamos o esquecimento proposital dos territórios quilombolas, descendentes dos quatro séculos do sistema escravocrata oficial e dos 100 anos do século XX do Brasil República de mentalidade colonial. A história e a governança brasileiras ainda continuam associando à população de matriz africana uma imagem de “escravizados” e aos quilombos, de algo do passado, como se estes não fizessem parte da vida contemporânea do país, implementando, sistematicamente, estratégias de inexistências social e territorial. Neste sentido, as ações do setor decisório se mostram conflitantes e contraditórias, apesar das disposições constitucionais e da obrigatoriedade, por parte de alguns organismos oficiais, de resolver as demandas dos quilombos contemporâneos, ou seja, é possível constatar, de uma forma quase estrutural, que o contexto tem tido um tratamento
Aqui está um dos grandes paradoxos geográficos do país: de um lado, há um Brasil agrário-exportador, sustentado, há alguns séculos, pelo trabalho escravocrata, com a mais evoluída tecnologia africana dos trópicos, formado por um seleto grupo de comandantes de ascendência europeia (donos dos capitais financeiro, industrial e fundiário), com controle dos espaços de alta produtividade das monoculturas e altamente tecnológico, no seu processo produtivo (anteriormente, sustentado por seres humanos escravizados), baseado na mecanização das ações e das etapas (banimento do trabalho braçal) e em um tratamento com métodos coloniais para os eventuais conflitos no território usado e\ou na fronteira indesejada – aqui está o “Brasil desenvolvido”, de 1º mundo; no outro “lado da moeda”, temos a outra face de urbanização conflitante e predominantemente de territórios e de populações pobres, que formam um conjunto complexo de espaços urbanos, articulados secularmente (pois a estrutura espacial colonial do país não se alterou, substancialmente), em que se encontra a significativa maioria da demografia do país, vivendo com infraestruturas secularmente inexistentes e/ou precárias (no sentido lato), incluindo as tipologias habitacionais do padrão “favela”; é neste contexto geográfico que acontece o processo de extermínio das populações excluídas, geralmente, compostas de afrobrasileiros(as). As “ilhas de prosperidades”, nestes conjuntos urbanos, estão guardadas por muros altos e por sofisticados esquemas de segurança nos condomínios fechados, para atender às classes média e alta, ou seja, aqui, temos o “Brasil dos rebeldes”, pobre, feio e do 3º mundo (ANJOS, 2019).
Algumas considerações, referentes à Geografia quilombola, com as suas expressões espaciais e com seus conflitos institucionais no Brasil, são tratadas no item a seguir.
A GEOGRAFIA QUILOMBOLA E O BRASIL CONFLITANTE
N S OL 407 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
408 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 9 - Mapas das fronteiras aproximadas das regiões econômicas coloniais (séculos XVI-XIX), à esquerda, e da estrutura da distribuição da população contemporânea (séculos XX-XXI), à direita. Fonte: Anjos (2014) GEOGRAFIA FRONTEIRAS APROXIMADAS DAS REGIÕES & A ESTRUTURA DA DISTRIBUIÇÃO DA
N S OL 409 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola ECONÔMICASAFROBRASILEIRACOLONIAIS (SÉCULOS XVI-XIX) POPULAÇÃO CONTEMPORÂNEA (SÉCULOS XX-XXI)
410 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola caracterizado por ações episódicas e fragmentárias. É como se uma parte significativa do Brasil (em termos de população, de território e de estruturas social e política) continuasse no século XIX. A Figura 10 mostra os dois contextos operantes nos séculos XX e XXI, em que um conjunto de fatores externos e internos colaboram, para melhorar a visibilidade e o conhecimento, pelo setor decisório, da sociedade, assim como os tensionamentos jurídico-institucionais e o agravamento nos andamentos de regularização dos territórios e no atendimento às demandas das comunidades tradicionais.
As comunidades quilombolas do espaço brasileiro apresentam variedades de tipologias habitacionais e de padrões de estruturas espaciais, entretanto, com sobrevivências e com similitudes registradas em quase todo o território nacional, fatos que as unem em identidades arquitetônica e urbanística ancestrais comuns.
É relevante lembrar de que, no Brasil, as comunidades negras tradicionais, remanescentes de quilombos, mocambos, comunidades negras rurais, quilombos contemporâneos, comunidades quilombolas ou terras de preto se referem a patrimônios territorial e cultural inestimáveis, cujos saberes ancestrais são conhecidos apenas parcialmente e que, somente recentemente, passaram a angariar algum interesse, por parte da academia, e uma ”aparente” atenção (fragmentária e hostil), por parte do Estado, com evidências de baixa prioridade na governança oficial.
Muitas dessas comunidades ainda mantêm tradições e tecnologias, que seus antepassados trouxeram da África, como a agricultura, a medicina, a religião, a mineração, as técnicas de arquitetura e de construção, o artesanato e os utensílios de cerâmica e de palha, as línguas, a relação sagrada com o território, a culinária, a forma comunitária de uso e ocupação do território, entre outras maneiras de expressões cultural e tecnológica. Importante lembrar de que o melhor das tecnologias dos trópicos sustentou as dinâmicas comerciais do Brasil Colônia agroexportador, ao longo de quatro séculos (ANJOS, 2010). Eis um dos riscos estratégicos desses territórios tradicionais, junto ao sistema opressor e explorador, expresso na ausência de ações consequentes, para a sistematização e para a catalogação dos seus saberes e dos seus conhecimentos seculares.
As casas quilombolas se caracterizam como polinucleadas, com distintos usos e ocupações no terreiro, com significativa interação com a paisagem e com uma marcante integração com as necessidades cotidianas e com os sistemas de crenças. A Figura 11 e as figuras 12 e 13 representam, gráfica e fotograficamente, um terreiro tradicional na Comunidade da Ema, no Território Kalunga, no Goiás, espaço quilombola de maior extensão territorial no país. Chamam a atenção as funções comunitária, produtiva e agregadora das atividades nos espaços, fatos que conferem, ao território quilombola, autonomia e independência, com vistas à sobrevivência. Esta arquitetura quilombola no espaço dos quilombos
N S OL 411 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 10 – Síntese dos contextos no processo de pressão contemporânea nas comunidades tradicionais quilombolas. Fonte: Anjos (2010) e Projeto GEOAFRO (2020)
412 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 11 - Terreiro tradicional quilombola de D. Lió, no Território Kalunga, na Comunidade da Ema, em Teresina de Goiás (GO). Fonte: Anjos (2011) e Projeto GEAFRO (2020)
N S OL 413 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 12 - A casa principal no terreiro tradicional quilombola de D. Lió, no Território Kalunga, na Comunidade da Ema, em Teresina de Goiás (GO). Fonte: Anjos (2010) e Projeto GEOAFRO (2020)
414 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 13 – Produção da farinha de mandioca no terreiro quilombola de D. Lió, no Território Kalunga, na Comunidade da Ema, em Teresina de Goiás (GO). Fonte: Anjos (2010) e Projeto GEOAFRO (2020)
Nesta direção, tratar as comunidades quilombolas no contexto geográfico nacional significa se deparar com uma luta política histórica e territorial atual e, sobretudo, com um processo de conhecimento científico, ainda, em construção.
contemporâneos
nos revela o passado resistente, mas, sobretudo, os tipos de técnicas usadas nas edificações e a natureza dos materiais utilizados, que continuam os mesmos dos seus antepassados.
Daí, a necessidade de um conceito geográfico de quilombo mais “largo”, como um segmento social-espacial, portanto, territorializado e sobreviventeresistente na estrutura da mentalidade colonial-racista, dominante na sociedade brasileira contemporânea. Esses territórios afrobrasileiros têm, como questão geográfica estrutural, a fragilidade dos seus marcos jurídico-constitucionais, que negligenciam os seus direitos fatuais e plenos na definição oficial das suas fronteiras. Esta constatação tem comprometido o direcionamento de uma política eficaz, para o equacionamento dos seus problemas fundamentais, ou seja, para o seu reconhecimento, dentro do sistema social brasileiro, e para a demarcação e a titulação dos territórios ocupados. O modelo institucional dispersivo, praticado no país, para as questões dos territórios tradicionais excluídos, é revelador da fragmentação nas responsabilizações governamentais, consoante a resolução, de fato, das demandas dos quilombos. Entre os danos reais, nesse contexto de desinteresse do Estado, está o enfraquecimento do movimento quilombola organizado e a fratura das ações concretas na implementação das políticas públicas reparatórias.
O mapa da Figura 15, da Comunidade de Felipa, no município de ItapecurúMirim, no Maranhão, unidade política com maior registro de territórios quilombolas no país, mostra uma estrutura espacial, semelhante à de uma pequena localidade urbana, orientada pelo sistema viário estrutural, caracterizada por um conjunto de edificações, com funções comunitárias, como a casa de farinha, o galpão, para fazer artesanato e para os encontros comunitários, o
Ressalte-se, ainda, que as relações sociais variam no tempo e no espaço, de acordo com as etapas dos processos historiográficos e das especificidades dos arranjos geográficos. Mesmo ocorrendo em diversas regiões do espaço brasileiro e em períodos diferenciados, os variados padrões de estruturas espaciais ocorrentes merecem uma caracterização geográfica. A Figura 14 traz as principais configurações identificadas, ou seja, a configuração radial, a estrutura retangular, a estrutura esparsa, com distribuição aleatória, a organização linear, ordenada para o mar, a organização linear, orientada pelo sistema viário, a estrutura, conduzida pelo curso d’água principal, e as estruturas de uma localidade e de um bairro urbano (ANJOS, 2010). Estas diferentes formas de ocupação são frutos, também, das relações de pertencimento e das diversas identidades socioespaciais.
N S OL 415 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
416 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 14 – Exemplos de tipologias das estruturas espaciais das comunidades quilombolas tradicionais. Fonte: Anjos (2010) e Projeto GEOAFRO (2020)
SN L O 417 quilombolageografiaumadereferênciasbrasileira:Áfricana(in)existênciaaequilombosOs Figura 15 – Mapa da estrutura espacial da comunidade e do território quilombola Felipa, em Itapecurú-Mirim (MA) Fonte: Anjos (2017) e Projeto GEOAFRO (2020)
418 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 16 - Modelagem gráfica da dinâmica municipal dos processos espaciais, formadores e mantenedores dos quilombos urbanos e rurais (séculos XX e XXI). Fonte: Anjos (2011) e Projeto GEAFRO (2020)
Nesse contexto, várias outras questões, além do mapa oficial dos territórios quilombolas do país, ficam sem retorno: quem se responsabiliza pelo banco de dados afrobrasileiro no país? E quanto a sua atualização e a sua divulgação? E a cartografia do Estado sobre a população de matriz africana, de que o povo quilombola faz parte? São questões fundamentais, que ficam sem respostas satisfatórias, ou seja, há a manutenção do esquema institucional fragmentário, que permite a ausência de uma cartografia esclarecedora e informativa, considerando os diversos segmentos da sociedade e das governanças pública e privada. O mapa da Figura 17, elaborado pelo Projeto GEOAFRO (http://www. projetogeoafrobrasil.com), que tem um histórico de sistematização de dados dos seus registros municipais, traz a quantificação dos registros quilombolas no país e confirma alguns aspectos geográficos deste contexto de negação da Geografia dos quilombos:
N S OL 419 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola cruzeiro, a casa da liderança comunitária, o posto de saúde, a igreja, o campo de futebol, a escola, entre outras “georeferências” simbólicas, ou seja, ponto e/ou sítio de relevância geográfica na comunidade tradicional, que assumem papéis fundamentais na estruturação, na articulação e na manutenção da Geografia quilombola. Na dinâmica dos processos territoriais quilombolas, tomando, como premissa, a área municipal, como célula espacial de investigação, verificamos, de forma sistemática, que muitas destas localidades tradicionais, situadas em distritos dos municípios (espaços rurais), a depender da acessibilidade, da localização no território e dos fluxos do sistema viário, vão se integrar ou não aos processos dinâmicos da urbanização (fluxos crescente, estabilizado ou decrescente). A Figura 16 sintetiza graficamente estes movimentos espaciais, que nos permitem compreender a formação de quilombos com características urbanas, sobretudo. Não podemos perder de vista que os quilombos rurais são significativamente mais recorrentes no espaço nacional, portanto estão mais à margem e invisibilizados pelo setor decisório do país, mesmo, os localizados em áreas estratégicas, como na concentração de quilombos do município de Alcântara, no Maranhão, que, há décadas, é acometida por ações governamentais, contrárias aos desejos das comunidades.Umdosdesdobramentos
nesse panorama complexo de inexistência na estrutura do Estado se evidencia na ausência de uma cartografia quilombola oficial, ou seja, na falta de um documento cartográfico, em que o Brasil reconheça decisivamente as reparações, como uma das respostas espaciais mais significativas aos séculos de escravidão criminosa. Este componente fundamental, o mapa, como registro governamental de decisão e de intervenção, pode ser uma ferramenta estratégica para ações de alteração do modelo operante.
420 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola Figura 17 - Quantificação dos registros municipais dos territórios tradicionais quilombolas – cadastro do Projeto GEOAFRO. Fonte: Anjos (2010) e Projeto GEAFRO (2020)
Nesta direção, a falta de uma política de Estado consistente e duradoura – não, uma política de governo, pontual e cosmética – é um fator temerário, para que não se instalem, no país, processos de extinção e de descaracterização dos territórios étnicos, vistos, erroneamente, como “espaços de problemas”, mas que podem ser olhados sob outra perspectiva, ou seja, como “territórios das soluções”, considerando muitas das demandas sociais e econômicas da nação.
Para tanto, algumas recomendações básicas são apontadas a seguir.
Apesar das modificações na organização dos ministérios no governo federal, em 2019-2020, buscando minorar a estrutura e alcançar melhor desempenho governamental, a estratégia de “não resolver, de forma eficaz”, as demandas territoriais conflitantes continua mantida e, sobretudo, as incompatibilidades conceituais se alargaram, no que se refere às abordagens de “terra” e de “território”, assim como o julgamento sobre os segmentos sociais territorializados, quem têm “direito” ao território ou não, mesmo, com as referências constitucionais e com o fato de os espaços já estarem sendo usados e ocupados (Anjos, 2019).
Apesar dessa expressão espacial significativa não oficializada, os quilombos contemporâneos se encontram em situações de riscos social e físico e fica evidente a ausência de prioridades, por parte da governança oficial, no exercício da sua autoridade, na formulação de políticas reparatórias. O histórico dos territórios quilombolas reconhecidos e regularizados, de fato, desde a Constituição Federal de 1988, até o momento atual, revela esse quadro de desinteresse institucional. A questão estrutural de fundo é a posse jurídica efetiva da terra, ou seja, a definição oficial e não oficiosa da fronteira afrobrasileira.
N S OL 421 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
geográfico são as concentrações dos sítios em algumas regiões do país, as quais correspondem às regiões produtivas do Brasil Colonial. Chama a atenção a faixa territorial, iniciada no norte do Pará, passando por todos os estados da Região Nordeste, seguindo por Minas Gerais e Goiás, indo até o sul de São Paulo. São reveladores, também, os registros nos pontos das grandes metrópoles coloniais, caracterizando uma gama de quilombos urbanos, com estruturas e com fluxos espaciais particulares, diferenciados, portanto das dinâmicas dos quilombos rurais do país; São relevantes as ocorrências nas zonas fronteiriças do Mato Grosso, do Mato Grosso do Sul, de Rondônia, do Pará e do Rio Grande do Sul, em contextos que indicam a necessidade de alargarmos a compreensão espacial sobre a extensão e sobre a influência dos territórios quilombolas, formados no Brasil Colonial, para além das fronteiras do país.
A constatação espacial dos registros em praticamente todo o país (com exceção de Acre e de Roraima). Este fato cartográfico afirma o quanto o Brasil contemporâneo é quilombola, mesmo, com o contexto proposital de “invisibilidade”;Outroaspecto
Tomando como referência que as construções analíticas e as especulações não se esgotaram, concluímos e recomendamos o seguinte: A manutenção do quadro de desinformação da população brasileira, no que se refere ao continente africano, continua sendo um entrave estrutural, para a instauração de uma perspectiva real de democracia racial no país. Não podemos perder de vista que, entre os principais obstáculos, criados pelo sistema, para a inserção da população de matriz africana na sociedade brasileira, está a inferiorização desta no sistema escolar, com danos imensuráveis a sucessivas gerações, uma vez que estamos tratando com uma ordem, que está institucionalizada há mais de um século, sobretudo, na educação geográfica permitida e na forma distorcida e limitada, com que esta ciência é ensinada e aprendida no país. A Figura 18 sintetiza o conflito secular do não lugar, definido para a população de matriz africana; da escolarização e do sistema de ensino com limitações graves; da invisibilidade proposital das referências ancestrais e de uma capitalização brutal na exploração dos seres humanos. Neste sentido, temos algumas questões geopolítico-históricas, sem respostas satisfatórias: qual é o lugar geográfico oficial do(a) afrobrasileiro(a) na nação?
Figura 18 - Meninas em exposição da Disney, na periferia de Paris, em 2007.
422 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Fonte: acervo de Rafael Sanzio dos Anjos
BÁSICAS
N S OL 423 Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
Fonte: acervo de Rafael Sanzio dos Anjos
A questão das comunidades quilombolas no território brasileiro não pode mais ser tratada com ações pontuais, esporádicas, ou atrapalhada por conflitos de atribuições institucionais, presentes, de forma significativa, nesta primeira metade do século XXI e com indícios de manutenção. O modelo vigente na gestão das demandas quilombolas no país é desagregador e pode ser alterado, Figura 19 – Danificação da placa oficial do Programa Brasil Quilombola (SEPPIR – Governo Federal) na comunidade de Mesquita, em Cidade Ocidental (GO), em 2009.
Para o sistema dominante, que ficou congelado no século XIX, esta questão continua sendo evitada, porque as políticas de extermínio, de invisibilidade e de embranquecimento resolverão a política de Estado, que aponta, claramente, desde a 1ª Lei de Terras do Brasil (1850), que os povos africanos e os seus descendentes não devem ter um lugar geográfico definido e nem definitivo no Brasil;AGeografia afrobrasileira possibilita “ver” o que muitos(as) não querem enxergar, mesmo, usando artifícios, como a negação da realidade. Neste sentido, as perguntas geográficas conflitantes não querem calar: verdadeiramente, quem é visto e quem não é visto no território brasileiro? Quem é visível e quem não é visível para o Estado ineficiente? Quem existe e quem não existe, de fato, no espaço segregado? A Geografia oficial do país, ao não tratar devidamente a Geografia afrobrasileira, configura-se uma forma explicita de discriminação, considerando o contexto do racismo estrutural de cinco séculos. Este é, sem dúvida, um dos principais desafios geográficos do século XXI;
Fonte: acervo de Rafael Sanzio dos Anjos
Figura 20 - Momento de agregação e de perspectiva da Comunidade Quilombola de Tapuio em Queimada Nova (PI), em 2005.
quando tivermos uma perspectiva real de mudança na política de Estado do país, com foco nas reparações e nos pagamentos das dívidas seculares com os(as) afro-brasileiros(as).
424 N S OL Os quilombos e a (in)existência na África brasileira: referências de uma geografia quilombola
As vitórias localizadas não refletem um plano de ação com premissas e com parâmetros de curto/médio prazos ou uma perspectiva de fortalecer a secular luta quilombola. As figuras 19 e 20 são representativas destas duas perspectivas. A primeira, é reveladora da agressividade da exclusão e da negação da necessidade de reparação, pelo governo; a segunda, ilustra a existência territorial-comunitária e a resistência secular ancestral; Tomamos, como premissa, que as informações, por si só, não significam conhecimento. Entretanto, elas nos revelam que, com os auxílios da ciência e da tecnologia, temos condições de colaborar com o conhecimento geográfico na modificação das ações e das políticas pontuais e superficiais, recorrentes na nação. Neste sentido, a geolocalização oficial, como política pública, ou seja, a informação espacial precisa, eficaz, automatizada e reveladora do território usado e da população real, configura-se como o principal instrumento de visibilidade no país, invisibilizado pelo racismo estrutural e por todo um seu mecanismo conservador de Estado. A localização geográfica com segurança institucional (respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e ao Marco Civil da Internet), assegurada a todos os segmentos da estrutura social do país, é uma “porta concreta”, para subsidiar a adoção de medidas consequentes, para a alteração das situações emergenciais das populações e dos territórios do Brasil africano.
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VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
Antes, porém, convém discutir alguns pontos sobre a maneira, pela qual o conceito mais geral de diáspora tem sido compreendido pelas ciências sociais. Isto parece necessário, porque, nos últimos tempos, o fenômeno diaspórico e os seus elementos constitutivos ganharam importância nos discursos sociais e nas teorizações da realidade social, mas com alcance e com finalidades, por vezes, conflitantes, dissonantes. Sua acolhida nos meios acadêmicos foi seguida de um enquadramento e de um esvaziamento de seus significados políticos imediatos. Neste sentido “frio”, “neutro” e “objetificado”, a ideia de diáspora tendeu a ser assimilada às de migração e de intercâmbio cultural e componentes fortes de sua caracterização deixaram de ser enfatizados: o caráter forçado do deslocamento – decorrente da violência, que produziu a dispersão de povos inteiros – e os subsequentes processos de desenraizamento social.
Com efeito, a palavra diáspora tem sua origem na associação dos vocábulos da língua grega dia (através, por meio de) e speiró (dispersão, disseminação). É usualmente empregada, para designar a dispersão forçada dos judeus, após a destruição do Templo de Jerusalém, pelos romanos, no início da era cristã. Por extensão, diáspora negra ou diáspora africana tem sido aplicada aos diversos movimentos dos povos africanos e afrodescendentes fora do continente, seja em decorrência dos tráficos internacionais de cativos (através do oceano Índico, do deserto do Saara e de mar Mediterrâneo, e do oceano Atlântico), seja como resultado de guerras e do colonialismo, de perseguições políticas e religiosas, QUILOMBOLAS
INTERPRETAÇÕES
José RivairDA DIÁSPORA NEGRA NO BRASIL MACEDO
O objetivo deste texto é apontar algumas possibilidades de pensar a diáspora negra, a partir de referenciais de análise, retirados de intelectuais afro-brasileiros nas décadas de 1970-1990, no contexto de formação do Movimento Negro Moderno. Isto permitirá demonstrar como a percepção da potencialidade deste fenômeno social ofereceu, àquelas(es) intérpretes, instrumentos teóricos, para a reflexão e para a ação na organização da luta antirracista.
Fonte
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Interpretações da diáspora negra no Brasil S de desastres naturais ou dos movimentos massivos de pessoas, em busca de trabalho ou de sobrevivência em melhores condições de vida, no período contemporâneo, dentro ou fora do continente (LOPES, 2004, p. 236). Em todos os casos, a expressão se encontra vinculada à consciência da perda de um lugar de origem, associada à vontade de uma reconexão direta ou simbólica com o ambiente de origem. No belo e sensível documentário, produzido e dirigido pela antropóloga Sheila Walker (2018), diretora executiva da ONG Afrodiáspora, financiado e disponibilizado online pela ONU-Brasil, chamado Rotas familiares, lugares inesperados: uma diáspora africana global, é possível perceber os imensos alcances espacial e temporal dos tráficos internacionais de cativos na história mundial, antes do século XIX. Não, só, os tráficos atlântico e mediterrânico, controlados por europeus e por seus parceiros e intermediários locais, mas, também, os tráficos saariano, nilótico e índico, controlados por mercadores árabes e turcos, por iranianos e por indianos e seus parceiros afro-muçulmanos. porém independentes entre si, os processos vinculados à escravidão comercial e aos sistemas mundiais de acumulação de riqueza produziram deslocamentos de dezenas de milhões de pessoas negras, originárias do espaço geográfico africano, realocando-as em diferentes partes do planeta.
OL
Coetâneos,
Figura 1 – Família de afrodescendente em aquarela de Cristóbal Lozano, c. 1771-1776 (Museo Nacional de Antropologia, Madrid). : Wikimédia Commons (s/d)
Interpretações da diáspora negra No documentário, é evidenciada a presença de afrodescendentes na América do Sul (Brasil, Bolívia, Argentina, Uruguai, Paraguai e Equador), no Caribe (Suriname, Jamaica, Cuba e Haiti) e na América do Norte (México, Canadá e Estados Unidos), o que tem sido bem estudado pelas ciências sociais. Surpreende, porém, notar a existência de comunidades negras, autoidentificadas como afrodescendentes, em lugares menos óbvios, como Turquia e Ásia Central, determinadas regiões da Índia (Gujarate) e ilhas Reunião e Maurício, ao sul do oceano Índico. Entre as comunidades menos conhecidas, estão, por exemplo, os afro-abkhazianos das proximidades do rio Kodori, na costa oriental do Mar Negro, na região do Cáucaso, entre a Geórgia e a Rússia, cujos antepassados podem ter sido levados para lá no século XVII, no período do império turco-otomano. Por outro lado, a face mais visível da diáspora está no continente americano e se vincula à diáspora negra atlântica, sobre a qual este texto tratará. A esta se refere a assertiva de Achile Mbembe (2014), de que a gestão da Modernidade ocidental não esteve vinculada à fábrica (na Europa), mas à plantation escrava afro-americana, sendo, a escravidão, a linha demarcatória fundamental das hierarquias sociais no sistema-mundo atual. Por isto, a categoria racial “negro/a” – não, o qualificativo étnico “africano/a” – se mostra mais apropriada para designar a condição diaspórica, pois o vocábulo derrogatório “negro/a” tem sua origem em uma classificação, como meio de legitimação de um sistema de dominação complexo, de base eminentemente racial, empregada desde os séculos XVI-XVIII na Europa e na América, não provindo de um fenômeno exclusivamente de classe, como se costuma pensar. Raça, racismo, escravismo e colonialismo se articulam em sucessivos e em concomitantes processos de predação e de privação sociais, que ocasionam a condição diaspórica, o que leva Mbembe a caracterizar o capitalismo racial como uma “vasta necrópole” (p. 234).
Um segundo ponto a ser sublinhado tem a ver com a natureza da experiência inaugurada na diáspora negra, forjada na privação da liberdade, na dor e no sofrimento pela perda dos vínculos sociais e culturais. Muito diferente do fenômeno da migração, cujos deslocamento, ruptura e descontinuidade sociais são temporários e decorrem da vontade dos sujeitos nela envolvidos, a diáspora negra advém de uma brutalidade unilateral, de uma perda, que vai além da liberdade de ir e de vir, predominante no cativeiro. Como bem demonstrou o sociólogo Orlando Patterson (2008), a escravidão é um meio, pelo qual, nas relações de dominação, os indivíduos vêm a ser afetados, em suas integridades física, moral e psicológica, sendo privados de sua subjetividade, rebaixados em sua vontade e parcialmente mortos em sua existência social.
no Brasil N S OL
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SUBJETIVIDADE, LINHAS DE FRATURA E EXPERIÊNCIA NEGRA
O terceiro e último ponto de discussão prévia diz respeito ao lugar de acento dos componentes do fenômeno da diáspora negra: na raiz africana ou nas transformações, ocorridas durante e após o processo de transplante social e cultural? No Brasil, o problema foi equacionado, pela primeira vez, na obra As Américas negras, do sociólogo Roger Bastide (1974). Ao terem sido arrancados de suas comunidades de origem, embora tendo perdido os referenciais de contato direto com elas, os(as) cativos(as) preservaram elementos das culturas ancestrais em sua memória coletiva. Essa memória congelada foi transformada em matriz identitária, preservando elementos ancorados no passado, enquanto a história das comunidades e dos grupos africanos do continente, não afetada pela ruptura, decorrente do tráfico, teve livre curso, seguindo rumo próprio. Por isto, Bastide nos convida a distinguir “sociedades africanas” ou “culturas africanas” de “sociedades negras” ou “culturas negras”, porque, não obstante a origem africana seja comum a(o)s nascidos(as) no continente e aos afrodescendentes, neste último caso, a ruptura e o deslocamento, inerentes ao tráfico, fenderam a identidade étnica originária e promoveram uma dupla desterritorialização na África e no Novo Mundo, forçando movimentos de recomposição sociocultural.
Por isto, Mbembe qualifica a pessoa cativa como um “fantasma”, como uma “morta-viva” para a sociedade. Ela passa a ser considerada simbolicamente morta em seu local de origem, de onde foi arrancada, e permanece socialmente morta na comunidade de destino, em que será sempre tratada como “excluída”, como “estrangeira”, como um não-ser. Cercada por sombras, por confusão e por estranhamento, a pessoa escravizada vive, em tese, uma situação de morte social. Dizemos em tese, porque, até aqui, a situação está sendo descrita do ponto de vista das relações verticais de dominação e, não, do ponto de vista da resistência.
No documentário riograndense O Grande Tambor, o Mestre Griô Giba Giba ilustra este outro ponto de vista de modos simples, direto e didático, ao dizer que os trabalhadores escravizados, recém-chegados da África, não estavam “zeradinhos”: embora viessem praticamente nus; apenas com o próprio corpo, traziam consigo suas memórias e, a partir delas, encontraram meios de continuar e de reconstruir suas existências (TURCO; VALENTIM, 2011).
Importa assinalar, portanto, que a escravidão e o racismo antinegro, que lhe é sucedâneo, contêm, em seu bojo, um componente genocida, que afeta o íntimo das pessoas brutalizadas e todo o grupo, ao qual ela passa a pertencer. A diáspora, a condição de privação, imposta por sucessivas formas de violências (física, mental, cultural, social) é, em si própria, genocida, porque procura eliminar os traços de humanidade das vítimas do cativeiro, recusando-lhes equidade social (VARGAS, 2011, p. 34). A luta contra a escravidão e o racismo implica sempre o reconhecimento de si e do outro na afirmação de valores e de papéis desconsiderados e na reparação de injustiças perpetradas e sofridas.
430 Interpretações da diáspora negra no Brasil N S OL
Interpretações da diáspora negra no Brasil
O que está em discussão é o papel exercido pelas inovações, ocorridas durante a diáspora. Esta teria promovido uma fratura, uma ruptura na continuidade cultural. A diferença entre as duas culturas, a de origem e a de destino, está em que, no caso das “culturas negras” americanas, mesmo que sua matriz seja eminentemente africana, sua forma foi modelada no “exílio”, em meio a trocas, a trânsitos, a negociações e a compartilhamentos identitários intra-africanos, envolvendo as diferentes etnias, de onde provinham os(as) escravizados(as), e os compartilhamentos identitários extra-africanos, envolvendo as diferentes culturas não africanas dos locais de destino ou das nações colonizadoras. No caso brasileiro, o pesquisador francês Marc Piault sintetiza o problema nos seguintes termos:Oque se considera atualmente uma “herança” ou um “patrimônio” africano é, antes de tudo, um elemento de uma história propriamente brasileira, e se compreende assim que um questionamento sobre a África não implica necessariamente em respostas sobre o Brasil... Os detritos recolhidos de valores e palavras, os conceitos afrontados e reconstruídos em contextos novos, definem bem culturas com cores africanas, repletas de ritmo, de entidades espirituais nomeadas e chamadas com fragmentos de línguas “negras”. Há realmente parentescos sensíveis, mas estes não implicam em si pertencimentos ou dependências, são linhas de fratura de uma dinâmica autóctone. (PIAULT, 1997, p. 23)
Nas mais autorizadas interpretações da diáspora, propostas por teóricos afro-europeus no início do século XXI, o ângulo do olhar se dirige, também, aos sujeitos diaspóricos e a sua efetiva agência criativa, ficando, a África, privada de centralidade. Como referencial identitário, o continente se tornou um repositório de signos, que oscilam, ao sabor das recriações, das invenções e das reconstruções, numa espécie de “caldeirão” identitário, aberto às mais variadas apropriações e projeções (HALL, 2003, p. 40). O movimento dos navios negreiros, através do Atlântico, é tomado como indício da profunda mudança existencial das pessoas negras cativas, inaugurando novas situações, pelas quais elas deram sentido ao mundo. A passagem do meio (Middle passage) teria dado início a modos originais de solidariedade negra, marcados pelo hibridismo cultural, pela interconexão e pela circulação de conhecimentos, de estilos, de valores, enfim, por traços específicos, gestados à revelia dos marcadores geográficos, estatais e nacionais ou da matriz africana (GILROY, 2001; CHIVALLON, 2002, p. 52).
Neste capítulo, compartilharemos os pressupostos defendidos por esses dois últimos autores, mas sublinharemos a experiência diaspórica afro-brasileira, a partir de seus elementos constitutivos específicos e a partir das interpretações, fornecidas por intelectuais e por ativistas negras(os) brasileiros dos anos 19701990, que, antes da recepção acadêmica do conceito de diáspora, teorizaram-no, em bases analíticas autônomas e coerentes com a realidade social observada. Ao
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considerar a dimensão global da diáspora negra, convém pensar a africanidade, como fator de identificação mais geral para a identidade negra, mas ajustar o foco do olhar para o cenário e para as circunstâncias, em que se deram as adaptações, as reconfigurações e as recomposições sociais das populações diaspóricas, cujas feições apresentam traços próprios de cada local, de acordo com a diversidade de fatores identificação e com a diferenciação, que atuaram no decurso do tempo e do espaço.
Os dados registrados pelos(as) historiadores(as) confirmam o papel diferencial das culturas dos povos bantos em nossa formação social. Na cronologia dos fluxos populacionais entre África e a então América Portuguesa, no período dos séculos XVI-XIX, até pelo menos os 1700, a transferência forçada de pessoas escravizadas foi efetuada entre os portos de Luanda, Benguela e Cabinda, de onde partiram falantes das línguas banto, como os bassa, os luba, os cua, os teque, os ganguela, os mbundo, os ovimbundo, os benguela, os nhanheca, os chindonga, os lunda, os ronga, entre outros, em direção aos portos do Nordeste brasileiro (Salvador, Recife) e do Sudeste (Rio de Janeiro). Foi, sobretudo, a partir das primeiras décadas do século XVIII que os fortes e os portos de embarque de cativos do Golfo da Guiné passaram a negociar escravizados(as) da comunidade linguística iorubá (nagôs) e ajá-fon (jejês). Também datam desse período mais recente do tráfico as negociações, envolvendo os portos do litoral moçambicano do Índico, de onde vieram pessoas de origens étnico-linguísticas chope, ronga, senga, nguni, ajaua, etc., de tradição banto (LOPES, 1988, p. 142-148; SWEET, 2003; THORTON, 2004; HEYWOOD, 2008).
O QUILOMBO ENTRE A MATRIZ BANTO E O PROJETO POLÍTICO AFROBRASILEIRO Há um ponto, em torno do qual estudiosos e intérpretes da formação brasileira concordam: a “África profunda”, com a qual o Brasil dialoga, é de matriz linguística banto. Este reconhecimento é recente nos meios acadêmicos. Desde os estudos, inaugurados pelo médico e etnógrafo baiano Raymundo Nina Rodrigues no livro Os africanos no Brasil (1931), antropólogos, sociólogos e historiadores tenderam a superestimar a matriz “sudanesa” das culturas jejê-nagô, vendo nela os traços de africanidade mais influentes na formação cultural brasileira, pelo quanto elas preservaram de elementos mais “puros” ou mais “autênticos” de culturas africanas ancestrais (CAPONE, 2000; PALMIÉ, 2007). Não obstante, desde a década de 1980, as pesquisas linguísticas e culturais desenvolvidas por Nei Lopes, sobretudo, nos livros Bantos, Malês e identidade negra, de 1988, e Dicionário Banto do Brasil, de 1996, apontam a contribuição essencial das línguas e dos valores civilizatórios da área Congo-Angola em todos os cantos do Brasil.
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diáspora negra
Embora os banto-descendentes tenham prevalecido na estimativa de 5,8 milhões de pessoas africanas, obrigadas a se estabelecer em territórios, sob dominação luso-brasileira na América do Sul (ELTIS, 2010), a sua prevalência demográfica foi subestimada e o seu reconhecimento social foi dificultado, por razões de ordens metodológica e de pesquisa, o que também não deixa de carregar consigo certos componentes etnocêntrico e racista. A grande capacidade de interação dos banto-falantes com outras culturas, que levou a sucessivos processos de miscigenação, tendeu a ser interpretado como fator de inferioridade civilizacional, pois prevalecia a ideia de que, no Brasil, o sincretismo de suas culturas, com traços da cultura luso-brasileira englobante, teria enfraquecido suas marcas africanas originais. Ao contrário, sabe-se hoje que o intercâmbio entre os valores civilizacionais banto e lusitano ocorreu, devido à acomodação entre estruturas linguísticas e fonológicas das línguas quimbundo e mbundo, predominantes no litoral centro-africano da área Congo-Angola e a língua portuguesa arcaica. Uma semelhança estrutural entre elas teria permitido mediações e trocas culturais, tanto entre os negro-africanos escravizados quanto entre eles e os europeus escravizadores, configurando o ponto de origem da língua brasileira – distinta da língua portuguesa (MENDONÇA, 2012, p. 59-65; BONVINI, 2011). Por consequência, tal teria permitido a incorporação de centenas de vocábulos, de expressões linguísticas e de “bantuísmos”, frequentes no português falado no Brasil (LOPES, 2003), provas da marca banto nos mais recônditos lugares de nossa existência social, em nossa intimidade verbal, em nossas formas de organizar e de expressar as ideias, configurando uma percepção de mundo particular afro-brasileiro. Em sentido diverso do que argumentava Gilberto Freyre em seu Casa Grande & Senzala (2003), os(as) africanos(as), além de terem “amolecido” e “adocicado” a pronúncia da língua portuguesa falada no Brasil, alteraram-na, transformando-a em “pretoguês” – conforme argumento de Lélia Gonzalez, que será exposto adiante.
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Interpretações da no
O que ocorreu, em decorrência desses encontros linguísticos, também se observa em outras esferas dos sistemas culturais, como a religião. Há consenso, na atualidade, sobre o papel de primeiro plano desempenhado pelas práticas religiosas banto, designadas pelo nome genérico de calundu , na gestação das religiões afro-brasileiras. O culto aos espíritos chamados inquices (nkisi), realizado por sacerdotes conhecidos como ngangas ou quimbandas, responsáveis pela administração de curas, pela vidência e pela previsão, era corrente entre pessoas escravizadas, sendo reconhecido e temido por cativos, por libertos e, também, pelos(as) senhores(as) – que o encaravam como feitiçaria (SLENES, 1992; SWEET, 2003, p. 221). Encontravam-se, naquelas práticas, as bases, sobre
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Figura 2 - Cena de dança cerimonial em comunidade de origem banto no Suriname, a partir de detalhe de pintura de Dirk Valkenburg, c. 1707-1708 (Statens Museum for Kunst).
Porém, a mais notável influência banto na diáspora negro-africana foi a recomposição comunitária e social, associada ao quilombo. Palavra originária do idioma mbundo, falado em território do antigo reino de Ndongo, na atual República de Angola, kilombo designava os acampamentos militares dos povos jagas ou imbangalas e, por conseguinte, os rituais e as instituições sociais das suas comunidades (LOPES, 2012, p. 213). Não tinha, portanto, em sua origem, a acepção de comunidade de cativos fugidos ou resistentes, como passou a ter no contexto da diáspora negra em diferentes partes da África ou de outros continentes.
Os traços sociais que definiam o kilombo, desde as suas estruturas defensiva e militar, até a sua organização comunitária, estruturada em torno dos conselhos de anciãos, serão verificados nas comunidades de cativos fugitivos de Angola, chamadas mutolos ; nas comunidades de cativos da Zambézia (atual Moçambique), chamadas aringas; nas comunidades de cativos da Ilha
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Fonte: Wikimédia Commons (s/d)
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Interpretações da diáspora negra no Brasil S as quais viriam a se desenvolver, a partir do século XIX, os sistemas litúrgicos das religiões afro-brasileiras do candomblé e da umbanda (LOPES, 2010, p. 199-200).
Interpretações da diáspora negra no Brasil S OL Reunião, no Oceano Índico; nas comunidades cimarron do Haiti, de Suriname, da Guiana e da Jamaica; e nos palenques da Colômbia, do Equador, do México e de Cuba (THORTON, 2003, p. 364-388). Semelhanças estruturais aproximavam tais grupos ao que as fontes portuguesas designavam, no Brasil, quilombo, mocambo ou calhombo Criações dos povos negros diaspóricos, essas comunidades recriadas constituíram, nas palavras da historiadora Beatriz Nascimento, espaços de liberdade, em meio a uma estrutura escravista opressora. Coube a esta historiadora, ao longo da década de 1970, a proposição de uma perspectiva de pesquisa inovadora da história negra. Na contracorrente dos pesquisadores da época, que insistiam em ver as comunidades dos quilombos como coletividades arcaicas e isoladas (João Baptista Borges Pereira), ou pelo prisma da resistência social – como fenômeno, associado à “luta de classes” (Décio Freitas, Clóvis Moura) –, ela insistiu nos traços profundos de africanidade, que nutriram o símbolo maior dos quilombos brasileiros, Palmares, mas, também, nas inúmeras pequenas e médias comunidades quilombolas espalhadas por todo o país. Vistos, até então, como redutos de criminosos e de foragidos, pelas autoridades coloniais, ela demonstrou que tais comunidades foram estruturadas, dinâmicas, produtivas e autossuficientes, em contato com comunidades vizinhas.
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Como organizações desenvolvidas em contexto diaspórico, o quilombo apresenta, em sua configuração, os componentes sociais sublinhados no início desse texto. Sua origem é africana: a marca da ancestralidade assenta, sobretudo, em seu caráter comunitário. Mas sua composição não era restrita apenas aos descendentes de determinadas linhagens, clãs ou grupos linguisticamente aparentados, como ocorria nas tradições originárias, mas aberta a todos(as), cativos ou livres, negros ou não, que se dispusessem a aceitar as regras definidas pelo grupo. Com isso, a vida social quilombola era aberta a inovações e a transformações, embora sua estrutura permanecesse autônoma, desvinculada das normas vigentes no sistema escravista englobante.
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Beatriz Nascimento também inovou na compreensão do significado social do quilombo, ao detectar, na sua longa duração histórica, elementos recorrentes de sua caracterização em territórios marcadamente negros posteriores, como as vilas periféricas e as favelas, e em diferentes formas de associativismo, como os terreiros de candomblé, as escolas de samba, os clubes negros e os bailes black do século XX, que, em um continuum cultural, teriam preservado, em seu interior, diferentes expressões do comunitarismo quilombola (NASCIMENTO, 2006). O quilombo, nesta perspectiva, deixa de ser um vestígio do passado, passando a ter reconhecimento, como elemento estruturante de formas sociais de organizações sociais negras. Quanto aos vínculos matriciais com a África, aquilo
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Interpretações da diáspora negra no Brasil S que a posteridade consagrará com o nome de diáspora negra, Beatriz empregou com sentido similar a palavra transmigração (GERBER; NASCIMENTO, 1989).
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A potencialidade da imagem do quilombo, como expressão política negra autônoma, encontrou, porém, em Abdias Nascimento, destacada liderança, homem público, intelectual orgânico, jornalista, professor universitário e artista plástico, o seu maior intérprete. Em 1968, data da primeira edição de seu livro O negro revoltado, ao defender a necessidade de a sociedade brasileira reconhecer a personalidade cultural do negro, como elemento social diferenciado, ele identificava, no quilombo, os núcleos de uma consciência histórica e de uma presença histórica particular do mundo afro-brasileiro. Teriam sido, os quilombolas, “[...] os primeiros elos dessa corrente de revolta, que atravessa quatro séculos de história brasileira” (NASCIMENTO, 1982, p. 52-53).
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A centralidade conferida ao quilombo ganhou formulação e proposição articuladas e coerentes, durante o período do autoexílio de Abdias Nascimento nos Estados Unidos e na África, ao longo dos anos 1970, quando ele teve contato direto com teóricos e com os ativistas negros estadunidenses, caribenhos e africanos. No mesmo instante, em que se operava uma importante guinada no conceito de “consciência negra”, Abdias percebeu a conexão entre uma perspectiva pan-africana negra e o modelo de ancestralidade, contida na experiência histórica dos quilombos. Esta percepção ocorreu em paralelo aos contatos que manteve com pensadores e com pesquisadores, como o senegalês Cheikh Anta Diop, que conheceu pessoalmente, através do afro-cubano Carlos Moore, e, sobretudo, com Maulana Karenga e com Molefi Kete Asante, nos Estados Unidos, vinculados ao afrocentrismo e à afrocentricidade (SAILLANT, 2017, p. 236).
As viradas conceitual, teórica e política, que reorientaram as interpretações e as ações posteriores de Abdias, aparecem em suas intervenções nos congressos de cultura negra, ocorridos na Colômbia, no Panamá e no Brasil entre 1977 e 1982. No II Congresso de Cultura Negra das Américas, em 1980, o teórico
Por um caminho diferente, tendo em conta pressupostos teóricos distintos, o sociólogo Clóvis Moura dedicou anos de pesquisa aos processos constitutivos do mundo negro no Brasil, vendo-o, a partir do prisma do pensamento marxista. Ainda que considere o papel determinante da luta de classes na gestação do escravismo e na formulação de alternativas de resistência, percebe o quanto a categoria “negro” designa um grupo específico, dentro da estrutura social, o quanto o escravismo afetou as identidades étnicas originárias e o quanto a população negra reagiu e produziu uma “cultura de resistência”, marcada pela autodefesa e pela rebeldia – em um amplo movimento, que ele denomina “quilombagem” (MOURA, 1983, p. 64-76; 1988, p. 88-92; 1994, p. 123-172).
Como tem sido sublinhado, o reconhecimento do quilombo como referencial de agregação negra não é exclusivo do pensamento de Abdias Nascimento, mas teve grande recorrência nos discursos de intelectuais ativistas no período de 1978 a 1988 (RATTS, p. 90-91). Personagens e episódios da luta antiescravista, protagonizada pelos quilombolas, inspiraram a organização de movimentos sociais negros, a exemplo do Movimento Palmares (1972), ou a obra de destacados escritores, como a dos poetas Solano Trindade e Oliveira Silveira, os Cadernos Negros e o movimento literário Quilombhoje. A originalidade da interpretação proposta por Abdias reside na instrumentalização do comunitarismo negroafricano, gestado na diáspora, pela qual o quilombo é apresentado como uma perspectiva coerente de ação político-social (AFOLABI, 2012). Os ideais de uma sociedade fraterna, justa e livre de pressões individualistas e da lei do mercado constituiriam um legado de uma prática quilombista anterior, que cumpriria aos negros atuais manter e ampliar, como resistência ao genocídio e como afirmação de sua verdade (NASCIMENTO, 1980, p. 263-264). Por este meio, o quilombo passa a servir como o farol de um projeto alternativo de nação, em que os(as) negros(as) em condição de diáspora reencontrariam a sua agência e o seu protagonismo.
N S OL apresentou
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diáspora
o ensaio intitulado O quilombismo, antes, publicado no Journal of Black Studies – periódico afrocentrista, coordenado por Molefi Asante –, que viria, em seguida, a ganhar a forma de um livro. Nesses trabalhos, o quilombo, Palmares, em particular, deixou de ser considerado apenas o símbolo maior da resistência negra, mas se tornou um referencial de luta política, servindo de modelo e de inspiração à proposição de um projeto nacional de base negra. Na derradeira seção do livro, Abdias apresenta uma interpretação do significado do quilombismo, visto como um conceito científico emergente do processo histórico-cultural das massas afro-brasileiras. Partindo da perspectiva pan-africana, de Cheikh Anta Diop, que identificava, no Egito antigo, a matriz civilizacional dos povos negros, ele chamou a atenção para os papéis estruturante e libertário do quilombo – considerado, não, apenas, em sua materialidade, mas em sua permanência na memória negra. Pelos elementos de fraternidade, de solidariedade, de convivência e de comunhão existencial, que lhe eram inerentes, a sociedade quilombola teria representado uma etapa no progresso humano e sócio-político, com vivências ancoradas em um igualitarismo econômico, que desafiava o caráter espoliativo do trabalho no capitalismo, “[...] sistema fundado na razão do lucro a qualquer custo, principalmente, do lucro obtido com o sangue do africano escravizado” (NASCIMENTO, 1982, p. 263).
Interpretações da negra no Brasil
Brasil N S OL TERREIROS, TRADIÇÕES
da diáspora negra
Interpretações no AFRICANAS E PENSAMENTO NAGÔ
Ao sublinhar o papel transformador da interferência cultural africana nas relações sociais escravistas, as teorias da assimilação e da miscigenação são repensadas, por ela, pelo prisma da africanidade, e uma alternativa identitária transnacional é apresentada, através da ideia da amefricanidade. Como chave analítica, esta categoria permite ir além dos limites, impostos pelas fronteiras geográficas, pelas unidades linguísticas ou pelos sistemas ideológicos, ligados às nações herdeiras do escravismo e do colonialismo. A pretendida superioridade racial de uma minoria branca é, então, confrontada, pela tomada de consciência, quanto ao papel determinante da ancestralidade africana sobre a identidade das pessoas negras escravizadas.
A ampliação da participação de intelectuais e de pesquisadores(as) negros(as) em espaços acadêmicos hegemônicos tem sido essencial, para a revalorização do aporte teórico, oferecido pela obra da antropóloga Lélia Gonzalez, que, por diferentes meios, antecipou o debate sobre a categoria analítica da interseccionalidade e contribuiu para a formulação de leituras inovadoras sobre a condição social e sobre o protagonismo de mulheres negras e para a identificação do racismo nas relações sociais brasileiras, por meio da análise do mito da “democracia racial” (RIOS; RATTS, 2016; CARDOSO, 2014). Há diversas proposições teóricas originais, que poderiam ser destacadas, em sua trajetória como pensadora de uma teoria social crítica. Uma delas, a categoria social da amefricanidade, foi intencionalmente pensada, como contribuição ao debate acerca dos efeitos da diáspora e do racismo na identidade negra. Em diálogo com os campos da Psicanálise (Fanon, Freud e Lacan) e das ciências sociais, Lélia amadureceu uma reflexão, que procurava, ao mesmo tempo, explicar a especificidade do racismo no Brasil e os meios, pelos quais os(as) dominados(as) pudessem romper com a identificação dos referenciais daquilo que, atualmente, vem sendo denominado branquitude. Para tal, valeuse de diversos elementos, retirados da linguagem social, articulando-os a uma releitura das relações raciais. Considerando o racismo como o sintoma de uma “neurose cultural brasileira”, ela examinou as complexas negociações psíquicas, que levam à “denegação”, às reiteradas negações da presença e da influência da pessoa negra, na formação social brasileira, pela idealização de uma suposta “democracia racial” e ao consequente apagamento da marca negra, através do véu ideológico do branqueamento (VIANA, 2006, p. 176).
A amefricanidade, expressão maior dos processos históricos e da intensa dinâmica cultural dos povos escravizados em toda a América – não, apenas, na América do Norte –, é defendida, por sua abrangência, como referencial de unidade transnacional para os(as) negros(as) fora da África, em diálogo com
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Assim, nas comunidades de terreiro, um novo tipo de organização espacial deu sustentação a um complexo de festividades e de cerimônias, a obrigações rituais e a uma experiência existencial, em que o sagrado atravessa o próprio corpo, reconectando os vínculos, que tinham sido afetados pela fratura produzida pela diáspora. Neste novo tipo de subjetivação, a experiência passa a ser vivida e a ser compartilhada, de acordo com ritmos, com palavras, com cantos e com ações particulares, numa “[...] filosofia a toque de atabaques”, fundada no aqui e no agora, em relação direta e profunda com as marcas vivas da ancestralidade.
Interpretações da diáspora negra no Brasil S OL outras categorias negras abrangentes, como o Pan-africanismo e a Negritude. O resgate de uma unidade específica, “[...] historicamente forjada no interior de diferentes sociedades”, inspirada em modelos africanos, permitiria equilibrar, na consciência social, os específicos da ancestralidade e da memória ancestral e os específicos da criação, da inovação e do protagonismo dos afrodescendentes (GONZALEZ, 1988, p. 77).
Paralelamente ao instigante ensaio de Lélia Gonzales, duas obras de interpretação da cultura brasileira, escritas por Muniz Sodré, trouxeram elementos novos à compreensão do lugar da matriz africana em nossa formação cultural. Em A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil, de 1983, e, sobretudo, na obra O terreiro e a cidade, de 1988, o autor inaugurou uma investigação de cunho epistemológico, que vem sendo perseguida, até o presente, e que ganha forma mais acabada em seu mais recente livro, Pensar Nagô, de 2017. Por meio de uma sofisticada análise comparativa dos fundamentos essenciais da Filosofia ocidental, em particular, em sua vertente germânica, Sodré demonstra que as formas litúrgicas de matriz iorubá, através da tradição nagô, do reino de Quêto, transplantadas da África ocidental para o Brasil nos séculos XVIII-XIX, deram origem a um sistema de crenças coerente e articulado, baseado em calendários eclesial e litúrgico, o qual contém, em sua ontologia, um complexo sistema de conhecimento, produzido a partir de uma filosofia gerada na diáspora. O pensamento nagô, circunscrito a um espaço particular, reorganizou a arkhé, a tradição, conferindo-lhe sentidos novos, devido às vicissitudes e aos imperativos da diáspora. Tal resultou no fato de que os cultos aos ancestrais (egunguns) e aos orixás, organizados em sítios distintos e sendo independentes entre si na área cultural iorubana da África ocidental, foram aproximados, unificados e reorganizados em um mesmo espaço sagrado, o terreiro de candomblé, que, deste modo, passou a concentrar diferentes legados, dando origem a uma nova Geografia do sagrado e conferindo visibilidade ao vínculo matricial com a África, dentro do ordenamento social hegemônico.
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Para a finalidade deste texto, importa destacar a associação, proposta por Sodré, entre a reconfiguração da arkhé , isto é, da tradição africana, pelas comunidades-terreiro, e a restituição de uma “soberania existencial”, pela reelaboração de um pertencimento, que tinha ficado em suspenso, por efeito da migração forçada do tráfico de cativos. A continuidade operada na prática litúrgica afro (e, não, africana) do comunitarismo, dos valores civilizatórios africanos, da relação com os espíritos ancestrais e com as divindades, fornece uma reparação simbólica à desterritorialização e à ruptura com as formas originárias de vida. Como um microcosmo da África, o terreiro constitui um traço memorial significante, um espaço, em que, no movimento contínuo dos corpos atravessados pelos espíritos, os integrantes das “nações” da religiosidade afrobrasileira ressignificam o seu pertencimento, reencontrando-se na continuidade de um grupo territorialmente identificado: Impregnada por uma atmosfera afetiva estruturante, a memória incide principalmente sobre um modo de ser e de pensar afetado pela territorialização que, no caso dos nagôs, dá margem a vínculos comunitários particulares: é o egbé ou comunidade litúrgica, ou seja, um lugar que contrai, por metáfora espacial, o solo mítico da origem e o faz equivaler-se a uma parte do território histórico da diáspora, intensificando ritualmente as crenças e o pensamento próprios. (SODRÉ, 2017, p. 92)
Figura 3 - Tela Cena de candomblé. Aquarela de Wilson Tibério. Fonte: Pinterest (s/d)
440 Interpretações da diáspora negra no Brasil N S OL
Considera-se, também, que a realidade inaugurada pela diáspora não deve ser associada à das migrações, nem que o fenômeno deva ser associado apenas ao deslocamento forçado de populações, uma vez que a condição ou situação instaurada envolveu os(as) cativos(as) e as sua descendência, do passado até o presente. O caráter genocida da diáspora afeta os corpos, o espírito e a imagem pública de suas vítimas, condenadas à desclassificação social e, sobretudo, à invisibilidade social, conforme demonstrado, no Brasil, por Abdias Nascimento, em seu, hoje, clássico ensaio O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (1978). Esta ausência de reconhecimento implica a desconsideração da cidadania plena, da participação ativa e dos direitos essenciais, que permitem o desenvolvimento de um ordenamento socialmente justo. Porém, ainda que a diáspora seja fundada em uma injustiça histórica, convém deslocar o foco de análise do ângulo da vitimização para o ângulo das reações e da resistência, cujo primeiro indício foi a recusa da morte social, através da preservação da memória. Na diáspora, resistir equivale, em primeiro lugar, a continuar a existir, a não se deixar aniquilar, individual e coletivamente, a se preservar em sua humanidade plena.
Haverá, portanto, que considerar, como partes substantivas da resistência, as complexas negociações, as seleções e as escolhas operadas com os signos no ambiente de destino, ainda que em posição de subalternidade. Por isso, parece adequado lembrar de que, no jogo entre os elementos matriciais, transmitidos através da memória ancestral africana, e as ressignificações, operadas fora do continente e fora do tempo dos ancestrais, o melhor não é determinar qual deles predomina, mas observar como eles se entrelaçam e como produzem sentidos sociais. No Brasil, a afirmação, tantas vezes repetida, de que “A África está em nós”, ganha mais força, quando a formulação é alterada pela indagação “Que África está em nós?”.
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N S OL PALAVRAS FINAIS
Este capítulo teve a intenção de sublinhar alguns aspectos, a modo de demonstrar que o conceito de diáspora é uma chave de leitura importante da realidade negro-africana, que não deve, entretanto, ser tomado apenas como uma abstração cultural, sociológica, ou como um fenômeno estritamente histórico, reduzido ao passado, mas, sim, como um movimento social.
Interpretações da diáspora negra no Brasil
Foi este o motivo, pelo qual, após a discussão introdutória das implicações mais gerais da diáspora negra, optamos por tratar de seus elementos constitutivos, com base em interpretações propostas por pensadores(as), cujo ativismo em defesa da dignidade da pessoa negra, leva a que sejam rotulados como “militantes” –algo que, efetivamente, foram, sem que isso os(as) desmereça –, e, não, como
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Interpretações da diáspora negra no Brasil N S OL intelectuais, pesquisadores(as) ou críticos(as) de nossa realidade social. Não obstante, pertencentes à geração de intelectuais orgânicos do Movimento Negro Moderno dos anos 1970-1990, estes(as) intelectuais participaram de redes de interlocução, de espaços de ativismo e de militância social comuns e de espaços acadêmicos, que, gradualmente, ajudaram a transformar (RATTS, 2003, p. 90-97).
Se o contributo intelectual de Beatriz Nascimento continua subestimado pelo meio acadêmico hegemônico, o mesmo não ocorre, junto aos movimentos sociais e à intelectualidade negra, que veem nela uma pioneira e uma referência incontornável, para a proposição de alternativas epistemológicas autônomas e autênticas (SMITH, 2016). Não é coincidência que o início de suas pesquisas sobre a instituição do quilombo, em 1973, tenha coincidido com o surgimento do Movimento Palmares, em Porto Alegre, em 1972, e, dois anos antes da renovação do samba, com a criação do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo no movimento cultural capitaneado por Mestre Candeia, no ano de 1975, que ela tenha trocado correspondência com o jornalista e sociólogo Clóvis Moura e que, nos últimos anos, antes de seu brutal assassinato, em 1995, tenha sido orientada, no Mestrado em Comunicação Social, na UFRJ, por Muniz Sodré, bem como também não é coincidência que Abdias Nascimento e Lélia Gonzales tenham sido parceiros no Movimento Negro Unificado e na atividade partidária (junto ao PDT) e que Abdias tenha prefaciado a primeira edição do livro Bantos, Malês e identidade negra, de Nei Lopes (1988).
Desconsiderados no meio acadêmico hegemônico, que, conforme apontou Joel Rufino dos Santos (2015), ao não assumir um posicionamento, em relação à injustiça social, que atravessa a nossa sociedade, cumpre-se o papel de mantenedor da ordem social vigente, aqueles(as) pensadores(as) negros(as) anteciparam, em algumas décadas, debates e reflexões, que seriam incorporados às disciplinas universitárias no início do século XXI, por ocasião da recepção das teorias do intercâmbio cultural negro, desenvolvidas por Stuart Hall e por Paul Gilroy. A referida desconsideração, por sua vez, não impediu que as obras e as ideias acima apontadas circulassem entre leitores, em cenários e em eventos, que alimentaram os movimentos transnacionais negros da segunda metade do século XX, em que nomes, como o de Lélia Gonzales e o de Abdias Nascimento, continuam a ter ressonância. Para finalizar, cumpre sublinhar que este texto não pretendeu postular a ideia de que, no Brasil, a diáspora negra tenha assumido conotação particular, em razão de uma suposta especificidade nacional. Muito pelo contrário, as narrativas e os discursos comprometidos com o nacional reiteradamente
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inviabilizaram a percepção de ângulos essenciais das relações sociais brasileiras (COSTA; THOMAZ, 2004). Por este caminho, a ideia da diáspora negra pode vir a ser um meio importante, para a politização da diversidade e da diferença étnico-racial que, na contracorrente do discurso nacionalista único, desafia a todo instante o pressuposto unitarista. O seu estudo permite perceber, além disso, a maneira, pela qual a matriz identitária africana inspirou duas formas sociais e culturais essenciais em nosso país: as comunidades quilombolas e as comunidades de terreiro.
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SLENES, Robert. Malungu, ngoma vem!: a África coberta e redescoberta no Brasil. Revista USP, São Paulo, n. 12, p. 48-67, 1992.
QUILOMBOS NA CIDADE, SOB UMA AFRO-BRASILEIRAPERSPECTIVA
COMO CITAR:
José Carlos dos
ANJOS, José Carlos dos. Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 446-460 446446
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
1 Magalhães (2019, p. 223) mobiliza o aparato conceitual foucaultiano, para caracterizar tais práticas remocionistas, como operações de gestão estatal de populações, que, operando nos interstícios do legal e do ilegal, do formal e do informal, produzem efeitos de organização dos fluxos humanos e não humanos. QUILOMBOLAS
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No século XIX e em boa parte do século XX, os principais territórios negros, na cidade de Porto Alegre, eram a Bacia do Mont’Serrat (hoje, um dos bairros mais nobres da capital), a Colônia Africana (atuais bairros Bom Fim e Rio Branco), a Ilhota (perto do atual Centro Municipal de Cultura e da avenida Érico Veríssimo), o Campo da Redenção (atual Parque Farroupilha) e o Areal da Baronesa. Por um lado, a grande massa da população negra foi expulsa desses antigos territórios negros e tais lugares conformam, hoje, nobres bairros da cidade1. Por outro lado, restam pequenos redutos de famílias negras, espremidos entre condomínios, habitados por brancos. Pelo menos, oito desses redutos são quilombos, pleiteando a titulação de suas pequenas nesgas de terras. Três desses quilombos têm seus territórios identificados pelo INCRA em áreas das mais nobres da capital, próximas ao centro da cidade: o Quilombo do Areal, o Quilombo da Família Fidélix e o Quilombo da Família Silva. Que relação de filiação se institucionalizou entre aqueles antigos territórios negros do século XIX e os atuais quilombos? No que as discussões pós-colonial e decolonial podem nos ajudar, no tocante a criticar os vícios de uma linguagem colonial, na qualificação dessa filiação? Na primeira secção do capítulo, procedo a uma discussão sobre o alcance teórico-metodológico de uma crítica decolonial. Na segunda parte, desdobro aspectos dessa crítica às noções de etnogênese, de ressignificação, de remanescentes, de reconhecimento e de invisibilidade, que estão pautando a relação entre os quilombos coloniais e as comunidades remanescentes atuais. Por fim, experimento uma perspectiva afro-brasileira, para pensar a permanência de quilombos na cidade.
Quilombos na cidade, PLANO DE EXTERIORIDADE
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sob uma perspectiva afro-brasileira N S OL FORJAR UM
Entendo, por perspectiva decolonial, todo o desdobramento da tese da centralidade do imperialismo europeu na definição da modernidade, tendo, como processos correlatos, a negação da humanidade de negros e indígenas e a divisão geopolítica do mundo, que favorece ao enriquecimento de um “norte” imperial, em função da exploração e da exposição à descartabilidade da população não branca do planeta. Mignolo (2010) situa na década de 1980 a emergência, sob a pena do sociólogo peruano Anibal Quijano, enunciado fundador da corrente teórica, o conceito de colonialidade do poder, que percebe o funcionamento dos mecanismos imperiais de racialização, mesmo, após a descolonização formal de países do sul global. Os dispositivos de racialização se conformam como operações sistemáticas de controle da economia, da autoridade, da subjetividade, da sexualidade/gênero e da natureza, em favor do segmento definível como branco da população mundial. Em 2007, o porto-riquenho Maldonado-Torres propôs o conceito de colonialidade do ser, que tende a ganhar centralidade no arcabouço epistêmico da corrente teórica. O conceito indica uma forma de subjetividade, que se caracteriza por uma propensão a classificar hierarquicamente os seres humanos e os seus costumes, de modo a colocar em ato uma cartografia imperial implícita, que funde espaço e raça e que torna os territórios dos Outros moralmente passíveis de apropriação. O conceito indica que as formas modernas de rapinagem e de expropriação territoriais têm, como condição de possibilidade, um tipo de relação com o mundo, com os Outros (expropriáveis) e com a História (AJARI, 2016). Nos termos de Maldonado-Torres: A fusão de espaço e raça está por trás de concepções militares e imperiais da espacialidade, que tendem a dar um novo significado à formulação clássica de Santo Agostinho acerca das cidades terrenas e divinas: a diferença entre a Cidade de Deus e a Cidade Terrena dos Homens traduz-se na divisão entre as cidades imperiais dos deuses humanos e as cidades dos condenados. (Maldonado-Torres, 2008, p. 109).
Não pretendo, aqui, reconstruir as bases epistemológicas do movimento, mas tão somente extrair derivações metodológicas das críticas, que, de forma mais contundente, têm atingido a corrente. O ponto, sobre o qual vou me ater, é o do esforço, para a montagem de um plano de exterioridade, em relação aos discursos acadêmicos da modernidade ocidental. Do axioma central da filosofia decolonial – a colonialidade do ser – deriva a práxis fundamental, que é a descolonização dos saberes, que deve implicar a iluminação de uma exterioridade discursiva recuperável, de modo a fazer diferença, em relação às formas acadêmicas consolidadas de captura da diferença colonial. Montar esse
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Nesse ponto, outras tentações devem ser descartadas. Por um lado, corre-se o risco de fazer com que o resultado do trabalho do analista adquira um ponto de vista subalterno na academia. Aqui, impõe-se a interdição da autora pós-colonial indiana Gayatri Spviak (2010): na academia, por definição, “[...] o subalterno não fala”. Tampouco, o texto acadêmico pode se apresentar como uma síntese da multiplicidade dos pontos de vistas encontrados no trabalho de terreno ou como a objetivação científica do ponto de vista, que emana da posição social ocupada pelo grupo subalterno na estrutura social. O melhor que podemos fazer é situar o lugar de enunciação do analista decolonial na extensão argumentativa de múltiplas posições, assumidas, momentânea e parcialmente, por personalidades concretas desse coletivo ou, em algum momento, das múltiplas interlocuções e, sobretudo, como mapeamento das práticas insurgentes e contracoloniais desses coletivos. Tanto no movimento decolonial como no pós-colonial, a compulsão à exteriorização, que reconhece os limites do impulso, tem sido pensado como um terceiro espaço, nem plenamente nativo ou subalterno, nem mais no interior de paradigmas científicos modernos-ocidentais (BHABHA, 1998).
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No movimento decolonial, esse terceiro espaço é, também, cunhado como os
Essa compulsão de se situar do ponto de vista subalterno, que assume o analista decolonial, e que tem sido denunciada, como forma de fascínio pela alteridade cultural, de meu ponto de vista, constitui-se como a dimensão metodológica mais desafiante do movimento decolonial. Para vencer o risco do culturalismo, que apenas exalta a diferença, em relação às modernidades ocidentais, a subalternidade em pauta deve ser tomada como o estado existencial duradouro de um coletivo, que expõe os limites das promessas emancipatórias da modernidade e que se organiza, de modo a demandar muito mais da democracia realmente existente.
A questão toda é que não há como garantir que, no esforço de afagar epistemes subalternas, não se está a capturar, no cerne da academia, um discurso legitimado como exterior a esse espaço. Quando, por exemplo, a intelectual e ativista mestiça boliviana Silvia Rivera Cusicanqui acusa o mais proeminente dos intelectuais decolonias, Walter Mignolo, de retomar suas ideias sobre o colonialismo interno e regurgitá-las em um discurso de alteridade despolitizado, emerge o ponto principal de demanda por mais discussões teórico-metodológicas (RIVERA CUSICANQUI, 2010; ZAPATA, 2018).
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira S plano de exterioridade, em relação às epistemes da modernidade ocidental, é a pedra de toque das controvérsias mais intensas da corrente teórica.
Nada impede que intelectuais indígenas e quilombolas e que a intelectualidade negra antirracista, desde o início do século XX, seja incluída na tradição decolonial. Qualquer texto, que se apresenta como uma intervenção subalterna nas ciências sociais, de modo a contestar os fundamentos colonialistas das disciplinas científicas, é parte dessa regularidade discursiva, que ora é cunhada de decolonial, ora, de anticolonial ou pós-colonial. A redescoberta de textos (escritos ou orais) contracoloniais é um ponto de ancoragem importante.
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira S OL espaços de interculturalidade2 (FORNET-BETANCOURT, 2007; WALSH, 2019) e de pensamento fronteiriço3 (MIGNOLO, 2010).
2 Nos termos colocados por Walsh, a questão permanece sendo a de quem conhece o pensamento dominante, a ponto de gerar um “conhecimento outro”: “A lógica da interculturalidade compromete conhecimentos e pensamentos, que não se encontram isolados dos paradigmas ou das estruturas dominantes; por necessidade (e como um resultado do processo de colonialidade), essa lógica “conhece” esses paradigmas e essas estruturas. E é através desse conhecimento que se gera um “outro” conhecimento. Um pensamento “outro”, que orienta o programa do movimento nas esferas política, social e cultural, enquanto opera, afetando (e descolonizando), tanto as estruturas e os paradigmas dominantes quanto a padronização cultural, que constrói o conhecimento “universal” do Ocidente (WALSH, 2019, p. 15).
3 Dado el alcance global de la modernidad europea, este desprendimiento no puede ser entendido como la llegada de un nuevo sistema conceptual, literalmente, exento de referencias. En mi planteamiento, el desprendimiento presupone un pensamiento fronterizo o una epistemología fronteriza en el sentido preciso de que la fundación occidental de la modernidad y del pensamiento es por un lado inevitable y por el otro limitada y peligrosa (MIGNOLO, 2010, p. 23).
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Até onde se pode estender uma tradição? Obviamente, isso depende do estado das discussões, dos interesses e das posições, assumidas dentro de um campo disciplinar.
Outro modo de elaboração dessa problemática pode ser encontrado em Goldman (2006), que, em perspectiva deleuziana, propõe o devir nativo do pesquisador. Não se trata de repetir o nativo, ocupar o lugar dele, nem de representá-lo num desdobramento objetivante dos enunciados encontrados em campo. O desafio é o de se deixar levar pelas mesmas forças, que compelem e que conformam o espaço existencial nativo. Penso que, mesmo o pesquisador negro ou indígena, que pesquisa em seu espaço cultural de origem, precisa empreender esse devir nativo, a partir de posições divergentes em seu espaço de origem, o que significa um distanciamento, em relação a si mesmo, provocado por desafios locais às posições teóricas, assumidas no contato com a academia. Umas das modalidades desse devir pode ser a ancoragem do sujeitopesquisador nos movimentos negros, quilombolas e indígenas. Não há como, nem é desejável, inventariar, de modo exaustivo, a natureza dessa ancoragem. Mas o ponto é que o texto acadêmico seja tomado por confrontos análogos àqueles que os movimentos de emancipação racial enfrentam, com a tradução dos enunciados das posições de sujeito nos movimentos contracoloniais. Uma possibilidade dessa tradução é o exercício de integrar, aos textos acadêmicos, os invisíveis discursos contracoloniais de intelectuais ativistas indígenas e negros, que ainda não fazem tradição nas teorias decolonial e pós-colonial.
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Tornar visíveis os intelectuais subalternos é se inserir no fluxo de pensamentos minoritários, deixar-se tomar em um devir, em lugar de capturar o pensamento subalterno numa teoria pronta a enquadrar os dados de campo. Os desafios metodológicos decoloniais são, aqui, deixar-se deformar e se estender no tempo-espaço dos múltiplos fluxos minoritários de produção de pensamento anticolonialista.
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maior da postura decolonial reside na tendência à totalização, que faria do texto acadêmico um enquadramento, que subordina os múltiplos pontos de vista subalternos num grande panorama. Para vencer a tentação da totalização, impõe-se tomar a rachadura epistêmica, provocada por cada conformação discursiva quilombola ou indígena, como um acontecimento pleno de consequências na própria teoria decolonial, portanto, irredutível às deduções da macroteoria. Nessa direção, deve-se fazer uma análise decolonial da eclosão dos quilombos urbanos em Porto Alegre que não abra mão de estender a tradição decolonial até ao quilombismo de Abdias de Nascimento e se deixar alargar no espaço, até os textos experimentais do intelectual e ativista quilombola Nego Bispo (SANTOS, 2015). O ponto é que o texto acadêmico deve ser parte do processo de uma intervenção intelectual subalterna, que abala, inclusive, a metanarrativa decolonial da modernidade-colonialidade e que a obriga a se reconstituir, a cada vez, num outro platô. Os intelectuais, oriundos dos espaços minoritários, carregam, em seu distanciamento, em relação às epistemes consolidadas, potências epistêmicas, que podem ser desdobradas. O desdobramento epistêmico dos lugares minoritários de enunciação é uma das possibilidades de articulação, que, de algum modo, provoca microrrevoluções nos paradigmas, alicerçados nos binarismos coloniais, como bem mostra a feminista negra Patricia Hill Collins (2016).
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CAPTURAS ACADÊMICAS
Isso significa embaralhar o processo de canonização dos textos decoloniais.Masavulnerabilidade
Uma rede de conceitos tem capturado o acontecimento quilombola nas tramas de um processo de uma governabilidade neoliberal das diferenças. Para se aprender o que são as comunidades quilombolas em Porto Alegre, o mapa conceitual, consolidado na academia brasileira, conduz-nos, a partir de intrincadas lutas por reconhecimento, à suposição de uma invisibilidade, anterior ao qualificativo “quilombola”. Tal invisibilidade é parcialmente desfeita por uma etnogênese daqueles que, na cidade, reivindicam-se como remanescentes de antigos quilombos e que ressignificam a noção colonial. É digna de nota a fragilidade da rede de conceitos, que estrutura a narrativa da “emergência quilombola”, ainda que esta se mostre operacional, para as
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira
teórico-metodológico, a partir da teoria decolonial, tal qual o esboçado acima, poderia provocar efeitos de crítica a essa rede de conceitos, que ora coisifica, ora desvincula, aqueles quilombos do passado destes “remanescentes” da contemporaneidade? Em primeiro lugar, pode-se reparar que os quilombolas, hoje, na cidade, raramente se designam “remanescentes”.
Chamam-se quilombolas, em alto e em bom som. Não pensam que seus territórios sejam resultados de uma apropriação simbólica, que reinventa uma noção antiga. Seus territórios são quilombos e pronto. Por um artifício epistemológico, pode-se supor que a atitude natural (GARFINKEL, 1967) dos quilombolas, que, no cotidiano, suspendem as dúvidas de tipo científico sobre sua condição de quilombola, tornando possível um “essencialismo estratégico”, que o analista decompõe numa análise documental. Entre o analista e a atitude natural dos quilombolas, estabelece-se o hiato, que é a condição de superioridade epistemológica estratégica do pesquisador.
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira S OL tramas das atuais políticas públicas. Em primeiro lugar, deve saltar aos olhos a contradição entre os conceitos de etnogênese e de ressignificação, por um lado, e os conceitos de remanescente, de reconhecimento e de (in)visibilidade, porOoutro.primeiro par de conceitos supõe dualidade e descontinuidade. Os quilombos de hoje não carregam nenhuma essência dos quilombos dos tempos coloniais; não são os mesmos quilombos, temporalmente estendidos na longa duração da transmissão geracional de informações biológicas e culturais; trata-se de uma identidade recentemente “inventada” e ainda em processo. A reivindicação da diferença é resumida como mobilização de símbolos étnicos, a partir de uma memória, que filtra e que deforma o passado, em função de interesses atuais. A segunda tríade de conceitos, de remanescente, de reconhecimento e de (in)visibilidade, supõe permanência e estabilidade de um “mesmo”, tornado visível e reconhecido. Aqui, pressupõem-se instituições sociais, que oprimem sujeitos, considerados indignos de reconhecimento. A eclosão da identidade quilombola seria o resultado da experimentação da violação de expectativas, associada à dignidade, à honra e à integridade (HONNETH, 2009). O sujeito violado e o sujeito reconhecido, posteriormente, como quilombola, seriam um único e mesmo sujeito. E se não fossem “o mesmo”? E se o depois fosse marcado por um “devir outro”? Identidade descontínua e, em alguma medida, manipulada, por um lado, e identidade contínua e coisificada, de outro, não raro, aparecem conjugados num mesmo texto. As duas redes de conceitos se complementam e se compensam, mutuamente, sob um equilíbrio instável. Quem estuda nessa rede de conceitos, tende a cair ora num, ora noutro lado; na reificação ou em uma teoria instrumental da identidade. Odeslocamento
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Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira É tarefa da análise decolonial desfazer esse hiato. Seguir a sério os quilombolas, quando dizem que seu território é um quilombo e que sua cultura é quilombola, implica pesquisar as condições ontoló gicas de possibilidade desse devir quilombola, como existência e, não, como simulacro. Um dos caminhos é rever a rede de conceitos, que torna o fenômeno quilombola governável. A passagem do binarismo visibilidade-invisibilidade à problemática do reconhecimento encontra, em Honneth (2001), uma formulação proeminente. O problema maior dessa linha de raciocínio reside no fato de associar visibilidade à aprovação social, que confirma a validade de um papel social. Sob essa linha de argumentação, as pessoas dos territórios negros estariam lutando por aprovação social, quando reclamam a identidade quilombola. Esse pode ser o caso, em algum momento, mas, na maior parte das vezes, os quilombolas estão mais preocupados com a garantia de suas condições de existência, enquanto coletivo, em especial, com sua segurança territorial. Ancorada em problemáticas de uma sociedade, que, através de instituições sociais e de modos de vida individualizados, oprime e invisibiliza os sujeitos individuais, considerados indignos de reconhecimento, o modelo não é reaplicável no caso quilombola. A ênfase no reconhecimento do indivíduo, em suas múltiplas expressões culturais, oblitera o fator do conflito racial, o domínio cultural colonial e as dinâmicas de expropriação territorial de um coletivo, que enfrenta o colonialismo.
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É certo que alguns dos estudos sobre quilombos no Rio Grande do Sul, que mobilizam a categoria reconhecimento, conseguem transpor o enquadramento da luta pela simples afirmação do indivíduo quilombola, em suas múltiplas expressões culturais. (LEITE, 2000; BRUSTOLIN, 2009; SALAINI; FERNANDES, 2019). Alguns detalhes, menos frequentados nesses estudos, precisam ser ressaltados. Em primeiro lugar, a invisibilidade é, ela mesma, uma custosa construção, e, não, um dado espontâneo na consciência racista. Não é que os negros do quilombo não fossem vistos, até o timbre da Fundação Palmares. Gostaria, aqui, de ressaltar que os termos da identidade quilombola permanecem inadequados, quando se pressupõe um estágio anterior, ao reconhecimento, em que os membros individuais do quilombo não eram vistos ou reconhecidos, como parceiros dignos de interação cotidiana. Como demonstrou, há muito, Fanon (2008), o negro, ao aparecer, polui o espaço visual racista; de certo modo, o negro é revisto, isto é, precisa ser visto, pelo menos duas vezes mais do que o normal, uma vez que, sobre ele, opera uma agência de limpeza, que torna possível o “olhar por sobre”, a arrogância sobranceira. Talvez, esse quadro seja ainda mais pertinente para os racismos à brasileira, em que a interação cotidiana amigável é extremamente permeável ao racismo. Sob o sistema racista brasileiro, em sua especificidade, deve, a análise, levar em consideração uma estrutura de reconhecimento, que, antes de negar a alteridade negra, enquadra-a em um processo de subalternização, que reclama reciprocidade. Mais profundo
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Mais problemático, ainda, é o trio de polos de oposição descontinuístas etnogênese, ressignificação e remanescente. O polo ausente de cada um desses termos supõe, justamente, sua inexistência. Uma comunidade que não passa por um processo de etnogênese não é quilombola. Sem a ressignificação, não existem quilombos contemporâneos. Quem não se prova remanescente de uma comunidade quilombola não existe, enquanto tal. Vejamos, por exemplo, a apropriação que Melucci (2001) faz do quadro conceitual antropológico, por vezes, sofisticado, sobre a etnogênese, como um ressurgimento étnico. O esforço daquele sociólogo italiano se concentra em mostrar que novos movimentos étnicos (do tipo dos quilombolas na cidade de Porto Alegre), embora pareçam arcaicos, presos ao passado e a identidades essencialistas e com agendas limitadas às necessidades básicas, na verdade, seriam altamente inovadores e reflexivos. As lutas pela coexistência na diferença seriam a expressão de uma necessidade radical de expressão numa sociedade de comunicação total. No ato de reivindicarem tradições pré-modernas, estariam a reinscrever novos problemas sociais e, ao mesmo tempo, a denunciar velhas discriminações. Sob esse prisma, a noção de reinvenção de tradições pré-modernas atrela a narrativa da ressurgência étnica a um plano temporal linear, de expansão de uma reflexividade moderno-ocidental.
Pode-se sugerir um modelo alternativo, não eurocêntrico, para pensar o acontecimento quilombola em Porto Alegre? Reivindico, aqui, a possibilidade de se conferir estatuto epistemológico pleno a modalidades de pensamento e de efetuação da teologia de matriz afro-brasileira. Explicitar esquemas de pensamento dos regimes temporais da religiosidade afro-brasileira, de modo a problematizar dimensões cruciais de, também, vidas afro-brasileiras, parece-me uma modalidade de postura decolonial mais consistente do que a importação de esquemas, oriundos de paisagens euro-americanas, para “aplicação” aos territórios negros da cidade. Proponho, portanto, um conceito, oriundo da teologia afro-brasileira. No Rio Grande do Sul, durante o culto ao orixá, caboclo
QUILOMBOS, OCUPANDO CORPOS NEGROS
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira N S OL do que o desprezo racial, subsiste a visão perturbadora da presença do negro na cidade, sua impureza e sua exigência latejante de reparação. O Outro do branco é enquadrado, através de gestos cotidianos, que buscam desconstituir a diferença, sob uma normalização subordinante. O enquadramento do não branco numa estrutura de alteridade, que subalterniza, não necessariamente desconhece, nem torna invisível. A subjetividade racista brasileira faculta interações cotidianas, alternadas com ondas descontínuas de violência e de rupturas expropriadoras. O reconhecimento não se dá em uma reação branca, necessariamente positiva, mas numa relação complexa e repleta de conflitos.
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira S ou exú, a entidade sagrada se manifesta no corpo do iniciado e a manifestação do sagrado é conceituada como uma ocupação; diz-se que uma pessoa “se ocupa com”, quando o corpo do iniciado manifesta a presença de um orixá. O fato de que, no batuque do Rio Grande do Sul, evite-se o termo possessão, talvez, tenha a ver com o fato de que a “ocupação”, no modo como orixás se manifestam no corpo de seus “filhos”, seja algo mais próximo de um devir do que de uma anexação do corpo pelo espírito. As considerações, derivadas da etnografia sensível de Barbosa Neto (2012), ajudam a sugerir, na ocupação, um devir de si mesmo na diferença constante, que é o processo de manifestação de um orixá. No Batuque, raramente o iniciado sabe que “se ocupa com” um orixá; há um apagamento da manifestação na memória, um tabu da recordação. Numa rara descrição da experiência de “estar ocupada com”, uma das entrevistadas de Barbosa Neto (2012) contrasta as sensações da manifestação do “se ocupar com” o orixá e outros cultos, em que “recebe” outra entidade (caboclo ou exu): “As entidades vêm de fora. Eu as sinto, como se chovessem, dentro de mim. Mas o orixá, parece que vem de dentro” (BARBOSA, 2012, p. 258). Numa aproximação com a etnografia Tsonga, Barbosa (2012, p. 258-259) visualiza a ocupação, pelo orixá, como um “vir para fora” do espírito, que já residia no corpo, portanto um “vir de dentro” da pessoa dessa força sagrada, que se manifesta no culto. Mas o desenvolvimento do que virtualmente já residia no corpo do iniciado só pode ser descrito adequadamente como um processo de singularização, em que o que está dado, precisa ser feito (GOLDMAN, 2012).
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A modalidade de cultos em pauta é vivenciada, sob diferentes modalidades, por uma boa parte dos membros dos territórios quilombolas de Porto Alegre. Dessa modalidade de efetuação do sagrado, pode-se extrair um esquema analítico, que permita problematizar o devir quilombola na cidade? O que a religiosidade afro-brasileira apresenta como ontologia são acontecimentos, consagrados como virtualidades em fluxos de atualização. Tento equacionar da seguinte forma, a matriz do pensamento filosófico-teológico afro-brasileiro, que pode informar o acontecimento quilombola na cidade: o orixá é um acontecimento, que se atualiza nos corpos que lhe pertencem, porque, de algum modo, esses corpos carregam, em potência, efetuações da força divina. De modo análogo, as forças implicadas no acontecimento quilombola são virtualidades, presentes desde o tráfico de escravo; uma comunidade que eclode, como quilombola, na cidade, é um coletivo de humanos e de não humanos “ocupado” pela virtualidade quilombola, que se atualiza numa singularidade existencial. Em outros termos, são as mesmas forças, que conferiram sentido ao termo quilombo em qualquer outro momento passado, que conformam os atuais territórios negros na cidade. Que forças? As que fazem com que os corpos (humanos e não humanos) desses espaços urbanos negros sejam capazes de suportar o peso do estigma e da fúria
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Na forma como Abdias do Nascimento reclamava a condição quilombola do teatro experimental do negro, encontramos um movimento de pensamento similar e que pode complementar a abordagem em pauta. O modelo quilombista vem atuando como ideia-força, energia que inspira modelos de organização dinâmica desde o século XV. Nessa dinâmica quase sempre heroica, o quilombismo está em constante reatualização, atendendo exigências do tempo histórico e situações do meio geográfico. Circunstância que impôs aos quilombos diferenças em suas formas organizativas. (NASCIMENTO, 2002, p. 339)
Às formas toleradas de quilombos na cidade, Nascimento (2002) chamou de quilombos legais, conformados pela mesma “ideia-força” das insurreições rurais, e a toda essa energia insurrecional, denominou quilombismo. Cada forma quilombola responde a exigências de um tempo e de uma situação, sob uma mesma força, resistente à escravidão e ao racismo. Assim, da literatura do ativismo negro antirracista emerge outra possibilidade de articulação da relação entre quilombos e reconhecimento, próxima do pensamento religioso afrobrasileiro. Também para a ativista e historiadora Beatriz Nascimento, a forma quilombo é um instrumento de reconhecimento de identidades negras, que se atualiza nas manifestações culturais atuais do movimento negro. O quilombo, em sua forma histórica, oriunda da resistência ao colonialismo em Angola do século XVII, se conforma como um: (...) instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior autoafirmação étnica e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema em que negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à identidade cultural. (NASCIMENTO, 1985, p. 125)
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira OL colonialista e (re)existir, como coletivo territorializado, apesar da fúria. Se os territórios, que conformam uma alteridade negra radical na cidade, suportam a virtualidade “quilombola”, que, por uma série de mediações (movimento negro, INCRA, academia), efetua-se, hoje, é porque, em potência, estes sempre foram quilombolas. Raros são os espaços da cidade capazes de suportar a encarnação do nome “quilombo”. Que as famílias Fidelix ou Silva sejam capazes de suportar toda a violência, que se abate, de forma redobrada, após as ações do INCRA, que visam à titulação fundiária, isso se deve ao fato de que sempre foram tão quilombolas quanto Palmares. Estavam preparados para esse grau de violência (que assassinou duas das lideranças do Quilombo dos Alpes, em 2008, que invadiu e que depredou o território da Família Fidelix, em plena quarentena da pandemia de Coronavírus, em 2020) por terem potência de teor similar à do quilombo Palmares, em 1694.
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Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira Para Beatriz Nascimento, quilombo é uma forma social, presente no “inconsciente coletivo”, que molda as lutas culturais negras contemporâneas; se o inconsciente coletivo for tomado, aqui, como o ser da coisa em si, que ainda não se revelou pelo seu nome, o ressurgimento do nome “quilombo” pode ser visto como o retorno do bestializado, “[...] que se faz homem hostil ao seu inimigo” (AJARI, 2011, p. 60). Explicitar o nome “quilombo” é tomar consciência do processo de desestruturação da moral racista. Quando Santos, o agricultor e intelectual quilombola nordestino, retoma o conceito de ressignificação, fá-lo também no sentido de propor uma reatualização de um “nós” quilombola, numa multiplicidade de circunstâncias, que constituem a singularidade de cada efetuação. Ressignificar, na pena do intelectual quilombola, não significa modificar o sentido do acontecimento – quilombos –, para torná-lo compatível com as circunstâncias atuais. Trata-se de dar o mesmo nome a singularidades históricas dispersas, mas conformadas por um mesmo conjunto de forças. Não existe um quilombo primeiro e uma sucessão de apropriações discursivas, mas uma virtualidade e suas encarnações singulares.
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CONCLUSÃO Se um tipo de análise sobre as comunidades quilombolas em Porto Alegre for convincentemente decolonial, estará próxima de formações epistêmicas afro-brasileiras, estendendo argumentos, explicitando premissas, cartografando a eclosão das entidades, pertinentes às lutas desses mundos contracoloniais, explorando as restrições ontológicas4 das formas de pensamento em pauta. Discuti, aqui, como conceitos da teologia religiosa afro-brasileira podem ser mobilizados, em substituição a conceitos já consolidados na sociologia crítica de matriz eurocêntrica. Busquei articular a teologia afro-brasileira ao ativismo crítico de intelectuais negros brasileiros, para pensar de outro modo sobre a eclosão do fenômeno quilombola na cidade de Porto Alegre. Outras vias epistêmicas decoloniais podem ser elaboradas. Mas duvido que possam se situar longe daquilo que o ativismo intelectual antirracista afro-brasileiro (largamente desconhecido na academia) já vem desenvolvendo. Colocar o acontecimento quilombola de Porto Alegre em termos de intensidades negras, que se condensam em singularidades históricas (o quilombo, como acontecimento atualizável em situações históricas singulares), pode me proporcionar saídas para vários impasses conceituais, derivados da importação de modelos analíticos da modernidade ocidental: 4 Na esteira de Garcia (2012), chamo de restrição ontológica a operação de redução das possibilidades de disseminação das entidades do mundo. O que esteve em jogo, neste artigo, foi a possibilidade de que quilombo seja “algo”, sob um regime afro-brasileiro de existências, similar à existência de orixás, isto é, que essa afirmação respeite às restrições ontológicas desse regime de enunciação.
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3. A questão da luta por visibilidade ganha novas tonalidades. Se tiver de usar o termo invisibilidade, estarei reconstruindo uma estrutura perceptiva, em que aquele que vê se sente perturbado e que arruína o visto, enquanto “Outro”, não o toma como parceiro do processo de constituição ativa de possibilidades do mundo. Num plano sem possíveis não percebidos pelo mundo branco, o ser do negro está em processo de bestialização (AJARI, 2011). Nesta interpretação, levo em consideração que a subjetividade racista “vê por sobre” e, não, “com o não branco”. Em termos deleuzianos, diríamos que o “outro do branco” não é expressão de outro mundo possível (DELEUZE, 2007). Eis o que a afirmação quilombola recente traz ao de cima: a exigência de “se ver com” o quilombola em “um possível outro mundo”. Nesse sentido, a expectativa branca é a de que essa subjetividade quase anulada esteja estruturada de modo completamente descentrado, em uma estrutura regida por outrem – qualquer pessoa, capaz de se definir como branca e de definir o não branco. Cabe, aqui, ressaltar a postura ativa do quilombola, nos modos, pelos quais refaz sua própria estrutura de alteridades e obriga à constante desestruturação desse modus operandi altrucida.
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1. Transpor o binarismo continuidade-descontinuidade. A Família Fidélix não está sob uma continuidade linear, em relação à Ilhota. Mas a intensidade que atingiu escravos em fuga é a mesma que permite a territorialização da Ilhota e da Família Fidélix, como singularidades irredutíveis. Está em jogo, para o pesquisador, colocar-se sob o mesmo regime temporal daqueles que sofrem e que se subjetivizam, isto é, sob uma não linearidade dos acontecimentos.
2. Na mesma esteira, é possível dissolver o problema da autenticidade numa modalidade de sensibilidade às intensidades dos acontecimentos. Uma comunidade que suporta um devir quilombola não é nem mais, nem menos, autêntica, assim como, num terreiro, um orixá que “se ocupa” não é nem mais, nem menos, orixá, embora a intensidade dessa presença seja de gradiente variável nos vários corpos em devir sagrado.
4. A problemática do reconhecimento também se altera. À estrutura racista de invisibilidade, a estrutura afro-brasileira de subjetivação ignora, a partir de dispositivos de incorporação plena de uma alteridade cósmica, que se faz acontecimento. O orixá ou o quilombo, como acontecimentos, desmontam a estrutura de alteridade, imposta pelo racismo; não, por reclamação de reconhecimento de um papel e de uma contribuição social, mas por acolhimento de devires histórico e cósmico. Sugiro que o quilombola ignora largamente o mau-reconhecimento, porque tem dimensões mais importantes a percorrer.
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Sob essa (des)ordem discursiva, o devir quilombola se dá, como acontecimento, que raramente pode ser suportado, como ilhas de singularidades pontilhadas na cidade. Os esforços, no capítulo, foram para de dissolver o problema da autenticidade e para recolocar a questão da luta por reconhecimento e por visibilidade nos termos da teologia afro-brasileira, em que o que está em jogo é se deixar ocupar por um acontecimento cósmico, que eleva o plano das grandezas em jogo para além das inscrições coloniais.
Quilombos na cidade, sob uma perspectiva afro-brasileira S 5. Situar a ressignificação na dimensão ontológica, como eclosão do acontecimento quilombola – não, como mera reapropriação discursiva e reinvenção de tradições –, permite ver corpos se inscrevendo em um chão e em um tempo outro, que, não, o da linearidade progressiva.
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José Antônio dos EXEMPLOSQUILOMBOS,TERRA:COMODERESISTÊNCIA
Eles conformaram histórias e práticas cotidianas, que, longe de serem romantizadas ou estarem perdidas no tempo e no espaço, ainda estão vivas, apesar das políticas de expropriação dos territórios e da manutenção do terror sobre os corpos e sobre as mentes daqueles que ainda sobrevivem. As reivindicações de acesso à terra, à educação e ao mercado de trabalho; os direitos de circular e de permanecer em lugares públicos; a criação de espaços de confraternização e de prática de religiosidades; assim como a luta por acesso aos direitos civis republicanos, serviram para a conformação de identidades negras e mestiças.
A história de luta dos negros e das negras pelo direito à terra no Brasil se iniciou com os primeiros escravizados, que pisaram neste solo. Os africanos foram trazidos pelos conhecimentos que detinham de agricultura, de metalurgia, de trato com o gado e de lidar com os elementos mais profundos da terra. A convivência com o meio ambiente sempre foi visceral, mantida por tradições de respeito à natureza e pelo trabalho coletivo, que, aqui, multiplicaram-se e sobreviveram às inúmeras experiências, rotineiramente atualizadas, pelos seus descendentes, nos meios rurais e urbanos.
COMO CITAR: SANTOS, José Antônio dos. Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 461-469 461461
As organizações negras se tornaram meios de fortalecimento da autoestima, de consolidação de solidariedades étnicas, entre os descendentes das senzalas, e de formação de amplos movimentos pela cidadania, que ultrapassaram as barreiras do espaço e do tempo. Consolidaram-se em demandas sociais e em formas de mobilização política, que não ficaram limitadas a um tempo ou cenário específico, mas foram reatualizadas e fazem parte de arcabouços conceitual e estratégico, que se mantêm.
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Segundo mostrarei, adiante, algumas das principais matrizes do ativismo negro contemporâneo se consolidaram, em torno das experiências históricas dos quilombos e do quilombismo. Portanto, nasceram da experiência direta e da relação com a terra, meio de vida e de sobrevivência, que escondia e alimentava e que fornecia casa, comida e plantas curativas. Houve construções EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
MOVIMENTO NEGRO E DIREITO À
VOLUME 2
Nesse sentido, a história do Movimento Negro Brasileiro (MNB), escrita assim, mesmo: em maiúscula e no singular, é aqui definida, a partir da diversidade de organizações sociais, culturais e políticas, criadas e mantidas, pela população negra, no processo que levou à abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, e que se estende, até os dias atuais. O Movimento Negro é identificado, a partir de coletivos, de caráter racialmente definido, sendo fator predominante a mobilização em torno de objetivos comuns e a identificação étnico-racial, como negros e negras.
Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência S e permanências de um imaginário lugar mítico, território de liberdade, de construção de famílias e de acolhimentos, que se voltavam ao continente de origem (África), que passaram a ter, como principal referência, o Quilombo de Palmares, situado na Serra da Barriga, no atual estado de Alagoas. Território e quilombolas, que resistiram por cerca de 100 anos às investidas do exército colonial português; que mantiveram, na agricultura e no artesanato, as bases da economia de trocas com as vilas e com as comunidades vizinhas; que se tornaram um modelo de resistência direta à escravidão e, por consequência, ao capitalismo, à exploração e ao racismo contemporâneos.
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Conforme estudos recentes, ao acompanhar alguns “agentes históricos” negros, foram descortinadas novas fontes de pesquisa e novos referenciais teóricos, que questionam as matrizes eurocêntricas de produção de conhecimento. Ao acompanhar trajetórias individuais e ao identificar novos protagonistas coletivos, passaram a nomear negros e negras (engenheiros, jornalistas, médicos, políticos, professores, intelectuais e lideranças) e formas de organização social, que eram desconsideradas pela história tradicional. Muitas das sociabilidades, que eram tidas como “branqueamento cultural” ou mera reprodução, cópia, do comportamento e da estética das elites, hoje, são revistas, como estratégias de ascensão e de mobilização fundamentais, para a identificação étnico-racial coletiva.Algumas associações recreativas, bailantes ou simples modos de vida e de sobrevivências do meio rural têm sido estudadas, como alternativas à segregação e ao racismo estrutural, e, não, como simples “opção” de isolamento social. A
Como afirmou Scherer-Warren (1989), em livro clássico sobre os principais teóricos dos movimentos sociais: [...] os movimentos sociais são agentes históricos que expressam, em cada momento, as formas históricas de opressão, de miséria, de injustiça, de desigualdade, etc., mas expressam também muito mais do que isto, pois expressam o devir, através de sua crítica, de suas formas de contestação, de suas lutas na busca de novas alternativas para o comando de uma nova historicidade. (SCHERER-WARREN, 1989, p. 94)
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Produzidas naquela época, as ideias do “racismo científico” e da eugenia, como ficaram conhecidos os estudos de superioridade racial europeia, assim como a “ideologia do branqueamento”, justificaram a vinda de imigrantes europeus, para substituir a mão de obra negra e também imperaram nos escritos e nas práticas de legisladores, de intelectuais, de cientistas, de policiais e de jornalistas brasileiros, para legitimar práticas cotidianas, que impediam o direito ao trabalho e o acesso à terra.
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Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência S OL utilização de determinados padrões sociais e de formas de organização cultural, mesmo que comuns a outros grupos étnicos, também passaram a ser entendidos como meios de sobrevivência e de resistência política à opressão sistemática, que sofre a população negra (ABREU et al., 2018).
Alguns trabalhos demonstraram uma série de iniciativas, articuladas no sentido da organização de representações sociais, culturais e políticas, que se voltaram para a resolução dos principais problemas, desde a abolição, até os dias atuais, constituindo o que se entende como a história do Movimento Negro Brasileiro. Produzido, na sua maioria, por pesquisadores negros e negras, o campo de pesquisa do pós-abolição tem proposto alargamentos temporal e conceitual, que não se limitam ao 13 de maio de 1888. Em termos de construção de um pensamento social negro brasileiro, o que se entende como emancipação e como pós-abolição ultrapassa os limites dos marcos históricos e das efemérides, muitas vezes, definidas a partir das mudanças políticas e econômicas (XAVIER, 2016).
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A maioria da população, constituída por libertos, por ex-escravizados e por seus descendentes, assim como por mulheres, por ser analfabeta, não podia votar e nem ser votada. Em termos de direitos civis, não podiam ter acesso aos territórios que ocupavam, uma vez que a Lei de Terras de 1850 estabelecia a compra como única forma de acesso à terra. Do mesmo modo, todas as cidades tinham uma legislação, que definia o que entendiam como “vadiagem”, que atingia as pessoas sem emprego e sem moradia fixa, gerando uma desagradável “coincidência” com os egressos da escravidão.
A sociedade havia avançado muito pouco, em termos de direitos políticos.
Embora não existisse uma legislação segregacionista, que separava negros e brancos, como no caso dos Estados Unidos, os ‘brasileiros de cor” eram proibidos, a partir de uma série de mecanismos legais e de constrangimentos sociais, de circular em algumas ruas e praças, de frequentar escolas e clubes sociais e de entrar em lugares públicos, como teatros, confeitarias e cafés. Engana-se quem desconhece a história e “acha” que a população negra ficou de braços cruzados ou optou por viver na marginalidade, ante os inúmeros impedimentos.
Desde a abolição e do referencial político da Proclamação da República (1889), embora tidos como em regime de igualdade, perante a lei, os negros e as negras estiveram inseridos numa sociedade racista e segregacionista.
Os lugares de reunião, para suas festas e para as demais confraternizações, serviam como espaços de exercícios da cidadania recém-conquistada. As organizações tinham estatutos e formas de gerenciamento, que definiam todo um quadro administrativo, que nomeava homens e mulheres fundamentais para os trabalhos de manutenção de suas associações. Mais do que simples acontecimentos esportivos, culturais ou de lazer, as atividades organizadas eram verdadeiros eventos, propícios à valorização da identidade negra, incluindo discussões acaloradas sobre os problemas dos “homens de cor” e dando visibilidade às novas formas de ser e ver o mundo.
O projeto se manteve, ao longo de 38 anos, com denúncias de racismos, com artigos informativos sobre educação, sobre saúde e sobre higiene e com divulgação de iniciativas de criação de escolas e de associações, em defesa daquele meio.
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Exemplo associativo foi o que se deu, por meio da “imprensa negra”, como ficaram conhecidos jornais e demais publicações, criados e mantidos pela população negra em todo o país. O jornal O Exemplo foi um desses periódicos, que, fundado em Porto Alegre, no ano de 1892, manteve-se, até o início de 1930. O Semanário foi fundado quatro anos, após a escravidão, para divulgar os eventos sociais e para discutir os principais problemas dos “homens de cor” sul-rio-grandenses.
Nesse primeiro período, o Movimento Negro realizava apenas atividades locais, que contavam com informações trocadas com os irmãos da diáspora africana, que chegavam, por meio de jornais, de navios, de trens e de telégrafo.
Em boa parte, as organizações se mantiveram vinculadas, pelo menos, de forma pública, ao catolicismo, uma vez que as religiosidades de matriz africana eram perseguidas por intervenções policiais e proibidas de exercerem seus cultos e seus rituais sagrados. A maioria das associações não tinha caráter partidário ou político explícito, mas exerciam papel fundamental na organização política e na representação identitária dos homens e das mulheres, que se identificavam como descendentes da escravidão.
Em busca da própria sobrevivência, da manutenção de aspectos culturais e religiosos e de sua inserção social, os negros tomaram iniciativas e criaram suas próprias instituições, como, de resto, aconteceu com todos os grupos imigrantes, que chegaram naquele período. Foi o momento em que criaram diversas organizações dos “homens de cor” nos meios rurais e urbanos, espalhados por todo o país, reconhecidas como cooperativas, como sociedades, como clubes e como grêmios, que se constituíram, a partir de múltiplas necessidades, na forma de instituições religiosas, bailantes, culturais, beneficentes, cívicas, recreativas, assistenciais, comerciais, carnavalescas, teatrais, esportivas e educacionais.
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Por exemplo, como resultado do I Congresso do Negro Brasileiro, de 1950, organizado em comemoração ao “Centenário do Final do Tráfico de Escravos”, no Rio de Janeiro, demonstrando o grande apreço que tinham por efemérides, que remetiam ao histórico de emancipação gradual da escravidão, na “Declaração final” do Congresso, reivindicavam: [...] o apoio oficial e público a todas as iniciativas e entidades dos brasileiros de cor, a ampliação da facilidade de instrução e de educação técnica, profissional e artística, a proteção à saúde do povo e a garantia de oportunidades iguais para todos na base da aptidão e da capacidade de cada qual. (NASCIMENTO, 1982, p. 401)
As questões que levantavam tinham preocupação com o mundo urbano, em que se encontrava a maioria da população. Não tocavam diretamente em problemas de acesso à terra, mas chamavam a atenção para questões fundamentais e para o “apoio oficial e público” na garantia de direitos e de oportunidades específicas para os “brasileiros de cor”. Nesse sentido, já apontavam para políticas de ações afirmativas, apenas recentemente implementadas, visando ao acesso diferenciado de estudantes negros e negras no ensino superior e nos concursos de cargos públicos.
A partir da década de 1970, militantes e intelectuais negros e negras reafirmaram e defenderam o significado político da experiência desenvolvida nos quilombos de forma contundente. Passaram a usá-lo como ferramenta conceitual e como modelo para as organizações políticas. Abdias do Nascimento (2002, p. 288) foi um dos que foi mais longe, ao afirmar que “[...] o quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implantação de um Estado Nacional Quilombista”. Teve, como base, a construção de uma sociedade livre, justa, igualitária e soberana, que considerava, a terra, uma propriedade nacional de uso coletivo, em que os trabalhadores rurais são donos de si e do
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Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência A criação da Frente Negra Brasileira (FNB) em São Paulo, em 1931, marcou uma nova forma de organização política do MNB. O lema “União política e social da Gente Negra Nacional” apontava para um movimento, que se espraiou por diversos estados. Na cidade de Pelotas (RS), foi fundada, em 1933, a Frente Negra Pelotense, com a preocupação específica de colaborar com a educação dos negros da cidade. Estava em consonância com os objetivos defendidos pela FNB, que entendia que a “instrução” era o principal meio, para acessar o mercado de trabalho e para garantir a defesa de seus direitos. Embora pouco divulgado, as décadas seguintes, de 1940, de 1950 e de 1960, foram pródigas no nascimento de organizações negras de expressão nacional (Teatro Experimental Negro, União dos Homens de Cor, Convenção Nacional do Negro, Congresso Nacional do Negro, entre outras), que tiveram papéis fundamentais nas conquistas recentes.
Outras intelectuais, como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzales, desenvolveram estudos e conceitos sofisticados, que apontaram o quilombo como território, não, apenas, físico, palpável, revestido de terra, ar e água, mas como um espaço existencial, que transcende noções de espaço e de tempo. Nas favelas e nas comunidades das periferias das grandes cidades, assim como no campo, nas florestas e em zonas ribeirinhas, a população negra teria mantido modos de vida e formas de subsistência referenciadas nas experiências dos quilombos.
Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência N S OL fruto do seu trabalho. Este seria o resultado de uma “revolução quilombista”, que, segundo ele, devia ser “[...] fundamentalmente antirracista, anticapitalista, antilatifundiária, anti-imperialista e antineocolonialista”.
O MNB foi buscar, na história dos quilombos e de suas lideranças, expressões maiores de organizações coletivas e de resiliência, frente às investidas desumanizadoras, os exemplos necessários para seguir adiante.
Naquele momento, em que a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) perseguia, torturava e desaparecia com os corpos daqueles que se mostravam contrários, e também atuava na defesa da falácia da “democracia racial” brasileira em eventos internacionais, era fundamental reforçar a identidade negra e a sua capacidade de sobrevivência.
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Em Porto Alegre, por exemplo, foi criado, em 1971, o Grupo Cultural Palmares, que passou a reverenciar a figura de Zumbi, uma das principais lideranças daquele quilombo. A data da morte de Zumbi, 20 de novembro de 1695, passou a ser proposta como o “Dia Nacional da Consciência Negra” e logo foi absorvida pelo Movimento Negro Unificado (MNU), criado em 1978. A criação do MNU foi um marco para os movimentos sociais, ao propor a luta direta contra o racismo e contras as ideias em torno da “democracia racial”, ideologia que afirmava a inexistência de desigualdades raciais no Brasil.
O objetivo da intelectual e militante era construir um substrato histórico, que fundamentasse e que estimulasse iniciativas, para empreender organizações sociais próprias, tendo, como modelo, as iniciativas positivas, oriundas das experiências negras de resistência ao extermínio e à usurpação territorial (NASCIMENTO, 1977, p. 131).
Também na delimitação de territórios culturais e simbólicos, como no universo das escolas de samba, a força por trás das histórias dos quilombos se fez presente naquela década. Em 1975, Antônio Candeia Filho, junto com outros sambistas e compositores, fundaram, no Rio de Janeiro, a Escola de Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo. Candeia, que foi um dos
Para a historiadora Maria Beatriz Nascimento, que investigou a origem da palavra quilombo (kilombo) e a relação das culturas africanas com o modo de organização desenvolvido no Brasil, as experiências quilombolas serviriam como um “instrumento ideológico”, para a luta da população negra no presente.
Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência N S OL principais fundadores da Portela, passou a fazer severas críticas à direção da Escola, que, segundo ele, havia perdido seus objetivos iniciais, ao se inserir no mercado carnavalesco, ao ser ocupada por pessoas de fora da comunidade de Oswaldo Cruz e ao primar pelo gigantismo de suas alas. Ele fundou a Escola Quilombo, para chamar a atenção dos brasileiros para as raízes da arte negra e para a sua influência em nossa cultura. Nos anos de 1980, período em que os movimentos sociais pressionavam, para o final da ditadura e para o retorno à democracia, o MNB se mostrou bastante atuante. Cada vez mais, passou a contar com as reivindicações das comunidades quilombolas, que fizeram parte das mobilizações nacionais em defesa do acesso e das garantias legais as suas terras. Em 1986, o Movimento Negro Unificado organizou a “Convenção Nacional do Negro” em Brasília. Era o resultado de diversos encontros regionais, que organizavam as pautas a ser encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte. Nesse momento, foi proposta a criação do dispositivo constitucional, depois, nomeado Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em que, aos remanescentes das comunidades dos quilombos, é reconhecida a propriedade definitiva das terras, que ocupavam, historicamente. No documento resultante da Convenção, encaminhado aos constituintes, estava explícita a defesa da garantia da propriedade da terra às comunidades negras dos meios rural e urbano. Este documento também avançou na proteção da cultura negra, na defesa dos modos de fazer e de viver e no tombamento dos quilombos, como patrimônio cultural da sociedade brasileira, resultando em conquistas fundamentais, na atualidade, e que foram plasmadas na Constituição Cidadã de 1988, ano em que foi lançado o “Movimento Quilombista”, manifesto e ação política, preocupada, principalmente, com a preservação das raízes da cultura negra, expressas no Carnaval, na música e na religiosidade. Mestre Pernambuco atravessou o país, para deixar a marca de sua inconformidade e de sua militância tenaz em solo gaúcho. Os anos que se seguiram foram esperançosos, em termos de conquistas do MNB, e quilombos e quilombistas se mostravam atuantes (LIMA, 1988).
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Segundo levantamento realizado pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares do Negro Brasileiro, da Universidade de São Paulo, em 1990, existiam mais de 1.300 entidades, que defendiam as mais diversas pautas da população negra. Também foi nesta década, em 1992, que foi reconhecida a primeira comunidade negra quilombola, a Reserva Extrativista Quilombo Frechal, no Maranhão. Em seguida, em 1995, houve a titulação de outro território quilombola, a comunidade de Boa Vista, em Oriximiná, no Pará. No mesmo ano, foi realizada a “Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo pela Igualdade e a Vida”, que reuniu milhares de pessoas em Brasília, a partir da qual tivemos os primeiros passos,
direito à terra, temática que abordamos sucintamente, ao longo do artigo, e que se mantém fundamental, para a sobrevivência da população negra, a rede mundial de computadores é um território importante a ser conquistado, para as lutas e para as reivindicações negras do presente e do futuro. Mas este é um assunto para outro texto e para outro momento.
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Movimento negro e direito à terra: quilombos, como exemplos de resistência N S em direção às políticas de ações afirmativas de ingresso aos cargos públicos e às universidades.Duranteosdias
Em tempos de ataques fascistas à democracia brasileira, também devido ao isolamento social, por causa do vírus, que assola o planeta, a Internet se tornou um verdadeiro “quilombo digital”. O acesso a algumas plataformas digitais, por grupos organizados ou indivíduos, que usam as pautas da negritude no interesse da maioria negra na Internet, tem se mostrado um território de disputa bastante
Sem dúvida, as forças contrárias, que vão de políticos do Congresso Nacional, que defendem o agronegócio e a exploração das riquezas minerais, aos defensores do uso de agrotóxicos e dos interesses internacionais, sempre se mantiveram atuantes e avessas aos quilombolas. Mas a força do MNB tem se multiplicado, com a eleição de políticos negros, que se colocam como representantes; com as mais diversas organizações, que se juntam em manifestações públicas (I Encontro Nacional das Mulheres Quilombolas, de 2014; e Marcha Nacional das Mulheres Negras, “Contra o racismo, a violência e pelo bom viver”, de 2015); e com as redes sociais.
que antecederam à organização da “Marcha Zumbi dos Palmares”, foi organizado o “I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas”, que, no ano seguinte, resultou na criação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Sob a bandeira de “Terra titulada, liberdade conquistada e nenhum direito a menos!”, a CONAQ tem sido o principal organismo de representação política e de defesa dos interesses quilombolas.
Assimatuante.comoo
A virada para o século XXI se mostrou promissora para as comunidades remanescentes de quilombos: em 2002, o Brasil ratificou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), reconhecendo os direitos das comunidades tradicionais; em 2003, o Decreto nº 4.887 regulamentou os procedimentos, para identificação, para reconhecimento, para delimitação e para titulação das terras de quilombo, ficando designados, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a Fundação Cultural Palmares, como responsáveis por todo o processo de regularização das terras quilombolas.
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Foto: Ariel Rocha de Lima, 2021
“Meu nome é . Tenho 60 anos e nasci no estado do Rio de Janeiro, em Niterói, em 1960, ou seja, no século passado. Estou advogado; formeime na Universidade Federal Fluminense (UFF) e fiz os cursos de bacharelado em Geologia e em Geografia, na Federal do Rio (UFRJ). Minha atuação começou no movimento associativo, ainda na década de 1970, em Niterói, na reorganização do movimento comunitário e associativo de bairros. Participei da fundação da Associação de Moradores do meu bairro e, também, da Federação das Associações de Moradores de Niterói no mesmo período da formação da Federação de Associações de Moradores do Rio de Janeiro e da Federação de Favelas. Comecei a atuação no movimento estudantil, na Faculdade de Direito da UFF e, ainda muito vinculado ao movimento associativo, fui presidente do diretório acadêmico [...]. Dei aulas de Geografia nas cidades de Niterói e de Cachoeira de Macacu, também, no Rio de Janeiro, mas me voltei muito para o movimento sindical e, nessa atuação, viajei bastante pelo Brasil na construção desse referencial político. Em meados da década de 1990, vim, já como advogado, para Porto Alegre [...]. Nesse meio tempo, eu já tinha uma relação, pois atuava, na década de 1970, no Movimento Negro Unificado (MNU), inclusive, com alguns dos fundadores do MNU, como Wilson Prudente, que, na época, residia em Niterói. A marcha, questionando a farsa da abolição, no Rio, foi, para mim, um marco histórico, pois * Entrevista realizada em agosto de 2020 aos integrantes do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Giulia Assunção Sichelero, Lara Machado Bitencourt e Laura Isabel dos Santos Flores. QUILOMBOLAS Onir deXAN GÔ C ARI OCA S TERREIR OS D O SU L: O NIR, ADVOG AD O I L O MBISTA ARAÚJO
TAR : Onir de. Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista. In: PIRES, Cláudia ferino; BITENCOURT, Lara Machado . Porto etra1, 2021, p. 471-475 471 eu nome Onir de Araújo. 60 anos e nasci no Rio o, em em 1960, ou seja, no século Estou formei Universidade Federal Fluminense e fiz os cursos de bacharelado em gia e em Geografia, na Federal do Rio (UFRJ). Minha atuação começou no mento associativo, ainda na década de 1970, em Niterói, na reorganização ovimento comunitário e associativo de bair ros. Par ticipei da fundação s ociação t a mb é m, da Fe d e ra çã o da s i ações Niteró i no mesm o p e r í o d o d a f o r ma çã o d a ação de de Moradores do Rio de Janeiro e da de s. Comecei a no movimento estudantil, na Faculdade de Direito F e, ainda muito vinculado ao movimento associativo, fui do rio i aulas de nas cidades de Niterói e de Cachoeira de Macacu, m, no Rio de Janeiro, mas me voltei muito o movimento sindical e, atuação, viajei bastante pelo Brasil na construção desse referencial eados meio tempo, eu tinha uma relação, pois atuava, na década de 1970, vimento Negro Unificado (MNU ), inclusive, com dos fundadores NU, como Wilson Prudente, que, na residia em Niterói. A marcha, onando um histórico, pois sta realizada em de 2020 aos do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Giulia ção Flores
UM XANGÔ CARIOCA NOS TERREIROS DO SUL: DR. ONIR, QUILOMBISTAADVOGADOCOMOCITAR:
ARAÚJO, Onir de. Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS Alegre: Letra1, 2021, p. 471-475 471
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
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O MNU tem uma importância fundamental, que pautou e que pauta boa parte do que se discute, hoje, na luta antirracista. Foi e é uma fonte muito importante na formação de todos nós. Boa parte das entidades que derivaram do MNU, a União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), as Ações Pastorais do Negro (APNs), ligada à Igreja Católica, a Coordenação de Entidades Negras (CONEN), teve, como referência, como matriz, o potente surgimento do Movimento Negro Unificado; em plena Ditadura Civil-Militar.
MOVIMENTO NEGRO E FRENTE QUILOMBOLA DO RIO GRANDE DO SUL
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De certa forma, a Frente Quilombola surge, a partir do processo de ruptura interna do MNU, através de um distanciamento dos documentos e dos princípios fundantes do MNU e, em especial, da questão da autonomia política organizativa do Movimento Negro e da luta do povo negro. Nós, ainda no MNU, já vínhamos numa rota de colisão interna e, em 2010, no Fórum Social Temático, aqui, em Porto Alegre, insatisfeitos com o MNU, e as comunidades quilombolas, insatisfeitas com a linha adotada pela direção da CONAQ2, apontamos a necessidade extrema de enfrentamento nos territórios quilombolas e, então, fizemos um primeiro 1 Marcha realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1988, que reuniu mais de cinco mil pessoas e que teve, por objetivo, questionar, ainda em período de redemocratização política, as medidas de exclusão e de violência social contra os povos negros, presente nos tratados abolicionistas, assinados ao final do século XIX.
Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista S sofremos dura repressão, quando estávamos quase na Av. Presidente Vargas1 . Em determinado momento, o meu foco girou completamente para o movimento negro, apesar de estar trabalhando, como advogado, nas questões sindical e de justiça do trabalho. Sou filho de Odir de Araújo e de Theobeli Lopes dos Santos, meu pai é do interior do estado do Rio de Janeiro, de uma comunidade quilombola de Campos dos Goytacazes, e a minha mãe tem uma origem de forte referencial indígena. Eu sou pai de Pablo Costa de Araújo, que me deu um neto, o João, que reside no município do Rio de Janeiro, e da Adara, minha filha mais nova, que mora em Porto Alegre. Essa é, mais ou menos, a minha trajetória.”
“Eu, como boa parte da militância da minha geração, bebeu da importante fonte do Movimento Negro Unificado (MNU), a quem atribuo boa parte da minha formação. O MNU surgiu como Movimento Unificado Contra Discriminação Racial (MUCDR), em julho de 1978 [...]. Desse encontro de rearticulação do Movimento Negro em nível nacional, desde o fechamento, na ditadura Vargas, da Frente Negra Brasileira [...]. Nós tivemos o Teatro Experimental do Negro, nesse meio tempo, e só retomamos uma articulação nacional, em 1978, com o MCDR, que, depois, veio a se tornar o MNU.
2 CONAQ é a sigla para Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, fundada em 1995.
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COMO É SER ADVOGADO POPULAR DA CAUSA QUILOMBOLA EM PORTO ALEGRE E QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS ENTRAVES DA REGULARIZAÇÃO
“Foi e está sendo um aprendizado. As territorialidades negra, quilombola e indígena entram no cenário jurídico político do país 100 anos, após a abolição, com a Constituição Federal de 1988. Houve mobilizações indígena, negra e quilombola, para escrever os artigos 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz respeito à titulação de territórios quilombolas, o 231, que se refere à questão indígena, e o 215 e o 216, os quais colocam que a contribuição dos negros e dos indígenas é considerada fundamental na construção da nossa nacionalidade e que o racismo é um crime. No primeiro momento, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), esse direito começou a sofrer restrições do judiciário. O Decreto nº 3.912/2001, que regulamenta as disposições, para a identificação, para o reconhecimento, para a delimitação, para a demarcação, para a titulação e para o registro imobiliário das terras por quilombolas, que ninguém comenta, visava à regulamentação da Constituição Federal. A interpretação restritiva colocava em xeque a própria Constituição Federal, inaugurando a famigerada tese do marco temporal. Ou seja, eles estabelecem o marco temporal, para a efetividade do direito da própria Constituição de 1988, logo quem estivesse nas terras reivindicadas em 1988,
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FUNDIÁRIA DOS TERRITÓRIOS?
Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista N S OL lançamento, aqui, em 2010, com comunidades de Santa Catarina, do Paraná e do Rio Grande do Sul. Em 2012, fizemos uma grande plenária de consolidação da Frente na Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro. Naquele momento, a articulação da Frente tinha ideias muito fortes no Maranhão, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Nessa caminhada, a pressão institucional levou uma parte, que se adaptou às instâncias institucionais, e nós seguimos numa articulação muito forte com o pessoal do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM), que tinha uma proximidade muito grande com o nosso ponto de vista. Daí, surgiu, em 2014, a Articulação Nacional de Quilombos, contando com Maranhão, com Rio Grande do Sul, com Bahia, com Minas Gerais e com outros estados, em uma articulação nacional de enfrentamento, necessária à consolidação dos territórios quilombolas. Desde então, a Frente vem nessa construção e, aqui no estado, estamos na busca de alianças entre “os deserdados da terra”, caminhando com os povos originários kaingangs e guaranis, desde 2010, através de uma organização horizontal chamada Assembleia dos Povos. Em 2019, realizamos a quarta edição da Assembleia dos Povos na Escola Municipal de Educação Básica Dr. Liberato Salzano Vieira Cunha, próximo ao Quilombo dos Machado no bairro Sarandi, zona Norte de Porto Alegre.”
Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista N S OL poderia reivindicar o título dessas áreas. Essa tese consolida o esbulho histórico, sofrido ao longo de 500 anos. Em 2003, na mudança de governo, surge o Decreto nº 4.887/2003, que, de certa forma, faz homenagem ao Artigo 68 da Constituição. O texto do decreto procura dar efetividade à titulação das terras quilombolas, estabelecendo a competência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na efetivação das titulações e definindo o papel da Fundação Cultural Palmares, no que se refere à emissão da certificação.
Essa construção se deu, através de muita pressão, por parte dos movimentos quilombolas e negros, e compõe a coluna vertebral do arcabouço jurídico de proteção aos territórios. Nossa atuação foi justamente nos sentidos de dar efetividade a esses direitos, conquistados a duras penas, e de garantir segurança jurídica aos territórios, que, de fato, já existiam e que existem, mesmo antes da Constituição de 1988.
As questões quilombola e indígena trazem, para a Constituição Federal de 1988, os referenciais coletivo e comunitário e, de certa forma, expõem o paradoxo, presente na Constituição. Essa construção, de traduzir o direito, de forma que ele tivesse efetividade, foi sendo feita com muita dificuldade, muito ao chão das coisas. É um quadro muito difícil, porque, passados praticamente 32 anos, desde a Constituição Federal de 1988, apesar de termos seis mil comunidades autodeclaradas em território nacional – e isso não é uma coisa estática, um resquício arqueológico; é uma coisa dinâmica e as pessoas estão vivas –, temos pouco mais de 220 comunidades tituladas no país inteiro. Aqui, no Rio Grande do Sul, são quatro, entre elas, o Quilombo da Família Silva, que, de certa forma, inaugura, ao nível nacional, dos pontos de vista jurídico e político, a questão quilombola no contexto urbano. Minha atuação, não, só, como advogado, mas, digamos, como soldado dessa causa, tem muito a ver com a experiência do Quilombo da Família Silva. Eu me lembro de que, na singela festividade do título, em 2009, um camarada muito importante, o Miltão, falou que aquelas 18 famílias, na época, abriram os caminhos para milhões no Brasil e, realmente, às vezes, a gente, por estar no olho do furacão, não tem a noção da importância de coisas, que, aparentemente, são pequenas e que envolvem um número não muito grande de pessoas. Mas a historicidade, a riqueza das coisas traduzidas naquele espaço, naqueles corpos, é uma coisa de que a gente não tem muita noção, estando tão envolvido, mas que, agora, olhando para trás, a gente vê que faz todo o sentido. Então, a tradução dessa existência é uma batalha permanente, porque o Estado foi construído, historicamente, apesar das contradições, para que esses direitos não sejam cumpridos. Na página da Frente Quilombola3, há um parecer, 3 Página da Frente Quilombola RS no Facebook: https://www.facebook.com/FrenteQuilombolaRs.
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475 Um Xangô carioca nos terreiros do Sul: Dr. Onir, advogado quilombista N S OL composto por um escritório, daqui do Rio Grande do Sul, especializado em propor os pleitos quilombola e indígena. Aquilo fica lá, para a gente se lembrar do tempo, em que nós estamos lidando. O título do artigo é Como a questão quilombola afeta e atrapalha os seus negócios, mais ou menos assim, ou seja, eles estão bem cientes do que tudo isso significa, pois, afinal de contas, vêm de uma cepa de 520 anos de dominação, que escravizou os nossos ancestrais por quase 400 anos, ou seja, eles têm conhecimento. São várias, as medidas e os projetos legislativos, que estão tramitando, que atacam a coluna vertebral dos direitos quilombolas. É um quadro muito complexo e nós sabemos o quanto o Estado encara, não, só, os corpos negros, mas, também, seus territórios, como uma profunda ameaça aos seus interesses, que bebem na fonte dos maiores crimes da humanidade, que foram o tráfico tumbeiro e a escravização da violência colonial, que praticamente implementaram o genocídio dos povos originários da América. Eles sabem muito bem o que significa um levante, a partir desses referenciais, no sentido de efetivar esses direitos [...] e, hoje, é constatado que o vírus está sendo utilizado como uma arma biológica de contenção e de violência contra os povos. Isso coloca a necessária centralidade dos direitos quilombolas.”
Foto: Ariel Rocha de Lima, 2021
“Meu nome é . Sou natural de Viamão, mas cresci e me criei na vila João Pessoa, no bairro Partenon, em Porto Alegre, portanto, reconheço-me como porto-alegrense. Tenho 61 anos e gostaria de começar essa conversa com uma frase do Paulinho da Viola. Essa frase representa a construção da nossa cidadania, em que nós nos conhecemos como cidadãos do Brasil: ‘ Essa frase reflete o que vejo na minha vida e faz parte da música Coisas do mundo, minha nega Muito, desta frase, tenho como norte: as coisas estão no mundo e nós devemos aprender. Dizer que o Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes de Quilombo (IACOREQ/RS) é fruto dessa caminhada me demonstra que as coisas estão no mundo e eu tenho que aprender. Falando um pouco da minha trajetória, ela se inicia na militância do movimento social negro, por volta de 1976, quando fui convidado, por uma turma de amigos do bairro Auxiliadora, a participar do grupo social Razão Negra. Lá, participei de reuniões e foi um período de aprendizado. Quando ingresso no mundo do trabalho, passo a atuar no Sindicato dos Metroviários. No segundo encontro, intitulado O Negro no Mercado de Trabalho pelo sindicato, encontrei outros amigos, que já militavam na questão sindical contra a discriminação no local de trabalho. Estes amigos são referências, com as quais aprendi, militando no Partido dos Trabalhadores (PT) e participando da reestruturação do Movimento Negro Unificado (MNU) aqui no estado, em 1990.
eu nome Ubirajara Carvalho Toledo. Sou natural de Viamão, mas cresci criei na vila João Pessoa, no bairro Partenon, em Porto portanto, heço-me como Tenho 61 anos e gostar ia de começar onversa com uma frase do Paulinho da Viola. Essa frase repres enta a ução nos conhecemos como cidadãos do ‘as coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender.’ Essa Coisas do mundo, minha nega. desta tenho como norte: as coisas estão no mundo e nós devemos der. Dizer que o Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes ilombo é fruto dessa caminhada me demonstra que as estão no mundo e eu tenho que l ando um p ouco da minha traj et ó ria, ela se inicia na milit â ncia do mento social negro, por volta de 1976, fui convidado, por uma de amigos do grupo . participei de reuniões e foi um per íodo de aprendizado. Quando so no gundo encontro, intitulado O Negro no de Trabalho, organizado indicato, a de trabalho. são referências, com is (PT) participando uturação do Movimento Negro Unificado (MNU ) aqui no estado, em 1990. sta realizada em de 2020 aos do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Lara do Laura Isabel dos Santos Flores
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS CarvalhoCO I S A S E S TÃO N O N DO, S Ó QUE EU EC IS
TOLEDO
* Entrevista realizada em agosto de 2020 aos integrantes do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Lara Machado Bitencourt, Laura Isabel dos Santos Flores. O C O M I RA JARA C ARVA L H O L ED O E O IA C O R E Q
TAR : , Carvalho. As coisas estão no mundo, só Carvalho PIRES, BITENCOURT, Atlas da presença ola Porto . Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 477-481
COMO CITAR: TOLEDO, Ubirajara Carvalho. As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender com Ubirajara Carvalho Toledo e o IACOREQ. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). quilombola em Porto Alegre/RS 477
Ubirajara CarvalhoAS COISAS ESTÃO NO MUNDO, SÓ QUE EU PRECISO APRENDER COM UBIRAJARA CARVALHO TOLEDO E O IACOREQ
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As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender com Ubirajara Carvalho Toledo e o IACOREQ A partir deste reencontro, ocorre um momento de reformulação da militância no mundo do trabalho, destacando a dificuldade dos setores da esquerda em entender a discriminação, que ocorre no mundo do trabalho. Foi a partir deste momento que encontramos, dentro do MNU, o professor José Carlos dos Anjos (UFRGS), quando assinamos uma tese, dentro do MNU, intitulada Raça e Território, e também havia outra tese, intitulada Raça e Classe. Esse período foi muito rico, de muita efervescência, e, então, o IACOREQ nasce, a partir dessas trajetórias militantes, destes espaços dos movimentos sindicais e da luta contra o racismo e contra a discriminação, que nós, pessoas negras, vivemos. Já atuei como presidente do IACOREQ, mas, esse ano, sou coordenador jurídico, em função da última eleição, apesar de não ser advogado, estou nesta, pois tenho o conhecimento da questão jurídica quilombola.
O IACOREQ E A ASSISTÊNCIA TÉCNICA ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS
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1 Professora e antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina, precursora na elaboração de estudos técnicos, voltados à causa e à temática quilombolas.
Em 1999, tivemos a oportunidade de participar, enquanto organização Movimento Social Negro, de um trabalho na comunidade quilombola de Casca, no município litorâneo de Mostardas (RS). A partir do contato da antropóloga Ilka Boaventura Leite1, foi possível conhecer e, também, nos integrarmos ao trabalho com a comunidade de Casca. A primeira reunião de que participamos, lá, foi em maio de 1999 e, a partir dessa imersão, mergulhamos na luta contra a remoção da Vila Mirim2 . Em Casca, fomos conhecer a realidade, que nós não conhecíamos, enquanto militantes: a das comunidades negras do mundo rural. Isso foi marcante e emblemático para as nossas vidas. Nos integramos à luta de cooperar com aquela comunidade. A partir desse contexto, nós, enquanto militantes, apresentamos
2 Comunidade localizada nas proximidades do centro de Porto Alegre, removida, em 1999, para dar lugar ao entroncamento das avenidas Nilo Peçanha e Carlos Gomes.
O IACOREQ é uma organização do Movimento Social Negro, que surge com o objetivo de auxiliar as comunidades negras rurais, dentro do conceito de comunidades remanescentes de quilombos. É uma forma de tirar da invisibilidade a população negra e as comunidades quilombolas do nosso estado. Surgiu em um momento de encontro de vários militantes do movimento negro e de setores e de áreas distintas do conhecimento, que tinham o interesse de aprofundar conhecimentos. Então, a partir desses militantes, que já estavam e que estão envolvidos com a questão do conhecimento e da troca de saberes, através de formações, que vinham acontecendo, surge o IACOREQ e, com ele, o compromisso de auxiliar tecnicamente as comunidades quilombolas rurais.
As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender com Ubirajara Carvalho Toledo e o IACOREQ um projeto para o Conselho de Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra (CODENE/RS), para trabalhar essa realidade. Foi um projeto lindo, e acolhido pelos integrantes do CODENE, que se tratava de um curso de formação de agentes, para atuar nas comunidades quilombolas do RS. Até o momento, sabia-se que havia 46 comunidades quilombolas no estado. O levantamento desta discussão foi muito importante, para romper com a invisibilidade negra no Sul do país. Com a aprovação deste trabalho, nós começamos esse curso de formação, que vem a ser o embrião da constituição do IACOREQ, contando com professores da UFRGS e da UFSC. Além de ter sido muito rico, teve bastante procura.Acomunidade
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de Casca protagonizou a articulação da primeira Associação Quilombola fundada no RS, em maio de 1999; coube a nós, dentro desse processo de troca de saberes, de formação e de escuta, auxiliar a comunidade a fazer a discussão da sua representação e seus fortalecimentos democrático e participativo, reforçados pelos laços de solidariedade. Entre maio e outubro de 1999, visitamos sempre a comunidade de Casca, fazendo esse exercício de cidadania, em que discutimos os itens e a composição do estatuto da associação com a comunidade. O estatuto ficou pronto e tivemos a primeira eleição, em outubro de 1999. Em 2 de janeiro de 2000, registramos o estatuto da associação e, em julho de 2001, Casca foi reconhecida, pela Fundação Cultural Palmares, como a primeira comunidade quilombola do estado.
Esse processo também faz parte da história do IACOREQ, pois foi a partir dessa experiência e desse aprendizado que, no dia 21 de dezembro de 2001, fundamos oficialmente o IACOREQ. Gosto de usar uma frase do antropólogo Alfredo Wagner, que conheci no Fórum Social Mundial, também em 2001: ‘Olha, nesse momento, os quilombolas estão trabalhando; não estão aqui, mas, no processo de mediação, os protagonistas são os quilombolas e nós somos atores coadjuvantes.’ Essa fala mostra qual é o nosso papel; um papel de mediação, mas, também, de fortalecimento, de estar ao lado das comunidades, para replicar e para amplificar as demandas quilombolas. [...] Desde 21 de dezembro de 2001, são 20 anos de história. Uma das constatações que eu faço é a de que essas relações foram e são construídas, através de uma ética, junto a pesquisadores da universidade, como historiadores e geógrafos, que trazem consigo os seus conhecimentos, às comunidades quilombolas e às organizações do Movimento Social Negro, que interagem na construção de um processo de resgate, de fazer valer aquilo que está consagrado na lei, que é o dispositivo do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que diz: ‘o Estado brasileiro deve reconhecer e emitir o título das comunidades quilombolas que ocupam seus territórios’ . A perspectiva da nossa contribuição é a da possibilidade de apresentação esse direito, respeitando os tempos e os
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Além disso, nós, do IACOREQ, participamos ativamente, com os quilombolas, em demandas jurídicas de reconhecimento das comunidades quilombolas do Rio Grande do Sul. Em 2001, houve um golpe contra os interesses das comunidades, com a Lei nº 3.912, do Fernando Henrique Cardoso (FHC). Em 2003, em outra conjuntura política, são realizadas audiências públicas, em Brasília, e lá são recebidos quilombolas, pesquisadores e estudantes e, mais uma vez, o IACOREQ também se faz presente. Dessa ar ticulação surgiu o Decreto n° 4.887/2003, que trata da regulamentação, da delimitação e da titulação das comunidades quilombolas do país. Foi um momento de celebração, essa conquista, pois incluiu a escuta das comunidades e dos pesquisadores das universidades. [...]
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As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender com Ubirajara Carvalho Toledo e o IACOREQ ritmos das comunidades, mas a decisão de fazer valer aquilo que está na lei é da comunidade. As decisões das comunidades são soberanas, porque não existe ninguém melhor do que as pessoas de um território para saber o que é bom para a sua comunidade.
Minha militância pela causa quilombola vem da luta antirracista e faz parte da minha história: meus familiares moravam no limite da cidade, no bairro Azenha, em Porto Alegre. A partir do crescimento da cidade, houve a nossa expulsão, e da população desse entorno, para lugares mais longínquos, a título de uma modernização, ao invés de garantir a permanência. É assim que começo a enxergar o racismo: do olhar da localização. Contudo, agrupávamo-nos e nos reuníamos nos bairros, e sobrevivemos a esse processo de estar sempre sendo observado e policiado; sempre na periferia da cidade. Na medida em que a cidade vai crescendo, há a expulsão das comunidades, ao invés de garantir a sua permanência. Essa é a percepção que tenho, a respeito de como se dão os mecanismos do racismo: percebemos a violência estatal no trato com a comunidade negra. Sou morador do bairro Partenon, me criei no sopé do Morro da Cruz e essa é um pouco de minha trajetória”.
N S OL CORPO, SONS E MOVIMENTO
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
COMO CITAR: MORAES, Clarice. ao CORpo!. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 483-492 483483
Com esta saudação, referencio aos orixás femininos Iemanjá, Oxum, Oyá, Obá, Ewá e Nana, respectivamente. Por experienciar esse feminino, de acordo com Gleason “[...] as qualidades femininas habitam o fogo, a água, o vento e a terra” (2006, p. 90).
Lá, próximo ao Campo da Tuca, no bairro Partenon, na zona Leste da cidade de Porto Alegre, num dos primeiros bairros constituídos pela população negra, QUILOMBOLAS
Clariceao CORpo! MORAES
ventre fluído cria, odya teu útero gera, ora yeyo aos teus movimentos nasci, eparreyo com teu corte liga ao novo mundo, Óba os segredos dessa criação manifesta, Ewa. ao retornar a massa de origem acolhe em sua casa, saluba. das minhas mais velhas a sabedoria para escrever o que há muito foi vivido visibilize nessas linhas as palavras em memória, Jaci e Nercy Moraes por um devir, Martina Bevilacqua
Ao fazer esta saudação, identifico-me e ressalto a importância do que Ribeiro (2017) nos ensinou sobre o lugar de fala. Esse é o lugar de fala de uma mulher negra, nascida na periferia de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul. Estado que cultiva o orgulho de ser a “Europa” do Brasil, por ter o clima frio, similar ao dos países europeus, mas, principalmente, por visibilizar, em seus CORpos, a pele não negra que os revestem. Mesmo sabendo que houve um contingente grande de degradados, que escolheram entre a forca e a vida incerta na nova terra, esse orgulho ainda perdura. O frio também caracteriza um tipo distante de relações interpessoais.
há uma força do elo umbilical, que nos impele às reidentificações simbólicas com as culturas “africanas”. Essas reidentificações constituíram e constituem o self. É esse espaço de consciência política que, após ter seus ancestrais sequestrados d’África e escravizados, opta por não mais inscrevê-los ou se referir a eles como escravos, visto que, simbolicamente, ao dizer e/ou grafar esta palavra, não me reconecto às “culturas africanas”, de que o autor nos fala. Não rompo com os grilhões, mas, sim, reforço as amarras deste sistema de opressão, que foi e que é o da escravidão.
1\ Na língua ioruba, não existe a letra “x”. Esta é trocada pela letra “s”
484 ao CORpo! N S OL que foi expulsa do centro da cidade, que eu, Clarice Moraes, filha de Osùm1 , nasci e vivi, por muitos anos, adepta às deusas e aos deuses da cosmovisão africana, os orixás. No Rio Grande do Sul, o culto aos orixás é denominado batuque. Existem várias denominações para o culto aos orixás no Brasil e no mundo, como macumba, candomblé, tambor de mina, babaçu, Sangô, santeria, entre outros. A devoção aos orixás é parte inerente à minha identidade. Apoio-me em Adékòya (1999), que nos afirma: “[...] a natureza do universo sagrado é, portanto, imanente e, não, transcendente”. Compreendo que essa natureza sagrada é inseparável do ser e do estar neste mundo visível. Cabe-me ressaltar que, intencionalmente, utilizo a palavra culto e, não, religião, uma vez que, etimologicamente, esta última palavra significa religar ao sagrado. E, tendo em vista que nossas práticas são inerentemente sagradas, cotidianamente cultuamos e estamos em estado emanante, como nos afirma Adékòya. Este capítulo visa a abordar o território chamado CORpo (visto que somos gentis de CORpo!), esse lugar político, simbólico, social e econômico, que nos identifica na sociedade. Conforme Nobrega (1999, p. 55), “[...] a cultura negra coloca a liberdade corporal no centro de todo o processo comunicativo; chocase com o comportamento burguês-europeu, que impõe o distanciamento entre os corpos”. É a partir dessa liberdade CORporal – não aceita, pelos padrões políticos estabelecidos – que meu CORpo comunica. Minha presença choca, visto que está em oposição às consequências econômicas, a nós impostas por esse comportamento burguês-europeu. E é sobre a centralidade da cultura negra, na qual emano minha essência simbólica, que me aproxima dos meus, que quero Conformediscorrer.Hall(2009),
Sim, existia escravidão em África, mas a implementada por europeus e por americanos era diferente em suas práticas desumanizantes, na conversão de seres humanos em mercadorias e em efetiva coisificação. Portanto, ao repetirmos essa palavra, estamos repetindo um oro (oração em ioruba), criado para desumanizar/ coisificar o meu, o teu, o nosso antepassado e para perpetuar esses efeitos
2. Esta hegemonia não tem, por princípios, a modulação e a padronização dos CORpos e a consequente exclusão dos diferentes?
485 ao CORpo! N S OL danosos em crianças, em jovens e em adultos, que, como eu, não tinham a consciência desses efeitos, a qual, hoje, muitos ainda não têm. Conseguem perceber a diferença entre aquele que reagiu à opressão, o escravizado, e aquele que não reagiu, o “escravo”, figura que penso nunca ter existido na história da humanidade?Se
sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. (HALL, 2006, p.13, grifo meu)
“Se sentimos que temos uma identidade unificada, desde o nascimento, até a morte”, como nos afirma o autor, cabe-me indagar alguns aspectos dessa afirmação:1.Este sentimento de unificação não está diretamente relacionado aos efeitos, causados por este sistema hegemônico?
Estes são alguns aspectos, que contraponho ao autor, visto que a identidade atribuída aos africanos e a seus descendentes não é e nunca foi positiva. Também me contraponho ao autor, quando este afirma que “[...] construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’”. Como poderia ser cômoda, se estamos sob os efeitos deste sistema hegemônico, que nos desumaniza e que nos coisifica? Como podem ser considerados fantasiosos, os efeitos condicionantes do racismo? Há alguma possibilidade de não vestirmos essa fantasia, a nossa pele? Se existe, este ato não consistiria em negarmos nossa existência ou, até mesmo, nossa humanidade?
Souza (1983, p. 5) afirma que “[...] de fato, parece-nos evidente que o ataque racista à cor é o close-up de uma contenda, que tem, no corpo, o seu verdadeiro campo de batalha”. A autora evidencia que essa COR de pele não branca não é um
4. Esta padronização não se faz presente nas instituições de ensino públicas e privadas, bem como no acesso a bens e a serviços?
5. Em que momento e como essa identidade é desconstruída?
3. Essa moldagem não nos perpassa, do nascimento, até a morte?
Singuê singuê2 2 Termo extraído do vídeo de Makota Valdina, disponível em: https://web.facebook.com/saberestradicionais/ videos/1114715992033823/?v=1114715992033823.
Foi e é nas expressões culturais que nos amparamos, para enfrentar as inconformidades das situações vividas. Os autores Cabral e Levandowski (2013) explanam sobre as vertentes da psicanálise e apontam para características necessárias, ao enfrentamento das adversidades, com respostas positivas a elas. Ou seja, sob a ótica analítica, ser altruísta, ter modelos flexíveis, ser criativo, adaptável e capaz de sublimar e de ter humor são chaves no enfrentamento a estas situações. Este conjunto de características é denominado resiliência, pelaEupsicanálise.diriaque é a definição do ser NEGRXS. Gentis, somos um exemplo GRITANTE da personificação destas características. Há, no termo utilizado entre os sequestrados d’África, quando na travessia, que, em média, tinha a duração de três a seis meses, em condições aviltantes, nós, agora escravizados, nos chamávamos de MALUNGO, que significa irmão, camarada, colaço. COLAÇO? Sim, bebemos do mesmo leite, nascemos no mesmo berço, somos crias das mães Iemanjá, Osum, Oyá, Obá, Ewá e Nana. Malungo sou eu; malungo é você; malungo somos nós. Ubuntu é outro termo, cujo sentido nos revela que “sou o que sou, pelo que nós somos”. Sob esses pressupostos, realmente poderíamos construir “uma confortadora “narrativa do eu”? Sob esta perspectiva, poderíamos afirmar que, ao sermos escravizados, revigoramos o que Oliveira (2007, p. 101) nos afirma: “[...] a história dos ancestrais africanos permanece inscrita nos corpos afrodescendentes”, tornando o presente próximo ao passado não muito distante, através das vívidas manifestações culturais, para, então, nos confrontarmos com o escreve Hall: “somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis”?
Sim. Somos d’COR, d’naturezas d’ferentes d’orisàs d’corpos visíveis e invisíveis.
486 ao CORpo! N S OL espaço cômodo ou tampouco fantasioso, visto que essa delimitação territorial, nosso CORpo, exige-nos permanente prontidão, frente à realidade, que é a de enfrentarmos os ataques racistas e aos racistas numa sociedade racializada. Portanto, inexiste comodidade.
Foram séculos de escravização de africanos, sequestrados de diversos países. Quando os invasores (que, nos livros didáticos, são conhecidos como colonizadores) chegaram ao berço da humanidade, a África, este continente era povoado por incontáveis etnias, que ocupavam o território, de acordo com seus hábitos e seus costumes. Ao invadirem, eles, “os colonizadores”, dividiram territórios em terras, conforme seus interesses financeiros, e o resultado desta divisão resultou em cinquenta e seis países, atualmente. Nesta separação, desconsideram a presença das inúmeras etnias, que ocupavam seus territórios, de acordo com seus diversos hábitos, com seus cultos, com seus modos de produção e com suas tecnologias, desenvolvidas a partir das necessidades exigidas pelo território. E tampouco consideraram suas diferentes línguas.
SIM, DISSE LÍNGUAS. Não são dialetos, visto que são faladas por um número muito grande de pessoas. Como é de praxe na cultura dominante, aquilo que desconhece ou que é diferente é desvalorizado e desqualificado, então, mais uma vez, a escolha de chamar dialetos às línguas africanas é uma maneira de pejorá-las.Vistoque os países adotaram, como oficial, a língua do invasor, por uma opção política ou, poderíamos até dizer, oficiosa, porém, concomitantemente ao oficioso, as línguas maternas permanecem fluídicas e vivas.
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A partir desse período histórico de presença dos invasores, nós, que éramos balantas, bijagós, fulas, haucás, berberes, mandes, afares, zulus, sans, oromos, massais, edos, wodaabes, batwas, hutus, tutsis, hamers, iorubas, igbos, amharas, ijaws, xonas, xhosas, basothos, bapedis, vendas, tswa nas, Tsongas, swazis, ndebeles, sudaneses, axantis, bandas, binis, budumas, bozós, dagombas, dinkas, ebiras, ewés, fantis, gurunsis, himbas, isocos, bacongos, kongos, songais, tuaregues e de muitas outras etnias, agora, somos tipificados ou identificados comoPortanto,NEGRXS.foisob as perspectivas eurocêntrica, helenista, racista e colonialista que passamos a ser vistos e entendidos neste novo mundo, conforme nos escreveu Fanon. A partir da visibilidade, exposta pela COR da nossa pele não branca, todas as diferenças étnicas passaram a inexistir. Esta rotulação tem, por objetivo, exterminar as múltiplas línguas, as inúmeras indumentárias típicas, os diversos cultos, os diferentes hábitos alimentares, as diversas visões de mundo, ou seja, eliminar as diferentes expressões culturais. A nós foi e é atribuída uma única característica, que se delimita pelo território do negro CORpo.
Singuê, termo utilizado na língua ioruba, que significa seguir no caminho apoiado um ao outro, o aqui-e-agora. É sobre os efeitos deste presente vivido que nos escreve Fanon (2008, p.15): “[...] o racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e de viver nele”.
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Este fato nos induziu e no induz a retornarmos às “culturas africanas” e a reestabelecer a força umbilical, de acordo com Hall (2009). Acessar essa força implica transpomos todas as formas de desumanização, às quais fomos e continuamos submetidos. É traçar uma linha-mestra, opondo-nos aos métodos excludentes, contidos nas práticas racista e colonialista, que integraram e que integram o nosso modo de ser e de estar no aqui-e-agora. Nascimento ressalta o tipo de comportamento que nos é dedicado, institucionalmente, quando escreve: Mas os que conhecem a realidade não podem senão olhar com horror para efetivo genocídio de um comportamento institucional destinado a matar a cultura dos negros, a história dos negros, os vestígios de suas raízes humanas, sua religião, sua memória. E a própria dignidade de sua raça, que só começa a melhorar à medida que vai sendo eliminada pela brancura gradual da pele. Isto é: um negro só é bom quando tem a alma branca. Só melhora, quando perde sua cor e sua alma. Então ser branco é bom. E ser negro é ruim”. (NASCIMENTO, 2000, p. 125)
Para nós, afrobrasileiros3, foi negada a possibilidade de sabermos de qual etnia e de qual território nossos antepassados vieram, visto que, em um ato político, todos os documentos, relativos a nossa procedência, foram queimados no período pós-escravagista e, com eles, nossas origens étnicas, em uma tentativa de nos desprover de nossas raízes, da nossa história, da nossa cultura, da nossa humanidade, como afirma Nascimento (1978), visto que somos negros e que ser negro é ruim, pois não temos passado, vivemos num presente de opressão e não temos a certeza sobre um futuro.
Quanta imbecilidade está contida na expressão “seres de ilusões”, utilizada por Sodré (1988) para se referir aos europeus, que desembarcaram em África. Eles, os “seres de ilusões”, ignoravam nossa escrita, o hieróglifo, antiga escrita do Egito, berço da civilização e desconheciam Timbuktu, a primeira universidade da história da humanidade. Os homens do avesso somente entendiam da “mercadoria” humana, que lhes gerava lucros comerciais. Dussel ressalta o papel da Europa, em relação ao sistema-mundo, quando escreve: Capitalismo, liberalismo, dualismo (sem valorizar a corporalidade), instrumentalismo (o tecnologismo da razão instrumental), etc., são efeitos do manejo dessa função que coube à Europa como “centro” do sistema-mundo. Efeitos que se tornam sistemas, que terminam se totalizando. A vida humana, a qualidade por excelência, foi imolada à quantidade. O capitalismo, mediação de exploração e acumulação (efeito do sistema-mundo), depois se transforma num sistema formal independente que, desde sua própria lógica auto-referencial e 3\ A norma ortográfica para esta palavra exige hífen, por posição política opto por não utilizar o hífen para que nós afrobrasileiros não sejamos apartados de nossa brasilidade.
Conjunto de padrões de comportamento, tanto mentais como físicos, aprendidos e ensinados por membros de um grupo social, através de gerações. Como relação à Diáspora Africana, esse acervo, ao recriar formas ancestrais e se colocar a serviço de seus agentes, constitui o que genericamente se conhece como “cultura negra”
Indo ao encontro de Valdina (2019), digo que essas forças são os alicerces da nossa existência e que estamos repletos e somos partículas delas, visto que, ao sobreviver de três a seis meses à travessia do oceano Atlântico em condições subumanas, dentro dos tumbeiros, dos navios negreiros, reafirmamos e exteriorizamos nossa natureza sagrada, através da nossa cultura, em um novo mundo, como afirma Lopes (2004, p. 221):
4 Trecho do documentário Darcy Ribeiro - O povo brasileiro: a formação e o sentindo do Brasil, de Isa Grinspum Ferraz, de 1995.
5 Trecho extraído do vídeo Retrato da Mestra Makota Valdina, disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=FAc4CJr4qtM, acessado em: 28 mar. 2020.
autopoiética, pode destruir a vida humana em todo o planeta. (DUSSEL, 2007, p. 63)Alinhada a Dussel (2007), e a partir desta constatação, cabe-me questionar: porque muitos ainda têm ou cultivam o orgulho de terem antepassados ou de terem sido gestados, a partir da premissa de destruição do outro? São Inumanos, “seres de ilusões” ou men do avesso. Hoje, em pleno século XXI, com uma pandemia sem precedentes em curso, pensamos na Europa, “centro” do sistemamundo, como descreve o autor, a qual se encontra sob os mesmos efeitos do vírus, que atingirá ou não a uma comunidade num território longínquo ou, de acordo com sua visão, um território “periférico” do planeta, torno a perguntar: em que medida a desvalorização do “outro”, o tecnologismo, o totalitarismo, a desqualificação e desvalorização da vida, a exploração e o acúmulo de capital lhes foi ou será útil neste momento? Que aberração! Que contradição! Que aberração! Que contradição!
Na história da humanidade, alguém já viu um nagô esquecer suas origens e sua identidade cultural, se ela está marcada em seu rosto e tão incrustada em seu coração?
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4 . Mas os “seres de ilusões”, os inumanos ou homens do avesso, cuja religião era e é o capital, não compreendem que nos relacionávamos e nos relacionamos com a natureza, que nós somos natureza. De acordo com Makota Valdina5, os orixás são o princípio de tudo, pois são as forças da natureza. Quando se refere a este fato, a autora observa: no princípio, a terra era composta de água, de vento, de fogo e de ar. Os animais e os seres humanos passaram a habitar a terra milhões de anos depois. Os orixás, continua Valdina, são a corporificação dessas forças.
Declaro: nesse território d’ COR po ébano, orixás habitam. São nossos ancestrais, que nos destinam seus ensinamentos, os quais recriamos, conforme aponta Lopes, na “cultura negra”. É o CORpo, o agente intermediário visível entre o que foi apreendido e o que será narrado. Assim como faziam e fazem os griôs em África. Eles são responsáveis pela manutenção da genealogia de muitos povos, amparados nos valores civilizatórios africanos e afrobrasileiros, cujos padrões de comportamentos mental e físico constituem expressões da cultura negra, como afirma Lopes.
Os valores civilizatórios são a força vital, também chamada axé, a religiosidade, a circularidade, a memória, a ancestralidade, a musicalidade, a ludicidade, a complementariedade, a oralidade e a corporeidade. Mesmo entendendo que todos esses padrões de comportamento estão imbricados e se manifestam em nosso ser/fazer, deter-me-ei na corporeidade, pois entendo que nada acontece fora do CORpo. Como nos afirma Berge (1988, p. 32), “[...] nada está separado de nada, e o que não compreendes em teu próprio corpo, não compreenderás em nenhuma outra parte”. E tenho dito! Em conformidade com Sodré (1988, p. 98), “[...] através do rito, o indivíduo incorpora força cósmica, com suas possibilidades de realização, de mudança e de catarse. Ao incorporar, ocorre a ligação entre os mundos do visível e do invisível, do sagrado e do profano, mas tal se dá, repito, em uma forma corpórea, unindo-se, então, corpo e alma”. Para tanto, in CORpo oro e, nesse estado sagrado, danço, canto, brinco, durmo, calculo, leio, como, bebo, falo, enfim, realizo e sou realizada, liberto-me, pois permuto entre os mundos visível e invisível e, indo de encontro ao autor, não experimento o profano, visto que ele inexiste. Freitas (2005) escreve: RITO = RITMO RITO = SBACANDOMBLCANDOMBLÉÉ=BATUQUETUQUE=SEMBAEMBA=SAMBA
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Acredito no poder da oralidade, visto que, na cultura africana, a palavra é sagrada. Conforme nos ensina Hampaté Bâ (2017), “[...] as palavras eram divinas, porque ainda não haviam entrado em contato com a materialidade. Após o contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se carregaram de sacralidade”.
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Desse modo, impregnada dessas memórias CORporais, cujos sentidos expressam a ancestralidade, a sacralidade do meu ser/estar encontra, no
GLEASON, Judith Illsley. Oya: em louvor a uma deusa africana. Tradução de Angela do Nascimento Machado. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
491 ao CORpo! N S OL comunitarismo, a necessária complementariedade, para ressignificar os sofrimentos amalgamados. Tal abdica desta cultura totalizante, apega-se às expressões lúdicas, em que o ritmo da música nos remete aos sentidos, que, outrora, foram aprendidos, através das gerações, e se consagra no rito da religiosidade, que não religa, visto que nunca está separada das dimensões atemporal e igualitária, cujo círculo nos propõe o fazer/ser, que constituiu e que constitui a nossa força vital, o nosso asè.
REFERÊNCIAS ADÉKÒYÀ, Olúmúywá Anthony. Yorubá: Tradição oral e história. 2. ed. São Paulo: Terceira Margem, 1999.
A TRADIÇÃO viva: pesquisador Amadou Hampâté Bâ e a origem divina da palavra. fev. 2017. Blog Escrever dói. Disponível em BERGE,Acessohamp%C3%A2t%C3%A9-b%C3%A2-a-tradi%C3%A7%C3%A3o-viva-be558b972b49.https://medium.com/@fuiobrigada/amadou-em:13mar.2020.Yvonne. Viver o seu corpo: por uma pedagogia do movimento. Porto Alegre: UFRGS, DUSSEL,1988.Enrique. Ética da liberação da globalização e da exclusão. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, Jaiome A. Classen, Lúcia M. E. Orth. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. ENCONTRO com Makota Valdina, com seu canto e com a natureza. Curadoria e montagem: Pedro Aspahan. 2019. Disponível em: FANON,13saberestradicionais/videos/1114715992033823/?v=1114715992033823.https://web.facebook.com/Acessoem:mar.2020.Frantz.
Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
Singuê singuê balanda tumba kako – seguimos juntos, para não cair KEMÉTICA
FREITAS, Clarice Moraes. Nega ação ou invisibilidade: à cosmologia do samba. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – ULBRA, Canoas, 2005.
Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004. LOPES, Nei. Kitábu: o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Editora SENAC Rio, 2005.
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: História Geral da África. Vol I. [s.l.]: Ática. p. LOPES,183-185.Nei.
NASCIMENTO, A. do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (Prefácio)
O POVO brasileiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Produção: Fundação Darcy Ribeiro, TV Cultura e GNT. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 1995. 1 DVD (4h20min), NTSC, son., color. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileiro. Petrópolis: Vozes, SOUZA,1988.Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
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MENEGHELLO, Danuza. No jogo da capoeira, a resistência para a vida. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 493-500 493493
A capoeira é pra pessoas simples, para as pessoas que tão aí sendo escravas do sistema, e não sabe porque, nem pra que, e a capoeira dá uma luz, um caminho. A rua é um espaço de conquista, a Capoeira é pra ensinar a gente a andar na rua, ensinar a gente a sofrer. Depoimento pessoal de Mestre Pinóquio, em 2018 A Capoeira, na nossa ideia e compreensão, é a luta do mais fraco, do oprimido. Nasce assim e, assim, viceja. Cria raiz, tronco, folhas e frutas. É gestada nos porões dos tumbeiros, parida nas senzalas da terra brasilis e crescida e amadurecida no solo livre dos quilombos. A Capoeira, como, aqui, a entendemos, é consciência de que o corpo falha, perante o açoite e defronte à bala e falha, exposto à miséria e à rudeza da marginalização.
O corpo falha, mas tem instinto. A Capoeira é instinto. E, do instinto, da agonia da mordaça, nasce a raiva, digna. Na ânsia da sobrevivência, pulsa a vida, que nos força a resistir, a perseverar e a encontrar fissuras, brechas, que, no gingado do corpo, guiado pelo movimento do pensar, transformam as fissuras em força, que rompe grilhões e cadeados.
1 Este texto tem por base a dissertação de mestrado Na Roda de Rua de Capoeira: O Mercado Público de Florianópolis e a resistência política. orientada pela professora doutora Cláudia Luísa Zeferino Pires e defendida, junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2018.
O corpo falha, quando está vazio de intenção, quando a casca está oca de vida.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
DanuzaNO JOGO DA CAPOEIRA, A RESISTÊNCIA PARA A VIDA 1 MENEGHELLO
COMO CITAR:
Para Corrêa e Pinto (2013, p. 6), a Capoeira é uma manifestação cultural afrobrasileira, que possui o instinto “[...] de preservação e sobrevivência humana e cultural. Esse recurso pedagógico, típico das populações empobrecidas, sobreviveu, até nossos dias, como uma prática cultural marginal, sendo recente o reconhecimento do seu valor”.
A Capoeira, ensinada como possibilidade de liberdade, é lugar de risco. É memória social, que a traça não come. No risco, é preciso engendrar saídas, forjar táticas e aprender novamente a ouvir. Na Capoeira, em roda, é assim que nos ensinam. Primeiro, escutar, receber. O conhecimento é circular. Nos ensinam a importância de devolver com gratidão o que recebemos. Depois, mostram-nos a importância do mover: corpo e ideias. E, no movimento, preencher a rua, a cidade, e ocupar espaços geográficos e culturais. Escrever, nos territórios da cidade e do campo, a marca da liberdade. Nessa sociedade, que peca pela falta de marcas significativas, populares. São mapeáveis, as marcas do poder, e a cartografia, aqui, é instrumento que cria fantasia, que ilude e que realça o traço de quem domina. A Capoeira, a roda de rua, entendida como manifestação popular, quando traçada no espaço geográfico, é símbolo, que geralmente não consta na legenda de nenhum mapa oficial, mas que é parte indelével do espaço urbano. Somos educados para o passageiro. A desmemória é a norma. O passado é monumento, foto; não é legado.
Na brincadeira, no jogo, no som dos instrumentos, na destreza do golpe, percebe-se a sobrevivência da malandragem. No gingado, vislumbram-se o negro escravizado e, muitas vezes, o branco feitor. No Brasil, a Capoeira tem atravessado os tempos, ora subordinada ao poder hegemônico, autoritário, militar, ora se fazendo instrumento de resistência popular, servindo de legado e de passagem dos ensinamentos e das práticas afro-brasileiras.Osmovimentos
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No jogo da capoeira, a resistência para a vida
A desigualdade social, com a qual convivemos, diariamente, a destruição voraz do ambiente natural, a mercantilização da cultura popular; tudo nos afasta vigorosamente de uma sociedade composta por cidadãos no amplo significado da palavra. Falta-nos a plenitude, a igualdade de direitos. Falta
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da Capoeira são de resistir, de se adaptar, de subverter, de resistir, de se adaptar, de subverter, sempre. Avanços, recuos e avanços. Na passagem do olhar atento, a roda de rua, em que a Capoeira se faz, sem amarras e sem regras, é muito mais que um jogo. Na arena pós-moderna (a rua), que suscita diversas interpretações, deparamo-nos com pessoas que reescrevem tradições e práticas sociais e que preservam e respeitam fundamentos e a ancestralidade. É nas frestas, nas margens, que vamos construindo reflexões e criando possibilidades de mudança, de quebra de rotinas e de novas práticas.
A Capoeira persiste. E, quando cultivada em liberdade, amplia-se e envolve com emoção quem a pratica, quem a assiste. Retida, confinada, escravizada, rotulada, definha e deixa de ser instrumento pedagógico de luta social. Entre a senzala e a casa grande, é urgente buscar a terra nova.
Em um outro lugar e em outro tempo, a Capoeira possibilita um novo movimento, uma nova jogada, um constante começo. O tempo não para. E lembrar – não esquecer – é ação fundamental, quando se fala em memória nacional. A memória é a possibilidade de preservarmos a ação do tempo no espaço. E a Capoeira pode se tornar uma prática social rebelde, quando busca, nos seus fundamentos, outra história e outros pensares de mulheres e de homens, que, com suas ações, desafiaram a ordem e o progresso, idealizados pela elite nacional brasileira.
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A Capoeira ensina a vergar, para não quebrar. E foram muitas, as tentativas de quebra. Negros e índios vêm andando vergados, basicamente, desde 1500. Rego (p. 12, 1968), em Capoeira Angola, coloca:
No jogo da capoeira, a resistência para a vida S OL sermos politicamente humanos. E, como resultado, temos uma cidade desigual, em que não compartilhamos os territórios ou as experiências.
[...] o documento mais antigo, legalizando a importação de escravos para o Brasil, inclusive, indicando o local de procedência, é o alvará de D. João III, de 29 de março de 1559, permitindo que sejam importados escravos de São Tomé [...].
O espaço geográfico está marcado por nosso movimento. Ao nos movimentar, registramos nosso pensar e nossas ações, que são sociais e individuais, e, na mutabilidade dos outros e das coisas, presenciamos o correr do tempo.
N
A data é 1559. São quatrocentos e sessenta e um anos na resistência e na lutaNegrosefetiva.e
O poder social está em dar vida ao sentimento, seja ele qual for: dar nome e, assim, fazê-lo existir, isto é, apropriar-se da palavra, do verbo. A base é o conhecimento de onde se está e do que se é. E qual a principal estratégia, para quebrar o que está sólido? Dar significado ao que fazemos e ao que falamos; não, apenas, o que ditam as teorias, mas, sim, da maneira como significamos o que realizamos. Assim, criamos possibilidades de mudança.
pardos, essa mesma raça, que fugia da senzala, formava quilombos e se rebelava contra a chibata. A mesma raça, que cria, na adversidade, uma luta de ataque e de defesa: a Capoeira. Negros, que, em solo brasileiro, contra a escravidão, fazem do corpo a arma de liberdade.
E o tempo não envelhece. Esse pensar, essa observação, é algo muito presente no mundo da Capoeira, nas conversas, principalmente, porque, para esses sujeitos, a volta do mundo é grande e, para tudo, há um tempo. Nada termina, definitivamente.
A Capoeira, suas rodas, é, sobretudo, uma escola, quando estão na rua, nos espaços que são ou que deveriam permanecer públicos. Consideramos
A constituição de uma Capoeira com fundamento e com combatividade vai, consequentemente, fortalecer a importância da própria Capoeira e das rodas de rua. Principalmente, depois da década de 1990, os capoeiristas sentem o impacto de um “inchamento” da Capoeira no Brasil. A Capoeira “explode”
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No jogo da capoeira, a resistência para a vida S fundamental, para a preservação da Capoeira, enquanto manifestação de resistência cultural afro-brasileira, ocupar lugares, que são seus por origem: os terreiros, as festas de largo (populares), as praças, as periferias, as terras ancestrais.
OL
preocupante,
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No Brasil, estar na rua, estar exposto ao “relento”, não ter eira e nem beira, era e é sinônimo de fracasso social. O ser vivente do espaço público é um ser marginal. É o negro ou a negra escravizados, o vagabundo, o malandro, o capoeira, o sem-teto, o sem-terra. Dar ao espaço público, às terras ociosas, aos terrenos e às construções vazias um carácter privado ou produtivo é fechá-los ao uso comum, coletivo e, assim, o Estado desenvolve estratégias (sutis ou não) para que, quem esteja à margem permaneça marginalizado, mesmo que caminhe pelo centro da cidade. São restaurantes, bares, centros comerciais, parques, praias, que a grande parcela da população brasileira não frequenta, não tem acesso. Com um transporte público caro e com poucos horários, cabe ao pobre a margem social, as beiradas.
A cidade, as terras deste país, nunca foram de quem não tem. Não foi do pobre e, muito menos, das negras e dos negros. Para eles, a passagem, o produto comprado às pressas, o produto vendido entre os vãos. Liberdade para ir e vir? Não, para esses, que a sociedade capitalista ainda mantém acorrentados. Para os ancestrais da Capoeira, são 461 anos, atravessando as capoeiras, os matagais, que separam as senzalas dos quilombos. Junto com eles, índios e brancos seguem os rastros de quem sabe que não basta resistir, que é preciso lutar.
A escola, os meios de comunicação, as agremiações, as igrejas são veículos fundamentais, para reproduzir, principalmente, a ideia, a ideologia dos que estão no poder. Das elites locais. A Capoeira educa na rua. Sua pedagogia tem, por chão, não, a sala de aula, mas os porões, as senzalas, as ruelas, a terra, o mato, o cais do porto, os mercados. A estrada é a mestra; a lição a ser aprendida é a da verdade: se não esquivar, o golpe pega.
O espaço urbano, da rua, deixa de ser acessível. Aparentemente, todos circulam, todos vão e vêm, mas existem os controles do tempo e do espaço. O espaço urbano sem controle é apontado como o lugar do perigo. O vazio é assim como o corpo parado e indolente é problema e requer atenção. O agrupamento de jovens, as batalhas de rap, os capoeiras, com suas rodas informais, as manifestações sociais, o próprio Carnaval de rua (atualmente, com horário para terminar) são considerados algo a ser monitorado e, muitas vezes, proibido, se necessário, com uso de força policial.
A roda de Capoeira está inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão. Tornou-se, de 2008 para cá, manifestação cultural de importâncias nacional e internacional. Na realidade, já o era. Apenas se formalizou, aquilo que já estava constituído na história das gentes desse Brasil popular. É considerada movimento de corpo, luta, e, no movimento, estão o registro histórico, a compreensão que se tem de mundo e o ritual centenário, que tem ânsia (ainda hoje) de liberdade.
de Capoeira. É referência internacional. Suas rodas de rua, como a do Mercado, a da Figueira e a da Barra, são consagradas, enquanto espaços de ataque e de defesa, enquanto lugares de malícia e de mandinga. São mais de quatro décadas de capoeira, jogada por grupos, que fazem o esforço histórico de colocar na cidade, na Praça XV, no Mercado Público, o jogo da liberdade. Os que se mantiveram à margem, mantiveram sua singularidade, em um mundo que padroniza comportamentos e pensamentos.
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A roda da Capoeira é o tempo ao revés; é estar no espaço geográfico, sendo regido pelo tempo que gira no modo anti-horário. A roda de rua de Capoeira, assim como outras manifestações populares que estão na rua, é alerta: anuncia, alumia e denuncia.
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No jogo da capoeira, a resistência para a vida S OL para o mundo e se torna um produto, uma marca. Os grupos se estruturam, seguindo uma lógica empresarial, e os que não desaparecem, os que resistem, permanecem onde sempre estiveram: na margem social. A Capoeira definitivamente se espalha por todos os continentes. Os mestres, os que, de algum modo, tiveram contato com capoeiristas das décadas de 1920, de 1930, tornam-se referências no mundo da Capoeira. E muitos desses mestres atravessaram a fronteira brasileira, levando esse conhecimento para outros lugares. Alguns foram e não voltaram mais para o Brasil. Alguns se mantiveram fiéis aos princípios populares e ancestrais da Capoeira. Mas, em grande medida, é uma Capoeira sem fundamento, competitiva e mercantil, que se espalha com mais rapidez, de sul a norte e de oeste a leste. No Brasil, várias cidades são conhecidas como lugar de Capoeira. Para além de Salvador (lugar de referência), Florianópolis, Porto Alegre, Canoas, São Paulo (roda da República), entre outras tantas, com suas rodas de rua, com seus jogos de dentro e de fora, com sua malandragem. Muitas são espaços de debate e de informação. Outras, acontecem em lugares de passagem e/ou tradicionais da cidade. Em Porto Alegre, principalmente, aos domingos, na Redenção, as rodas fazem parte da paisagem. Nas ruas desta cidade, em momentos de luto ou de reivindicações, sempre se faz presente a Capoeira, com sua ginga. No calçadão de Canoas, são mais de três décadas de vadiação. Ali, como na Estação Mathias Velho, os capoeiras grafam, no espaço geográfico, o corpo em movimento, ao toque do Florianópolisberimbau.élugar
A resistência nem sempre precisa ser violenta. Às vezes, é astuta, modesta. A resistência, às vezes, não afronta, mas confronta as díspares realidades, e, no confronto, vem o conforto de se saber atuante. Assim, transmite-se o legado da liberdade, da Capoeira: lutando, incansavelmente.
Ao armar suas rodas nas ruas, nos vãos, nas praias e nas praças, capoeiristas do tempo de agora deslocam, nos seus golpes e nos seus contragolpes, a névoa, que encobre a história. Despertam, através das suas cantorias, do batuque, do agudo toque do berimbau, a sua própria memória, mas despertam, também, as memórias da cidade, de sua elite, de seus empresários, da casa grande e, com vigor, da senzala.
As rodas guardam e contam a história dos que iniciaram o movimento, em direção à cidade e à rua, dos que saíram das senzalas e que ganharam as capoeiras, que são lugares contra a descrença e contra a alienação.
No jogo da capoeira, a resistência para a vida
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O fundamental do se saber parte da história de um lugar não é o tempo, em si, mas que se é fruto de um movimento, que teve suas origens em gente que atravessou mar e a terra e que, nesse movimento, transformou-se em conhecimento vivido, em saber. Um saber, que, ao dar voz e corpo, fortalece os oprimidos pelo mesmo sistema que oprimiu, no passado, seus ancestrais. Chamar os ancestrais é aprender e entender que o saber popular é conhecimento, que este se dá, também, através da fala, do movimento, do gesto, que a transmissão é direta e autêntica. O tempo transforma a técnica em estratégia e, assim como na vida, “vacilou, cai”.
Urgente, mesmo, é identificar o que une os que acreditam na cidade, como possibilidade de espaço de dignidade. Nós nos reconhecemos no outro e, quando nos alçamos para cima dos muros e das cercas, enxergamos o horizonte, a terra, como amplidão, mãe, farta. A ânsia da liberdade é sentimento permanente do sujeito. Nas frestas, vamos construindo reflexões e criando possibilidades de mudança social; nos vãos, o voo, o risco. Perder o chão é se perder. Subverter é criar resistência. É preciso politizar a resistência e considerar que estar à margem pode vir a ser uma estratégia.
No movimento por uma justa sociedade, algumas ferramentas são o tensionamento, a denúncia e a rua. A história está no movimento dos corpos e das ideias. Jogar para o futuro as possibilidades de resistência, mesmo, não tendo provas consistentes de que, no futuro, estaremos resistindo. Mas a escassez de
O Brasil joga Capoeira. Este país sabe muito bem o que é uma cabeçada, uma rasteira, um pé, riscando o ar. Sabe do andar leve e ritmado de um homem capoeirista e do pisar firme e desafiador de uma mulher capoeirista. Na roda, espaço de confronto, em que a verdade impera, somos todos aprendizes.
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Ocupar os espaços, encontrar os camaradas e se entregar à pura diversão, sem ter que comprá-la, é algo cada vez mais raro. Nos dias de hoje, em certa medida, amordaçados e confinados em espaços fechados, expor-se é uma ousadia. Ocupar e oferecer a vadiação da Capoeira como cultura é ser capoeira, é fazer o que sabemos e o que fazemos, porque esse saber não tem certificado; foi conquistado e mantido, como ideia e como meio de vida.
Consideramos
499 No jogo da capoeira, a resistência para a vida S OL direitos, de fala, de pão, de terra e de paz levam à resistência combativa, ao ato de se recusar à submissão de outrem, de se opor, com vigor, a tudo que sufoca, a tudo que mata, a tudo que faz desaparecer. que a Capoeira é o espaço da ação social, do discurso diverso, da cultura popular, da manifestação afro-brasileira. É o espaço da aprendizagem, da ensinança, do saber. Que a Capoeira possibilita, para quem quiser aprender, os caminhos da autonomia e da responsabilidade para com o outro.
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E se o desafio é continuar, se a ideia é persistir, que seja. Na esfericidade da Terra, a volta ao mundo da Capoeira nos leva e nos traz, infinitamente.
O jogador de Capoeira, principalmente, o da rua, geralmente descobre que vive em uma sociedade opressora e desigual e que a Capoeira, assim como outras manifestações, serve, antes de mais nada, para quebrar grilhões. No jogo da Capoeira, essa luta de ataque e de defesa, há as marcas: o movimento dos corpos, o sangue, as desavenças, o suor, os encontros, os abraços, as rasteiras, as quedas, a vida. Nas linhas finais, recuperamos o valor da memória histórica. Não, como âncora, mas como vela, que infla e que nos tira da estagnação, do lodo da maré baixa. Aqui, como desafio e como ingrediente de lembrança histórica, recorremos à memória das revoltas e das resistências de negras e de negros e de todos, que traçaram caminhos rumo à liberdade. Estes rastros nos ajudam a não esquecer: Quilombo Quariterê, em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT); Negro Cosme/Balaiada, em Vale do Itapecuru (MA); Quilombo do Catucá/ Malunguinho, em Recife (PE); Quilombo dos Palmares, em União de Palmares (AL); Quilombo do Buraco do Tatu, em Salvador (BA); Engenho Santana, em Ilhéus (BA); Bairro de Itapoan, em Salvador (BA); Ladeira da Praça/A Revolta dos Malês, em Salvador (BA); Carrancas, em Cruzília (MG); Sítio Histórico do Patrimônio Cultural Kalunga, em Cavalcanti, Monte Alegre e Terezina de Goiás (GO); Manoel Congo, em Vassouras/Paty do Alferes (RJ); Quilombo Maria Conga, em Magé (RJ); Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS); e ocupações urbanas da Grande Florianópolis: Marielle Franco, Vila Esperança, Beira Rio, Nova Esperança, Mestre Moa, Fabiano de Cristo, Contestado, Quilombo Vidal Martins e tantos outros.
Penso, com teimosia: A Capoeira é brasileira. Posse nacional. Agarro com dentes a identidade. Grande é, pois, o temor da perda. E vem a vida, nesse mundo que da volta e tira o pouco que tenho, o orgulho da certeza.
Lá estão, à beira mar, num jogo colonial, retintos e audazes, dispostos ao riso e ao risco, meninos que nunca vi: Capoeiras da Palhota. Mar Azul. Maputo. A Capoeira está no mundo. A arte genuína, brasileira, cá está. A cena se desmancha, e na retina registro o espanto. O que amo, maliciosa e andarilha, vaga e verga corações outros.
Eis-me no Mercado, na Figueira, com a certeza sincera que o que me levou, me trouxe.
MENEGHELLO, Danuza. Penso. Sobre Tudo, Florianópolis, v. 7, n. 1, p. 127-128, out. 2011. Disponível em: http://ojs.sites.ufsc.br/index.php/sobretudo/article/view/2140/1191. Acesso em: 31 jan. 2020.
E quando o coro das crianças rompe minhas cismas, já estou a jogar em pátrio solo.
MENEGHELLO, Danuza. Na Roda de Rua de Capoeira : O Mercado Público de Florianópolis e a resistência política. 2018. 224 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
E o que me fez capoeira foi estar nesse chão ora de senzala, ora de casa grande, mas sempre Brasilis. Maputo, 19 de outubro de 2010, noite e meia.
500 No jogo da capoeira, a resistência para a vida N S OL
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Itapuã, 1968.
REFERÊNCIAS CORRÊA, Joseane Pinho; PINTO, Fabio Machado (org.). Curriculum vitae Norival Moreira de Oliveira. Florianópolis: [s.n.], 2013. 120 p. (Não publicado)
Roda.Apaixona.Berimbau toca Angola. Agachada, espreito o outro, e assim me espreito, somos um em dois. Perco-me.
SELECIONAR OS GRÃOS Ressoam já três anos de minha presença nesta cidade de Porto Alegre. Em muitas das conversas com pessoas daqui, desde 2017 venho mencionando nossa ingênua ignorância sobre os reais aspectos de natureza étnico-racial que compõem a diversidade do estado do Rio Grande do Sul. A imagem que é difundida e como a mesma tem sido percebida por quem somos “de fora”, é a de um estado com predominância cultural de origem europeia. A invisibilidade das matrizes culturais não brancas é uma questão a se considerar, se formos refletir sobre a maneira pela qual o estado cria e afirma suas representações internamente, ou mesmo, na relação com as demais regiões do país (ASSUMPÇÃO, 2016).
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
CORPOS NEGROS, CORPOS SONOROS
QUEIROZ
COMO CITAR: QUEIROZ, Gabriel Muniz de Souza. Corpos negros, corpos sonoros. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 501-513 501501
Sendo negro e nordestino, de certa forma ambientado em espaços de diversidade cultural, animou-me bastante perceber a forte presença negra e indígena em Porto Alegre. Buscar conhecer mais sobre as formações histórica e geográfica da cidade, bem como a necessidade pessoal de transitar por outros territórios, foram alguns dos fatores que me levaram a optar por esta capital, movimento considerado por muitos um contrafluxo. Aos poucos fui entendendo as razões destes muitos. Não é uma cidade fácil. As barreiras invisíveis, que já são constantes nas vivências das pessoas negras daqui, agravam-se com a condição adicional de ser um nordestino no extremo sul do país. Embora, aparentemente, eu bem que poderia passar por um negro porto-alegrense –creio que não sejamos tão diferentes, visualmente –, meu sotaque, o som de minha fala, identifica-me imediatamente. * * * Há muitos anos, venho estudando e trabalhando, a partir do audiovisual, com a dimensão sonora da realidade. Sendo técnico de som direto, tenho interesse particular em Paisagens Sonoras. Naturalmente, esta prática leva ao desenvolvimento da atenção à escuta do elemento sonoro do espaço, em sua
Gabriel Muniz de Souza
502 Corpos negros, corpos sonoros N S OL dimensão formal, o que se soma ao refinamento da apreensão dos conteúdos, dos significados e dos simbolismos por ele carregados. Um dos exercícios – e das necessidades – da minha vivência nesta cidade era a busca da compreensão e da identificação com o Outro, o que era feito, principalmente, a partir do processo de escuta direta e/ou registrada. Este processo de diálogo obviamente demanda bastante abertura de ambas as partes, o que, para um “estrangeiro” – e negro –, na relação com os habitantes locais, não é tão simples. De tal modo, essa necessidade de identificação cultural, para a comunicação com este Outro, foi imprescindível. Embora muitas negativas e desconfianças iniciais, a partir da atuação com o ativismo cultural, fui abertamente recebido pela Frente Quilombola/RS, a partir da qual comecei a ter contato e convivência com as lutas dos Quilombos de Porto Alegre, principalmente. Em meio às demandas de apoio a estas comunidades, fomos – em diálogo com os quilombolas – desenvolvendo as reflexões sobre os aspectos sonoros, que, no decorrer dos tempos, vêm caracterizando as territorialidades africanas, desde suas diásporas, até hoje manifestos nas culturas desenvolvidas pela negritude de diversas parte do Brasil (TINHORÃO, 2008). Talvez, esse seja o grande elo de identificação que me levou a ser acolhido por algumas das comunidades quilombolas desta cidade. * * * Um dos encontros proporcionados pelo envolvimento com o ativismo junto aos Quilombos de Porto Alegre, aproximou-me do campo da Geografia. A partir do trabalho realizado pelo Núcleo de Estudos de Geografia e Ambiente (NEGA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através da realização de uma Cartografia Social do Quilombo dos Machado (Zona Norte de Porto Alegre), tive a oportunidade de apoiar a produção de um material audiovisual, atentando para aspectos que ampliaram a perspectiva das paisagens sonoras naquele território. Como um segundo passo neste envolvimento com a referida área, participei de uma disciplina sobre Geografia e Relações Étnico-Raciais na mesma universidade, em que pude aprofundar minha perspectiva de Paisagem Sonora a partir do conceito geográfico de Paisagem. Este embasamento teórico sobre o campo geográfico – em constante desenvolvimento –, além de indicar caminhos ao entendimento das barreiras invisíveis, anteriormente comentadas, que eu, negro em diáspora, percebi em Porto Alegre, levou-me a pensar a Geografia enquanto ciência de observação, refinando minha forma de interlocução para compreender as relações do ser negro quilombola através do seu espaço vivido. Assim, pude indagar: de que forma as relações sociais, culturais e políticas se manifestam? Como se dão os trânsitos territoriais entre negros de espaços
Foi grande a minha surpresa, mas creio, hoje, que havia um pouco do entusiasmo de recém-chegado. Porém, estava dentro de um contexto em que eu observava e planejava registrar os sons das manifestações culturais nos quilombos até então visitados, dando os primeiros passos na caminhada metodológica de representação das paisagens sonoras dos quilombos de Porto Alegre. Lembro de que conversei bastante com a Geneci sobre aquele dia. Pensando nas paisagens sonoras quilombolas, aquele rap me pareceu algo que marcava o Quilombo da Família Flores, enquanto musicalidade diaspórica afrodescendente. A esta paisagem específica que observei, foram acrescentadas outras, que coletei em vivências posteriores, as quais buscaremos, junto à comunidade, trabalhar em uma representação – documentário audiovisual –, que, por sua vez, está em desenvolvimento, atualmente, na fase de pós-produção. Quando falo de representação, refiro-me a possibilidades de construção de sentido através de linguagens diversas (audiovisual, cartografia, fotografia, fonografia), partindo da confluência de subjetividades – intersubjetividades (TORRES; KOZEL, 2010); (MALANSKI, 2017); (NASCIMENTO; COSTA, 2016) –como caminho para um maior equilíbrio nas relações de alteridade nesta busca pessoal e coletiva de identificação. Como complemento a este ensaio, que trata
503 Corpos negros, corpos sonoros S OL urbanos e de espaços rurais? Como a memória destas trajetórias de ancestralidade afrodescendente são materializadas nos seres e lugares? De que maneira podemos vivenciar, perceber, ou mesmo, representá-las através de paisagens sonoras? Tendo este Sul em mente – o termo Sul como orientações espacial e política numa perspectiva não hegemônica (GARCIA, 2017) – e semeadas as questões, a escuta atenta das sonoridades destes corpos negros, também corpos sonoros, têm reverberado caminhos para a colheita gradativa de possíveis respostas. SEMEAR, ADUBAR Ainda em 2017, primeiro ano desta minha vivência no Rio Grande do Sul, já acompanhando a Frente Quilombola/RS, tive a oportunidade de conhecer alguns Quilombos do Estado. Em um desses dias de visita, precisamente o dia 10 de junho , presenciamos dois aniversários. O primeiro deles foi pela manhã, no Quilombo de Morro Alto (em Maquiné/RS), que celebrava mais um ano de vida de Seu Manoel Chico, uma das principais lideranças do Quilombo Morro Alto, um senhor de idade já avançada. Na segunda comemoração, saindo de Maquiné para o bairro Glória, em Porto Alegre, chegamos à noite. Era o aniversário da Geneci Flores, liderança do Quilombo da Família Flores. Uma grande festa em família, comunidade em peso, criançada correndo e se divertindo. Entretanto, o momento que mais me surpreendeu naquele dia foi quando Geneci e sua amiga Rosana ligaram as caixas de som, pegaram os microfones e começaram a cantar um rap.
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504 Corpos negros, corpos sonoros N S OL de questões de memória e de oralidade, achamos importante ampliar nossa narrativa, a partir de registros visuais e sonoros, compartilhando as dimensões do contato e da observação de algumas das paisagens coletadas, razão pela qual os créditos das imagens e dos sons são deste autor (QUEIROZ, 2020), exceto quando indicado. A lista de reprodução com todos os registros sonoros compõe as referências deste ensaio.
Registro sonoro 1: Geneci Flores comenta uma música composta para os quilombos Tendo, como base, noções do campo geográfico, podemos compreender a paisagem como uma forma, uma aparência – podendo ser visual, tátil, sonora – da materialidade do espaço (SANTOS, 2006). É, também, um sistema de significados (símbolos) em que se relacionam aparência e essência. Essa paisagem pode ser acessível pela observação direta, ou mesmo, por representações, artísticas, por exemplo. No caso citado, no Quilombo da Família Flores, relato a observação de uma aparência inicial, a partir da minha escuta estrangeira. Na medida em que vou vivenciando mais a comunidade, consigo acessar, pouco a pouco, alguns dos elementos de sua essência, em busca de representações coerentes, realizadas em diálogo com os moradores. Neste sentido, e retomando a ideia das memórias na relação com o território, recordo das conversas que tive com Sandro, com Sônia e com Mara Lemos, do Quilombo da Família Lemos, comunidade de Porto Alegre com certificação
Fonte: Acervo do autor / Crédito da Imagem: Douglas Freitas
Figura 1 – Gravando o Grupo SNC – Rosana e Geneci Flores em 10-11-2018 – Quilombo Família Flores.
Figura 2 – Quilombo Família Lemos reunido em 26-08-2018
Registro sonoro 2: Família Lemos comenta as antigas agriculturas no território A escuta direta e os registros de panoramas sonoros destes espaços têm ajudado a identificar signos que caracterizam as presenças de uma ancestralidade diaspórica afrodescendente e de uma memória das dinâmicas socioculturais, ainda preservadas, mesmo com os processos de trânsito territorial do interior para a capital, ocorrências comuns em algumas destas comunidades. O aprimoramento da atenção aos textos e aos subtextos das falas, aos sotaques, aos idiomas, aos cânticos, aos batuques, aos sons corporais e de instrumentos me foi proporcionada pelo convívio direto com alguns mestres da cultura negra de Porto Alegre. A partir do Mestre Jaburu (Capoeira Angola Guayamuns) e o Mestre Cica de Oyó (Babalorixá), tenho percebido como a escuta atenta é necessária nos processos de aprendizado pela memória e pela oralidade.
505 Corpos negros, corpos sonoros N S OL mais recente, dada pela Fundação Cultural Palmares mais recente em Porto Alegre em 08 de novembro de 2018), que se destaca pela relação cultural com o samba, pois se localiza em uma região próxima à sede de algumas das escolas de samba da cidade (Imperadores do Samba, Academia de Samba Praiana), que são bastante frequentadas pelos quilombolas. Para além destas atividades, e como processos de redescoberta e de afirmação de suas identidades ancestrais – que remetem ao Quilombo Maçambique, de Canguçu/RS, município que dista 270 km de Porto Alegre, na direção Sul –, dos diálogos informais, registrados com aqueles quilombolas, lembro-me de como suas vozes comentavam as agriculturas desenvolvidas pelo patriarca e pela matriarca da família, que nos indicam modos de vida e formas de autonomia tradicionais.
Ambos os mestres, são corpos extremamente sonoros e que transitam pela antiga região da Ilhota (entre os bairros Cidade Baixa e Azenha). O Mestre Jaburu morou algum tempo no Quilombo da Família Fidélix – também na Ilhota –, em que pudemos conviver bastante e registrar diálogos, cânticos e toques. Hoje, mora na Restinga, bairro de presença predominantemente negra no extremo sul da cidade. Com o Mestre Cica, morador da Lomba do Pinheiro, tenho acompanhado e gravado diversas casas de religiões de matrizes africanas da Grande Porto Alegre. Além de ser babalorixá, ele dá aulas de língua e de cultura Iorubá e é um grande estudioso dos povos africanos no Rio Grande do Sul. É ele quem vem me contando sobre os fluxos migratórios de povos negros escravizados, principalmente a partir dos estados de Pernambuco e do Ceará para a região sul. Registro sonoro 3: Mestre Jaburu recorda a infância na Ilhota A experiência de proximidade com o Quilombo da Família Fidélix foi bem interessante para aprofundar os índices sonoros dos fluxos territoriais –informações coletadas a partir de sons, que denotam trajetórias da diáspora destes quilombolas. Conseguimos desenvolver uma representação (um documentário audiovisual) que trabalhou bastante os trânsitos no interior e no exterior do estado. Naquele momento, a composição da paisagem do quilombo era marcada pelos sons fundamentais, bastante sutis (pássaros, passos, sons de TV, uma ou outra voz distante) e pelo sinais sonoros, com grande destaque para os sons de materiais em construção (SCHAFER, 2011). Foi quando chegamos ao Seu Tilmo, senhor de idade avançada, pedreiro, morador da comunidade e
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Corpos negros, corpos sonoros
Figura 3 – Gravação com o Mestre Jaburu em 17-05-2018 – Quilombo Família Fidélix
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Registro sonoro 4: seu Tilmo recorda as origens em Santana do Livramento Pudemos perceber, a partir de sua fala, diversos traços de sua origem fronteiriça.
Além do sotaque característico, diversas palavras por ele utilizadas vinham do idioma espanhol (carpincho, cuchara, entre outras). Como resultado dos nossos diálogos, em dado momento, Seu Tilmo apresentou suas referências sonoras, a partir da coleção de LPs. A grande maioria dos seus discos era composto por artistas negros, principalmente de samba, um interessante dado sobre sua relação com a música e com a cultura de matriz africana. Já o Mestre Jaburu, que compartilhava a residência com Seu Tilmo, afirma sonoramente seus trânsitos simbólico, cultural e territorial a partir da capoeira e da religião. O forte sotaque carioca identifica sua presença, durante parte da infância e da adolescência, na capital fluminense, de onde trouxe a variante da Capoeira Pernada Carioca, que influencia o seu grupo Guayamuns, do qual, hoje em dia, faço parte.
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Outro exemplo de trânsito diaspórico que pude conhecer, e com o qual me identificar, ocorreu no Quilombo dos Machado, na Zona Norte de Porto Alegre. Um de seus moradores é nordestino. Conhecido pelo apelido de Ceará, sua terra natal, ele é dono de um dos bares locais. Embora sejamos de estados diferentes, a região nordeste compartilha diversos elementos em comum, o que
Figura 4 – Gravação com Seu Tilmo em 24-05-2018 – Quilombo Família Fidélix
Corpos negros, corpos sonoros S OL conhecido da Família Fidélix desde sua origem, em Santana do Livramento, município fronteiriço ao Uruguai, distante 498 km ao sul de Porto Alegre. Na capital, com a territorialidade reconfigurada como Quilombo Urbano, Seu Tilmo foi o construtor de boa parte das residências.
Figura 5 – Maculelê do Quilombo dos Machado na II Assembleia dos Povos, em 24-03-2018
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Corpos negros, corpos sonoros S nos aproximou bastante. E um dos traços sonoros de seu estabelecimento é uma caixa de som (uma Juke Box), em que ele sempre toca música nordestina – a partir da qual pude ouvir várias referências minhas, da Bahia e de Pernambuco. Sendo uma das maiores comunidades de Porto Alegre em extensão e em número de famílias residentes, a diversidade da paisagem sonora do Quilombo dos Machado ainda conta com as músicas popular e religiosa cristã, com a presença de crianças e de automóveis, além do constante e intenso ruído dos aviões, destacando a proximidade das áreas de habitação da comunidade com o Aeroporto Internacional Salgado Filho. Registro sonoro 5: Maculelê do quilombo dos Machado na II Assembleia dos Povos, em 24 de março de 2018 Outras marca da paisagem sonora do Quilombo dos Machado são observadas na sede da Associação de Moradores da Comunidade Sete de Setembro/ Quilombo dos Machado. As rodas de capoeira e de afoxé da Associação Cultural de Capoeira Angola Rabo de Arraia (ACCARA) acontecem uma vez por mês, há vários anos, como fortalecimento da luta quilombola. Organizada pelas lideranças do quilombo Tamires Machado e Luís Rogério Machado, o Jamaika, assim como a capoeira, a encenação coletiva de canto e de dança do Maculelê também é carregada de sentidos vinculados às resistências negras. Uma interessante proximidade de ritmo, possível de estabelecer e que já dialoga com algumas das pessoas da comunidade, é entre o maculelê e o funk, outra modalidade de música negra bastante apreciada no território e estigmatizada socialmente. Conexões com a ancestralidade afrodescendente são bem possíveis e observáveis nas comunidades quilombolas através das sonoridades presentes
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COLHEITAS SONORAS
CULTIVAR:
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O que me chamou atenção, após vivências em diversos Territórios Negros de periferia, foi que, enquanto para mim, que circulo por estes espaços de referência, não foi difícil apreender esse dado histórico, rarissimamente lembrado oficialmente; para muitos negros das camadas populares da cidade essa informação é desconhecida. Estes diálogos nos faziam refletir sobre o processo de construção das identidades culturais do estado (que ainda busco compreender) e sobre como os apagamentos histórico e geográfico da contribuição dos povos não brancos é recorrente. Talvez este seja um dos motivos pelo qual a imagem do estado, para além dos seus limites, é focada no referencial branco europeu. * * * Recordo-me de algumas das atividades realizadas junto à Frente Quilombola/ RS no Quilombo da Família Flores, em 11 de agosto de 2018. Em uma atividade pensada enquanto iniciativa para uma Escola Popular, realizamos atividades que envolveram crianças e adultos no levantamento de referências históricas e geográficas da comunidade e do seu entorno. Houve momentos de socialização de memórias do território entre os mais velhos, a criação de um MAPA AFETIVO (CIASCA, 2018) desenhado pelas crianças, e a exibição de um filme infantil sobre o Massacre de Porongos, para toda a comunidade. Foi um momento de grande
Como dito anteriormente, nos primeiros meses em Porto Alegre circulei bastante por espaços culturais da cidade, principalmente por aqueles nos quais se trabalhavam as culturas afrodescendentes. Em conversas sobre a presença dos povos não brancos na construção da identidade do estado, na maioria das vezes ouvia comentários sobre alguns de seus momentos históricos. Destes, o mais citado foi o episódio do Massacre de Porongos, quando, durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), o contingente de escravizados – Lanceiros Negros – agregado às tropas insurgentes, foi traído e dizimado pelos próprios líderes “revolucionários”, após acordo com o Império Brasileiro.
Corpos negros, corpos sonoros S OL em todas elas. Uma ancestralidade que dialoga com passado, com presente e com futuro, numa perspectiva não linear, porém cíclica e contínua, tal como uma espiral. Os corpos sonoros vibram e, em contato, reverberam. Transitam, em seus percursos diários, ultrapassam limites. As barreiras invisíveis estão presentes, mas as sonoridades rompem barreiras. E como estes limites são por elas superados, não faltam estigmas negativos, criados para condená-las. Desta maneira, como trabalhar a desconstrução destes estigmas e destas desvalorizações culturais, muitas vezes, intencionalmente vinculadas às paisagens sonoras, não só às de quilombos como às de diversos outros territórios negros?
510 Corpos negros, corpos sonoros N S OL riqueza, em que a comunidade pôde compartilhar entre si conhecimentos diversos, independentemente das idades, das experiências ou dos graus de formação. Nesse momento foram socializadas diversas formas de representação, oralmente, ou a partir de suportes cartográficos e audiovisuais. Recordo desta atividade para refletir sobre a perspectiva de ancestralidade cíclica anteriormente mencionada: selecionar os grãos da experiência do passado, semear e adubar a experiência do presente, para germinar e colher experimentos futuros. A retomada do referencial afrocêntrico pode gerar elementos de reconexão com os espaços negros a partir de uma reconstrução de identidades, baseada na ancestralidade negra, desterritorializada histórica e geograficamente, em África, e reterritorializadas, diasporicamente, em Porto Alegre/RS. Nas experiências com os quilombos, pude vivenciar algumas atividades propostas pelas comunidades ou por coletivos parceiros, sobre a questão quilombola. Várias dessas vivências foram pautadas no compartilhamento de experiências, orientadas ou não, em processos de Educação Popular. * * * A partir destas experiências, pautadas em observação (principalmente pela escuta), em vivências constantes nas comunidades e em ensaios de representações gráfica e audiovisual, fui elaborando progressivamente a forma de trabalhar as composições de paisagens sonoras dos quilombos de Porto Alegre. Aos poucos venho descobrindo que o caminho mais adequado sinaliza a busca por horizontalidade (tanto quando possível) de relações de alteridade, buscando, cada vez mais, as sintonias e as reverberações entre nossas corporeidades sonoras negras. Aponto isso, também, pela necessidade adicional de não apenas escutar e apre(e)nder, mas também, e cada vez mais, soar e compartilhar aprendizados. Gerar e receber empatia. Pensar no meu lugar, na relação com estes espaços de negritude, não apenas percebidos, como também vivenciados. Buscando esta proximidade, a identidade negra me torna menos estrangeiro. Uma forte proximidade aconteceu com o Quilombo da Família Fidélix e facilitou a criação de uma representação : o documentário audiovisual OuvidoChão – Identidades Quilombolas (CINECLUBE BAMAKO, 2020) sobre a comunidade, que me fez refletir bastante sobre relações de subjetividade e de alteridade no processo de criação das Paisagens Sonoras. Embora estivesse na condição de “eu”, de “sujeito” narrador, boa parte das situações criadas foram realizadas em diálogo com o “outro”, o “objeto”. De certa forma, houve alguma diluição da figura do “eu” neste processo, talvez, por aquilo que chamei, no início deste texto, de elo de identificação, que vem apontando para o “nós”. Isso nos faz refletir sobre a dimensão Acesso para QuilombolasIdentidadesOuvidoChão
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Corpos negros, corpos sonoros S OL das intersubjetividades na concepção de uma paisagem, neste caso sonora, o que tem sido valioso para pensar sobre as possibilidades de criação conjunta. Registro sonoro 6: Ouvidochão – identidades quilombolas. Improviso musical de berimbau com serra elétrica gravado em 31 de maio de 2018 no quilombo Família Fidélix Um exemplo disso foi uma das cenas, de certa forma improvisada, em que fizemos uma sessão de improviso musical entre um berimbau e uma serra elétrica no galpão do Quilomboda Família Fidélix, para pensar na composição de uma paisagem sonora deste quilombo urbano, criativamente refletida de forma concretamente musical. Outras situações, ocorridas no Quilombo da Família Flores, para o segundo episódio do projeto OuvidoChão – Identidades Quilombolas : houve gravações em que as apresentações musicais foram planejadas conjuntamente entre a Geneci e eu. Bem como o acordo para a gravação na casa de Gerson – irmão da Geneci, que herdou dos pais a relação com a religiosidade de matriz africana – em que o próprio entrevistado sugeriu os pontos de umbanda para as trilhas sonoras de seu depoimento. Registro sonoro 7: Ouvidochão – identidades quilombolas – entrevista Gerson Flores com ponto de umbanda em 10 de novembro de 2018 –quilombo Família Flores Tenho concebido poeticamente esta experiência de composição das paisagens sonoras com os Quilombos a partir das trocas culturais, que tenho estabelecido como o projeto OuvidoChão no Rio Grande do Sul e também nos Estados de Figura 6 – Fotograma do Documentário OuvidoChão – Identidades Quilombolas – Gravado em 31-05-2018 no Quilombo Família Fidélix
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Pernambuco e Rio de Janeiro, em que tenho desenvolvido representações em audiovisual e em arte tecnológica. Tal encerra não apenas o que eu posso colher das comunidades, mas também o que posso semear. Essa agricultura dos sons se relaciona com o território, pensado mais especificamente como terra, como fertilidade. Aponta possibilidades de procedimentos que passam pela vivência e pelo entendimento da relação humano e natureza, partindo para a reflexão sobre a construção de narrativas. Ressaltamos, assim, a importância de conhecer o lugar para entendê-lo e à sua sociedade, para criar representações cuja retórica seja coerente e que fortaleça as identidades locais.
Figura 7 – Gerson Flores na entrada de sua casa em 10-11-2018. No lado esquerdo, a casa do Orixá Bará –Quilombo Família Flores. Crédito da Imagem: Douglas Freitas
Para isso, é importante trabalhar no desenvolvimento destas práticas, sobretudo, na socialização com as comunidades das relações políticas entre aparência e essência, propondo momentos para reflexões críticas sobre suas paisagens sonoras (e também visuais) de modo a colaborar na discussão sobre as relações de poder que essas paisagens reproduzem ou contestam, fornecendo elementos para uma possível reconfiguração simbólica das expressões materiais e culturais do espaço. Orientada nesse sentido, propormos relações de construção e de troca de conhecimentos sobre a representação espacializada da paisagem sonora desses corpos e desses lugares-territórios negros, bem como das dinâmicas sociais que caracterizam esses espaços, instrumentalizando as potencialidades discursivas dos territórios negros e quilombolas a partir de seus elementos materiais, imateriais e simbólicos, numa perspectiva de (re)construção de identidade e de valorização do ser negro no seu espaço reterritorializado.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Os Conceitos Fundamentais da Pesquisa Sócio-Espacial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.
TINHORÃO, José Ramos. Os Sons dos Negros no Brasil – Cantos, Danças, Folguedos: Origens. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2008.
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Nóbrega Maryssael. Memória, identidade e território: mapas afetivos como indicadores de hábitos culturais. Revista do Centro de Pesquisa e Formação. n. 6, p. 207-221, jun. 2018. CINECLUBE BAMAKO. OuvidoChão – Identidades Quilombolas. Youtube, 07 Jan. 2020. Disponível em <https://youtu.be/shoqG_BYCoI>, Acesso em 02 Fev. 2020. GARCIA, Alexandre Lima. O sulear-se como ferramenta de leitura do mundo na educação: contribuições da Geografia a partir de um estudo de caso. Anais Eletrônicos do Congresso Epistemologias do Sul, v. 1, n. 1, p. 301-307, mar. 2017 MALANSKI, Lawrence. M. O interesse dos geógrafos pelos sons: alinhamento teórico e metodológico para estudos das paisagens sonoras. R. RA´E GA, Curitiba, v.40, p. 145-162, NASCIMENTO,2017.
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Taiane F.; COSTA, Benhur P. Fenomenologia e geografia: teorias e reflexões. Geografia, Ensino & Pesquisa, v. 20 , n. 3, p. 43-50.2016.
A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: EdUSP, 2006.
Não conseguem dar conta, ainda, dos encontros conflituosos do viver, que deveriam ser trabalhados nas escolas, preparando as pessoas para a vida real.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
COMO CITAR: PEREIRA, Patrícia Gonçalves; MACHADO, Luís Rogério. Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga, que educa a cidade de Porto Alegre. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 514-535 514514
As decisões político-econômicas tomadas no Brasil, desde a colonização, promoveram exploração, expropriação, genocídio e exclusão de uns, em favor dos privilégios de outros. No estado gaúcho, os mitos e as histórias contadas sobre nós pactuaram apenas com uma versão dos fatos e, além de dar legitimidade apenas a uma das versões, criaram mecanismos de silenciar, de tornar oculto, de demonizar e de criminalizar as outras versões, para proibir a propagação da QUILOMBOLAS
Os modelos educacionais, disseminados nas escolas públicas brasileiras, em sua grande maioria, reproduzem métodos padronizantes, que não conseguem refletir nem dialogar com as comunidades, que envolvem as escolas, e não conseguem relacionar as realidades complexas destas pessoas, destes territórios.
Patrícia GonçalvesCORPO E (R)EXISTÊNCIA
PORTO ALEGRE PEREIRA Luís Rogério MACHADO
Estes acontecimentos contribuem para as complexidades do existir. Tomemos o exemplo de um espaço institucional de grande importância para a vida em sociedade, na modernidade, e, ainda hoje, na contemporaneidade: a escola.
PELA CAPOEIRA, A PEDAGOGIA DA GINGA, QUE EDUCA A CIDADE DE
O existir, neste planeta, comum aos seres humanos, não é algo que se faça, de forma padronizada, embora haja estratosféricos investimentos para tanto.
Em cada lugar, a vida acontece de um modo singular, de um modo próprio.
O Quilombo dos Machado, localizado na zona Norte de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, Brasil, compõe uma organização política, que disputa, com a cidade, seu reconhecimento territorial, levando ao limite discussões estruturais teórico-práticas, que não dão conta de resolver os problemas, ocasionados pela escravização, que seguem sustentando as desigualdades sociais nos dias de hoje. Não falamos em benefícios ou privilégios, mas em justiça social, e demonstramos, na prática, a realização dos nossos mundos possíveis. Este território é do conhecimento localizado de uma comunidade negra, urbana, de periferia, em que as pessoas, desde sua condição humana, disputam com uma grande corporação internacional – a Walmart – uma área, que era de uso das famílias da região há cerca de 40 anos, enquanto a corporação, através do hipermercado BIG, está na área há cerca de 15 anos. As figuras 1 e 2 demonstram a presença da comunidade em uma das audiências de reintegração de posse. No entanto, a pressão do setor da especulação imobiliária impacta o quilombo, desde antes da retomada da área – realizada em 2012 –, assim como as demais comunidades da região, com a intensificação dos efeitos da gentrificação1. O referido fenômeno é observado, com maior voracidade, em regiões de predomínio de população negra nos centros urbanos, podendo, então, ser descrito como racismo (PEREIRA, 2019). Alguns autores o consideram racismo ambiental, segundo discussões territoriais, que reformulam este conceito, considerando a realidade das periferias brasileiras. De acordo com a pesquisadora Tânia Pacheco (2007): 1 Gentrificação: fenômeno urbano, identificado a partir dos anos 1970, que promove a expulsão de moradores pobres de determinada região, por meio de um conjunto de medidas socioeconômicas e urbanísticas, marcado pela hipervalorização de imóveis e pelo encarecimento de custos. O conceito foi elaborado por Neil Smith, professor de Antropologia e de Geografia. Disponível em: https://bit.ly/2RHI247. Acesso em: 10 out. 2018.
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Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre nossa sabedoria. No entanto, as gerações presentes sempre dão seus jeitos de recuperar a história e a memória das sabedorias ancestrais.
Como nos contou Frantz Fanon em Os condenados da Terra (2002), o sentimento de correr, de desviar, de jogar, de ser mais ágil que o opressorcolonizador permeia os sonhos, estendendo-se dos desejos mais ocultos aos que estão à flor da pele negra, dos corpos que habitam territórios racializados, dos corpos que compartilham laços e esperanças na tão sonhada revanche. As diversas estratégias de sobrevivência de todas e de todos, que vieram antes de nós, estão em nossos corpos; trabalhamos para acioná-las e contamos com apoios, para o reconhecimento do espaço-tempo, da cartografia e da constituição do conhecimento dialógico entre a ancestralidade e atualidade, para compor um mapa quilombola, que reflita a concretude dos sonhos comunitários possíveis no tempo presente.
Fonte:
Figura 2 – Lideranças em mesa de negociação, na audiência de reintegração de posse, em 2013.
Figura 1 – Comunidade na audiência de reintegração de posse, em 2013. acervo da comunidade (2013)
Eliane (moradora da comunidade), Jamaika (quilombola/liderança comunitária), Onir Araújo (advogado), representação do INCRA, empresários e advogados de acusação.
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Fonte: acervo da comunidade
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre
Entre as memórias matriarcais, a comunidade reconecta suas trajetórias de deslocamentos, em busca da vida, e decodifica os processos de desterritorialização no campo e na cidade. Entende-se, o corpo, como local relacional dos acontecimentos cruzados pelo espaço-tempo. Seguindo as perspectivas da angoleira Mestra Janja – co-fundadora do Instituto Nzinga e Estudos da Capoeira Angola e Tradições Educativas Banto no Brasil (INCAB) e professora na Universidade Federal da Bahia/UFBA – pode-se dizer que há um olhar aguçado, aqui, para a compreensão do corpo como “[...] um espaço sagrado, em que é possível elaborar estruturas de autoconhecimento e de construção reflexiva de uma sociedade mais ampla” (ARAÚJO, 2004)2. A capoeira, neste território, busca inspirações, para dar sustentação à multiplicidade do ser corpóreo, entendendo este ser corpóreo como o resultado mutável de relações complexas, que acontecem no tempo e no espaço e que possuem dimensões e necessidades individuais e coletivas, como bem nos lembra Mestre Ratinho, cofundador da Associação Cultural de Capoeira Angola Rabo de Arraia (ACCARA) professor universitário: A capoeira tem seu código de ética e princípios orientados pela relação com as forças da natureza, com o mato, com as águas, com o vento, com os animais, com o ambiente onde ela acontece. Esta orientação sempre foca na defesa e segurança do grupo, por mais que ela se realize no campo individual, ela conecta com o coletivo. E algo de suma importância que a Capoeira Angola do ACCARA ensina para a gurizada na periferia, ensina para gurizada dos Machado, está aqui: “eu pequeninho disputando com os grandões, vou deixar eles doidos disputando só na ginga, o cara querendo me caçar, mas não me acha, eu tô brincando com ele. Ele não me acha. (relato pessoal de Mestre Ratinho, 2018 apud PEREIRA, 2019)
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Chamamos de racismo ambiental às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma implacável sobre etnias e populações mais vulneráveis. O racismo ambiental não se configura apenas através de ações que tenham uma intenção racista, mas, igualmente, através de ações que tenham impacto “racial”, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. (PACHECO, 2007)
Frente a esses processos, o quilombo responde, com insurgências anticoloniais e com rotas de fuga, traçadas por linguagens capoeirísticas, que se movimentam, impedindo o aprisionamento, a cooptação e a captura de seus corpos-territórios.
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A relação com o ambiente precisa ser saudável, equilibrada e responsável, e os cuidados são observados, de acordo com as características deste ambiente. Isso auxilia na defesa do coletivo, pois o grupo protegido também protege meu 2 Neste trabalho, a palavra corpo seguirá a conotação observada no trabalho Iê, viva meu mestre: a Capoeira Angola, da ‘escola pastiniana’ como práxis educativa, tese de doutoramento de Rosângela Costa Araújo em Educação, apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo em 2004.
É com a ginga que se faz a chamada e se disputa o território com a Walmart. É com a ginga que se enfrenta um Estado e seus espaços institucionais racistas. É com a ginga que se faz a justiça imperar. É com a ginga que se enfrenta o racismo e todos os seus desdobramentos nas microrrelações.
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Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre S corpo, minha família. Se o grupo está exposto, também me torno cada vez mais frágil. Esta concepção é fundamental na defesa do que é maior do que meros desejos particulares e considera as questões do indivíduo, de sua saúde, de sua espiritualidade, como partes do jogo, afinal, “[...] como posso cuidar do território, se não cuidar de minha família, se não estiver bem com as minhas obrigações, com a minha cabeça?” (relato pessoal de Jamaika, em 2018) 3. Entender quando é o melhor momento de dar a negativa, de assegurar a autodefesa, faz parte do repertório de bons hábitos capoeirísticos. Então, é preciso dedicar atenção às questões individuais, coletivas e ambiental-comunitárias, mantendo uma relação harmoniosa entre elas. No destaque acima, Mestre Ratinho nos revela, também, uma das grandes potencialidades da capoeira, que estabelece o vínculo forte com as dimensões do campo das impossibilidades, que desafia as lógicas convencionais do que se conhece amplamente da sociedade e da cultura. Aqui, ele chega com a percepção que aflora no território, como o plantar a bananeira na capoeira, invertendo o olhar sobre o mundo e sustentando uma possibilidade, assim como se sustenta um corpo sobre os braços: é preciso equilíbrio, movimento e dedicação. É possível que o pequeninho vença o grandão? A dúvida é apresentada como possibilidade na ginga capoeirística. Esta suspensão aciona a esperança dos que lutam contra a grande corporação, que tenta expropriar a comunidade e que articula golpes baixos, para inviabilizar os sonhos daquele território. Dialogando com Pâmela Marques (em reflexões sobre os dados da pesquisa da professora e socióloga, cuja dissertação de mestrado já foi referida), a inspiração da suspensão, levantada pela capoeira, habilita o corpo a se evadir e a não ser encontrado, a se tornar invisível e a escapar, algo requisitado nos movimentos antirracistas. Quando Mestre Ratinho afirma “[...] eu tô brincando com ele. Ele não me acha” (relato pessoal de Mestre Ratinho, 2018 apud PEREIRA, 2019), deixa aflorar a compreensão de que estar presente, aqui, de que permanecer na vida, é não ser achado. O pensamento capoeirístico estabelece aliança entre possibilidade e impossibilidade, acionando imaginários possíveis em cenários que se impõem à morte. Desse modo, a comunidade se relaciona com o impossível e se movimenta na dança da vida, contra todos os algozes:
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3 Entrevista registrada no diário de pesquisa de campo, em 2018.
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É com a ginga que não se morre de fome. É com a ginga que se revela a este sistema um outro modo de ser no mundo, uma outra política. É com a ginga que se faz o quilombo. (PEREIRA, 2019)
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As relações comunitárias e coletivas são as principais armas de defesa e de ataque da comunidade:[...]énogrupo, que encontram forças, para vencer o racismo, a fome, a dor. Por meio do cuidado com a sua ancestralidade e com sua espiritualidade, nos movimentos da capoeira, defendem o mais elementar: a territorialidade negra, diante de ameaças internas e externas dentro do sistema colonial (PEREIRA, 2019)
Na Figura 3, há o mapa do conflito, envolvendo parte da trajetória histórica do Quilombo dos Machado e a disputa com a corporação Walmart, na zona Norte de Porto Alegre.
UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PLANTADA NO QUILOMBO
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Escapando da fixidez conceitual das categorias clássicas, a comunidade revela que não está fixada no tempo e no espaço e desafia a intelectualidade a compreender as complexas relações de um quilombo urbano no século XXI e que é capaz de decodificar as problemáticas da atualidade, marcadas por concepções teóricas, carregadas de leituras distorcidas, cristalizadas, feitas por corpos estranhos a nós, e fundamentadas em teorias muito distantes da nossa realidade. De forma singular, propõe outras relacionalidades entre mulheres, homens, crianças, juventudes, mais velhos, comunidade e apoiadorxs. Formas, estas, não romantizadas, muito ativas, mergulhadas em tramas de conflitos e de possibilidades, criadas a partir de convívios e de enfrentamentos aos desafios, impostos pelas relações humanas, permeadas pelas complexidades de raça-gênero-classe. Habilidosamente, propõem uma teoria forte e potente, atravessando as fronteiras do território, abrindo caminhos à reconstituição do tecido social e da luta negra em Porto Alegre. Observa-se como o sistema racista tenta inviabilizar a potência fervorosa, com que uma comunidade racializada explode em evidências negras sobre a sua legitimidade, que compõe o território.
O mapa nos propõe uma outra forma de visualizarmos a situação atual da comunidade, com o seu principal conflito: Quilombo dos Machado x Walmart, para a qual a comunidade se apresenta com todas as suas habilidades capoeirísticas, lutando por justiça. Também é proposta, aqui, ilustrar a temporalidade e os movimentos passados, que culminaram na situação presente das famílias envolvidas nessa disputa territorial, que não é de hoje.
Repensar e realizar a educação é elementar, para a condução destes nossos mundos em tempos de movimentos tóxicos e violentos, por parte dos tentáculos capitalistas. As toxicidades projetadas por estes tentáculos amplificam os obstáculos dos que estão em busca da consolidação de possibilidades mais saudáveis do ato de realizar a vida. Amplificam-se os obstáculos, mas não se
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520 Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre N S OL Figura 3 – Mapa do conflito entre o Quilombo dos Machado e o Walmart. Fonte: Pereira (2019)
Arriscamo-nos a dimensionar a compreensão de bell hooks, para com as ações do Estado, também responsável pela educação das crianças5, e nos deparamos com uma série de empecilhos à realização deste entendimento, pois a educação escolar, aplicada em diversos modelos de estabelecimentos de ensino, é uma educação violenta. A violência referida segue o sentido afirmado por Lélia Gonzales (1988), compreendendo o processo da racionalidade europeia, imposta para administrar as colônias no século XIX, embasado no racismo científico. Com a explicação racional, os colonizadores obtinham legitimidade para justificar os mecanismos etnocidas da instalação da colonização (a partir do século XV) e para seguir aplicando a destruição, por meio da repaginação sofisticada da violência, sem parecer violência, mas, sim, “[...] superioridade de sua racionalidade” (GONZALES, 1988). A lógica do racismo científico, formulada pelos colonizadores, para comprovar sua suposta superioridade europeia6 (branca, patriarcal), contribui, ainda, para a compreensão intrínseca na linha de pensamento da coautora, sobre uma sociedade hierarquizada como a brasileira. Assim, é possível perceber por que, no Brasil, a raça (consagrada pelo racismo 4 Luiz Gama, advogado negro abolicionista, nascido em 1830. Disponível em: homenagem/.com/2015/10/29/luiz-gama-historico-jurista-negro-e-abolicionista-sera-inscrito-na-oab-em-cerimonia-de-http://www.justificando.Acessoem19deabrilde2020.
5 O art. 227 da Constituição Federal de 1988 afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade e de opressão. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 09 maio 2020.
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre eliminam estas possibilidades. Ao pensar em processos educativos, entendemos que eles ocorrem em diversos ambientes, com diferentes potencialidades. Assim como nos auxilia a pensar bell hooks (2019), é essencial que pais e mães exerçam seus papéis, de forma não violenta, para que nossas crianças não reproduzam violências, ao lidar com situações difíceis da vida. Não trazemos este ponto, aqui, no âmbito de uma discussão moral, julgando a legitimidade de agir de forma violenta em determinadas situações da vida, pois temos ciência do importante legado deixado por Luiz Gama, cujo ensinamento que ainda ecoa em nós: “[...] o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”4. No entanto, a vida quilombola, ao se realizar em suas multiplicidades, transgride os horizontes da legítima defesa. Ao plantar modos de vida quilombolas, muitos movimentos vitais são acionados. Este movimento tem relações profundas com os processos de aprendizagem, a partir do empirismo das observações do cotidiano (Figura 4).
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O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, assegura que a responsabilidade pela vida das crianças e adolescentes é da sociedade, da família e do Estado. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l8069.htm. Acesso em: 09 maio 2020.
6 Nas palavras da co-autora eurocristã (GONZALES, 1988, p. 71).
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No que é plantado no território quilombola se reconhece o outro, como um ser diferente, dotado de inteligência. Ampliam-se os repertórios de noção de mundo, a partir de experiências de luta e de (r)existência, trocadas com outras comunidades, também, em luta. Se resolve problemas complexos, identificando as urgências e avaliando rapidamente as possibilidades de saída, como numa roda de capoeira, pactua-se com propostas dialógicas, atividades vitais para a comunidade, realizadas em grupos, como as ações estratégicas, organizadas pelas mulheres da comunidade, em parceria com os homens. Se desenvolvem concepções éticas, que não autorizam o esvaziamento dos sujeitos – das pessoas
Fonte: acervo do FQRS (2018)
Figura 4 – Bananeira e oferenda, em frente ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Corpo e (r)existência capoeira, científico) determina o gênero e a classe das pessoas, estabelecendo protocolos de violência, para a domesticação de corpos negros. Ainda hoje, é possível observar, nos espaços escolares de Porto Alegre, a reprodução desta violência contra o que nos faz sujeitos sociais, dotados de consciência, habilidades e sabedorias. Paulo Freire (2013) nos traz a importância de estabelecer relações humanas entre sujeitos, dotados de suas diferenças; não inferiores nem superiores; apenas diferentes. O Quilombo dos Machado propõe a necessidade do reconhecimento da nossa história, da nossa ancestralidade, para a composição de um modo de sociedade, que respeite o diferente e que inicie o processo de um mundo, onde caibam mais mundos, de um mundo que se orienta pelas forças da natureza, onde é possível viver em coexistência e, não, com o extermínio do outro.
A capoeira te faz acordar para vida, te faz gingar com o teu dia a dia, ela é da periferia como o Hip Hop que é a real de dentro da favela. A capoeira é do negro, do branco, do indígena. Ela foi criada com este modo de resistência. Ela foi criada como um modo de libertação dos senhores, não foi criada para fazer um joguinho bonito. É para tu jogar, saber jogar, saber brigar, saber lutar no dia a dia. Para se defender no hoje, no sempre, no amanhã, ela tem este princípio quando o trabalho é bem feito. Aqui no quilombo, o Caçapa e nós, a gente não faz o trabalho por fazer, conheço quem faça, deturpam, vendem a capoeira assim como a religião. (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019)
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre na relação – sempre se tem a possibilidade de resposta, de ação e de reflexão. Estes são passos elementares em qualquer processo de aprendizagem. As crianças e os adolescentes vivenciam e contribuem nestes movimentos e isso é fundamental em seus processos de desenvolvimento humano. Jamaika nos ensina que é primordial considerar o caminhar pelo mundo como um caminhar da ginga, principalmente, dentro da periferia: Todo dia tu vai ter que saber se tu vai dar o “rabo de arraia”, que é o ataque, todos os dias tu vai ter que saber como fazer uma “negativa”, que é a defesa, todos os dias tu vai ter que saber como tu faz uma “chamada”, que vem da Capoeira Angola, para saber se tu vai ter que atacar ou defender. Todos os dias que tu acorda na tua vida, tu é um capoeira, todos os dias tu vai ter que lutar contra o sistema, é pedindo saúde, educação, direitos. 518 anos quase nada mudou, só camuflou, é o que eles estão fazendo até hoje. E o que era nosso, que é era nosso por origem, mesmo assim eles querem nos tirar. (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019)
Ele ensina seu filho, independentemente do que aconteça, a continuar gingando: “[...] 518, 519, 520 o pai vai ir, mas tu vai ter que seguir a trajetória do pai, eu estou seguindo a da minha mãe” (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019). Segundo Jamaika, é por isso que o menino diz: “[...] acabou o amor, isso aqui vai virar Palmares” (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019). O modo disruptivo, com relação às formas padronizadas de educação, constituído no quilombo faz com que eles concebam novas possibilidades de relação, para a manutenção da vida. Tamy, liderança comunitária e companheira de Jamaika, como mãe e capoeirista, observa a importância, por exemplo, dos centros comunitários nas periferias. Estes espaços acolhem as crianças das mulheres que precisam trabalhar fora e que não têm onde deixá-las. No entanto, ela entende que há limites, proporcionados pelas estruturas destes espaços, que são mantidos pelo racismo institucional, e entende o processo de sucateamento destes espaços, mas joga entre a realidade e o ideal. Para Jamaika:
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Pensar o quilombo, a periferia, a partir da roda de capoeira, materializa os modos potente e disruptivo, presentes nestes acontecimentos. O território é
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PLANTAR A BANANEIRA: INSPIRAÇÕES, A PARTIR DE “O QUILOMBO DOS MACHADO E A PEDAGOGIA DA GINGA: DESLOCAMENTOS EM BUSCA DA VIDA”. Segundo algumas das famílias da comunidade, não há representação das contribuições dos povos negros nos livros de História nas escolas; só se fala que foram escravizados. Jamaika destaca que, apenas no dia 20 de novembro, chamam o pessoal da capoeira, para apresentar atividades educativas nas escolas. Não há um trabalho, para saber o que o povo negro fez, e não mostram como conseguiram sobreviver ao processo de pós-Abolição. O trabalho da Maria do Carmo, historiadora que faz o laudo histórico da comunidade para o INCRA/ RS, mostra isso. Quais foram as estratégias ou a ginga que o povo utilizou, para se manter vivo? Isso não se conta; é velado. O aluno negro, que veio de periferia, chega na escola o não se enxerga nela. Caçapa, contramestre de capoeira do ACCARA, desenvolve treinos com as crianças da comunidade, a partir de sua experiência, e estima que a maioria dos professores está dentro do sistema. Um sistema, que, segundo ele, faz com que o indivíduo se sinta diminuído, cujos filhos, que são da vila e que moram na invasão7, não têm sua condição humana valorizada pelos professores. Eles até desejam que os alunos atinjam “progresso social” saindo da periferia, mas, não os incentivam a se desenvolverem com mais potência enquanto sujeitos, sendo da periferia.
7 Necessário que atentemos à compreensão atual da disputa por territórios: “[...] as comunidades indígenas e negras não invadem áreas; elas retomam seus territórios” (PEREIRA, 2019, p. 69).
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre o local do acontecimento, e a comunidade o institui, como lugar de reflexão intensa e de pensamento teórico-prático, rompendo com a lógica dos espaços institucionais exclusivos de produções científica e política. Assim como nos lembra Dos Anjos (2018), “[...] eles produzem um pensamento-fortaleza”, dialogado e gingado com a vida. E o autor continua: “São capazes de fazer a política de outra forma, não só ocupando e disputando os espaços institucionais, mas criando uma fortaleza em torno dos territórios negros” (DOS ANJOS, 2018).
Tal fortaleza é possível pela vivência capoeirística, pela vivência religiosa, pelo modo de pensar e de agir descrito na sonoridade de suas reflexões filosóficas sobre suas vidas. É deste modo que eles desafiam os espaços institucionais, responsáveis, ainda hoje, pela situação de marginalização, acometida aos povos negros. Parafraseando Jamaika, eles “[...] se observam, enquanto povo” (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019), seguindo na linha de Dos Anjos (2018) observa que eles “[...] se contrapõe, enquanto povo, enquanto força, capaz de acuar o Estado brasileiro e de lhe impor derrota, a partir de uma organização interna muito forte” (DOS ANJOS, 2018). Este é o Quilombo dos Machado (PEREIRA, 2019).
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Figura 5 – Contramestre Caçapa e seus alunos, fortalecendo a musculatura nos treinos, realizados ao longo do ano, no Quilombo dos Machado. acervo de Patrícia Pereira (2018)
Fonte:
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Figura 6 – de capoeiristas do grupo ACCARA, de Mestre Ratinho, no Quilombo dos Machado. Na imagem, destacam-se Tamy Machado, visitante, Luciana Machado e crianças da comunidade. acervo de Patrícia Pereira (2018)
Formação
Fonte:
Kátia é filha biológica de mãe de santo. Sua mãe tem uma casa de Umbanda na Vila Respeito. Ela era filha deste terreiro, mas, hoje, segue a orientação espiritual numa casa de Nação, guiada pela sua irmã mais velha: “[...] me diz um lugar que tem livros da nossa religião? Se não é na nossa Nação, tu não acha” (relato pessoal de Kátia). Ela rememora os tempos da infância, quando, nos rituais
A escola acaba cumprindo um papel, dentro da sociedade: deixar os corpos servis e obedientes e mais facilmente controláveis. As crianças e os adolescentes ficam domesticados, para aceitar qualquer tipo de situação. A capoeira afirma a potência destes corpos, destas vidas, sem que precisem ser conformados, encaixados ou transformados, exatamente como se apresentam, sem que nada lhes falte (conforme breve demonstração nas figuras 5 e 6). A escola, na argumentação de Caçapa, é uma rebaixadora da vida na periferia. Vida, esta, que pode ser valorizada, dentro do sistema de ensino, quando se desliga de suas raízes, já que está focando no que se pode ser; não, no que se é. Para Caçapa, o sistema ordinário aplica algumas facilidades, que deixam as pessoas acomodadas, fazendo com que, muitas vezes, deixem de lutar. Na periferia, isto não é disseminado. Para ele, “o moleque da vila é diferenciado, porque ele tem que ajudar, tem que fazer as coisas” (relato pessoal de Caçapa). Nessa direção, é preciso afirmar a vida na periferia como algo também positivo; desejar dizer sim a este modo de vida, mas, não, de qualquer jeito; não, de modo ordinário, como deseja o sistema. É preciso desejar o suor, não, aquele que o sistema cobra, enquanto açoita essas vidas, enquanto as mutila, mas aquele que mostra um corpo vivo.
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O professor Jamaika nos explica que o colégio pensa pelo aluno, não lhe conferindo a autonomia, para pensar por si. É o que a escola faz. Ele compreende os desafios da vida e a necessidade de uma educação de qualidade, como algo diferencial na formação das pessoas. No entanto, problematiza a condução do modelo executado nestes espaços, que universaliza um único método educativo, funcionando mais como uma forma de destituição de outras formas de saber e de cultura, que não obedeçam às orientações do pensamento hegemônico ocidental: [...] claro que tu tem que aprender as coisas, mas para eles só tem um jeito, se tu dá um exemplo que seja diferente, foge de dentro daquela realidade, eles já dizem que nesta sistemática não dá para trabalhar. Eu peguei no meu tempo ‘aula de religião’, mas aula de religião Católica, em nenhum momento falavam de Umbanda, de Quimbanda, de Orixá. E dentro da aula, quando a professora entrava, tu tinha que rezar o Pai Nosso. E muitas pessoas não aceitavam aquele modo de explicação da professora e se identificavam como Umbanda, como Quimbanda, e era guerra com os professores, tu tinha que ser católico e pronto. E até hoje é assim. (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019)
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Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre orientados pela sua mãe de santo e de sangue, tinha que usar as guias dos santos para ir à escola, porque era dia de segurança. Recorda, com certo pesar, que os colegas, considerados amigos, tratavam-na de modo diferente e não se aproximavam, como nos outros momentos. Com o tempo, Kátia entendeu que toda vez que expressava sua religiosidade, assim como seus colegas faziam, ao realizar as orações na escola, utilizando crucifixos, medalhinhas, escapulários, comemorando feriados e expressando todas as outras formas da fé católica, “[...] não era igual a eles, os normais” (relato pessoal de Kátia). Ao deixar de ser “normal”, Kátia tornava-se “apta” a ser tratada com desprezo pelos demais. Segundo ela, “[...] eles aprendiam em casa que o batuqueiro não era gente de boa índole” (relato pessoal de Kátia). Segundo Jamaika, eles, os colonizadores, de pensamento branco em geral, aprenderam que a religião de matriz africana, que o batuque, é “coisa do diabo”. Com o passar do tempo, a religião começou a embranquecer e se modificou, um pouco. Na concepção de Kátia, nos dias atuais, as crianças, nas escolas, ainda são influenciadas a desvalorizar os conhecimentos tradicionais da espiritualidade, envolvidos nas religiões de matriz africana: Até hoje se tu não ensinar bem uma coisa pros filhos da gente, vem um amiguinho e fala outra coisa e eles já ficam meio assim. [...] Até hoje, se tu deixar, teu filho vem com a cabeça bem diferenciada. Eu procuro explicar pra eles que a religião nunca vai me deixar milionária, rica, eu busco saúde, ficar bem com a minha família, busco segurança. O resto que eu tiver que ganhar deles [Orixás] é lucro, é o meu merecimento [...]. (relato pessoal de Kátia)
A religiosidade negra é bestializada pelo pensamento eurocentrado. Mestre Antônio Bispo explica, em sua teoria, que a confluência orienta a relação entre os elementos da natureza, em que “[...] nem tudo que se ajunta, se mistura” (SANTOS, 2015, p. 89), pois a diferença dos elementos se mantém, mesmo se estes se encontram misturados, aparentemente homogeneizados. Segundo ele, esta lógica ainda “[...] rege os processos de mobilização, provenientes do pensamento dos povos politeístas” (SANTOS, 2015, p. 89). Observando as narrativas de Kátia e de Jamaika, em seus tempos de escola, percebe-se que a doutrinação em uma religião monoteísta ocidental era mobilizada, na tentativa de miscigenação, de homogeneização do corpo escolar, como modo de pacificá-lo. Quando tudo parecia misturado, homogêneo, normalizado, não se observavam conflitos de relacionamento e tudo estava, aparentemente, em “paz”. A partir do momento, em que, segundo Antônio Bispo, os elementos diferentes demonstravam suas singularidades, ilustrava-se o significado de que nem tudo que se ajunta, de fato, mistura-se, resultando na desestabilização da “paz” do sistema.
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Tendo sofrido com o comportamento de seus colegas na infância, após perceber que seus filhos também vinham passando por isso, Kátia resolveu
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre abordar a religiosidade da família de forma mais explicativa, mais presente no dia a dia. Ela observa que a comunicação entre as crianças é algo importante, para quebrar “tabus” e para desconstruir mentiras sobre a religiosidade de matriz africana. Jamaika entende que o “branqueamento” da religião – a participação de pessoas brancas nos terreiros – serviu, em certo momento, para conter a demonização. Ele entende que corpos negros e brancos se ajuntam, mantendo suas singularidades, vivendo uma experiência negra e manifestando o sagrado na comum união religiosa. Ainda que nem todos os centros religiosos tenham o compromisso sério com a tradição das religiões de matriz africana, alguns acabam “vendendo a religião”, o que não é estratégico, para os povos, nem compatível com algo tão sagrado, em sua compreensão. Já que deturpam a imagem da religião, esta deixa de ser levada a sério, como deveria sê-lo, de modo que ele não pactua com estas práticas.
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As denúncias narradas pelas lideranças e os argumentos descritos por elas, com relação ao desrespeito e às violências religiosas, sofridas em seu tempo de escola, ainda são problemas atuais, concretizando o racismo institucional e as microrrelações, que viabilizam a opressão racial, pondo em xeque a laicidade do Estado e de seus espaços institucionais. Isso revela que, de fato, segue acontecendo a imposição de um único modo de viver no mundo. Trata-se de um modelo universalizante, que se sobrepõe, com tentativas aniquiladoras, sobre os demais, atravessando as micro e se potencializando nas macrorrelações. A desimplicação dos profissionais da educação e as lógicas reproduzidas pelo sistema, narradas pelas pessoas do território, demonstram, na prática, qual é o pacto, desenvolvido pelo Estado e por seus espaços institucionais. Este pacto não leva a sério o compromisso de cuidar das pessoas, responsabilidade que é assumida pela comunidade. Tamy reforça a importância dos espaços de convivência das crianças e dos jovens, das filhas e dos filhos de mães e de pais, que, ao trabalharem fora de casa, em algumas situações, ficam sem garantia da segurança de suas crianças. Eles compreendem que esta relação com os espaços institucionais se dá em um limite, em que ora há o oferecimento do serviço, ora há um desmonte na qualidade deste, constatando que as disponibilidades de oferta e de estrutura deste são quase nulas. A virada significativa na forma como eles captam a opressão sistêmica e se posicionam, diante dela, pode ser analisada, a partir da chamada feita pela comunidade, assumindo o compromisso, por meio de treinos de capoeira, de dar orientações e de estabelecer uma rede de cuidados para com a juventude, fortalecendo o território. Deste modo, articulam suas capacidades guerreiras e protegem o território, acionando suas expressões religiosas, artísticas, científicas, consoante os modos de estabelecer vínculos com o pensamento potente da ginga (figuras 7 e 8).
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Figura 8 – Mesa Umbigo no Território, durante a II Assembleia dos Povos, no Quilombo da Família Fidélix, em Porto Alegre.
Figura 7 – Paralização da Av. Sertório, contra a remoção da comunidade, em 2012, com destaque para Jamaika, para Karina (irmã de Tamy Machado) e para Kátia (quilombola).
Fonte: acervo da Frente Quilombola do RS.
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Fonte: acervo da Frente Quilombola do RS (2018)
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Na concepção de Jamaika, as duas foram criadas com o intuito de libertação, trilhando caminhos inesperados na realização da felicidade: a capoeira, como um processo de luta corporal, para se defender dos senhores – os capetas –, para se defender dos escravistas; e a religião, para se defender dos mesmos opressores, espiritualmente. Segundo o capoeirista – que segue a religiosidade umbandista, é neste momento que se entende porque a capoeira é religião e a religião é capoeira: os dois se contraem, juntam-se, um com o outro, e confluem na mesma orientação, no processo de libertação, de bem-viver.
Quando este povo foi trazido da África e veio apenas com o corpo e com a alma, e soube preservar isso, graças a sua força não institucional de educação, preservar o corpo e uma alma rebelde, capaz de produzir quilombos, capaz de produzir as mais maravilhosas formas de expressão culturais deste país. Este povo tem a potência da rebeldia anti-institucional. (DOS ANJOS, 2018)
Em total acordo com Dos Anjos (2018), “[...] ao mesmo tempo em que a gente disputa no plano institucional, a gente disputa, para fortalecer o espaço anti-institucional”.
No Quilombo dos Machado, religião e capoeira são uma mesma coisa.
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De acordo com Dos Anjos (2018), há momentos em que a “[...] rebeldia anti-institucional se faz necessária, como força potente contra o Estado, que nos coloniza e que nos esmaga”. Esta rebeldia, ocorrendo em espaços educacionais, torna-se algo fundamental, justamente, porque “[...] é através da educação, que disputamos o corpo e a alma do povo negro contra as formas colonizadoras, que ocultam as nossas capacidades de expressão” (DOS ANJOS, 2018):
Assim, realizamos nossa melhor chance de confrontar este sistema “[...] e demonstrar que existe outra possibilidade de construir outro tipo de sociedade e, não, essa sociedade, em que o homem precisa explorar outro homem, para definir o seu perfil e seu caminho de felicidade” (DOS ANJOS, 2018).
A ritualização espiritual do início do jogo: fazer o sinal, que garante a permissão para jogar, para Caçapa, depende muito daquilo, em que se acredita. Ele, por exemplo, não faz o sinal da cruz, porque, em termos espirituais, desenvolve aquilo, em que acredita: “[...] eu faço o meu momento, ali; concentro-me com aquilo que não me deixa sozinho” (relato pessoal de Caçapa, 2018). O momento de acionar companhia, de se estar junto ao que te faz forte, é de grande eloquência, dentro dos preceitos capoeirísticos. A capoeira, na comunidade, já dura sete anos. Há uma geração de crianças, iniciando nos treinos, agora, com mais de cinco anos. Na perspectiva de Caçapa, tal significa dizer que elas nasceram e que aprenderam a falar, ouvindo a capoeira: “[...] estas crianças já nasceram, ouvindo o som do berimbau” (relato pessoal de Caçapa, 2018). A alma da bateria é o berimbau; ele comanda tudo. Há, nesse sentido, um elo, conduzido pela sonoridade, que estabelece uma linguagem simples, que é fluida, em vários
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A descida no pé do berimbau é de quem tem a espiritualidade com isso. [...] É um negócio de respeito com os Orixás, com os Preto Velhos, cada um pede de um jeito. Ela veio do negro, ela veio da religião. É tu respeitar de onde ela veio pela libertação. Eu por exemplo, não vou entrar dentro da mata sem pedir para Oxóssi, a mata é dele, assim como de todos Orixás, mas quem responde pela mata é ele. [...] O mato para mim é mais do que sagrado. [...] Antes de mexer num galho a gente já pedia pro dono daquele galho pra ele nos orientar qual galho pegar. Os Mestres de capoeira fazem isso, Mestre Lua, Mestre Moa. [...] (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019)
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Com a presença, eles mobilizam outro mundo possível, a partir de coerência e de vivências, apresentam-se como exemplos para as crianças da comunidade. Dessa maneira, convergem elementos singulares, mas, não, buscando fazer uma mistura homogênea, lisa e monocromática. Realizam algo diferente; algo com textura rugosa, colorida; algo rico em complementariedades e em confluências plurais. Além da confluência da capoeira e da religião, há a confluência com o ambiente. Seguindo o pensamento de Jamaika, a capoeira está, para a religião, como também está, para a natureza, e as três dimensões se comunicam e mantêm o equilíbrio, necessário à vida. A representatividade expressa pelo berimbau, instrumento feito da natureza, estabelece, em sua sonoridade, a comunicação entre mundos, reorganiza o equilíbrio, para a condução dos jogos da vida, revelando a comunhão entre religião, natureza e capoeira. Ele nos convida a observar onde iniciaram os territórios quilombolas e como estes se constituíam, enquanto (r)existência, estendendo convite, do mesmo modo, à observação das recomposições dos territórios negros nos momentos presentes. Assim como a própria história da comunidade, que se ergueu, em meio a uma área de mato e de campo, num grande centro urbano, desviando do sistema opressor, com a ginga, diante dos olhos deste sistema, Jamaika reforça, em sua fala, o respeito para com o sagrado e para com a relação com o entorno:
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre estágios da vida. De acordo com o professor Caçapa, a capoeira se constitui, de modo muito simples, no ponto forte da comunidade: Uma coisa muito simples: a gente que dá aula mora aqui. Cada pai tem o contato só com o seu filho, nós temos o contato com todos. O Jamaika aqui está sempre cheio de crianças, o que ele fala pro seu filho não é só pra ele, é para todos. O mesmo é o meu caso, que moro lá no beco [na Vila Respeito], a gente se acorda dando conselho pros meninos, com ensinamentos da capoeira, tu tá corrigindo eles. Não fica só dentro da aula de uma hora, uma hora e trinta, a gente tá dando aula todo momento pros alunos. É tu tá no beco e vê um carro estranho ali, tu chama a atenção. É tu tá no beco e vê várias caminhadas estranhas ali, e orienta “não vai para lá”. E em cima disso os exemplos, o que que a gente faz? Joga capoeira. O que a gente faz? Trabalha. Ele vai na aula da capoeira, mas ele vê o sor dele chegar do serviço, ele vai na casa dele e vê o pai dele falando bem do sor dele. Isso é o bem da capoeira. (relato pessoal de Caçapa, 2018)
O saudoso Mestre Moa – que foi compositor, percussionista, artesão, educador e um dos maiores mestres de capoeira de Angola da Bahia – dizia que nem os mestres mais antigos sabiam da procedência do berimbau, instrumento que tem a potencialidade de sentir a roda, de manter o equilíbrio dinâmico, durante o jogo. De acordo com Caçapa, o berimbau tem dois fatores potenciais na roda de capoeira: primeiro, ele é um espectro, que está se manifestando, ali, no toque, no som; segundo: normalmente, quem toca o berimbau são os mais velhos, que acumularão toda a energia, que vibrará na roda. Esta energia, boa ou ruim, concentrada em quem toca, conduzirá as manifestações espectrais da capoeira.
Mas não é só o berimbau que demonstra esta comunicação espectral. Outro grande e importante instrumento é o atabaque; ele é de Xangô, assim como todo tambor é de Xangô. No atabaque, tem-se o couro de um ser esticado; isso faz de seu toque algo sagrado. Ele nos diz que, quando se toca um atabaque, pede-se licença para o pai Xangô. Segundo Jamaika, trata-se de uma entidade, que está representada ali, que conduz o potencial da balança, que dá equilíbrio à vida, que realiza a justiça.
Com relação ao processo enfrentado no setor judiciário, contra a empresa Walmart e a sua representante, a Real Empreendimentos, a comunidade se organiza, a partir da capoeira, da religião e do entorno social e ambiental, para enfrentar a disputa. Jamaika, na figura de liderança comunitária, explica-nos que, para este enfrentamento, em primeiro lugar, é preciso estar forte consigo mesmo, para, depois, tentar fortalecer outras pessoas. Ele percebe estas ações como algo que forma uma corrente, ocorrendo uma troca de energia entre os que estão em luta pelo território, o objetivo desejado. Ele compreende que estas
Na duração da roda, há uma confluência energética, que, independentemente de sua intensidade ou magnetismo, será dever do mais velho na capoeira saber dimensionar, de modo que isso não venha a afetar ninguém, negativamente – o que nem sempre é possível, segundo o professor.
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Jamaika exemplifica, contando que os momentos de expressão da negatividade na roda de capoeira são observados por todos, quando há o rompimento da corda do berimbau. Esta energia não é exclusiva de quem está tocando o instrumento; ela pode ser reflexo de energias de outras pessoas ou de questões do entorno.
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A roda da vida tocada por eles faz convergir, sofisticadamente, capoeira, religião e natureza. Ainda de acordo com o capoeirista, tal corporifica as possibilidades de “salvamento” ou vitória nesta guerra sistêmica, por meio “[...] da fé, da ancestralidade, de nós, o povo” (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019). Assim, as dinâmicas capoeiristas são reorganizadas, dentro de outra epistemologia, mobilizando saberes, para uma luta contra as forças de aniquilação, presentes e atuantes contra a comunidade.
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Aí que vem contra a Walmart, a Real Empreendimentos [...], aquele processo, que eu levo no meu dia a dia também, quando tu vai fazer “uma chamada” no Tribunal de Justiça, quando tu vai fazer “a negativa”, tomara que a gente não faça “a negativa”, ou quando tu vai atacar. [Patrícia: como assim “tomara que a gente não faça a negativa”?] Tomara que não precise a gente se defender, recentemente já nos defendemos de um processo que a Real Empreendimentos tentou recorrer, daí a gente fez “a negativa”, tomara que daqui para frente não precise mais a gente fazer “a negativa”, que agora seja o ataque direto, o ataque direto para a gente ganhar. (relato pessoal de Jamaika, 2018 apud PEREIRA, 2019)
Dar a negativa é acionar um movimento de retirada, de proteção, de autocuidado. É necessária muita sabedoria, para, num jogo extremamente difícil, aplicar este movimento, mas ele garante a sobrevivência. Plantar a bananeira é um movimento de extremo esforço de musculatura, que inverte as lógicas vigentes e que possibilita ver o que ninguém está vendo, criando um mundo invertido e novas possibilidades de estratégia. A chamada é a invocação; é convocar alguém para o jogo ou responder à convocação de alguém. O Quilombo dos Machado, por meio de sua capoeira e de sua ancestralidade, coloca-se como referencial educador da cidade de Porto Alegre, estabelecendo vínculos entre a educação formal, escolar, e a educação popular, comunitária, do quilombo. Com a ginga da capoeira, o quilombo produz vida, capaz de se interpor à morte sistemática,
A capoeira dos Machado revela as mais maravilhosas expressões culturais, interligada com o ambiente, com o espiritual, com o científico e com o político, oferecendo um pensamento sistêmico, mas, não, homogeneizante. Esta envolve as coerências e as contradições da vida, refletidas a partir dos acontecimentos, decodificados e reformulados em um pensamento complexo-sofisticado, aprofundado em linguagens capoeirísticas. Assim, conseguem interpretar sua relação, por exemplo, com a corporação Walmart/hipermercado BIG como uma roda de capoeira, em que os movimentos de ataques racistas precisam ser desviados e contra-atacados, o que, em termos jurídicos, assume a seguinte forma: movimentações das ações dentro do sistema jurídico gaúcho-porto-alegrense, viabilizados, mesmo sem comprovação da posse legal da terra da corporação Walmart, em qualquer cartório da cidade para justificar a suposta permuta que os acusadores dizem ter feito.8
8 Comunicação pessoal de Onir Araújo, advogado popular e representante legal de defesa, no caso Walmart (Real Empreendimentos) x Quilombo dos Machado, em 2018.
Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre pessoas fazem a religião, a capoeira e a roda da vida. Estas pessoas precisam se posicionar, fazer as chamadas e responder às chamadas da vida (figuras 9 e 10):
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Figura 10 – Comemoração, em frente ao TRF4, pela derrubada da ADI nº 3.239/2004 e do Marco Temporal, em 2018. acervo de Patrícia Pereira (2018)
Fonte:
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Figura 9 – Quilombo dos Machado, em frente ao prédio da Justiça Federal, em conquista de prazo, para a realização dos laudos antropológico e histórico sobre o quilombo, em 2017. acervo do jornal Sul21 (2017)
Fonte:
O Quilombo dos Machado e a Pedagogia da Ginga: deslocamentos em busca da vida. 2019. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural) – PGDR, UFRGS, Porto Alegre, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/197185. Acesso em: 09 maio 2020.
Educação, Raça e Território In: 40 anos do Movimento Negro Unificado (MNU): história, contribuições e perspectivas, 09 de julho de 2018, UFRGS, Porto Alegre. (Mesa redonda-resumo)
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Corpo e (r)existência pela capoeira, a pedagogia da ginga,que educa a cidade de Porto Alegre S OL cotidiana, produzida pelo capitalismo e por seus tentáculos racistas. O Quilombo dos Machado se equilibra entre estes e outros movimentos e, filosoficamente, interpreta a complexidade do viver e aplica os conceitos capoeirísticos no seu dia a dia. Assim, respondem aos ataques da Walmart, aos ataques do Estado racista, aos ataques das pessoas racistas, mas não se limita a responder a estes ataques; também constrói mundos possíveis, ali, onde ninguém acredita.
AUDIÊNCIA marca prazo para Incra entregar estudos sobre Quilombo dos Machado. Jornal Sul21 [on-line], 9 de junho de 2017. Disponível em: DOSdos-machado/.cidades/2017/06/audiencia-marca-prazo-para-incra-entregar-estudos-sobre-quilombo-https://www.sul21.com.br/Acessoem:2dez.2017.ANJOS,JoseCarlosGomes.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e significados. Brasília: Universidade de Brasília, 2015.
Foto: 2021Pires,Cláudia
COMO CITAR: PEREIRA, Beatriz Gonçalves. Tantas, sou só uma e sou tantas… Mãe Bia, sereia das ilhas. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 537-541 537537
Beatriz Gonçalves BIA, SEREIA DAS ILHAS
“Apresentar-me, às vezes, eu fico pensando, chega a ser um certo problema, porque, na minha trajetória, as pessoas foram me dando nomes e mudando o meu nome. Eles me vêm, adequados às coisas que eu estava fazendo na comunidade. Então, na realidade, eu me chamo Beatriz Gonçalves Pereira, vulgo Bia. Quando começamos os trabalhos nas ilhas, o pessoal dizia assim: ‘ah, mas quem é aquela negra? Aquela éa Bia da Ilha!’Aí, ia pro OP1, acho que o OP me trouxe muito isso: ‘ah, mas quem é que tá falando, lá? Ah, a brigona, aquela é a Bia da Ilha!’Então, por não saberem meu sobrenome, as pessoas começaram a me chamar de Bia da Ilha. Nesse meio tempo, tem a questão da tradição, em que meus filhos, e alguns amigos, chamam-me de Mãe Bia. Então, dependendo do lugar em que eu estou e do que eu estou fazendo, as pessoas dizem ‘ah, tamo aqui no OP, é a Bia da Ilha”. Muito bem. Aí, se eu estou num outro determinado lugar, dizem: ‘ah, é a Mãe Bia’, e eu fico tranquila. Eu já me porque isso pode dar um revertério na cabeça da gente. Ainda, quando eu estou nos movimentos populares, eu digo: ‘Olha, eu sou a Beatriz, educadora popular”. Então, vejam que coisa: como os momentos da vida da gente vão nos levando e, agora, tem que saber administrar isso. E eu vejo que, em alguns momentos, nos lugares em que estou, não posso me partiturar, mas, se estou numa convenção religiosa, o povo está pouco se lixando se eu sou a Bia da Ilha, pois ali estou como Mãe Bia, entende [...]? Então, eu sou a Mãe Bia de Yemanjá, sou a Bia da Ilha, sou educadora popular, trabalhando em prol, principalmente, da nossa região, mas, também, com olhar estendido para os direitos, para as políticas públicas e, principalmente, para a questão dos negros e das negras deste país. Não posso falar de outro espaço, porque, nem o meu, eu conheço muito bem.”
acostumei,
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
* Entrevista realizada em agosto de 2020 aos integrantes do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Mariana Nicolini Acosta e Laura Isabel dos Santos Flores.
TANTAS, SOU SÓ UMA E SOU TANTAS… MÃE
1 OP é a sigla para Orçamento Participativo, mecanismo de organização e de gestão populares, presente no município de Porto Alegre.
* PEREIRA
538 Tantas, sou só uma e sou tantas… Mãe Bia, sereia das ilhas N S OL AS ILHAS DE PORTO ALEGRE…
“A minha trajetória começou, quando eu era muito jovem e foi bem bacana, porque comecei, junto e a partir da chegada dos freis franciscanos, aqui, na Ilha da Pintada. Eles, os franciscanos, possuem todo um trabalho, quanto à igualdade, feito com as comunidades e com os movimentos populares. E eles diziam, assim: ‘precisamos montar uma associação na Ilha e indicaram seu nome’, porque eu sempre fui muito brigona, sempre quis mais, principalmente, para a comunidade; incomodava-me a falta do olhar do poder público para as questões das ilhas [...]. A minha mãe, Leoni Gonçalves Pereira, sempre de matriz africana, e se diz matriz africana, porque, em tempos atrás, eram os batuqueiros: ‘os batuqueiros tão fazendo batuque‘. Mas tinha essa aproximação com os capuchinhos, porque, ao mesmo tempo que a minha mãe tocava o tambor com um grupo de mulheres, à tarde – porque elas eram proibidas de fazer isso, à noite –, ela também rezava um terço.
O QUE É UMA UNIDADE TERRITORIAL TRADICIONAL DO POVO BANTO (UTT) E QUAL É A RELAÇÃO DELA COM O TERREIRO?
“Nessas caminhadas, acabei entendendo que fazem parte de povo Banto o povo de Umbanda e o povo de Candomblé; são irmãos, o Candomblé e a Umbanda. A Umbanda nasceu aqui no Brasil e foi a forma que o povo encontrou de manifestar a sua cultura, a sua tradição. Então, enquanto povo de Umbanda
A questão da nossa luta pelo transporte coletivo, a questão de ampliação dos horários, da luta pela própria água na Ilha, sempre foi um movimento muito grande […], pois havia uma série de coisas, de que nós necessitávamos, tempos atrás. Então, imagina: estava com uns 20 anos e já era mãe. Fui mãe, aos 18, da minha linda filha Aretusa. E nós tínhamos muitas necessidades, aqui; tudo era muito difícil, porque as ilhas têm uma peculiaridade: sempre que o pessoal vem para cá, pras ilhas, para o nosso bairro, eles dizem: ‘ah, eu agora vou voltar pra cidade de Porto Alegre’; e alguns moradores daqui também dizem isso: ‘ah, eu vou pra cidade’, então, imagina só essa questão de colocar essa distância: aqui, então, é interior e, lá (Porto Alegre), é a cidade. As coisas não chegavam; era muito difícil. Quando chegavam, politicamente falando, era para os coronéis; até hoje, isso acontece, porém tem uma fronte maior, porque as políticas, elas foram crescendo; os direitos também foram se ampliando [...]. Então, com o OP, nós conseguimos fazer muita coisa e tiramos, das mãos desses tiranos, muitas decisões. Várias pessoas participavam e eu fui ficando, mas, assim, muitas pessoas percorreram essa caminhada, nas ilhas [...]. Houve muitos moradores das ilhas, empenhados em que tudo melhorasse e, não, só, para a Ilha da Pintada, mas, também, para as outras ilhas.”
Tantas, sou só uma e sou tantas… Mãe Bia, sereia das ilhas N S OL e povo de Candomblé, somos irmãos e somos o povo Banto. E tem os outros povos: de Ijexá, de Cambinda [...]. Os povos Banto foram os primeiros a vir para cá e foram distribuídos em várias cidades. Ali, em Charqueadas, em Canguçu, em Pelotas2 [...]. Então, a questão da religiosidade, não, só, aqui nas ilhas, era proibida; eles chegavam e estragavam tudo. Eu fui crescendo, dentro de tudo isso.
2 São naturais de Charqueadas e de Canguçu, respectivamente, as famílias quilombolas dos Alpes e Lemos.
539
Com o OP, procurei ajuda, para conhecer um pouco mais, para descobrir mais sobre isso, porque já tinha esse amor por essa religião toda, por essa luta. Então, eu queria saber um pouco mais sobre nós, sobre o nosso povo, porque a gente chamava de terreiro, de casa de umbanda, de batuque; nosso espaço, no dito popular, é chamado de centro de Umbanda3, mas o que isso significa? O que essas coisas todas, esses nomes todos, têm a ver? Eles têm a ver com a história do meu povo, do povo a que eu pertenci. Porque eu toco o tambor, eu me giro e isso não é daqui. Então, eu tenho raiz; então, eu tenho história; então, fui buscar essa história. Quando comecei a buscar, o povo começou a trabalhar povos de terreiro e eu agitei isso. Mas terreiro, para o nosso povo, é o fundo do pátio; é no terreiro, que acontecem as coisas. E, no popular do povo, quando eles querem ir cultuar, quando eles querem visitar, eles dizem: ‘ah, vou lá no terreiro’; eles não dizem: ‘eu vou na casa de Umbanda’; dizem: ‘eu vou no terreiro’, mas o que é um terreiro? O terreiro é a unidade; o terreiro é o sagrado; é onde eu acendo o fogo, onde eu faço a dança [...]. Aí, a gente descobriu que a expressão povos de terreiro não dava conta de descrever nosso território. Mas isso foi depois de conversar com estudiosos, com pesquisadores, com conhecedores, com visitantes da África, em grandes rodas de conversa, que descobrimos que Unidade Territorial Tradicional (UTT) é bem mais forte, porque entra com tranquilidade na questão das políticas públicas e dos direitos. Aí, abarca tudo; abarca as questões cultural e tradicional, nas suas extensões, e, aí, a gente finca a bandeira ali e diz: ‘opa, essa terra tem dono!’ [...].
3 Mãe Bia de Yemanjá é a líder espiritual do Centro de Umbanda Reino de Yemanjá e Oxóssi.
Toda essa luta que ocorreu, até agora, foi quando eu descobri que território é pertencimento; é onde eu estou; é onde eu fico; o que eu construo, no coletivo, com as pessoas; o que nós fazemos e como fazemos. Essa ilha é maravilhosa; é linda; mas, dentro dela, há, como em todo país, um ato muito cruel, quando os negros, que foram trazidos para cá, para o Brasil, passaram por aqui. Com histórias contundentes, e, inclusive, pesquisadas. Morando nessa ilha, eu me vi na obrigação de dizer: ‘olha, a gente tem que buscar; a gente tem que saber o que a gente tá dizendo‘, até, para a gente se inserir nas políticas. Nós não somos um terreiro; nós somos mais do que isso: nós somos um povo. Aí, começamos a dizer: ‘povos tradicionais de matriz africana’. Quando eu sou um povo, eu consigo buscar mais; eu consigo dialogar mais, e, quando coloco a Unidade
540 Tantas, sou só uma e sou tantas… Mãe Bia, sereia das ilhas N S OL Territorial Tradicional, quero dizer: ‘Por aqui, passaram meus ancestrais [...] opa, respeitem esse espaço! Isso é nosso!’”.
PARA VOCÊ, QUAL É O SIGNIFICADO DE QUILOMBO?
Um pessoal tinha na mente que ‘[...] quilombo é só um quilombo de resistência; é só onde tem quilombolas‘ e eu dizia: “Não, não é; nós somos um quilombo de resistência! Porque, olha o que tenho, aqui; olha o meu tambor; olha o que eu tenho aqui: as ervas; olha o que a gente faz.’. Com essa questão de território, tu afirmas mais: ‘eu sou desse chão; eu estou aqui e vocês, brasileiros, têm uma dívida histórica e impagável para conosco. E é direito de cada uma e de cada um, neste país, sendo negro ou negra, cravar a sua bandeira, fazer o seu trabalho com amor, com respeito, com dignidade, mas sempre mostrando que, se existe um país, aí, foram meus ancestrais que construíram, abaixo das chicotadas, sofrendo as maiores atrocidades imagináveis [...]’. Então, essa questão de ir em busca, porque, desde pequena, eu ouvia que não podia tocar o tambor, porque chegava a polícia e dizia para as mulheres pararem, recolhendo e revirando tudo. Eu nunca aceitei essas coisas. Eu cresci, vendo isso. Imagina a minha mãe, quieta, num canto, ali, sabe? Dói! “Eu tô aqui; respeitem-me! Eu sou uma negra nesse país [...].’ Talvez – eu acho que ainda falta um pouco e que eu não vou estar mais aqui, com certeza, pois já vou ter feito a passagem –, os que vão ficar e os que estão vindo vão trabalhar muito melhor no futuro, com certeza, porque nós estamos preparando para eles; para que eles possam seguir em frente de cabeça erguida, porque, sim, é território! E é a nossa marca no território!”
Foto: Giovanna Jung, 2020
Entre os seus sambas mais conhecidos da Academia Samba Puro está o Relembranças de Porto Alegre, que ganhou o prêmio “Hors Concours”, em 1985, e que revelou Paraquedas como compositor ao grande público. Segundo ele, este samba ficou muito conhecido na cidade e começou a ser executado, até pela banda da Brigada Militar, como homenagem a Porto Alegre, e, em seguida, * Entrevista realizada em junho de 2021 por Sérgio Valentim, documentarista e produtor cultural, graduando em Museologia, pela Universidade Federal de Pelotas (RS), professor de Educação Audiovisual no Ponto de Cultura Teia Viva e na Escola Técnica Mesquita.
Nascido em Porto Alegre, em 1937, Eugênio Silva de Alencar, mais conhecido como Mestre Paraquedas, é um dos maiores compositores do Carnaval de Porto Alegre e do Brasil. Aos 84 anos, já compôs mais de 800 músicas e fundou várias agremiações carnavalescas no Rio Grande do Sul, entre elas, a Tribo Carnavalesca Comanche, no final dos anos 1950, antes do surgimento da maioria das escolas de samba. Compôs mais de 60 sambas-enredo e participou de escolas, como a Praiana, a Realeza, a Acadêmicos da Orgia e a Academia de Samba Puro, da vila Maria da Conceição, em Porto Alegre. Foi enviado ao Rio de Janeiro, para ser paraquedista da segunda turma, criada pelo exército na década de 1960, e sempre voltava a Porto Alegre na época do Carnaval. Por muitos anos, esteve circulando entre a Portela (do RJ) e a Academia do Samba Puro (de PoA), de onde surgiu o apelido Paraquedas. Quando voltou para Porto Alegre, foi morar na Vila Conceição e, junto ao Mestre Papai (João Gomes da Silva) e ao Mestre Nandi do Cavaco, constituíram uma banda chamada Samba Puro. Segundo o Mestre Paraquedas, a escola que estava sendo criada no morro se chamava Unidos da Maria da Conceição e durou apenas dois anos, quando ele, Mestre Papai, Jorge Augusto Nobre dos Santos, o Pitoco, e Moacir Trindade assumiram e alteraram o nome para Academia de Samba Puro, em 30 de abril de 1984.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
COMO CITAR: ALENCAR, Eugênio Silva de. Mestre Paraquedas – O griô do samba. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 543-545 543543
PARAQUEDAS – O GRIÔ DO SAMBA ALENCAR
Eugênio Silva deMESTRE
foi reconhecido como patrimônio cultural da cidade. “Eu cantei uma parte do samba ‘Relembranças de Porto Alegre’ no final de um ensaio, lá no Samba Puro, e o Delmar Barbosa, músico e radialista conhecido na cidade, ficou encantado e colocou na escola, no ano seguinte, e foi um sucesso popular, que colocou Paraquedas na “vitrine” do Carnaval. O samba diz assim: “Madrugada que hoje é só recordação, na calçada, chora o orvalho da saudade que ficou, Porto Alegre o velho porto dos casais, hoje canto a saudade dos tempos que não voltam mais”. Em 1989, É morro, é favela, é gueto, é quilombo foi um samba muito importante para a Samba Puro e para o momento histórico do País. Este samba ficou eternizado no Carnaval de Porto Alegre, por trazer uma crítica à sociedade racista da época, que colocava como marginais aos que viviam no morro: “O dia que o dr. compreender, que quem vive lá no morro também tem direito a viver”. Seus sambas são carregados de crítica social, desde as primeiras composições, aproximando sua arte dos movimentos sociais de luta ao racismo e dos direitos dos territórios quilombolas, o que o levou a ser um dos mestres griôs da Frente Quilombola RS, organização política do movimento quilombola, que luta pela regularização dos territórios e pela reparação histórica. Participante ativo de diversas manifestações e de encontros culturais, promovidos nos quilombos urbanos de Porto Alegre, Mestre Paraquedas foi homenageado, em 2018, pela Organização pela Libertação do Povo Negro (OLPN), que luta pelas reparações históricas ao povo negro. Mestre Paraquedas é um grande contador de histórias, cantadas ou não. É o verdadeiro mestre griô, termo usado pelos africanos, quando se referem a pessoas que têm, como função social, a transmissão da cultura e das tradições orais de seu povo aos mais jovens. Essa forma de pedagogia, que está em sua arte, em suas músicas, em suas pinturas e em suas histórias é a maneira de ensinar de um mestre griô. Reconhecido pelo Ministério da Cultura, em 2006, através da Ação Griô, participou de inúmeras atividades artísticas nas escolas, como Mestre da Tradição Oral, desenvolvendo uma pedagogia griô. Chegou à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) como Mestre dos Saberes Populares e Tradicionais, na disciplina Encontro de Saberes, criada no Curso de Música por um coletivo de docentes e, à época (no ano de 2017), a professora Luciana Prass colocou o Mestre como professor dos alunos da graduação.
N S OL
Mestre Paraquedas morou em quase todos os territórios negros de Porto Alegre, à época de criança, pois seu pai, Sizenando Lopes de Alencar, e sua mãe,
Mestre Paraquedas – O griô do samba
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Participou da equipe de pesquisadores do Projeto Tambor de Sopapo, que teve apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), para a criação do documentário O Grande Tambor, de 2010, e do filme Batuque Gaúcho, que dirigiu, juntamente com Sérgio Valentim, em 2014.
Augusta Silva de Alencar, acabaram obrigados a se mudar, devido às pressões da especulação imobiliária de época. Segundo ele: “[...] os negros foram sendo empurrados para fora do Centro [...]. Nós viemos parar, aqui, na Vila São José; outros tantos na Restinga, depois de que a prefeitura removeu nossas casas, para construir a avenida Ipiranga, no início dos anos 1950”. Morou no Areal da Baronesa, na rua Bernardo Pires e na Leopoldo Bier, no bairro Santana (Forno do Lixo) e no Mont’Serrat (região conhecida como Colônia Africana). Segundo o Mestre, depois desse tempo, todo o processo continua e o lugar, em que ele mora, agora, já passa a ser cobiçado pela especulação imobiliária e muitos já começaram a vender suas casas e a ir para mais longe. Segundo ele: “O racismo permanece e agora estão querendo nos empurrar para mais longe, ainda, e, por isso, a luta dos quilombolas é tão importante, pois é uma luta pelo território, em que vivemos há muitos anos e de que querem nos expulsar, como acontecia, antigamente, quando tinha uma cerca que separava os negros dos brancos no centro de Porto Alegre”.
Mestre Paraquedas griô do samba
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O Mestre relembra que os negros sempre se organizaram em grupos de ajuda mútua, pois ainda não existia o movimento social, porém eles tinham um grupo, que se reunia, para debater as questões políticas, que envolviam os negros, como se fosse um coletivo dos dias atuais: “Eu sempre acompanhava o meu pai nessas reuniões e era sempre na casa de um deles; cada semana, na casa de alguém. Eles se mobilizaram, para ajudar outros irmãos negros, porém era tudo muito escondido, pois a repressão era grande, e parece que pouca coisa mudou, neste sentido, até os dias de hoje”.
N S OL
– O
RESISTÊNCIAS URBANAS NA RELAÇÃO CENTRO-PERIFERIA
Três ruas principais cruzavam a cidade na direção oeste-leste: a Rua da Praia, a Rua da Ponte (atual Rua Riachuelo) e a Rua da Igreja (atual Rua Duque de Caxias). Partiam da ponta do promontório, para se encontrarem nas proximidades do Portão (nas imediações da atual Praça Conde de Porto Alegre). Essas ruas principais eram cortadas por vias menores, pequenas travessas, estreitas, chamadas de becos, que através de ladeiras íngremes subiam em direção ao QUILOMBOLAS
INTRODUÇÃO
COMO CITAR: VIEIRA, Daniele Machado. Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 547-560 547547
PRESENÇA NEGRA NA ÁREA CENTRAL DE PORTO ALEGRE (RS), SÉC. XIX VIEIRA
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
Delimitados pelo topo do promontório (atual Rua Duque de Caxias), ambos os lados desciam “ladeira abaixo” em direção ao Guaíba. O lado norte ia da Rua da Praia, primeira e principal rua da cidade, até o Alto da Praia (atual Praça da Matriz), onde estavam centralizados os poderes político, jurídico e religioso. O lado sul ia da Rua do Arvoredo (atual Rua Cel. Fernando Machado) em direção à Praia do Riacho (atual Rua Washington Luiz) e à Cidade Baixa. À oeste, estava a Praia do Arsenal (atual Rua Gen. Salustiano e imediações) e, à leste, o Beco do Couto (atual Rua Senhor dos Passos). Nesta época, com a cidade ainda sem aterros, estes eram os limites do núcleo urbano.
Porto Alegre, 1780. A Freguesia de Nossa Senhora Madre de Deus, futura capital dos gaúchos, recém começava a se organizar como núcleo urbano e 36% da sua população era composta por pessoas negras. Fundada oficialmente em 1772, a jovem freguesia contava nesta época com apenas 1512 habitantes, sendo 545 negros (PICCOLO, 1991, p. 41). Assim, os levantamentos populacionais do período apontam que, de cada três habitantes, um era negro. No século XIX, a cidade de Porto Alegre ocupava a área que hoje conhecemos como Centro. Formado por um promontório, uma área elevada, que avança sobre o Lago Guaíba, o núcleo citadino era dividido em duas zonas: a face norte (com urbanização incipiente) e a face sul (com ocupação rarefeita).
Daniele Machado
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL topo do promontório. Monteiro compõe um breve panorama dos becos da Porto Alegre antiga:Osbecos tinham um percurso acidentado, estreito e curto através das ladeiras que subiam a colina no centro da península. Não tinham a mesma infra-estrutura das ruas principais, onde se localizavam os sobrados de pedra e cal. Ao contrário, os becos caracterizavam-se pelos casebres modestos de taipa e palha onde morava a população pobre composta de mascates, taverneiros, artesãos, marinheiros, carregadores, prostitutas e libertos (1995, p. 25).
No entorno imediato do núcleo urbano, estavam os Campos da Várzea (atual Parque da Redenção) e a Cidade Baixa, zona de chácaras que foi se urbanizando ao longo do século XIX. A Várzea era um amplo terreno descampado, baixo e alagadiço, caminho de passagem para a cidade de Viamão. Numa cidade que só vai ter as primeiras “penas” de água na década de 1860 e luz elétrica no final do século XIX, esses serviços eram realizados de modo manual, em sua maioria, por trabalhadores negros (livres ou escravizados). O abastecimento de água era feito através dos chafarizes ou pelos aguadeiros, que andavam com suas carroças de pipa vendendo água de casa em casa. A iluminação das ruas era feita pelos acendedores de lampiões, que ao cair das noites passavam acendendo, lampião por lampião.
O NEGRO NA PORTO ALEGRE ANTIGA
Durante o século XIX, a população negra estava concentrada no espaço central ou no seu entorno imediato, como a Rua Avaí (limite com a Cidade Baixa) e outras ruas da Cidade Baixa e do Areal da Baronesa. As territorialidades negras se caracterizam pelas negras minas quitandeiras, pelos ervateiros, pelos diversos batuques, pela Irmandade do Rosário e suas atividades ligadas ao catolicismo, pelos trabalhadores que exerciam ofícios diversos, essenciais ao funcionamento da cidade.
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A maioria das ruas eram de chão batido ou com calçamento irregular, constituindo-se algumas em verdadeiras picadas, com a sarjeta (esgotos) correndo a céu aberto. As toponímias (nomes) estavam relacionadas ao relevo ou a funcionalidades nelas existentes: Rua da Ladeira, Praça do Portão, Largo da Quitanda. A Rua da Praia se chamava assim porque era a praia, com o Guaíba chegando até ela, numa cidade ainda sem aterros. Os becos tinham algumas denominações mais pitorescas, como Beco do Leite, o mítico Beco dos Pecados Mortais (atual Rua Gen. Bento Martins) ou o épico Beco do Poço (que dará lugar à monumental Av. Borges de Medeiros).
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Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL Neste período, a população negra gira em torno de 30% do total de habitantes da cidade, havendo momento em que chega a quase 50%. Em 1814, quase metade dos habitantes da cidade eram negros. Do total de 6111 habitantes, 2900 pessoas eram negras, sendo 588 livres (20%) e 2312 escravizados (80%) (PICCOLO, 1991, p. 41). Ainda faltavam 74 anos para que chegasse o 13 de maio de 1888, data em que a Lei Áurea extinguiria definitivamente a escravidão no Brasil, mas 20% da população negra já era livre, número que só aumentaria com o passar do tempo.
O grupo negro era relevante não somente pela densidade populacional, mas também pelas funções desempenhadas “na cidade que necessita, para seu desenvolvimento e para seu cotidiano, de mão-de-obra” (PICCOLO, 1991, p. 42).
LIVRES OU ESCRAVIZADOS, TRABALHADORES NEGROS
Atuando nos mais diversos ofícios, que iam de serviços domésticos (como criadas, amas de leite) à ofícios especializados (como alfaiates, ferreiros, marceneiros), eles eram pedreiros, pintores, babás, quitandeiras, carregadores, marinheiros, lavradores, roceiros, entre outros. Livres ou escravizados, esses homens e essas mulheres eram trabalhadores negros, sendo possível encontrá-los nos mais diversos espaços de trabalho: mercados, ruas, armazéns e embarcações do porto, residências, barbearias, ateliês de costuras, lojas de artigos diversos, etc.
O espaço público era repleto de trabalhadores negros. Os carregadores, conhecidos como cargueiros ou cangueiros, percorriam as ruas da cidade, transportando as mais diversas cargas (PORTO ALEGRE, 1994, p. 165). Nessa época, a Rua da Praia já concentrava o comércio. Extremamente movimentada, com lojas e vendas sortidas, nela se encontravam numerosas pessoas a pé e a cavalo, marinheiros e muitos negros, carregando volumes diversos (SAINTHILAIRE, 1939, p. 74).
Apesar da opressão imposta pela sociedade escravista, a vida desses indivíduos não se resumia à passividade. Em meio as suas atividades, também havia espaço para encontros e trocas com seus pares, colegas de profissão ou outros populares. A não submissão fica evidente quando o comportamento dos trabalhadores negros precisa ser normatizado pelas Posturas Policiais (1831), as quais passam a proibir que cangueiros (libertos ou escravizados) e outros carregadores deem assovios ou façam vozerias e qualquer outro motim nas ruas e praças da cidade, assim como o toque de tabuleiros e o chiar dos carros ou carretas (PICCOLO, 1991, p. 42).
Também é marcante na memória da cidade a presença das quitandeiras negras, certamente exímias quituteiras, que com seus tabuleiros de doces e frutas, seus caldeirões de canjica ou mocotó, eram as responsáveis pelo comércio de alimentos na cidade. Segundo Achylles Porto Alegre “como não haviam
A menção aos negros como comerciantes de gêneros alimentícios é bastante frequente. Em 1820, em sua visita ao Rio Grande do Sul, o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire registrou os vendedores negros do antigo Largo da Quitanda: É na Rua da Praia, próximo ao cais, que fica o mercado. Nele vendemse laranjas, amendoim, carne seca, molhos de lenha e de hortaliças, principalmente couve. Como no Rio de Janeiro, os vendedores são negros. Muitos comerciam acocorados junto à mercadoria à venda, outros possuem barracas, dispostas desordenadamente no pátio do mercado (SAINTHILAIRE, 1939, p. 79).
No início de 1840, foi construído o Mercado da Praça Paraíso, cujo prédio ficava na atual Praça XV de Novembro, quase defronte ao atual Chalé da Praça XV (PORTO ALEGRE, 1994, p. 28). Além das quitandeiras, os ervateiros também tinham seu lugar, como Estevão, um “mulato” velho, encarregado do tradicional comércio de ervas medicinais (idem, p. 29). O atual Mercado Público só vai ser construído vinte e tantos anos depois, entre 1864 e 1869, tornando-se uma referência para as religiões de matriz africana, devido ao assentamento do orixá Bará no centro do prédio.
Era 1850, e tanto Manuel quanto Albina já eram negros libertos (forros), ratificando a ideia de que uma crescente parcela da população negra foi conquistando a sua liberdade ao longo do século XIX. Mas Albina não foi uma exceção, ao pagar pela sua alforria. Das 3427 cartas de alforrias, identificadas pelo historiador Paulo Staudt Moreira, 41% foram de pessoas negras que pagaram pela sua liberdade, comprando-a de seu senhor (2003, p. 258). A formação de
OL
O ganho obtido com a venda das quitandas parece ter sido um sólido suporte na renda das mulheres negras, inclusive, contribuindo para a conquista da liberdade e para a sua manutenção na vida pós-cativeiro. Num processo de 1850, aparecem como partes o preto forro Manuel de Barros, oficial de barbeiro e a preta forra Albina Vitória da Silva. Albina tinha como fonte de renda suas quitandas, com as quais conseguia pagar o aluguel da casa onde morava e, antes disso, o mais importante: havia pago pela sua liberdade! (PICCOLO, 1991, p. 45).
Localizado na atual Praça da Alfândega, o Largo da Quitanda foi o primeiro mercado da cidade. Esse antigo mercado era o que hoje concebemos como feira: um espaço de comércio ao ar livre, composto por barracas e vendedores ambulantes, em sua maioria negros.
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Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S naquele tempo, nas ruas, carroças de verduras, as minas é que andavam de casa em casa fornecendo a freguesia”; outras não perambulavam, expunham seus quitutes no mercado, nas portas das tabernas de esquina ou a frente de suas casas (1994, p. 100).
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL pecúlio – poupança – através de suas economias, era uma das principais formas utilizadas pelos escravizados para a conquista da liberdade. Assim, com o dinheiro fruto do seu trabalho, economizado tostão por tostão, libertaram a si, seus filhos, seus cônjuges. Em meio à escravidão, as pessoas negras também formavam famílias, com direito a batismo na Igreja do Rosário, a igreja dos pretos. Outro trabalho desempenhado pelas mulheres negras e outras populares era a lavagem de roupas. As margens do lago Guaíba eram o lugar das lavadeiras.
A Irmandade do Rosário foi uma confraria negra, de devoção católica, fundada em 1786. É emblemático que cem anos antes da Abolição, quando a cidade não passava de algumas poucas ruas, 220 pessoas negras – entre livres e
Nas proximidades da Ponte de Pedra, aproveitando a água do Riachinho (Arroio Dilúvio) ou nas escadarias do Cais da Alfândega, via-se roupa sendo lavada. Nem o frio do inverno espantava aquelas mulheres que tinham nesse ofício o seu ganha-pão. Aos grupos, passavam horas à beira do rio, a lavar trouxas e mais trouxas de roupas. Algumas carregavam os filhos junto, pondo-os sentados ou a brincar nas proximidades, sob o cuidadoso olhar materno. Mas o cotidiano dessas mulheres e homens não se resumia ao trabalho. Nas brechas de um cotidiano opressor, também havia espaço para suas práticas culturais, como o batuque e o quicumbi.
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Têm-se registros da existência de batuques já nas primeiras décadas de 1800. Em 1829, um ofício da Câmara Municipal solicita providências para que cessem os “ajuntamentos de negros em candomblé com vozerios, alaridos e obscenidades” (PICCOLO, 1991, p. 43). Na mesma época, e com fortes ligações com os batuques, existiu aquela que podemos considerar a mais antiga instituição negra da cidade de Porto Alegre: a Irmandade do Rosário.
Havia pontos da cidade onde aos domingos o “batuque” era infalível. O Beco do Poço, o do Jacques e a Rua da Floresta eram sítios de eleição para o “batuque”. Nos dias de “Folia”, já de longe se ouviam a melopeia monótona do canto africano e o som cavo de seu originalíssimo tambor (1994, p. 101).
A memória sobre o negro na Porto Alegre antiga também ficou marcada pelo exercício da religiosidade, tanto batuqueira quanto católica. Existiam batuques em diversos pontos da área central e arredores: no Beco do Poço (atual Av. Borges de Medeiros), na Rua do Arvoredo (atual Rua Cel. Fernando Machado), no Beco do Jacques (atual Rua 24 de Maio), na Rua Avaí e em frente à Capelinha do Bom Fim (na atual Av. Osvaldo Aranha), conforme pode ser visualizado no Mapa das Territorialidades Negras (Figura 1). O cronista Achylles Porto Alegre relata que:
BATUQUEIRA E/OU CATÓLICA: RELIGIOSIDADES NEGRAS
Figura 1 - Mapa das Territorialidades Negras em Porto Alegre/RS, século XIX. Fonte: Elaboração de Daniele Machado Vieira sobre Mapa de Porto Alegre de 1868, de IHGRGS (2005).
553 XIXséc.(RS),AlegrePortodecentraláreananegraPresença SN L O
A imagem da Irmandade do Rosário (Figura 2), registrada por JeanBaptiste Debret (pintor oficial da corte portuguesa) em 1828, retrata a coleta de esmolas (fundos) para a manutenção da Igreja do Rosário. Os membros estão caracterizados como uma realeza negra, tal como descrito por Coruja, indicando ser um quicumbi das comemorações de Nossa Senhora do Rosário. Manifestação semelhante ainda ocorre nas congadas realizadas pelo grupo Maçambique, existente no município de Osório (RS), que conseguiu chegar à contemporaneidade (BITTENCOURT JUNIOR, 2006).
As expressões candombe, candomblé e batuque fazem referência aos cultos religiosos de matriz africana. No Rio Grande do Sul o termo mais utilizado é batuque. Candombe é bastante utilizado no Uruguai e candomblé em outras partes do Brasil.
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S escravizadas – já estivessem fundando uma irmandade negra. Essa instituição vai atravessar o século XIX, tendo como principal objetivo a elevação das condições de vida dos homens de cor (MÜLLER, 2013). Em 1828, a Irmandade inaugura sua própria igreja, a Igreja do Rosário, para ter mais liberdade nas suas ações, como a realização dos quicumbis. Os quicumbis, também conhecidos como congadas ou maçambiques, são rituais religiosos afrocatólicos, que congregam dança, música e percussão com elementos de matriz africana. Nas ações da Irmandade do Rosário é possível identificar estratégias de fortalecimento e ascensão coletiva, como o estímulo à formação de poupança, à educação e à manutenção de algumas práticas culturais, como os quicumbis. O cronista Coruja descreve um quicumbi da Irmandade do[...]Rosário:oscocumbis que pelo Natal nas festas da Senhora do Rosário, levando à frente o Rei e a Rainha vestidos a caráter, com a juíza do ramalhete e a competente aristocracia negra, iam dançar, ou antes, sapatear no corpo da igreja com guizos nos tornozelos, enquanto dali não os expulsou o falecido vigário José Inácio dos Santos Pereira, padrinho do nosso conhecido vigário José Inácio, de saudosa memória (CORUJA, 1983, p. 27).
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Esse não era o único batuque existente na Várzea. Entre as décadas de 1870/80, também eram realizados batuques em frente à Capelinha do Bom Fim, no Caminho do Meio (atual Av. Osvaldo Aranha e sua continuação, a Av. Protásio
1
OL
Em meados do século XIX, existiu um batuque conhecido como Candombe1 da Mãe Rita (Figura 3), realizado na Várzea (atual Parque da Redenção). Este batuque ficava localizado na atual Rua Avaí, nas imediações da Av. João Pessoa, no limite entre o Centro e a Cidade Baixa. “Aí se reuniam nos domingos à tarde pretos de diversas nações, que com seus tambores, canzás, urucungus e marimbas, cantavam e dançavam esquecendo as mágoas da escravidão, sem que causassem maiores cuidados à polícia” (CORUJA, 1983, p. 26-27).
Um dos mais populares era o do Campo do Bom Fim, em frente à capelinha então em construção. Cada domingo que Deus dava era certo um “batuque” ali, e o interessante é que muita gente se abalava da cidade para ir ver a dança dos negros (1994, p. 101).
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL Figura 2 – Realeza Negra da Irmandade do Rosário de Porto Alegre, em 1828. Fonte: acervo de Jean-Baptiste Debret. Disponível: https://docs.ufpr.br/~lgeraldo/upoimagens3.html
A presença de batuques na Várzea (atual Parque da Redenção) é identificada por vários autores. A histórica relação do grupo negro com este espaço da cidade é tão marcante, que o nome pelo qual o espaço continua a ser popularmente chamado – Parque da Redenção ou simplesmente Redenção – advém desta relação e resiste ao tempo. Em 07 de setembro de 1884, para celebrar a libertação (parcial) dos escravizados em Porto Alegre, a Câmara Municipal decidiu alterar o nome do Campo do Bom Fim (antiga Várzea) para Campo da Redenção (ZUBARAN, 2009, p. 3). A partir daí, aquele espaço que já era conhecido pela
Alves), do lado oposto da Várzea. Classificado como um dos mais populares, esse batuque é descrito por Achylles Porto Alegre: Havia também os “batuques” ao ar livre. Nestes tomava parte quem queria, e creio que havia um “maioral” [...].
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556 Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL
Assim como nem todas as pessoas negras, no período da escravidão, eram escravizadas, nem todos os escravizados moravam nas casas dos seus senhores. Há registros de diversos escravizados, residindo em outros locais por conta
MORADIAS POPULARES, COLETIVAS OU PRÓPRIAS: UM LOCAL PARA “VIVER SOBRE SI”
Figura 3 – Mãe Rita, final do século XIX
Fonte: Coleção Virgílio Calegari, do acervo da Fototeca Sioma Breitman, do Museu Joaquim José Felizardo frequente presença negra, passou a ter seu nome vinculado a essa presença. Embora a nomenclatura oficial do parque tenha sido alterada para Parque Farroupilha em 1935 (nas comemorações do centenário Farroupilha), este espaço continua sendo chamado de Redenção, rememorando a presença negra, que ali conseguiu manter seus batuques.
A Rua do Arvoredo (atual Rua Cel. Fernando Machado) é frequentemente citada como local de moradia da população pobre e negra. Repleta de árvores, como indica seu nome, era composta de casas simples, muitas de capim e poucas com telhas (CORUJA, 1983, p. 101-102). Ali também se localizava a “Fonte dos Pobres”, dando uma ideia da condição financeira dos moradores desta parte da cidade. A figura 4 se refere à atual Praça Padre Gregório de Nadal, onde estaria localizada a Fonte dos Pobres na década de 1860.
Diversos eram os negros que residiam ali: José Cabelos, carregador do andor da Irmandade do Rosário; Maria José, preta forra, rainha Ginga da Irmandade do Rosário na década de 1850; o africano Domingos José Gonçalves, entre outros.
No meio urbano, aqueles que viviam nas casas de seus senhores habitavam pequenos quartinhos, localizados dentro ou fora da casa, ou os porões dos sobrados, que serviam de senzala coletiva principalmente para os escravizados domésticos (MOREIRA, 2003, p. 54). Embora poucos, existiram também aqueles que conseguiram ter sua própria casa, como Gertrudes Maria da Conceição, africana, quitandeira, proprietária de dois terrenos no Beco do Poço. Nos fundos, havia uma pequena casa, sem assoalho, nem forro, coberta de telhas e com parede de tijolos; na frente, mais três casinhas com paredes de madeira, cobertas por telhas, conforme o inventário da referida senhora, datado de 1894 (MÜLLER, 2013, p. 66).
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Livres ou escravizados, os negros residiam em algumas zonas específicas dentro da área central, expandindo-se para o seu entorno. No Centro, são citadas como locais de moradia a Rua do Arvoredo, o entorno da Igreja do Rosário, o Beco do Poço (atual Av. Borges de Medeiros), a Rua da Varzinha (atual Rua Demétrio Ribeiro). No limite do Centro com a Cidade Baixa, são mencionadas como locais de residência, as Ruas Avaí, da Olaria (atual Rua Lima e Silva) e Concórdia (atual Rua José do Patrocínio). Com base no mapa de 1868 (Figura 1), é possível observar que as ruas mencionadas ficavam afastadas do núcleo principal, caracterizado pela Rua da Praia e Rua da Igreja (atual Duque de Caxias), aproximando-se das bordas da área central e se expandindo para o seu entorno.
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL própria. Como Jerônimo, escravizado, de cor preta, que alugava uma casa no Caminho Novo (atual Rua Voluntários da Pátria), na qual residia com Sofia, sua mulher, também negra (MOREIRA, 2003, p. 63). Esse casal não devia ser uma exceção, visto que a prática de “viver sobre si” era proibida pelo Código de Posturas, prevendo multa para o dono do escravizado e para quem alugasse a moradia (PICCOLO, 1991, p. 42). A possibilidade de viver em outro local, com relativa autonomia e mobilidade, fazia parte das inúmeras negociações, existentes entre escravizados e senhores no interior do sistema escravista (MOREIRA, 2003, p. 61).
São encontrados cortiços em diversas partes da zona central. Descritos pela imprensa e pelo poder público como espeluncas, úmidos, pequenos e escuros,
Fonte: acervo de Daniele Machado Vieira. Trabalho de campo em 2017.
Figura 4 – Atual Praça Padre Gregório de Nadal, na Rua Cel. Fernando Machado (antiga Rua do Arvoredo), local da Fonte dos Pobres na década de 1860..
558 Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL
Os africanos Gertrudes e Domingos compunham uma das muitas redes de solidariedade, criadas entre os negros e grupos populares. Moradores da Rua do Arvoredo e proximidades, conformavam uma rede de apoio na vizinhança, que também tinha seus laços fortalecidos pela origem africana (referindo-se fraternalmente uns aos outros como compatriotas, mesmo não vindos da mesma região ou país africano), e possivelmente pela condição de ex-cativos (MOREIRA, 2003, p. 276). As redes de solidariedade estavam presentes em diversos espaços e contextos: no porto, entre os trabalhadores livres e os cativos, assim como no auxílio a fugas, e nas relações de vizinhança e compadrio, ajudando-se mutuamente. Essas redes de relações e solidariedade tinham como suporte o passado comum, ligado ao cativeiro, ou o desejo de futuro, longe dele. Moradias coletivas para a população de baixa renda, os cortiços também eram locais de residência da população negra. Os cortiços podiam ser antigos casarões, que tinham suas peças sublocadas para diferentes inquilinos, ou terrenos com uma série de peças/quartos, contíguas umas às outras, ao longo de um corredor, com banheiro e pátio de uso comuns. Essas habitações também integravam a rede de solidariedade existente entre os negros, servindo de abrigo para escravizados em fuga, auxiliados por outros companheiros de cativeiro ou por libertos que ali residiam.
REFERÊNCIAS BITTENCOURT JUNIOR, Iosvaldyr Carvalho. Maçambique de Osório – entre a devoção e o espetáculo: não se cala na batida do tambor e da maçaquaia . 449 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2006. CORUJA, Antônio Alvares Pereira. Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre: Cia União de Seguros Gerais, 1983.
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO SUL (IHGRGS). Cartografia Virtual Histórica-Urbana de Porto Alegre: século XIX e início do XX. Porto Alegre: IHGRGS, 2005. 1 CD-ROM.
MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem: experiências negras no espaço urbano, Porto Alegre 1858-1888. Porto Alegre: EST Edições, 2003.
Em 1888, ocorre a Abolição da Escravidão e, no ano seguinte, 1889, a proclamação da República. Nesta época, tem início uma série de transformações na área central, que vão se estender pelas primeiras décadas do século XX: modernização dos serviços básicos (água, esgotos, transportes e iluminação), demolição dos becos, alargamento de ruas e construção de grandes avenidas. Neste contexto, há um grande deslocamento da população empobrecida, em sua maioria negra, para o entorno do espaço central, dando origem ou ocupando os arraiais Areal da Baronesa (últimas décadas do século XIX) e Ilhota (1905) ao sul, e Colônia Africana (década de 1880) e Bacia do Mont’Serrat (1910), a leste. Essas áreas passarão a ser conhecidas como territórios negros, pela densidade de famílias negras residentes e pelas práticas culturais exercidas por elas: batuques, carnavais, torneios de futebol, piqueniques, bailes, etc.
MONTEIRO, Charles. Porto Alegre: urbanização e modernidade – a construção social do espaço urbano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
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KERSTING, Eduardo Henrique de Oliveira. Negros e a modernidade urbana em Porto Alegre: a Colônia Africana (1890 – 1920). 221 f. Dissertação (Mestrado em História) –Programa de Pós-graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1998.
Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL esses locais eram considerados insalubres, focos de degradação e epidemias, sendo tratados como uma questão moral e de saúde pública. Há uma intensa campanha pela eliminação dos cortiços e outras formas de moradia coletiva, localizadas na área central, que culmina no aumento sucessivo dos impostos sobre os cortiços: 1898 (20%), 1912 (25%), 1917 (30%) e 1922 (50%), objetivando o seu fechamento pelo encarecimento dos impostos (KERSTING, 1998, p. 123).
PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. Porto Alegre – meados do século XIX: a cidade negra. In: Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, 10, 1990, Curitiba. Anais [...]. Curitiba: SBPH, 1991. p. 41-47.
PORTO ALEGRE, Achylles. História popular de Porto Alegre. Porto Alegre: PMPA –Unidade Editorial, 1994.
560 Presença negra na área central de Porto Alegre (RS), séc. XIX N S OL MÜLLER, Liane Susan. As contas do meu rosário são balas de artilharia. Porto Alegre: Pragmatha, 2013.
VIEIRA, Daniele Machado. Territórios Negros em Porto Alegre/RS (1800-1970): geografia histórica da presença negra no espaço urbano. 189 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Programa de Pós-graduação em Geografia, Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2017.
ZUBARAN, Maria Angélica. A invenção branca da liberdade negra: memória social da abolição em Porto Alegre. Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, v. 6, n. 3, p. 1-16, jul.ago.set 2009. Disponível em: AcessoARTIGO_3_DOSSIE_Maria_Angelica_Zubaran_FENIX_JULAGO_SET_2009.pdf.http://www.revistafenix.pro.br/PDF20/em:06/02/2017.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul: 1820-1821. Porto Alegre: Cia Editora Nacional, 1939.
SANTOS, Irene (Org.). Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de Porto Alegre. Porto Alegre: Edição do autor, 2005.
BAIXA
REGIÃO CENTRAL DE PORTO ALEGRE/RS E ARREDORES (CIDADE E MENINO DEUS)
NA
Nessa perspectiva, primeiramente, será analisado o conceito de quilombo, assim como será examinada a ressemantização desse termo, ao longo dos anos, no Brasil.Nosegundo momento, com o objetivo de identificar os elementos que contribuíram, para caracterizar a configuração urbana de Porto Alegre, buscouse, a partir de dados históricos da cidade de Porto Alegre, especificamente, dos bairros Cidade Baixa, Menino Deus e Azenha, estabelecer como se deu a formação dos quilombos do Areal da Baronesa e da Família Fidélix.
QUILOMBOLASRESISTÊNCIAS
SILVA
COMO CITAR: SILVA, Taís de Medeiros. Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus). In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 561-580 561561
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
Taís de Medeiros
INTRODUÇÃO Discutir sobre as comunidades quilombolas, enquanto espaços de resistência (Figura 1), é de suma importância, para que se possam analisar questões, referentes às populações negras em Porto Alegre (RS), desde o século XVIII, as quais não são abarcadas pelas narrativas oficiais, dentro da cronologia histórica da cidade, fato que provoca a invisibilização social e o esquecimento dos espaços, ocupados pelas populações negras, anteriormente.
Nesse sentido, buscaremos entender os aspectos, que envolvem, tanto a segregação social destes espaços e os conflitos neles existentes quanto os aspectos simbólicos, que dizem respeito ao processo de identificação dos territórios quilombolas, a partir das políticas de higienização, ocorridas na cidade, às lutas e às estratégias, utilizadas por essas comunidades, para manter os seus espaços.
A presença da população negra na cidade de Porto Alegre (RS) (Figura 2) tem registro, desde o Período Colonial (1500-1815), entretanto sua trajetória não está presente no histórico de evolução da capital, o que denota a sua invisibilização social e o esquecimento dos espaços ocupados por esse grupo étnico, anteriormente. Entre esses territórios, que ocupam a área central de Porto Alegre, estão os das comunidades do Quilombo da Família Fidélix e do Quilombo do Areal da Baronesa, nos bairros Azenha e Menino Deus, respectivamente, limítrofes ao bairro Cidade Baixa (Figura 3). Essas comunidades lutam pelo Figura 1 – Mapa do Brasil, com Rio Grande do Sul destacado. Fonte: Mapa do Brasil. Toda Matéria. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/mapa-do-brasil/.
562 Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) N S OL
Acesso em: 12 jul. 2020.
O QUE SIGNIFICA QUILOMBO?
Acesso em: 12 jul. 2020.
563 Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) N S OL Figura 2 Mapa das macrozonas de Porto Alegre/RS. Fonte: Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre - PROCEMPA. Disponível em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/pddua_mzonas.pdf.
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Baixa e Menino Deus) N
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Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade S reconhecimento, enquanto remanescentes de quilombos, pela manutenção do território, em que habitam, pelo fim das desigualdades e pelo reconhecimento de sua cultura, pela cidade. O conceito de quilombo passou por diversas ressemantizações, tendo diferentes significados, diante das circunstâncias da história nacional. Etimologicamente, segundo Munanga (1995), a palavra quilombo possui raiz africana – kilombo –, originária dos povos de línguas Bantu, de grupos como Lunda, Ovimbundu, Mbundu, Kongo, Imbangala e outros, cujos territórios se dividem entre Angola e Zaire. Ainda, o mesmo autor observa que a palavra quilombo tem a conotação de uma associação de homens, aberta a todos, sem distinção de filiação a qualquer linhagem, cujos membros eram submetidos a dramáticos rituais de iniciação, que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e que os integravam, como co-guerreiros, num regimento de super-homens, invulneráveis às armas inimigas. Por essa razão, os conflitos fundiários, nas cidades, e a evocação do passado negro fazem sentido, apenas, nos discursos jurídico e acadêmico, no que concerne à afirmação de seus direitos. Mostra-se, portanto, a necessidade de derrubar as teorias, que consideram os Figura 3 – Mapa das macrozonas de Porto Alegre/RS, com destaque aos bairros Cidade Baixa, Azenha e Menino Deus. Fonte: Companhia de Processamento de Dados de Porto Alegre - PROCEMPA. Disponível em: http:// lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/pddua_mzonas.pdf.
Acesso em: 12 jul. 2020.
I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver;
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IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (BRASIL, 1988, Art. 68, Art. 215, Art. 216).
Igualmente, foi o último país a abolir legalmente a escravidão, no dia 13 de maio de 1888, porque o tráfico consistia em grandes empreendimentos comercial e cultural, durante o Período Colonial, tanto que, atualmente, o Brasil possui uma das maiores populações negras do mundo.
Para Sommer (2011, p. 76), “[...] o regime escravocrata, com utilização de mão de obra negra africana, juntamente com a agricultura de exportação, foi, desde o final do século XVI, até o final do século XIX (...), a base da sociedade e da economia brasileiras”. Em se tratando do estado do Rio Grande do Sul, a chegada
Art. 68 (do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Nesse contexto, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e os artigos 215 e 216 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foram os marcos fundamentais na história da mudança, no que se refere à classificação e à forma de tratamento dadas às comunidades quilombolas, que passaram a ser denominadas remanescentes de quilombo1 .
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) N S OL
De acordo com dados de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as populações negra e parda são a maioria no país, representando 55,8%, contra 43,1%, que se declaram brancos, em um total de 208.494.900 habitantes.
quilombos como lugares de fuga e de isolamento, ignorando as mistificações e se contrapondo aos estigmas, identificados com o passado colonial, legando a essas comunidades a capacidade de se organizarem e de reivindicarem seus direitos (Quadro 1).
PORTO ALEGRE NA VIRADA DOS SÉCULOS XIX E XX O Brasil tem uma intensa história no tráfico e no comércio de africanos escravizados, sendo um dos países que mais recebeu africanos no mundo.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
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Local de encontro de escravos, onde se reuniam para comer, descansar, praticar religião, trocar ou esconder mercadorias roubadas. Instrumento repressivo: por isso o quilombo deve ser vigiado ou assaltado ao longo de todo o século XIX (ARRUTI, 1997). Imperial 1930-1940Republicano(1822-1889)(1889-1930)
Quadro 1 – Ressemantizações do conceito de quilombo (Século XVI a Século XXI).
Lugar de isolamento dos escravizados fugitivos e de resistência (SAHR, 2011). Surgimento da figura do Quilombo dos Palmares como uma tentativa negra de organização (RAMOS, 1942). 1950 Comunidades quilombolas como exemplos da tradição de resistência negra no país na luta pela igualdade racial (SAHR, 2011). Período de afirmação política do Movimento Negro. 1970-1980 O termo se refere contemporaneidadea e a historicidade quilombola (SAHR, 2011).
1990-Atual Terras habitadas por negros e originados de doações de antigos senhores, de fazendas que foram abandonadas com escravos, terras de igrejas e também terras doadas a exescravos (CARRIL, 1997).
O que antes era sinônimo de fuga e/ou resistência, hoje significa a ancestralidade negra de plástico.ummesmaumcomunidade,determinadaquecompartilhamesmoterritórioeumacultura,sendoentãoconceitomaisdinâmicoe
ColonialPeríodoSignificadoObservações(1530–1815)
Fonte: da autora, 2020. dos escravos acontece, segundo esta autora, na primeira metade do século XVIII, trazidos para trabalhar na agricultura, nas estâncias e na produção de charque. A maioria deles vinha do Rio de Janeiro, assim como de outros portos brasileiros. Monsma (2011) comenta que a historiografia dos períodos Colonial e Imperial do Rio Grande do Sul evidencia a importância da escravidão para a economia regional. Além do grande número de cativos, que trabalhavam nas
566 Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) N S OL
Repercute no avanço e nas contradições existentes na classificação das comunidades quilombolas.
2 De acordo com a Prefeitura Municipal de Charqueada (2020), a origem de Charqueadas está ligada ao charque (carne bovina seca e salgada), ainda hoje, muito consumido pelo gaúcho. Charqueadas era o local, em que se produzia o charque, até o final do século XIX e início do século XX. O fabrico do charque foi, durante muito tempo, a principal atividade econômica dos colonizadores da região, predominantemente, espanhóis e portugueses.
Baixa e Menino Deus) N S OL
Disponível em: https://www.charqueadas.rs.gov.br/historia.
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade
3 Lagunense: pessoa que nasce na cidade de Laguna (SC); paulista: pessoa nascida no estado de São Paulo. Fonte: https://www.dicionarioinformal.com.br.
Acesso em: 11 jul. 2020.
Acesso em: out. 2020.
No ano de 1837, outras disposições tratavam da questão da mão de obra escravizada, precavendo-se da possibilidade de rebelião dos cativos, entretanto as fugas e as insurreições aconteciam. Diversos eram os anúncios estampados em periódicos da capital da época, que constantemente anunciavam fugas de negros para a fronteira, espaço que era sinônimo de liberdade. Ainda no século XIX, o estado do Rio Grande do Sul era a sexta província em números de negros, mas, com a promulgação da Lei Euzébio de Queiróz, em 1850, extinguindo legalmente o tráfico de escravos, o trabalho livre foi crescendo, tornando
Bittencourt Júnior (2010) afirma que, entre 1815 e 1832, existem referências a negros alforriados, que praticavam as profissões de quitandeiro, de lavrador, de barqueiro, de alfaiate, de ferreiro, de campeiro e de marinheiro. Destarte, para disciplinar a ocupação do espaço urbano, surge o Primeiro Código de Posturas Policiais, em 1829. Este designava os lugares, para a lavagem de roupa e para o despejo do lixo. Entre as medidas adotadas pelo Conselho Geral Provincial, em 10 de fevereiro de 1831, estavam as que normatizavam a vida cotidiana da população negra, ou seja, as restrições de ir e de vir da população negra, fosse ela cativa ou liberta (PICCOLO, 1991).
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charqueadas2 e em vários ofícios urbanos, estes também predominavam entre os trabalhadores das estâncias, sobretudo, entre os permanentes. Muitos dos cativos eram campeiros, participando de todas as tarefas da criação de gado.
Por sua vez, Gehlen (2008) ressalta que o estabelecimento da população negra no atual território do estado se deu, antes da ocupação oficial, em 1737, vinda, provavelmente, com os lagunenses e com os paulistas3 , para os campos de Viamão (Figura 4). Com o Tratado de Madrid, em 1752, chegaram sessenta casais de colonos, vindos das ilhas dos Açores, em Portugal, ao Porto de Viamão, para serem assentados na região das missões. Com o acirramento das Guerras Guaraníticas, esses casais permaneceram instalados na ponta da península, à beira do Guaíba, onde formaram um pequeno povoado – Porto de São Francisco dos Casais. Elevada à condição de vila, a partir de 1773, a capital da Província é transferida de Viamão para a Freguesia de São Francisco dos Casais, que passa a se chamar, oficialmente, Porto Alegre (Figura 5). Em 1780, a população da cidade possuía 36% de escravizados, ocupando as mais diversas funções, principalmente, de carregadores e de lavadeiras (GEHLEN, 2008).
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Fonte: MACEDO, 1968, p. 46.
Figura 5 Planta da cidade de Porto Alegre/RS em 1772.
Fonte: Porto Imagem Fotografias. Disponível em: http://www.portoimagem.com/historia.html.
Acesso em: 12 jul. 2020.
Figura 4 – Divisão entre três sesmarias e Viamão.
Germano (1999) afirma que, com a abolição da escravatura no Rio Grande do Sul, em 1884, diversos cativos vieram do meio rural para Porto Alegre ou saíram das casas de seus senhores, para se fixarem nesses espaços, nos quais se concentrava a população de baixa renda. Mas boa parte desses indivíduos ficou desempregada, já que existia mão de obra barata e em abundância no estado, devido à chegada dos imigrantes europeus, neste mesmo período. Assim, os negros permaneceram à margem, em comparação com os demais trabalhadores livres.
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) S OL necessária a reorganização da economia e das relações de trabalho. Assim, o aumento da população e o estabelecimento do comércio, ao longo do Guaíba, determinaram a ampliação da área de ocupação da cidade. Antigas chácaras foram sendo loteadas e ocupadas, dando origem aos arraiais ou arrabaldes (ao redor da zona central da cidade, na periferia), que mantinham relações comerciais e administrativas com o núcleo urbano. Neles, localizavam-se as olarias, os matadouros e os moinhos. Os arraiais cresciam em importâncias populacional e econômica, gerando uma demanda de transporte para estes locais (GEHLEN, 2008).
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Segundo Sommer (2011, p. 58), “[...] a fuga e a formação de grupos de escravos fugidos foi uma constante nesse período e a mesma podia se dar de maneira individual ou coletiva”. Os fugitivos procuravam se diluir no anonimato do grande número de escravos e de negros livres, além de outros personagens da classe excluída da cidade. Esta razão levou alguns evadidos a ocupar os espaços periféricos da cidade, de mata mais compacta, como o Areal da Baronesa (Cidade Baixa), a Várzea (atual Parque Farroupilha) e a Ilhota (atuais bairros Menino Deus e Azenha), espaços localizados na periferia da cidade no século XIX (Figura 6).
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Aqueles que chegaram a Porto Alegre no final do século XIX, início do século XX, depararam-se com intensos melhoramentos urbanos, realizados pelo poder público, principalmente, entre 1897 e 1924, com a realização de diversos projetos, como o primeiro serviço de primeiros socorros e redes de esgoto. Esse período se caracterizou pelos crescentes desenvolvimento e ampliação da cidade, o que a tornou polo de atração para migrantes e para libertos, provenientes, também, de zonas rurais. Assim, todas as áreas concentradoras da pobreza na capital ficaram estigmatizadas, recebendo a designação de “espaços malditos”, que Sommer (2011, p. 96) designa como espaço dos “[...] excluídos, econômica e socialmente, sendo, esses territórios, comumente associados às populações pobre e negra”. A autora (2011, p. 97) ainda nomeia esses locais como “[...] aglomerados marginais habitacionais, erguidos em terrenos baldios, devolutos, e, mesmo, de propriedades pública ou privada, sem arruamento nem higiene, com construções
Nesse mesmo período, segundo Sommer (2011), Porto Alegre passa por uma política de higienização, para tornar a área central da cidade um espaço mais nobre, mais limpo e mais moderno. Em razão disso, os principais alvos foram os becos do centro da cidade, nos quais estavam instalados diversos cortiços, que passaram por inspeções e, segundo Pesavento (1999), ficou estabelecido que os pobres deveriam pagar as décimas urbanas4 e, caso não o fizessem,
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Acesso em: 12 jul. 2020. de madeira (...), de papelão ou lata”. Tais espaços configuravam loteamentos irregulares ou vilas, que concentravam um maior contingente da população negra nas cercanias da cidade. Bittencourt Júnior (2010) reforça a assertiva, observando que essas áreas, consideradas como zonas extramuros, formavam um cinturão negro de indivíduos, excluídos socialmente em arraiais e em vilas, em que proliferavam os casebres de madeira, de papelão ou lata, construídos em áreas devolutas ou baldias.
Figura 6 Mapa do Areal da Baronesa e da Ilhota em 1906. Fonte: Elaborado por Vieira, D. de M. sobre Mapa de Porto Alegre – 1906 (IHGRGS, 2005). Disponível em: Repositório Digital UFRGS – LUME. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/177570.
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Segundo Terra (2001), nessa grande extensão de terra, havia uma chácara, que dominava a paisagem da região no século XIX. Tal espaço era pertencente a João Batista da Silva Pereira, o Barão do Gravataí, e a sua esposa, Maria Emília de Menezes. Na propriedade, foi erguida a casa Solar da Baronesa do Gravataí (Figura 9). Em razão da vasta extensão territorial, o Barão tinha dificuldades em conter o avanço do matagal, constituído de árvores, como pitangueiras, goiabeiras, laranjeiras, bananeiras, entre outras frutíferas, sendo possível, inclusive, a realização da caça a pequenos animais e da pesca no local. Devido a essas características, esta área recebeu o nome de “Emboscadas”, pois, à época da escravatura, oferecia refúgio aos escravizados, que fugiam de seus donos. Tal corrobora o exposto por Sanhudo (1979, p. 208) que diz: “[...] pelas esperas traiçoeiras, que muita gente boa, por motivos encobertos e, por vezes, pessoais, procediam, protegidos pelos acidentes do terreno”. Os escravos que ali se estabeleceram encontraram o lugar ideal para a sua sobrevivência, com abrigo e com alimentação, mas ainda precisavam de roupas e de outros bens e, por essa razão, começaram a assaltar as pessoas, que por ali passavam.
4 Segundo Bueno et al. (2018), este era o imposto predial, estabelecido para as cidades brasileiras, a partir de 1808, e envolvia a taxação dos bens de raiz, à exceção dos que pertenciam à Santa Casa de Misericórdia.
Deus) N S OL
O Quilombo do Areal da Baronesa (Figura 8), localizado em uma área conhecida como Areal ou Arraial da Baronesa, anteriormente, era uma região tomada por mata muito densa. Segundo Sanhudo (1979, p. 208), essa região se destacava por[...]sercortada por sangas e por picadas, por moitas e por capões, por árvores e por macegas, em um verdadeiro labirinto de caminhos sombrios e perigosos, cujos acidentes topográficos facilitavam os esconderijos e tornavam quase inacessível o trânsito desembaraçado.
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino seriam retirados de suas moradias. Nesse contexto, Sommer (2011) pontua que a implantação do imposto sobre os cortiços facilitaria a extinção definitiva desse tipo de moradia da área central de Porto Alegre (Figura 7). Hoje, as comunidades quilombolas do Areal da Baronesa e da Família Fidélix, localizadas dentro dessa dinâmica da expansão urbana no centro da capital, em áreas revalorizadas, sofrem grande pressão, para que se desloquem para as periferias da cidade, áreas de baixa valoração econômica, com acesso restrito a bens, a serviços e a mobilidade espacial. Portanto, se, de um lado, observa-se a desterritorialização dessas comunidades, através de remoções e de reassentamentos, por outro, tem-se a resistência e o estabelecimento de territórios étnicos, constituídos por redes de solidariedade, de sociabilidade e de preservação da cultura.
Figura 7 – Mapa da Rede de Esgotos do Município de Porto Alegre – 1929. Fonte: IHGRGS (2005).
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Com a morte do Barão, em 1846, a baronesa perde, aos poucos, o controle sobre seu patrimônio e seu dinheiro se tornando cada vez mais escasso. Para piorar ainda mais sua situação econômica, um repentino incêndio na propriedade destrói completamente o solar (TERRA, 2001). Aos 71 anos, a Baronesa solicita à Câmara de Vereadores uma licença para lotear suas terras.
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A comunidade do Areal da Baronesa se encontra no limite entre os bairros Cidade Baixa e Menino Deus, este último, considerado um dos mais antigos arrabaldes de Porto Alegre, faz divisa, ao Sul, com o atual arroio Dilúvio. Esse local é considerado um dos mais movimentados e tradicionais da cidade, por Figura 8 – Quilombo do Areal da Baronesa, situada na Rua Luiz Guaranha, Porto Alegre/RS. Fonte: Foto da autora, 2012. Figura 9 – Solar da Baronesa destacado em vermelho, em 1860. Fonte: Porto Alegre Antigo. Disponível em: http://lealevalerosa.blogspot.com.br/2012/07/barao-dogravatai-e-baronesa-do.html.
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Fonte: Acervo Fototeca Sioma Breitman – Museu Joaquim José Felizardo (s/d.).
No que se refere ao bairro Azenha, este era conhecido, anteriormente, como Caminho da Azenha, que, no século XVIII, levava ao moinho d´água de Francisco Antônio da Silveira, que foi apelidado, à época, Chico da Azenha, por sua origem açoriana. O nome do bairro está vinculado à atividade de moagem de trigo, iniciada nessa região, por Chico da Azenha, possuidor de extensas
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) S OL ser um ponto de grandes festas, que atrai grande parte da população. Nessa época pretérita, teve início o período áureo do futuro bairro, que acabou por ser considerado local de moradia de pessoas chiques, por conta de suas bem conservadas avenidas, por possuir um jardim zoológico, uma sociedade de ciclismo – a União Velocipédica – e o Clube do Menino Deus, com suas grandes festas de Carnaval e de São João. Já no século XX, outros equipamentos vieram agregar comodidades ao bairro, como o bonde elétrico e os primeiros carros, bem como a oficialização do nome de sua grande radial, denominada Getúlio Vargas, em homenagem ao Presidente da nação.
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Figura 10 – Ponte sobre o Arroio Dilúvio com a Ilhota ao fundo.
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O Quilombo da Família Fidélix, no limite entre os bairros Cidade Baixa e Azenha, foi fundado no início da década de 1980, por Sérgio Ivan Fidélix, por Milton Waldir Teixeira Santana e por Hamilton Corrêa Lemos, que chegaram à capital, vindos de Santana do Livramento. Motivados pela busca por melhores condições de vida, estabeleceram-se em terrenos vazios, devido à remoção da antiga vila, existente na Ilhota (Figuras 10 e 11).
junto às áreas mais altas e conhecido como o primeiro plantador de trigo e fabricante de farinha de Porto Alegre, usava um trecho de terra, junto à margem do Arroio Dilúvio. A construção da ponte na Azenha, completada em 1900, pelo Intendente José Montaury, após a destruição de outras pontes frágeis, facilita o acesso a uma parte significativa dos arredores da povoação, ocasionando a expansão natural de Porto Alegre. Também as enchentes afetavam, principalmente, a população de baixa renda que vivia nessa área. Na virada do século XX, o Menino Deus se conectava à Cidade Baixa, através da atual Avenida Getúlio Vargas, que se iniciava na ponte sobre o Arroio Dilúvio, que acabou sendo destruída pelas diversas enxurradas. Gehlen (1998) comenta que, no ponto extremo Sul da Cidade Baixa, na porção de terra conhecida como Ilhota, em virtude das cheias, acabou por formar uma ilha. Soster (2001), ao se referir aos bairros Azenha e Menino Deus, destaca: Nos períodos de chuvas, estas áreas baixas eram alagadas, visto que tanto o Arroio Dilúvio, que formava a Ilhota, quanto o Arroio Cascatinha, que percorria seu curso entre a Rua Arlindo e a Getúlio Vargas em direção ao Dilúvio, transbordavam, tornando estas áreas cada vez mais depreciadas em relação às regiões entorno. A falta de infra-estrutura e de investimentos (...). Favoreceu não só a deterioração das estruturas pré-existentes (cortiços) como também o aumento da concentração de uma população de baixa renda, com malocas. (SOSTER, 2001, p. 137)
576 Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) N S OL plantações,
Fonte: Arquivo pessoal de Marcello Campos (s/d.)
Figura 11 – Paisagem interna da Ilhota.
Portanto, a falta de infraestrutura e de investimentos, por parte do município, favoreceu, não, só, à deterioração das estruturas pré-existentes (cortiços), como, também, ao aumento da concentração de uma população de baixa renda, com as malocas. Ao longo da primeira metade do século XX, apesar das obras, realizadas nos cursos dos arroios, não houve mudanças significativas nessa área, mantendo-se assim, até os anos 1960, com a concentração de submoradias no local (SOSTER, 2001, p. 137).
Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa
A autora ainda destaca que “[...] 1200 barracos foram removidos da Ilhota, para a concretização do Projeto Renascença (...), e foram levados para um novo local, na porção mais ao Sul da cidade, à 22 km do centro, chamado Vila Restinga” (SOSTER, 2001, p. 146). O projeto acabou sendo arquivado, por falta de recursos, sendo retomado somente em 1973, com a elaboração de um novo plano de reurbanização, denominado Projeto Renascença, e com a implantação do Plano Comunidade Urbana de Recuperação Acelerada (CURA), que criava benefícios, visando à revalorização de áreas importantes para a expansão urbana, à época. Todas estas transformações auxiliaram na valorização de ambos os bairros, alterando, assim, suas configurações.
e Menino Deus) N S OL
Ao longo das décadas de 1950 e de 1990, esses espaços resistiram a diversos planos de remodelamento e de desfavelização da área central de Porto Alegre, por meio de lutas, que culminaram no reconhecimento dos moradores como comunidades remanescentes de quilombos. Os moradores do Quilombo do Areal da Baronesa resistiram, principalmente, entre os anos 1980 e 1990, a várias tentativas de tomada do terreno, para a construção de novos empreendimentos, como, por exemplo, os supermercados Zottis e Zaffari, que desejavam erguer novas filiais na área. Corroborando o exposto, anteriormente, sobre as investidas, para a tomada da área, Costa (2008, p. 55) afirma que “[...] o Conselho Regional de Contabilidade (CRC/RS) quis construir um hotel para seus sócios na área, e vieram, com a prefeitura, para tirá-los dali”. Assim, a solução contra os constantes assédios da especulação imobiliária foi o pleito quilombola, que se converteu em uma alternativa política, visando à regularização de seu território, assim como a uma melhor acessibilidade a serviços essenciais, como luz, água, educação, saúde e outros. Tomando conhecimento sobre as áreas remanescentes de quilombos e sobre os benefícios deste reconhecimento, em 2007, o processo é aberto e se encaminha a documentação de autorreconhecimento como uma Comunidade Remanescente de Quilombos, sendo, esta, uma estratégia de resistência ao processo de reurbanização, que ocorre nas cidades.
Pelas mesmas razões, a comunidade do Quilombo da Família Fidélix toma conhecimento da questão das áreas remanescentes de quilombos e dos benefícios trazidos e entra em contato com a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, e, em 1998, encaminha a documentação, referente à história da
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Assim, a estratégia utilizada pelas populações negras de Porto Alegre no intuito de manterem seus territórios, foi recorrer a reconhecimento de sua enquanto descendentes da população escravizada, que chegou ao país, buscando, dessa maneira, romper com ciclos continuados de segregações racial e espacial. Esses remanescentes de quilombos são formados por indivíduos, que lutam pela garantia do território, em que habitam, pela consolidação de suas histórias, de sua resistência e de sua autonomia, através do autorreconhecimento quilombola, reivindicando seu direito de permanência no espaço, relacionado ao passado e à memória da comunidade na construção do território.
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Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus) S região do Areal, autorreconhecendo-se como uma Comunidade Remanescente de Quilombos, igualmente, como estratégia de resistência ao processo de reurbanização. Nesta documentação, do total de moradores, somente um não se reconheceu como descendente de escravos, por motivos não conhecidos pelos demais (MARQUES, 2006).
identidade,
imobiliária,
FINAIS Com base nas leituras sobre estas duas comunidades quilombolas, foi possível observar que o aumento da população na cidade gerou a urbanização intensificadora da pobreza, deixando ainda mais pobre uma população economicamente atingida, por falta de estrutura. Fatores tais, quais a especulação os vazios urbanos, a carência de serviços, além de outros, acabaram por intensificar a problemática urbana, gerando a segregação, decorrente das formas de produção do espaço e do uso do território.
CONSIDERAÇÕES
Sua identidade quilombola é definida por uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e de valores partilhados, com critérios subjetivos e contextuais, através da percepção do grupo, de sua afirmação identitária, que é auto-atribuída (primeiro passo, para ingressar na proposta de regularização fundiária). As comunidades se apropriam do termo Quilombo para reafirmar a sua luta pelo direito à terra e a condições dignas de existência. O passado de luta de seus ancestrais se confunde com a luta atual, resgatando, nesses espaços, as formas históricas de organização dos povos negros no Brasil.
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Resistências quilombolas na região central de Porto Alegre/RS e arredores (Cidade Baixa e Menino Deus)
Duan Porto BARCELOS
DORES: A MOCAMBO RESISTE E SE AQUILOMBA EM PORTO ALEGRE ESPÍNDOLA
HISTÓRIAS QUE AMENIZAM
Um caminho pode surgir daquela dor, que impulsiona a seguir e a lutar, generosamente, para reencontrar a si e aos seus, diferente de uma sensação provável de paralisia. É possível resistir e sobreviver a tal dor, cujas marcas diminuem com o tempo, através da virtude dos novos coletivos construídos. Essa viabilidade encontra fundamentos nas memórias da ancestralidade e da filosofia africana, presentes nas práticas da Associação Comunitária Amigos e Moradores do Bairro Cidade Baixa e Arredores (MOCAMBO), autodeclarada Quilombo da MOCAMBO. Tomamos de empréstimo o fundamento da tradição filosófica africana – o Ubuntu –, compreendido através dos estudos de filósofos, como Renato Noguera (2012). Ubuntu, palavra compartilhada, com a mesma grafia e com igual transcrição fonológica, pelos quatro grupos étnicos africanos (ndebele, swati, xhosa e zulu), trata de “[...] uma maneira de viver, uma possibilidade de existir, junto com outras pessoas, de forma não egoísta, em uma existência comunitária antirracista e policêntrica” (NOGUERA, 2012, p. 147).
Maria Elaine Rodrigues
COMO CITAR: ESPÍNDOLA, Maria Elaine Rodrigues; BARCELOS, Duan Porto; MEINERZ, Carla Beatriz. Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 581-594 581581
1 Anotações realizadas por Carla Beatriz Meinerz em aula ministrada pela Mestra Elaine, na disciplina Encontro de Saberes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto QUILOMBOLAS
A negritude carrega uma cicatriz, uma marca que perpassa gerações de ancestralidade africana. Uma cicatriz não acaba, mas a cada geração ela dói menos, pois a família e a comunidade amenizam a dor. Mestra Elaine, relato pessoal, abril de 20191
Como imaginar a dor de ser afastado violentamente de nosso lar, de nossa família, de nosso território, do lugar de nossos afetos ou, até, de nossos dissabores?
CarlaAlegre.Beatriz MEINERZ VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
Para entender tal concepção, é preciso explicitar o que entendemos por quilombo/quilombismo e por mocamb o/mocambagem. Segundo Ilka Boaventura Leite (2000), mocambo é quase sinônimo de quilombo, quando o termo é colocado em perspectiva histórica. Para Abdias Nascimento (2019), o Quilombo de Palmares colocou em contradição toda a estrutura colonial. Para o autor, quilombo significa “reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência,
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O Quilombo da MOCAMBO possui histórias pluralizadas, mas, aqui, enfocaremos as narrativas, que contam como a Associação foi criada e de que maneiras busca manter os laços comunitários e familiares, lutando pelo direito dos descendentes de africanos ao seu território e ao seu jeito de viver. A MOCAMBO entra no Atlas dos Quilombos de Porto Alegre, como exemplo de luta pelo seu espaço, ou seja, pelo direito de se aquilombar e de alargar esse projeto humanitário e quilombista para toda a cidade. A condição diaspórica, segundo José Rivair Macedo (2016), expressa as possibilidades de reconfiguração cultural e de recomposição social, que as populações de migração forçada foram capazes de construir, ao saírem da África para outros continentes. A MOCAMBO é um exemplo dessa recuperação, feita pela resistência organizada e pela valorização da manutenção de um jeito próprio de existir, em que o território não é sinônimo de propriedade privada, mas de bem comum.
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Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre S A história da MOCAMBO, como muitas das forjadas pelas pessoas negras em movimento (GOMES, 2017), nasce das dores e das fortalezas, construídas na diáspora africana, experimentada por causa do projeto colonial e civilizatório, imposto pelas nações europeias sobre os povos de África e da América.
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Quem escreve sobre esse assunto são autores africanos, pois são poucos os europeus que atentam para o tema. O conceito de diáspora pode ser buscado em autores como Stuart Hall (2003) e Paul Gilroy (2012), que trata, também, da ideia de Atlântico Negro. A diáspora é correlata às experiências da escravização e do colonialismo. Tais conceitos ressignificam a vivência negra nos últimos séculos, a partir de novos elos, estabelecidos nessa migração forçada e violenta, trazendo histórias de dispersão e de alienação, que triangulam África, América e Europa, as quais não se reduzem à experiência escravizadora, como único determinante dos homens e das mulheres desse período. Aimé Césaire (1978) aborda o colonialismo branco ocidental, pondo em contato civilizações diferentes, na qualidade de nefasto, pelos efeitos que produz: disfarçado de carta de boas intenções, de um “pseudo-humanismo” capaz de exercer, sobre o colonizado, a crença de não pertencer à civilização. Pensamos que a MOCAMBO, como marca característica da diáspora africana em solo gaúcho, estabelece um outro projeto de humanidade, com valores centrados no comunalismo e no quilombismo, explicitados na obra de Abdias Nascimento (2019), cuja inspiração é a experiência do Quilombo de Palmares, em Alagoas, nos séculos XVI e XVII.
Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL comunhão existencial” (NASCIMENTO, 2019, p. 289-290). Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação, ao meio brasileiro, do comunitarismo ou ujamaaísmo da tradição africana” (NASCIMENTO, 2019, p. 290). O quilombismo é, portanto, uma prática cultural que se complexifica com a multiplicidade de experiências, construídas ao longo dos tempos, no Brasil. Tal termo se complexifica, na atualidade, contexto em que as comunidades quilombolas são compreendidas como tradicionais, inclusive, do ponto de vista das políticas públicas. É justamente tal experiência de comunidade, como aquela que se contrapõe ao modelo capitalista, fato que a singulariza, mas que, no caso urbano, problematiza. Povos tradicionais, no Brasil, viveram e vivem à margem do Estado, buscando sobreviver, com base nas suas práticas socioculturais próprias. Vivem numa sociedade capitalista, mas se caracterizam por manter aspectos de sociedades tradicionais e comunais. No contexto urbano, isso é complexo. Assim, a relação com o Estado, em nosso país, via Constituição Federal, a partir de 1988, recebe um tratamento distinto, que é a garantia dos direitos à diferença e ao rompimento das relações de tutelagem.
Mocambo é, também, nas concepções compartilhadas na Associação, a menor parte de um quilombo, em que se pratica a vida comunitária, a partir do que foi transmitido pelos mais velhos, a citar: os cuidados com os mais jovens e com os mais velhos, as receitas de chás e de bênçãos, as festas, as boas e as más notícias, o compartilhamento de bens materiais e imateriais. Por mocambagem, compreendemos as condutas, advindas dessas concepções, como as citadas acima.
HISTÓRIA DO QUILOMBO DA MOCAMBO: IDENTIDADE E TERRITÓRIO NA RELAÇÃO COM A CIDADE, COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS E COM O PODER PÚBLICO PORTO-ALEGRENSE
O Quilombo da MOCAMBO é uma organização que atua na preservação do patrimônio cultural imaterial da cidade, sendo protagonista dos saberes e das lutas das pessoas negras em movimento, com saberes próprios e de fundamental valor para a história de Porto Alegre. Sua maior liderança feminina negra, que mescla griotagem e memória, é Mestra Elaine – Maria Elaine Rodrigues Espíndola. Uma mulher negra, de ascendência africana, nascida em Porto Alegre, que pensa a sua realidade, amparada em ideias quilombistas e comunitaristas, e que trata de sua historicidade diaspórica, a partir do solo gaúcho e dos territórios portoalegrenses, na perspectiva da mocambagem.
Desde 1998, as práticas da Associação se pautam na defesa da população negra da cidade. Mocambo, segundo a Mestra Elaine, significa a menor parte de um quilombo e, por mocambagem, entendemos a pedagogia própria, estabelecida nesse coletivo: manter reunidas, pela memória e pelo cuidado,
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Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL as pessoas negras da cidade. Para preservar essa união, é preciso um espaço físico e, aqui, contaremos a luta pelo reconhecimento desse espaço, tanto na parceria e na construção dos movimentos sociais quanto no tensionamento, junto às políticas públicas e aos órgãos da administração municipal. Talvez, o maior exemplo do desejo comunitário e quilombista da MOCAMBO seja o termo “arredores”, cunhado no nome da Associação, para designar a migração das famílias do grupo, forçadas a sair de seu território, a Cidade Baixa, para viver em outros espaços, como Restinga e Partenon. O termo arredores “[...] é para dizer de todos os territórios, que abrigam os nossos, que tiveram que sair”, segundo Mestra Elaine. A memória do navio negreiro, de acordo com o pensador antilhano Edouard Glissant (2011), é a memória traumática da separação, e a MOCAMBO quer reconstruir a lembrança do achego, da congregação. Para a mocambagem, individualismos do tipo “quem casa, quer casa” não funcionam, mas, sim, o princípio de que “quem casa, fica conosco, e a gente aumenta a nossaMestracasa”.Elaine lembra de que foi necessário colocar o registro de Associação, assim como de construtora do Movimento Negro organizado, pois à negritude geralmente são atribuídas as marcas da desorganização e da negatividade. A implantação do Centro de Referência Afro-Brasileira (CRAB) é um exemplo desse momento, nos anos oitenta e noventa.
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Porém, o salto organizacional, que transforma a Associação no que ela é, atualmente, ocorre na década de 1990, no contexto da criação da Associação Comunitária Amigos e Moradores da Barão do Gravataí (ACAMBAGRA). Em abril de 1998, a entidade se institucionaliza com o nome de Associação Comunitária Amigos e Moradores da Cidade Baixa e Arredores (MOCAMBO). Como já foi dito, o termo Arredores, presente no nome oficial da Associação, demonstra uma visão abrangente e acolhedora dos conceitos de comunidade, de territorialidade, de sociabilidade e de moradia, característica das cosmovisões afro-diaspóricas.
Mestra Elaine destaca que eles eram originários da Cidade Baixa, quando essa região era uma territorialidade negra, cuja abrangência alcançava áreas, que, hoje, são outros bairros, tendo outras nomenclaturas, como é o caso do Menino Deus. Essa afirmação demonstra uma visão dos territórios da cidade
O início desta história remete ao Carnaval das décadas de 1970 e de 1980, ainda com a figura da dona Maria Eulália Vitória (in memoriam), mãe da Mestra Elaine, com sua atuação na Escola de Samba Praiana, na qual já havia uma organização de diversas iniciativas, voltadas à cultura negra, principalmente, para os moradores da Cidade Baixa e dos arredores, territórios negros por excelência, através da ala Verde Que Te Quero Rosa, que, até hoje, mantém sua presença no Carnaval de Porto Alegre.
Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL para além das denominações ou das cartografias oficiais, embora referenciadas nas memórias de sua ancestralidade. Sem elas, a história da cidade é incompleta ou falseada. Lembramos, aqui, da noção de desterritorialização, discutida por Iosvaldyr Carvalho Bittencourt (2010). Para o autor, as populações negras viveram, não, apenas, a remoção ou a dispersão de seus entes queridos, mas, igualmente, a desativação dos processos de vínculo dos sujeitos com os espaços, tais como a proibição de práticas culturais e religiosas, a mudança de nomes de lugares, entre outros. Um exemplo clássico, em Porto Alegre, era a chamada Colônia Africana, renomeada, a partir do século XIX, para Rio Branco, Higienópolis, Mont’Serrat, Bom Fim.
A MOCAMBO é oficializada, em 1998. Suas lideranças já atuavam, antes, junto ao Movimento Negro, em distintas frentes, especialmente, nas buscas por comunidades remanescentes de quilombolas em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. Nos anos 2000, a Associação se organiza, para se manter no solo sagrado da Cidade Baixa, território em que sempre viveram, em que criaram laços, em que praticaram ritos religiosos e festivos/carnavalescos e em que circularam seus antepassados e suas memórias. Permanecer neste local significa manter viva a memória desses grupos e da própria cidade. Em 13 de julho de 2004, regulamentado pelo Decreto Municipal nº 14.593, a Associação recebe um Termo de Permissão de Uso do espaço físico, pelo qual luta, hoje, para que seja mantido. Tal decreto foi revogado e substituído pelo Decreto Municipal nº 19.961, de 28 de março de 2018, que determina a permissão do uso de bem público à Associação Amigos e Moradores da Cidade Baixa e Arredores (MOCAMBO), localizada na Av. Loureiro da Silva s/nº. A denominação de próprio municipal possui a seguinte descrição: “Uma área com 357,69 m² (trezentos e cinquenta e sete vírgula sessenta e nove metros quadrados), com formato irregular, composta por partes dos imóveis registrados sob os nºs 77.423 e 78.225 do Cartório de Registro de Imóveis da 2ª Zona desta Capital e parte dos imóveis registrados sob os nºs 2.745 e 2.727 do Cartório de Registro de Imóveis da 5ª Zona desta Capital, localizado na Av. Loureiro da Silva, s/nº, distando 32,80 m (trinta e dois vírgula oitenta metros) da esquina com a Rua José do Patrocínio, com as seguintes medidas e confrontações: a Sudeste, mede 22,78 m (vinte e dois vírgula setenta e oito metros), limitando-se com o alinhamento projetado da Av. Loureiro da Silva; a Sudoeste, mede 7,08 m (sete vírgula zero oito metros), limitando-se com o próprio municipal; a Noroeste, mede 22,92 m (vinte e dois vírgula noventa e dois metros), em 3 (três) segmentos: o primeiro segmento, partindo da divisa sudoeste, mede 5,59 m (cinco vírgula cinquenta e nove metros); o segundo, mede 5,52 m (cinco vírgula cinquenta e dois metros); e o terceiro, mede 11,81 m (onze vírgula oitenta e um metros); o primeiro e segundo
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Segue, ao longo dos anos, uma história de idas e de vindas, junto aos órgãos legislativo e executivos da cidade. Ao mesmo tempo, segue a contribuição da
3 Política pública de financiamento de moradias, viabilizada pela Caixa Econômica Federal.
Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL segmentos se limitam com o próprio municipal; o terceiro segmento se limita com o próprio municipal, com o imóvel nº 320 da Rua Cel. Genuíno e com o imóvel nºs 109/111/113 da Rua José do Patrocínio; e, a Nordeste, mede 27,41 m (vinte e sete vírgula quarenta e um metros), em 4 (quatro) segmentos: o primeiro, partindo da divisa noroeste, mede 5,11 m (cinco vírgula onze metros); o segundo, mede 3,75 m (três vírgula setenta e cinco metros); o terceiro, mede 12,70 m (doze vírgula setenta metros); e o quarto, mede 5,85 m (cinco vírgula oitenta e cinco metros); o primeiro e segundo segmentos se limitam com o imóvel nº 121 da Rua José do Patrocínio; o terceiro e o quarto segmentos se limitam com o imóvel nºs 123/127/131/137/141/145 da Rua José do Patrocínio e com o imóvel nº 1570 da Avenida Loureiro da Silva; Quarteirão: Av. Loureiro da Silva, Ac. Hammond, Av. Borges de Medeiros, Rua Cel. Genuíno e Rua José do Patrocínio; Bairro Centro Histórico” (Figura 1).
Nesse lugar, foi construído um galpão, com a sede da Associação, cercada por tapumes, pintados pelo artista argentino Ramón Alejandro Ruíz Velasco (Figura 2), vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com representação de guerreiros africanos. Em 2007, esse espaço foi invadido e houve a reintegração de posse, após a luta da Associação, em busca da preservação de direitos de uso do terreno, cedido pela prefeitura municipal. Em 2009, através do Orçamento Participativo (OP)2 , foi aceita uma nominata, feita pela Associação, com o nome das famílias que poderiam viver nesse terreno, ou seja, ter direito ao território e ao erguimento de um condomínio horizontal no mesmo (Figura 3). O condomínio ainda não se tornou realidade. Igualmente, a insegurança sobre a propriedade da terra permanece.Em2013, a Associação obteve aprovação de verbas, para o erguimento do condomínio, via OP. Após, ampliou-se a conquista, chegando-se a um total de nove unidades de moradia, registrada no Plano de Investimento (PI) do OP. A luta pelo terreno e pelas moradias continua ativa para a edificação no lugar. A Associação se habilitou no Programa Minha Casa Minha Vida –Entidades (PMCMV–E), em 20183, em proposta, referenciada como Condomínio Quilombo do Mocambo I, com verba para a construção de vinte e uma unidades habitacionais. Tal verba retornou, pois a Associação não conseguiu a doação da terra ou a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).
2 O Orçamento Participativo é uma política pública, existente em Porto Alegre, desde 1989, com mecanismos democráticos, que propiciam um processo, no qual a população decide, de forma direta, a aplicação dos recursos em obras e em serviços, que serão executados pela administração municipal.
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587 Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL Figura 1 – Croqui do terreno no Termo de Permissão de Uso, concedido em 2004, pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Fonte: arquivo da MOCAMBO
As dificuldades no acesso à posse do terreno e na viabilização da construção de um condomínio marcam a contemporaneidade da Associação. Tal situação faz da MOCAMBO um território mais referenciado, simbolicamente, do que efetivamente reconhecido, pelo poder público, como detentor de direitos sobre à terra/terreno. A luta pela regularização de seu território na cidade é Figura 2 – Guerreiros africanos, pintados pelo artista Ramón Alejandro Ruíz Velasco, em 2011. Atualmente, a fachada está descolorida e necessita de revitalização. Fonte: acervo da MOCAMBO
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MOCAMBO em comissões de verificação racial, em concursos públicos, em assessorias, na organização de atendimento da saúde da população negra, com ênfase na anemia falciforme, entre outros.
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em Porto Alegre N S OL
incessante,
comprovando a continuidade dos processos colonial e colonizador, que privilegiam o uso da terra, por parte de alguns grupos, em detrimento de outros. O lema “Luta, negro”, da formação do piquete, no ano de 2004, segue como registro da mocambagem, na qualidade de resistência. Território, identidade e resistência marcam a trajetória da MOCAMBO. Resistir é propor algo, que Figura 3 – Nominata das famílias da MOCAMBO, aptas a receber moradia no terreno. Fonte: arquivo da MOCAMBO (2009)
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Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S rompa com a hegemonia do sistema da propriedade privada, com aqueles que detêm os poderes econômico e político, que possuem a chance de vincular terra e território aos entrelaçamentos do processo de regularização fundiária no espaço urbano. São projetos e interesses em conflito, capazes de reconstruir e de repensar a história e a geografia da cidade. No caso em análise, permitem tratar de uma geografia quilombola porto-alegrense, em que a MOCAMBO tem uma marca singular, obviamente. Os valores da ancestralidade africana são centrais, para construir outro projeto de sociedade, não capitalista, baseado no bem da comunidade e no bem de todos. Vejamos o entendimento desse espaço geográfico, segundo Mestra Elaine: “O lugar de que eu falo tem uma memória, mas também tem uma saudade. Uma falta de um lugar, que eu não conheci, mas de que soube, pelas histórias, contadas pelas minhas mulheres mais velhas. Quando tu não sabes o lugar geográfico de onde tu vieste (em África), é preciso se apegar às histórias que os ancestrais nos contam, pela oralidade”. (relato pessoal de Mestra Elaine, em abril de 2019)
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já que precisavam nos ver como uma organização civil, registramos a Associação, mas isso não significa para nós muito mais do que entrar no jogo de poder, aquele que valida o que é o saber. Compreendemos que esse é o jogo da não equidade sócio-cognitiva.” (relato pessoal de Mestra Elaine, em abril de 2019)
A MOCAMBO é uma organização social, que cria movimentos políticos, firmados em conhecimentos e em proposições, jeitos de pensar e de agir próprios, sob os ideais de comunitarismo e de coletividade, defendendo que todo conhecimento é bem público, patrimônio, nesse caso, da mocambagem, com finalidade de obter justiças social e racial. Nenhum conhecimento é usado em benefício próprio, mas das comunidades. Isso é impensável no projeto de cultura consumista, carreirista, meritocrático, capitalista. Por isso, Mestra Elaine insiste em lembrar:“[...]
Ao se reunir, no dia 28/10/2019, a MOCAMBO, em assembleia deliberativa, decide pelo requerimento de autodeclaração de comunidade remanescente de quilombo, junto aos órgãos competentes. Cita-se a Fundação Cultural Palmares, órgão público federal, cuja competência, a partir do § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, é a emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro geral. Tal decisão reitera o reconhecimento, obtido em 2018, quando do Projeto de Lei nº 177/2018, publicado no Diário Oficial da Assembleia Legislativa, de autoria do Deputado Zé Nunes, “[...] reconhece, como de relevante interesse cultural do Estado do Rio Grande do Sul, o Quilombo Mocambo, e dá outras providências”. O Projeto de Lei permite a busca de financiamentos e de incentivos públicos.
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Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre S OL Tal ideal, a equidade sociocognitiva, exige uma posição da comunidade, como um todo, e, especificamente, da comunidade científica, no reconhecimento do encontro de saberes, da ecologia dos saberes. Como fazer eclodir epistemologias outras, a partir do protagonismo de seus emissores, se os corpos que falam não podem ser substituídos pelas mentes que os escutam? Nesse caminho, a MOCAMBO constrói políticas, que enobrecem a cidade e a sua pretensa cidadania, capazes de abranger a todos os grupos raciais e sociais.
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O Movimento recebeu verbas, para a monumentalização de territórios negros, reconhecidamente, indicando griôs da cidade, pelo CRAB. Se a MOCAMBO luta pela cidade, perguntamos, nesse breve texto: como a cidade reconhece o território da MOCAMBO, as suas gentes? Como devolver essa história de lutas pela própria cidade e por sua pretensa cidadania? A redenção da humanidade, segundo Aimé Cesáire (1978), Frantz Fanon (1980) e Paulo Freire (1996), vem pelas ações dos oprimidos. A mocambagem tem proporcionado, aos cidadãos de Porto Alegre, um novo jeito de viver a cidade, a partir dos projetos, apreendidos na ancestralidade africana e no projeto quilombista. A Rua do Perdão, celebrada no Carnaval porto-alegrense, aparece como uma expressão simbólica, cunhada pelos negros, para contar essa redenção, essa possibilidade de construção de um novo projeto de humanidade, mesmo que apenas no tempo suspenso das festas de rua.
Porto Alegre já foi reconhecida como exemplo de cidade cidadã, em função de projetos, como o do Orçamento Participativo, sustentado pelos movimentos sociais organizados. O Movimento Social Negro Organizado, liderado pelo Grupo de Trabalho Angola Janga, na figura do líder José Alves Bittencourt (Lua), com demais lideranças religiosas e órgãos das instâncias dos três poderes municipais, do Projeto Monumenta, de artistas plásticos, deixou um marco essencial da territorialidade negra, com o erguimento da obra pública Tambor , reconhecidamente.
A monumentalização tem seu ápice com o Museu do Percurso do Negro, que divulgou a figura do Griô e da griotagem na cidade. Em 2010, a Câmara Municipal criou o Troféu Griô, e Mestra Elaine foi agraciada com tal reconhecimento, por parte da cidade. Em 2018, foi anunciada como liderança quilombola e recebeu o Troféu Deputado Carlos Santos, da Câmara Municipal de Porto Alegre.
Com a Lei Municipal nº 11.299, de 19 de junho de 2012, encaminhada pelo vereador Engenheiro Comasseto, em diálogo com as lideranças da entidade, a MOCAMBO é oficialmente integrada ao Patrimônio Cultural do Município de Porto Alegre (Figura 4). O projeto aprovado na Câmara Municipal, conforme proposta baseada no artigo 14 do Plano Diretor de Desenvolvimento Ambiental, estabelece que a Associação deve permanecer no local descrito em Decreto Municipal, do ano de 2004 (alterado em 2018), legalizando a permissão de uso concedida, para o desenvolvimento das suas atividades políticas, pedagógicas,
assistenciais e de manutenção e de preservação da memória negra na cidade. Tal lei viabiliza a permanência do galpão no local, mesmo, em condições precárias, usado para eventuais reuniões, para formações e para atividades de extensão, com escolas e com universidades.
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O Quilombo MOCAMBO permanece, bravamente, num espaço físico precário, na Cidade Baixa, mesmo, sem incentivos ou suportes estruturais e institucionais. Mas se abre, ao encontro e ao compartilhamento dos saberes, que guarda, acerca da cultura afro-gaúcha, para os jovens da comunidade em geral, especialmente, acadêmicos e Acreditamosescolares.queainserção
do Quilombo da MOCAMBO no Atlas dos Quilombos de Porto Alegre representa ganhos e, consequentemente, um fortalecimento na luta de todas as comunidades quilombolas da nossa cidade e da população em geral. Urge que todos nós, cidadãos porto-alegrenses, comecemos a fazer o exercício de pensar o espaço físico da MOCAMBO na qualidade de ponto de resistência da organização quilombista. Nossa referência está nas marcas de sua história, intimamente ligada aos territórios negros de Porto Alegre, forjada em trajetória de lutas, construída, desde a década de 1970, Figura 4 – Plenário da Câmara Municipal de Porto Alegre, em 09/05/2012, em que a MOCAMBO reivindica reconhecimento como Patrimônio Cultural. Foto: Elson Sempé Pedroso (Câmara Municipal de Porto Alegre)
Mocambo
Histórias que amenizam dores: a resiste e se aquilomba em Porto Alegre
Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre N S OL mantendo-se, até o presente, nas mais diversas frentes de luta, como: saúde, cultura, educação, Movimento Tradicionalista Gaúcho e Carnaval. Vida longa aos quilombolas e ao projeto quilombista!
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Histórias que amenizam dores: a Mocambo resiste e se aquilomba em Porto Alegre S
Amanda Bahi de SouzaOS QUILOMBOS DO BAIRRO ARQUIPÉLAGO: UM ASSUNTO DEMENCIONADOPOUCONAHISTÓRIAPORTOALEGRE
O bairro Arquipélago está localizado no 4º Distrito do município de Porto Alegre (RS) (Figura 1), compreendendo as configurações de um conjunto de ilhas e de uma formação geomorfológica do tipo delta, banhada pelos rios Jacuí, Caí e Sinos, o que lhe atribui características singulares, em relação aos demais bairros da cidade, não, apenas, por seus atributos naturais, mas, também, pela condição histórica de ocupação do bairro, cujos moradores se denominam ilhéus. QUILOMBOLAS
Este texto tem o objetivo de trazer questões, referentes à ocupação histórica dos povos negros no bairro Arquipélago, evidenciada por elementos das paisagens, das toponímias e das narrativas e práticas culturais dos seus habitantes, as quais se mostram pertinentes à presença de quilombos neste local.
O BAIRRO ARQUIPÉLAGO
INTRODUÇÃO A presença de quilombos nas ilhas de Porto Alegre é um assunto pouco mencionado em referências bibliográficas ou notícias, veiculadas pela mídia, embora isto não esteja muito distante do contexto histórico das corporeidades negras na história do Brasil. Entretanto, existem alguns indícios, verificados na espacialidade do bairro Arquipélago e em raras bibliografias. A ausência deste assunto remete a algumas questões, que precisam ser consideradas Uma delas se deve, principalmente, ao fato de que falar sobre a presença histórica dos negros, como sujeitos, pertencentes à história do território brasileiro ainda é tabu. Outra, está associada à configuração do bairro Arquipélago, que, por ser formado por um conjunto de ilhas, também está inserido em uma Unidade de Conservação (UC), a saber: o Parque e APA Delta do Jacuí. Estas duas questões remetem ao imaginário da cidade, pois muito se diz que Porto Alegre está “de costas” para as ilhas, enquanto a UC remete a algo, que deve (ou merece) ser conservado, tanto quanto este assunto, quase intocado nos documentos históricos da cidade.
COMO CITAR: SOUZA, Amanda Bahi de Souza. Os quilombos do bairro Arquipélago: um assunto pouco mencionado na história de Porto Alegre. In: Pires, Cláudia Luísa Zeferino; Bitencourt, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 595-604 595595
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
SOUZA
Localização do Bairro ArquipélagoLegenda:PortoBairroAlegreArquipelago A presença de povos tradicionais de matrizes africanas no bairro ArquipélagoExistem quilombos nas ilhas de Porto Alegre?
O bairro Arquipélago possui moradores dos diversos estratos sociais, caracterizando-se por uma grande diferença social e abrangendo moradias de condições extremamente precárias e de extremo luxo, incluindo comunidades tradicionais de pescadores e de povos negros. Está inserido na Unidade de Conservação do Delta do Jacuí, uma UC mista, composta por um Parque e por uma Área de Proteção Ambiental (APA).
Datum: Sirgas 2000 Projeção UTM Fonte de dados: IBGE. Brasil Rio Grande do Sul Porto Alegre ± ± ± Elaborado por Amanda Bahi de Souza Trabalho de Conculsão de Curso
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A UC do Delta do Jacuí é considerada mista, porque, dentro de sua complexidade, abriga maneiras distintas de uso, sobretudo, com relação às moradias, que ali já existiam, muito antes da implementação do Parque, em 1976. Compreende-se como Parque, uma UC de proteção integral, e como APA, uma UC que permite o uso sustentável dos recursos naturais. Para tanto, designaram-se, para a APA, as áreas de ocorrência de indústrias extrativistas e de prática de pesca, exercida pelos moradores tradicionais, o que justificou e alinhou as normas do Zoneamento e dos Planos de Manejo desta Unidade de Conservação.Éimportante salientar que o bairro se situa em uma Unidade de Conservação, para que se compreenda que existem atividades e práticas, que precisam Figura 1 – Mapa de localização do bairro Arquipélago Fonte: Souza (2016) 51°10'0"W51°10'0"W51°12'30"W51°12'30"W51°15'0"W51°15'0"W51°17'30"W51°17'30"W51°20'0"W51°20'0"W29°57'30"S 29°57'30"S 30°0'0"S 30°0'0"S 30°2'30"S 30°2'30"S Eldorado do Sul Canoas Triunfo Nova Santa Rita Guaíba 0204010Km ±
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A PRESENÇA HISTÓRICA DOS POVOS AFRICANOS NO BAIRRO ARQUIPÉLAGO
Os quilombos do bairro Arquipélago: um assunto pouco mencionado na história de Porto Alegre S OL obedecer a alguns critérios, quanto ao que é ou não permitido, dentro dos limites da UC, os quais estão expostos no documento de Plano de Manejo. Por ser uma UC mista, teve seus Planos de Manejo publicados, separadamente. O Parque Estadual do Delta do Jacuí teve sua homologação no ano de 2014, enquanto a APA teve seu Plano de Manejo homologado em 2017.
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A Figura 2 apresenta imagens do bairro, demonstrando a proximidade do rio e as placas, com informações sobre a legislação ambiental que protege a UC. o bairro sofreu fortes impactos, devido à construção de novas pontes no interior da UC. As pontes foram construídas, sob a justificativa de agilizar o fluxo do transporte rodoviário entre as BRs 116 e 290, entretanto a obra implicou a repulsão de muitas pessoas, que ali viviam, obrigando-as a deixarem suas moradias, para dar espaço às obras das novas pontes.
Figura 2 – Imagens do bairro Arquipélago Fonte: arquivo da autora (dez. 2011)
Recentemente,
Porto Alegre tem o início de sua história documentada, a partir da chegada dos 60 casais açorianos, em 1752, tendo sua fundação oficializada em 26 de março de 1772, para se tornar a capital do estado, em 1773 (PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE, 2020). Dadas as suas importâncias política e econômica, Porto Alegre também guarda uma memória vasta e riquíssima sobre a ocupação desta terra, história, esta, que, por vezes, é contada em livros, por vezes, não, o que torna atrativa a intenção de contar muitas histórias, que estão por aí, na oralidade do povo, que aqui viveu e que ainda vive. Uma destas histórias tem relação com a presença dos povos negros na ocupação do território, que se encontra nos domínios do bairro Arquipélago. Tal história ainda está presente em alguns locais e em algumas pessoas, suficientemente a tempo de serem documentadas, para encontrarem maior alcance de conhecimento.
Os quilombos do bairro Arquipélago: um assunto pouco mencionado na história de Porto Alegre
O histórico de Porto Alegre traz referências à antiga ocupação das ilhas, por índios guaranis e por negros, sendo encontrados, inclusive, elementos, que fazem referência à presença de quilombos, como algumas toponímias.
Segundo o estudo de Müllich (2011), a ocupação histórica de negros no bairro Arquipélago ocorreu no ano de 1772, no que coincide com a data de fundação de Porto Alegre. Seu estudo faz referência à ocupação dos negros, ainda antes da ocupação histórica dos pescadores, que se deu, a partir de 1820.
Já o estudo de Gomes (1995) afirma que a ocupação dos negros nas ilhas pode ter ocorrido em data anterior a 1810, o que se evidencia por um documento de compras de terras, datado daquele ano, no qual é mencionada a denominação “Ilha do Quilombo”.
Em estudos anteriores, Souza (2016) observou que as ilhas possuem nomenclaturas, que remetem à presença africana no bairro, como Ilha do Quilombo, Saco do Quilombo, Ilha da Maria Monjolla e Ilha da Maria Conga. Tais toponímias representam marcas excepcionais da presença africana, enquanto luta e enquanto resistência ao regime escravista. Presume-se, também, que a natureza das ilhas oferecia, aos negros, um refúgio seguro, para onde podiam se dirigir, em busca de integridades física e psicológica, e estes locais de refúgio acabaram adquirindo nomenclaturas, que apresentam as origens do povo que os chamou, segundo Gomes (1995).
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“Muitos chamam de Ilha do Quilombo porque aqui na ilha existe um lugar que os negros, na época fugiam dos seus senhores (...) e vinham e se escondiam aqui porque aqui era um lugar mais difícil de acesso.” (relato pessoal de Loir da Silva Figueiró, pescador)
“Aos sete anos eu recordo que nós íamos numa sanga, e esta sanga meu pai contava que tinha sido feita pelos escravos, pelos congos, porque esta ilha era habitada pela Maria Conga e quando eles fizeram de uma sanga, que iniciava dentro do Arroio Maria Conga, fronteira ao cais do porto.” (relato pessoal de Aracy Bitencourt Fonseca, dona de casa)
Anjos (2006) chama a atenção para os referenciais de elementos do povo negro, associados à espacialidade, quando afirma que os povos africanos e os seus descendentes eram detentores de uma forte cultura de espaço geográfico,
Segundo os moradores antigos do Arquipélago, no século XVIII as ilhas Saco do Quilombo, Maria Conga também chamada Ilha do Quilombo (atual Ilha das Flores) e Maria Majolla abrigaram ancestrais escravos. A presença de quilombo nas Ilhas é assunto ainda pendente de estudo aprofundado, porém documentos da Câmara do século XIX comprovam a presença de população negra na Ilha em 1810, e dá indícios que sua ocupação seja anterior a esta data. (PMPA, 2019. P. 6)
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Os quilombos do bairro Arquipélago: um assunto pouco mencionado na história de Porto Alegre S OL o que é facilmente reconhecido nas localizações de difícil acesso, em que se organizavam os quilombos. Na busca pelo reconhecimento de indícios históricos, Henrique (2012) documentou ocupações históricas, de origem africana, propondo marcadores simbólicos do território de povos africanos. Tais marcadores caracterizam a originalidade dos territórios, cuja classificação se apresenta no Quadro 1. Marcadores vivos Compreendem os marcadores, criados pela natureza e incontroláveis, pelo ser humano Marcadores religiosos sagrados Representado pelos elementos, associados à carga simbólica do sagrado, presente nas cerimônias, no corpo, nas máscaras e nos mais diversos objetos Marcadores fabricados Correspondem, principalmente, aos espaços de habitação e aos materiais, com os quais foram construídos, como argila e vegetais. Servem como marca de localização, a qual não era representada na cartografia Marcadores históricos Associados à organização, que assegura a socialização da natureza Marcadores musicais Os tambores representam os instrumentos de marcadores musicais. O uso deste instrumento possibilita estabelecer relações de distância, estando associado, ainda, à socialização, a partir da música, da dança e do canto Quadro 1 – Marcadores simbólicos dos territórios de africanos Fonte: Henrique (2012) Os estudos mencionados e os marcadores territoriais propostos por Henrique (2012) permitem verificar a presença histórica dos povos negros nas dependências do bairro, sobretudo, no que se refere à condição histórica de Porto Alegre. A toponímia, apresentada a seguir, evidencia os marcadores históricos e fabricados, associados ao sistema de localização deste povo.
As toponímias mencionadas são reconhecidas no vocabulário dos moradores locais, entretanto existe outra toponímia, marcadora de colonização portuguesa, cuja origem também remete aos povos fundadores de Porto Alegre, causando a incidência de um acidente geográfico. Buscando solucionar o esclarecimento dos acidentes geográficos do Delta do Jacuí, o governo estadual elaborou o Decreto nº 28.160, de 16 de janeiro de 1979, que definiu a marcação da toponímia dos acidentes geográficos das áreas integrantes do Parque Estadual do Delta do Jacuí (RIO GRANDE DO SUL, 1979), os quais são chamados, aqui, marcadores do passado e marcadores do presente, conforme expostos no Quadro 2.
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Os marcadores simbólicos, assim como os vivos, e os marcadores sagrados religiosos, históricos e musicais são verificados na corporeidade dos próprios
Anteriormente, denominada Ilha da Pólvora e do Paiva, à sudeste, Ilha do Cônsul ou Vallongo, à sudoeste, e Ilha de José Pedro Alves, Coroa Conga, Conga, da Conga e do Conga, à norte da ilha Canal Maria Conga Entre o sul da Ilha das Flores e o norte da Ilha da Casa da Pólvora, anteriormente, chamado Arroio Maria Conga, Sangradouro da Maria Conga, Sangradoura da Conga, Canalete da Maria Conga e Furado da Maria Conga Saco do Quilombo Localizado no centro-norte da Ilha das Flores, com entrada, à leste, pelo Canal Três Rios
Quadro 2 – Acidentes geográficos do bairro Arquipélago Fonte: adaptado de Licht (1990) A Figura 3 apresenta a espacialização destes acidentes geográficos, chamados marcadores do passado e do presente.
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Os quilombos do bairro Arquipélago: um assunto pouco mencionado na história de Porto Alegre S Marcadores do presenteMarcadores do passado Ilha das Flores Anteriormente, conhecida como Ilha das Traíras, dos Carás Pequenos, Maria Conga, do Tamanco e da Maria Monjolla, a qual foi incorporada à Ilha do Quilombo Ilha da Casa da Pólvora
Considerando os marcadores simbólicos de território africano, muitos locais e eventos foram mencionados na cartografia social, proposta anteriormente em Souza (2016), os quais são apresentados no Quadro 3.
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O trabalho, elaborado no ano de 2015, traz alguns locais, que já não existiam mais, no momento da execução da cartografia social, entretanto estes locais ainda estão presentes na memória dos moradores, como a Terreira Ylê de Iansã e Xangô, mencionada como “antiga senzala”, e o Terreiro de Ogum, em que, atualmente, encontra-se o estaleiro. É preciso lembrar da possibilidade de uma situação atualizada, com relação aos locais e aos eventos mencionados, visto que o bairro Arquipélago sofreu algumas modificações, com as obras das novas pontes, que perpassam o arquipélago. A proposta de melhoria no tráfego pode trazer um preço imensurável, com relação às histórias do local e da vida das pessoas que fazem parte dele. Um exemplo disto é a capela de vidro (Figura 4), que fazia parte da história e do itinerário das procissões de Nossa Sra. dos Navegantes realizadas no bairro, que, além de possuir uma arquitetura singular, trazia grande beleza para o bairro. Infelizmente, a capela de vidro teve de sair, para dar espaço à Nova Ponte do Guaíba.
Se eu tenho um terreiro, se eu tenho um tambor tocando, tão logo eu tenho um povo ali. Se eu tenho um terreiro, eu tenho um quilombo de resistência. E se eu tenho um quilombo de resistência, ele não surgiu do nada. Ele tem raízes, tem história... nós enviamos um documento à Brasília que para nós está mais do que claro que os quilombos são os terreiros de resistência. Não tem expressão maior. (relato pessoal de moradora das ilhas, registrado em SOUZA, 2016)
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moradores negros. Suas narrativas históricas, associadas às práticas culturais de seus antepassados, emergem nos espaços, como o das terreiras, a partir de suas narrativas: Os terreiros para nós nada mais são do que quilombos de resistência... A minha mãe era jovem, solteira e já tinha terreiro na ilha. Quem será que levou isso pra lá, será que foi um branco? De quem é esse negócio? Esse negócio é nosso! (relato pessoal de moradora das ilhas)
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A fala da moradora apresenta a narrativa histórica dos seus ancestrais, que fazem parte da história do bairro Arquipélago, ilustrando os locais, destinados às práticas religiosas, e a presença da musicalidade e do tambor, instrumento marcante das presenças fortes dos povos de origem africana nas ilhas do Delta do Jacuí.
Fonte: Souza (2016), adaptado de PMPA (2014)
Figura 3 – Mapa dos acidentes geográficos mencionados
Locais das práticas culturais de matrizes africanas
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Locais apontados na Cartografia Social
Procissão da Nossa Sra. Aparecida Capela de vidro Terreira da Mãe Tânia Terreiro de Ogum Guerreiro (hoje, é o estaleiro) Símbolos ÁguasMata
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Locais do bairro Centro Administrativo Regional das Ilhas (CAR) Galpão de reciclagem Salão Comunitário da festa de Nossa Sra. dos Navegantes. Associação de Mães Unidas da Ilha Grande dos Marinheiros Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) Quadro 3 – Locais apontados na Cartografia Social Fonte: Souza (2016)
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AFROSOL: Escola de Samba Unidos do Pôr do Sol Terreiro Centro de Umbanda Reino de Iemanjá e Oxóssi Povo DesfileBanto da escola de samba Oráculo de Oxum Pai Oxalá Pai FestaReinoJoaquimdeXangôdaNossaSra. Aparecida (12 de outubro), Ogum (23 de abril) e Iansã (4 de dezembro) Terreira Ylê de Iansã e Xangô (antiga senzala)
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Figura 4 – Capela de vidro, com o registro do DNIT.
CONSIDERAÇÕES
Sobre o bairro Arquipélago, o estudo da presença histórica de africanos e de seus descendentes apresenta muitas lacunas, que precisam ser investigadas e reconhecidas, sobretudo, quando estes estudos dizem respeito à cultura. O reconhecimento e a legitimidade da presença de quilombos nas ilhas do Delta do Jacuí, em Porto Alegre, podem abrir espaço para a discussão de pautas importantes para a população local, sobretudo, as relativas aos Planos de Manejo da Unidade de Conservação localizada no bairro, contribuindo para as políticas dos territórios e das comunidades tradicionais no território nacional.
FINAIS Este trabalho trouxe elementos e estudos da história das populações negras no bairro Arquipélago, em Porto Alegre (RS). Tal se mostra relevante nos estudos sobre a constituição do território e da cultura brasileiras, bem como considerando os contextos histórico e afirmando e analisando as presenças africanas na formação do povo do país. É importante, também, que se valorizem estas histórias e estas geografias, para compreender os processos históricos e aprender com eles.
Fonte: arquivo da autora (2019)
A presença dos povos tradicionais de matrizes africanas no bairro Arquipélago – Existem quilombos nas ilhas de Porto Alegre?. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia) – Instituto de Geociências, UFRGS, Porto Alegre, 2016.
LICHT, H. Acidentes Geográficos do Parque Estadual do Delta do Jacuí e topônimos Porto Alegre: [s.n.], 1990. MÜLLICH, E. P. M. Ocupação urbana contemporânea em áreas de proteção ambiental. O caso da Ilha Grande dos Marinheiros em Porto Alegre/RS. 2011. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.
PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Histórico da cidade. Turismo. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/turismo/default.php?p_secao=257. Acesso em: 18 jan. PREFEITURA2020.
Acesso em: 19 jan. 2020.
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N S OL REFERÊNCIAS
ANJOS, R. S. A. Geografia, territórios étnicos e quilombos. In: Tempos de Lutas e Ações Afirmativas no Contexto Brasileiro. Disponível em: GOMES,Acessophp?option=com_docman&view=download&alias=1113-temposdeluta-pdf&Itemid=30192.http://portal.mec.gov.br/index.em:19jan.2020.J.J. Arquipélago: as ilhas de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial Porto Alegre, 1995. HENRIQUE, I. C. A materialidade do simbólico: marcadores territoriais, marcadores identitários angolanos (1880-1950). Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/ textos/article/viewFile/6023/4982
Decreto nº 28.160. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, 1979. Disponível em: SOUZA,AcessoASP?Hid_Tipo=TEXTO&Hid_TodasNormas=27940&hTexto=&Hid_IDNorma=27940.http://www.al.rs.gov.br/Legis/M010/M0100099.em:18jan.2020.A.C.B.
MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. História dos Bairros de Porto Alegre Disponível em: RIOhistoria_dos_bairros_de_porto_alegre.pdf.http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/Acessoem:23set.2020.GRANDEDOSUL.
ESPACIAL NEGRA NA CIDADE
COMO CITAR: BONETTO, Helena. Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam a escrita espacial negra na cidade. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 605-618 605605
Os imaginários urbanos são temas recentes, dentro da Geografia. Ainda estamos consolidando esse campo de estudo, principalmente, nos estudos relacionados às cidades. Mas o que é o imaginário? Perguntarmos o que é, não necessariamente, nos leva a um fechamento do conceito, a sua restrição, mas é preciso partir de algum lugar. Primeiramente, recorremos ao dicionário, para verificar sua definição; aqui, como palavra e, não, como conceito. No dicionário de português de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2008, p. 461), imaginário significa aquilo que existe somente na imaginação; ilusório ou fantástico.
HelenaOS IMAGINÁRIOS
O imaginário não é uma forma social escondida, secreta inconsciente que vive sob as fibras do tecido social. Ele não é reflexo, o espelho deformado, o mundo revirado ou a sombra da realidade, uma sociedade subterrânea, mas ele estrutura, no fundo, o entendimento humano. (LEGROS et al., 2014, p. 111)
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
BONETTO
O imaginário, em diferentes abordagens teóricas, tais como: Hiernaux (2007a, 2007b, 2008), Lindón (2007a, 2007b, 2008), Castoriadis (1982), Durand (2002), Pesavento (1997, 1999, 2000, 2002), Silva (2001, 2006) e Silva (2017) entre outros, ora se encontra mais perto da imaginação, ora como parte do real. Por vezes, surge como uma relação entre o real e a imaginação, que produz sentidos, para a compreensão do que chamamos de realidade. Não podemos confundir as noções de imaginário e de falsa realidade. Para Legros et al. (2014):
URBANOS DOMINANTES DE PORTO ALEGRE, DE CIDADE BRANCA E EUROPEIA, QUE INVISIBILIZAM A ESCRITA
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam...
Tendo em vista a definição de imaginários urbanos, a partir dos autores Lindón e Hiernaux, e de uma revisão da literatura sobre imaginários urbanos, defino os imaginários urbanos: A partir das representações materiais e imateriais de grupos sociais, de fatos históricos, de pontos turísticos ou paisagens naturais que marcam e qualificam através de signos e símbolos o lugar-cidade. Contudo, é importante fazer uma ressalva, pois os imaginários urbanos se traduzem materialmente, quando, por exemplo, em nossas práticas socioespaciais evitamos determinados espaços por termos um imaginário topofóbico em relação a eles. (BONETTO, 2018, p. 97-98)
A cidade está em constante movimento e, por muitas vezes, inventa-se o seu passado, para recriar o seu futuro. Para Hiernaux (2007b), os imaginários são criações incessantes de formas, de figuras, de discursos e de imagens. Para Lindón (2007a, 2007b), os imaginários urbanos são processos de qualificação dos lugares da cidade, a partir das experiências sociais e das práticas socioespaciais dos sujeitos em determinados lugares da cidade. Contudo, esse processo de qualificação se dá de forma complexa, tendo em vista que, segundo Lindón (2006), os imaginários urbanos são compartilhados, socialmente, não estando desvinculados da história e da realidade vivenciada nesses espaços citadinos, conferindo-lhes sentidos e características particulares. Para Hiernaux (2008), os imaginários urbanos são formados através de processos dinâmicos, os quais conferem significados às representações da cidade. O autor ainda coloca que esses processos concentram a força criativa dos imaginários, pois vão além das simples representações, criando imagens, que guiam e que orientam as ações dos sujeitos sociais.
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Diante desta afirmação, devemos compreender que os imaginários sociais e urbanos estruturam nossos pensamentos, com relação a acontecimentos históricos, bem como nossas experiências na urbe e em outros locais. Podemos compreendê-los como não sendo a realidade tal qual, mas alimentando nossas percepções, em relação a ela. Explicarei melhor nas linhas que seguem.
Os imaginários urbanos nos permitem estudar a cidade, não, apenas, como um fragmento, mas na relação com os lugares, que a compõe. Para Pesavento (2004, 1995), a cidade poderia ser definida, em termos culturais, como um cronótopo, ou seja, como uma unidade no tempo e no espaço. Para a pesquisadora, recuperar a cidade, como objeto de estudo, é explorá-la, além das materialidades, das formas, para compreender os sistemas simbólicos, ali, presentes.
E ainda teríamos, entre imaginários urbanos, os imaginários dominantes e de resistência, que surgem, com o problema da reprodução socioespacial das cidades. Os imaginários dominantes são as imagens e os sistemas de
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Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... S OL representação, que persistem e que orientam as práticas socioespaciais na cidade. Os imaginários urbanos de resistência atuam, muitas vezes, apropriandose de lugares e recorrendo à memória, para se contrapor aos imaginários urbanos dominantes, com o objetivo de marcar a cidade com outros sistemas de representações e, consequentemente, com outras práticas socioespaciais, contrapondo-se aos imaginários dominantes.
Para o desenvolvimento metodológico deste trabalho, observei as narrativas dos monumentos, a partir de uma planilha dos monumentos históricos de Porto Alegre, adquirida junto à Secretaria de Cultura, contendo suas localizações e seus sítios atual e anterior. Estes monumentos foram classificados, por meio da sua referência de origem, por exemplo: monumento relacionado com escritores; monumento relacionado com imprensa; monumento relacionado com a política representativa e assim por diante. O recorte adotado para esta pesquisa foi o Centro Histórico de Porto Alegre (RS), pois é onde o Museu de Percurso Negro está situado, em local da cidade de grande visibilidade.
O inventário apresentado no quadro mostra quais grupos demarcam o espaço do Centro Histórico da cidade de Porto Alegre, através de suas representações materiais (monumentos), modelando os imaginários urbanos do lugar, com a valorização dos imigrantes europeus (italianos, alemães, açorianos e judeus). Os grupos não dominantes não são materializados em signos icônicos nos lugares dessa cidade, não existindo interesse, por parte dos administradores, em marcar os espaços com representações dos grupos historicamente estigmatizados: a população negra e os povos originários, os quais acabam por desconstruir o imaginário social de que o Rio Grande do Sul é a Europa brasileira.
Os monumentos históricos, que demarcam a cidade e que reforçam os imaginários urbanos dominantes sobre a cidade de Porto Alegre, são dos grupos majoritários, que ocupam cargos de poder, como representantes locais, na imprensa ou religiosos, costumeiramente representados como produtores do espaço urbano, ao correr da história da cidade. No Quadro 1, há um inventário dos monumentos que marcam o centro da cidade de Porto Alegre. Além de categorizá-los, dentro da sua temática, também os classifiquei, de acordo com elementos narrativos das visibilidades branca e negra na cidade.
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Por fim, é importante destacar a tensão entre os imaginários dominante e os de resistência, para quebrar com a ideia de que os imaginários urbanos seriam neutros ou não estariam relacionados a conflitos de representatividade no espaço urbano da cidade.
Conde de Porto Alegre Praça Conde de Porto Alegre 1885 (VisibilidadeNobreza Branca)
Busto de Leonardo TrudaPraça da Alfândega1956Imprensa Homenagem à Mãe Praça Com. Souza Gomes 1958Mulher Valorização Materna Herma de André Leão PuentePraça da Matriz1958Outras Cabeça de Arnaldo BallvéPraça da Alfândega1962 (VisibilidadeImprensa Branca)
Herma de Alcides MaiaPraça Daltro Filho1963 (VisibilidadeImprensa Branca)
DenominaçãoLocalizaçãoDataCategorias
Busto do Barão de Santo Ângelo Praça da Alfândega1918 (VisibilidadeNobreza Branca)
“A Samaritana”Praça da Alfândega1925 (VisibilidadeReligioso Branca)
Frade de Arenito Praça Argentina Praça ArgentinaSéc. XIX (VisibilidadeReligioso Branca)
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Busto de Caldas JuniorPraça da Alfândega1913 (VisibilidadeImprensa Branca)
Busto de Eduardo GuimarãesPraça Dom Feliciano1944Escritor (Visibilidade Branca)
As Ninfas da Fonte Praça SchneiderEdgar 1927-28? (VisibilidadeMitologia Branca)
Busto de Osvaldo CruzPraça Osvaldo Cruz1928 (VisibilidadeMedicina Branca)
Busto de Mário TottaPraça Dom Feliciano1951Médico (Visibilidade Branca) “Carta-testamento” Getúlio Vargas Praça da Alfândega1955Político (Visibilidade Branca)
Estátua Equestre do General Osório Praça da Alfândega1933Militar (Visibilidade Branca)
Busto de Apolinário Porto Alegre Praça Argentina1927Escritor (Visibilidade Branca)
Busto de Antônio Carlos LopesPraça da Alfândega1936Outras Busto de Otávio RochaPraça Otávio Rocha1939Militar (Visibilidade Branca)
Obelisco da Colônia Portuguesa Avenida Sepúlveda1935 Imigração (VisibilidadePortuguesaBranca)
Fonte TalaveraPraça Montevidéu1935 (VisibilidadeEspanhola Branca)
Monumento a Júlio de Castilhos Praça da Matriz1913Político (Visibilidade Branca)
Monumento ao Barão de Rio Branco Praça da Alfândega1916 (VisibilidadeNobreza Branca)
Tambor Praça SampaioBrigadeiro 2010 Religioso, artístico e cultural (Visibilidade Negra) Pegada AfricanaPraça da Alfândega2011 Identidades Negras (Visibilidade Negra)
Monumento a Loureiro da Silva Av. Loureiro da Silva1974Político (Visibilidade Branca)
Medalhão de Rubén DarioPraça da Alfândega1966 (VisibilidadeEscritores Branca)
Marco a José BertasoPraça da Alfândega1965Político (Visibilidade Branca)
DenominaçãoLocalizaçãoDataCategorias
Monumento a ZumbiLargo dos Açorianos1997Visibilidade Negra Busto de Champagnat L. Pde. ChampagnatMarcelino 1997-1998 (VisibilidadeReligioso Branca)
Quintana e DrummondPraça da Alfândega2001Escritor Povo Tombado em 2001Praça Argentina2001Outros Painel Epopeia Riograndense, Missioneira e Farroupilha n/i2008 Referência à Identidade Gaúcha (Visibilidade Branca)
Marco da LegalidadePraça da Matriz1986Fato Histórico Segunda Herma do General Artigas Praça FarroupilhaRevolução 1987Militar (Visibilidade Branca)
Bará do MercadoMercado Público2013 (VisibilidadeReligiosa Negra)
Painel AfrobrasileiroLargo Glênio Peres2014 Referências a população Negra (Visibilidade Negra)
Monumento aos AçorianosLargo dos Açorianos1974 Imigração (VisibilidadePortuguesaBranca)
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Painel Viaduto Loureiro da Silva Viaduto Loureiro da Silva 1970Político (Visibilidade Branca) Herma de Osvaldo VergaraPraça da Matriz1974 Referência ao Direito (Visibilidade Branca)
Brigadeiro Sampaio Praça SampaioBrigadeiro 1980Militar (Visibilidade Branca) Placa com poema “O Mapa”Praça da Alfândega1984Poema (Visibilidade Branca)
Busto San MartinPraça Argentina1985Militar (Visibilidade Branca)
Busto de Jerônimo CoelhoPraça Dom Feliciano1975 Imigração (VisibilidadePortuguesaBranca)
Quadro 1 – Inventário dos monumentos do Centro Histórico de Porto Alegre. Fonte: elaborado pela autora (2018), a partir de Secretaria da Cultura (2017)
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Cabeça Raul PillaPraça Raul Pilla1977Militar (Visibilidade Branca)
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No caso de Porto Alegre, os monumentos são elementos concretos, que solidificam representações de determinados grupos no espaço público da cidade, os quais se constituem de elites políticas, culturais e de campos determinados do conhecimento. Ao percorrermos o Centro Histórico de Porto Alegre, encontramos representações materiais de militares, de políticos e de representantes da imprensa, além de referências à identidade gaúcha. Em Santos (2013), encontrase o respaldo a esta afirmação: Até o fim do século XX em Porto Alegre, se verificam centenas de bustos, monumentos e outras obras de arte que visibilizam a tradição do gaúcho, além da colonização alemã, à italiana, e açoriana não incluindo os negros nessas representações públicas. (SANTOS, 2013, p. 56)
O autor avalia os monumentos de toda cidade de Porto Alegre, não, apenas, os do bairro Centro Histórico. O primeiro monumento negro da cidade foi inaugurado em 1997, em homenagem a Zumbi dos Palmares, localizado no Largo Zumbi dos Palmares, na Avenida Loureira da Silva, 1660, no bairro Centro Histórico. Somente 13 anos depois, teríamos a implementação das obras do Museu de Percurso Negro, também, no Centro Histórico. Apesar de Souza (2013) afirmar que existem diversos monumentos de representação dos negros e das negras na cidade de Porto Alegre, ressalvo a pertinência desta afirmação, quanto à visibilidade destes marcos, pelos moradores da cidade, fato que se evidenciou, através das respostas obtidas, após entrevistar 40 pessoas, que circulam pelos monumentos do Museu de Percurso Negro. De acordo com 80% dos entrevistados, as obras não são percebidas por eles e não se relacionam com a escrita histórica dos negros e das negras da cidade, enquanto apenas 20% percebem os monumentos e os relacionam à escrita histórica dos negros e das negras em Porto Alegre. A implementação do projeto do Museu do Percurso Negro foi um avanço político, mas ainda precisamos de políticas de representação, para quebrar com o imaginário dominante, centrado na imigração europeia, no estado do Rio Grande do Sul. Outro fator abordado por Corrêa (2018) é o sentido político da localização dos monumentos, que revelam conflitos raciais e de classe. Para o autor, a localização dos monumentos traduz o poder que um grupo social e racial impõe sobre outro(s). Souza (2013), ao apresentar a localização dos primeiros monumentos de representações negras, localizados fora do Centro Histórico de Porto Alegre, propõe uma análise ingênua, pois não leva em consideração a importância da localização dos monumentos, considerando a visibilidade da escrita espacial da população negra em Porto Alegre. A implantação dos monumentos fora da
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... OL área central da cidade acaba por contribuir para a manutenção da invisibilidade espacial negra na cidade de Porto Alegre. São sete, os monumentos que representam a população negra de Porto Alegre e do Brasil, a saber: Monumento a Zumbi, localizado no largo dos Açorianos, 1997, em homenagem ao líder Zumbi dos Palmares, que fica junto a uma via de grande circulação, vizinha ao Centro Histórico de Porto Alegre, cujo espaço é frequentemente usado para manifestações políticas, culturais e artísticas; uma homenagem a João Cândido Felisberto, também conhecido como “Almirante negro”, localizado no Parque Marinha do Brasil, entregue em 2001; e a Mãe Oxum (Orixá africana, encontrada nos lagos, nas cachoeiras e nos rios), localizado na Av. Guaíba, no bairro Ipanema, entregue em 1999.
Cabe destacar que não são os monumentos, em si, que narram o espaço das presenças negras em Porto Alegre, mas, sim, a quem e o que esses monumentos representam. Para Corrêa (2018), os monumentos são materialidades, responsáveis por reforçar tradições, pois transmitem valores de grupos, como sendo de toda a população, e reafirmam identidades religiosas, raciais e sociais.
Continuando a narrativa espacial da visibilidade da presença negra na monumentalidade de Porto Alegre, após 1997, somente no ano de 2011 ocorre a inauguração de novos monumentos, com a implementação do Museu de Percurso Negro. Portanto, as representações da escrita espacial histórica do negro na cidade de Porto Alegre passaram por um hiato de 14 anos, até a construção do primeiro monumento do Projeto do Museu de Percurso Negro, o qual, através das suas obras, marca a memória do trabalho e das práticas religiosas e culturais dos negros e das negras nessa cidade. No ano de 2011, inauguraram-se, então, a primeira obra O Tambor (Figura 1), localizada na Praça Brigadeiro Sampaio, e a Pegada Africana (Figura 2), na Praça da Alfândega. A obra o Bará do Mercado Público foi inaugurada em 2013 (Figura 3) e o Painel Afrobrasileiro (Figura 4), localizado no Largo Glênio Peres, foi inaugurado em 2014.
A narrativa espacial dos monumentos do caminho do Centro Histórico, até o Parque da Redenção tem sua escrita espacial tomada, principalmente, por alusões a militares, a políticos e a médicos, no período entre 1885 e 1997. Em 1997, o monumento em homenagem aos 300 anos da morte do líder negro Zumbi dos Palmares foi concebido e executado pela artista visual Cláudia Stern, ganhadora do concurso público da Associação de Mulheres Negras Gaúchas. O monumento é a primeira representação material da escrita espacial histórica dos negros e das negras na cidade de Porto Alegre.
A temporalidade da construção desses monumentos materializa a invisibilidade das escritas negras em Porto Alegre. Eis a invisibilidade histórica
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Figura 2 – Obra Pegada Africana, na Praça da Alfândega Fonte: acervo de Wagner Innocencio desta população, como produtora de espaço na cidade, tal como colocado por um dos entrevistados: “[...] existe uma cidade Branca e uma cidade Negra de Porto Alegre” (relato pessoal de Airan Albino, em 2017).
Figura 1 – Obra O Tambor, na Praça Brigadeiro Sampaio Fonte: acervo de Wagner Innocencio
Figura 4 – Obra Painel Afrobrasileiro, no Largo Glênio Peres
613 Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... N S OL
Apesar da implementação do Museu do Percurso Negro, a monumentalidade do projeto não está em destaque na paisagem urbana, especialmente a obra Pegada Africana, do artista Vinicius Vieira Souza, que não é visível pelo seu formato. A Pegada Africana não se destaca no percurso da Rua dos Andradas, chamada popularmente de Rua da Praia, pois se confunde com o calçamento, pois a escala do monumento se encontra rente ao chão. Nas entrevistas, as pessoas que transitam por ela, declaram não ter percebido sua existência no
Fonte: acervo de Wagner Innocencio
Fonte: acervo de Wagner Innocencio
Figura 3 – Obra Bará do Mercado, no Marcado Público de Porto Alegre
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Até quando adularemos os admiradores de um passado que não existiu somente porque as pessoas precisam de mitos e de razões para passar o tempo, reunir-se e vibrar em comum? Até quando os folcloristas sufocarão os historiadores? Até quando o mito falará mais alto do que a História? Até quando não se dirá nos jornais que os farroupilhas foram indenizados pelo Império com verbas secretas? Que brigaram pelo dinheiro? Que houve muita corrupção? Que Bento Gonçalves e Neto não eram republicanos quando começaram a rebelião? Que houve degola, sequestros, apropriação de bens alheios, execuções sumárias, saques, desvio de dinheiro, estupros, divisões internas por causa de tudo isso e processos judiciais? (SILVA, 2012)
Observando as placas de renomeação do parque, podemos observar o que Canclini (2007) diz sobre o estudo das toponímias de uma cidade: as toponímias são representações da memória coletiva da cidade e a mudança dessas toponímias implica a construção de uma narrativa, que apaga e que invisibiliza as representações negras na cidade de Porto Alegre.
A mudança de nome também aconteceu para valorizar a Revolução Farroupilha, que, hoje, sabemos que foi uma “revolução” da elite latifundiária, contrária ao Império brasileiro, reivindicando um melhor tratamento, em relação aos impostos, como destaca Juremir Machado da Silva (2012):
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... S local, evidenciando que somente marcar o espaço com a representação negra – material, neste caso –, não garante sua visibilidade. Após abordar as representações do Museu do Percurso Negro, passamos a analisar os monumentos do Parque da Redenção, onde verificamos a presença de placas com as quatro nomeações que o lugar teve, ao longo da história de Porto Alegre: Várzea do Portão, que se refere à concessão real, datada de 24 de outubro de 1807; Campo do Bom Fim e Campo da Redenção, que homenageiam a abolição da escravatura em Porto Alegre, em 1884; e, por último, Parque Farroupilha, atribuição concedida pelo sesquicentenário da Revolução Farroupilha.
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A administração da cidade de Porto Alegre, em 1935, de Alberto Bins, do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), durante a Revolução de 1930, foi mantida no cargo por mais sete anos, pelo interventor estadual Flores da Cunha, promovendo a mudança do nome de Parque da Redenção para Parque Farroupilha, na intenção de apagar a representação histórica dos negros naquele espaço, todavia a administração não contava com que a toponímia perdurasse, até os dias de hoje.
O Parque da Redenção foi projetado com recantos de homenagem aos grupos de imigrantes, que compõem a população do RS, através do Recanto do Europeu, do Recanto Oriental, do Recanto Solar e do Recanto Alpino. O Recanto Europeu é composto por locais distintos: a Fonte Francesa (chafariz de ferro, doado pelo
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No final da Guerra, os Lanceiros Negros foram traídos e mortos no massacre, que aconteceu no dia 14 de novembro de 1844, o qual é chamado de Traição de Porongos ou Noite de Porongos.
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... governo da França no século XIX), a Palmeiras-da-califórnia e o Pergolado Romano (com colunas jônicas, com pórtico triangular e com trepadeiras).
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A narrativa dos monumentos do Centro Histórico ao Parque da Redenção é marcada pela presença de monumentos, que, no tempo-espaço da cidade, são historicamente recentes, mas que não são percebidos pela população que circula nesses espaços. O maior e mais visitado parque de Porto Alegre teve seu nome trocado e, pelas contradições desta cidade, dificilmente se ouve alguém se referir à Redenção como Parque Farroupilha, o que torna as representações negras naquele espaço invisíveis por duas vezes.
A invisibilidade perdura, quando analisamos o tamanho e a localização da placa, que faz homenagem aos Lanceiros Negros, localizada em local de difícil visualização do Parque Farroupilha e seu tamanho é muito inferior, se comparado aos outros monumentos, que fazem referência aos imigrantes europeus e à imigração japonesa, por exemplo, os quais são visíveis, coloridos e ocupam locais centrais no Parque.
Concluímos que a narrativa dos monumentos da presença das populações negras no bairro Centro Histórico e no Parque da Redenção não diminuem a invisibilidade das representações negras na cidade, pois, ainda que os monumentos estejam na paisagem urbana, suas formas, suas cores e sua relação com a escrita dos negros e das negras nesta cidade ainda é invisível para a população, isto é, tais representações seguem sendo engolidas pelo imaginário
Primeiro, por homenagear uma revolução, que se presta, somente, para manter uma tradição e uma identidade forjadas “do gaúcho”, uma identidade que não reconhece, em seu imaginário social, os negros, como formadores deste estado, conforme Maestri (2008). Revolução, esta, que foi alimentada pelo sangue dos negros, recrutados junto aos estancieiros, que lutavam pela sua liberdade, ou seja, por sua carta de alforria e, não, pelos ideais farroupilhas.
O autor do anteprojeto do Parque Farroupilha, Alfred H. D. Agache, que, segundo Luz (2000), idealizou este espaço, em 1930, utilizou elementos da escola francesa de jardinagem, tendo um eixo principal cortado por diagonais. O autor evidencia que o projeto, apesar de ser eclético, concretiza as representações de determinados grupos dominantes: “[...] os jardins sempre expressaram muito bem, em cada período histórico, as ideias das camadas sociais dominantes naquele momento” (LUZ, 2000, p. 5). O porquê do nome Recanto Europeu e, não, Recanto Africano, poderia estar ligado à materialização daquilo que, comumente, atribuímos ao que é civilizado.
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... urbano dominante da cidade, em valorização aos imigrantes europeus e à identidade do gaúcho.
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Figura 6 – Placa de identificação do Espaço Lanceiros Negros Fonte: acervo de Wagner Innocencio (2017)
Figura 5 – Placa Espaço Lanceiros Negros, com seu entorno, no Parque Farroupilha Fonte: acervo de Wagner Innocencio (2017)
As narrativas proporcionadas pelos monumentos dão visibilidade bem maior ao branco imigrante europeu. A elite brasileira aparece bem representada em monumentos de representantes políticos, religiosos, jornalistas e escritores no Centro Histórico. No entanto, monumentos da escrita espacial negra são implementados, a partir de 1997 (monumento em homenagem a Zumbi dos Palmares) e de 2011 (com a primeira obra do Museu de Percurso Negro).
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Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam...
CANCLINI, Néstor Garcia. Imaginários Urbanos. 4. ed. Buenos Aires: Eugleba, 2010, p. 184. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B5UfjjAP0C2FOENDdm1Fa1ZVRzQ/ view. Acesso em: 13 set. 2020.
HIERNAUX, Daniel; LINDÓN, Alicia. Imaginarios urbanos desde América Latina. Tradiciones y nuevas perspectivas. In: Imaginarios urbanos en América Latina: urbanismos ciudadanos. Barcelona: Fundación Antoni Tapies, 2007b. p. 157-167.
FERREIRA, A. B. H. de. Mini Aurélio dicionário da língua portuguesa – verbete Imaginário. São Paulo: Positivo, 2008.
REFERÊNCIAS BONETTO, Helena. A invisibilidade negra na cidade de Porto Alegre: uma pesquisa sobre imaginários urbanos. 2018. 239f. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
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Diante das considerações apresentadas no decorrer deste capítulo, é preciso evidenciar a escrita espacial histórica negra de Porto Alegre, através da visibilidade da ancestralidade desta população, impregnada em toda a cidade de Porto Alegre, através de seu trabalho e das suas manifestações culturais e religiosas, sendo prioridade na luta antirracista, em nosso país, e na quebra do imaginário de que estamos na Europa brasileira.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1982. DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário : introdução à arquetipologia geral. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
HIERNAUX, Daniel. Los Imaginarios Urbanos: De la teoría y los aterrizajes en los estudios urbanos. Revista Latinoamericana de Estudios Urbano-Regionales (EURE), Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales, Pontificia Universidad Católica de Chile, v. 33, n. 99, p. 17-30, ago. 2007a. Disponível em: http://www.scielo.cl/pdf/eure/v33n99/ art04.pdf. Acesso em: 12 jul. 2012.
Entendendo que estamos em um sistema de poder marcado pela branquitude, com privilégios de representações materiais e imateriais, que marcam os espaços públicos da cidade de Porto Alegre, mas é preciso, para o combate ao racismo e para o incentivo de práticas de educação antirracista, a promoção da equidade entre as raças, e isso passa pela visibilidade da presença negra na monumentalidade da paisagem urbana de Porto Alegre. Tudo soa como se estivéssemos nos primeiros passos, principalmente, nas discussões, relativas aos privilégios, arraigados pelas práticas da branquitude e pela valorização das suas escritas em nosso país. Contudo, finalizamos, destacando que a educação antirracista não deve ser uma luta, apenas, dos negros desse país, mas de toda a nossa sociedade.
PESAVENTO, Sandra. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Cuadernos Del Sur História, Baía Blanca, v. 28, p. 235-255, 1999.
LUZ, Luis Fernando da. Parque Farroupilha. O lago e os eixos como elementos de composição. Arqtexto, Porto Alegre, n. 1, p. 85-93, 2000. Disponível em: MAESTRI,Acessoufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_0/0_Luis%20Fernando.pdf.https://www.em:16abr.2018.Mário.Onegroeoimaginárioétnicogaúcho.
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PESAVENTO, Sandra. Imagens Urbanas. 1. ed. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1997. (v. 1) SILVA, Juremir Machado da. Diferença e Descobrimento: O que é o imaginário. Porto Alegre: Meridional, 2012. 175 p. SOUZA, Vinicius Vieira de. Artes Visuais de referência afro-brasileira no espaço público de Porto Alegre. In: MATTOS, Jane Rocha (Org.). Museus e africanidades. Porto Alegre: Edições Museu Júlio de Castilhos, 2013. p. 55-84.
Os imaginários urbanos dominantes de Porto Alegre, de cidade branca e europeia, que invisibilizam... S HIERNAUX, Daniel. Los imaginarios urbanos de la dominación y la resistencia: un punto de partida. Revista de Ciencias Sociales y Humanidades (Iztapalapa), México (D.F.), n. 29, p. 7-12, jan./dez. 2008. Disponível em: http://danielhiernaux.net/publicaciones/ index2.php. Acesso em: 11 set. 2012. LINDÓN, Alicia. Los imaginarios urbanos y el construtivismo geográfico: los hologramas espaciais. Revista Latinoamericana de Estudios Urbano-Regionales (EURE), Instituto de Estudios Urbanos y Territoriales, Pontificia Universidad Católica de Chile, v. 33, n. 99, p. 31-46, ago. 2007a. Disponível em: http://www.scielo.cl/pdf/eure/v33n99/art04. pdf. Acesso em: 12 jul. 2012. LINDÓN, Alicia. El constructivismo geográfico y las aproximaciones cualitativas. Revista de Geografía Norte Grande, Santiago, n. 3, p. 5-21, jun. 2007b. Disponível em: http:// www.scielo.cl/scielo.php?pid=S0718-34022007000100001&script=sci_arttext. Acesso em: 12 jul. 2012.
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PESAVENTO, Sandra. As leituras da memória: a cidade imaginária de um cronista no sul. Anos 90, Porto Alegre, UFRGS, v. 14, n. 10, p. 47-60, 2000.
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PESAVENTO, Sandra. Imaginário da cidade: visões literárias do urbano (Paris, Rio de Janeiro e Porto Alegre). 2. ed. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2002. (v. 1)
Álvaro Luiz
SÃO, POR SEUS ELOS, DAQUI MESMO
1 GOMES, Lilian Cristina Bernardo. O direito quilombola e a democracia no Brasil, 2012.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
ASCONHECIMENTO:ACONTECIMENTO,ESTABELECIMENTO,TERRITORIALIDADES
HEIDRICH COMO CITAR: HEIDRICH, Álvaro Luiz. Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 619-636 619619
NEGRAS
Isso não significa que, entre esses dois extremos, houvesse absoluto silêncio, muito embora a situação tenha permanecido invisibilizada, legalmente, desde a Primeira República, até nossa última constituição. Na história de nosso país, há registros de que os territórios quilombolas foram bastante usurpados, como também não foram poucas as lutas, dessas comunidades, para poderem permanecer em suas terras1. O que há de forte, tanto durante os períodos Colonial e Imperial como na atualidade, é a dimensão externada, que envolve, além da tensão entre os opositores dos territórios ocupados e as suas comunidades, a existência de leis a eles referentes. Durante os períodos Colonial e Imperial enquanto os quilombos eram considerados crime, a Constituição Federal de 1988 e as regulamentações posteriores permitiram a autodeclaração das comunidades quilombolas, tornando possível a titulação das áreas ocupadas a suas respectivas comunidades2. Para tratar dessa questão, este artigo entrelaça em discussão aspectos legais, históricos e teóricos, tendo em vista que além da observação estrita da lei, para o reconhecimento das comunidades quilombolas a seus territórios, também entram em cena as interpretações que tanto se referem às expectativas da sociedade de mercado, como da manutenção dos lugares de vivência das comunidades negras.
2 Cf. Artigos 68, 215 e 216 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); decretos nºs 4.887, de 2003; e 6.040, de 2007, da Presidência da República. QUILOMBOLAS
Há duas épocas bem marcadas no Brasil, em que a presença dos quilombos tem forte expressão, mas, também, reações contrárias. Primeiramente, foi no seu surgimento, ao se manifestaram como lugares de condução da vida, de modo autônomo pelas populações negras, antes mantidas em cativeiro. E a segunda é atual, desde quando passamos a ter possibilidade do reconhecimento legal dessas terras aos que buscaram ter lugar próprio ao acontecimento de suas vidas.
3 Definição dada pelo Conselho Ultramarino Português, de 1740. Cf. LEITE, Ilka Boaventura. Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas, 2000.
se torna território quilombola, adquire, evidentemente, as características particulares desta vivência, contendo aspectos como a compreensão do grupo sobre sua relação com o lugar, as práticas do coletivo, que permitem perceber a reciprocidade entre as populações e as áreas que habitam e que circulam, o que repercute na noção de se sentirem apropriadas das coisas ali existentes. Apesar disso, no momento presente, o estabelecimento legal, que permite a titulação, envolve certa tensão entre as instruções normativas e as experiências sociais, envolvendo obstáculos jurídicos e administrativos, que postergam a conquista legal da área, nas quais suas vivências se desenrolam.
4 MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África, 1995-1996.
Os significados associados a quilombo não se separam da realidade gerada por eles próprios, até mesmo, pelo sentido que já foi tomado para a contestação de sua existência: “habitação de negros fugidos”3. Contudo, tais espaços derivam da experiência original africana, que remete à associação de homens desprendidos de suas linhagens, a fim de se tornarem guerreiros, e que, absorvendo diferentes contribuições, culminaram em uma instituição transcultural. No Brasil, eles ocorrem em período coetâneo ao africano, permitindo-se a interpretação de que surgem como reconstrução das formações originais 4. Espalhou-se, porém, o entendimento geral de que se referem a um lugar, acampamento ou fortaleza, de populações negras, uma designação usual, durante o período colonial5 . Designações variadas, como terras de preto, de parentes, de herdeiros6, passaram a ter visibilidade como áreas tradicionalmente ocupadas, que “[...] expressam
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo
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As palavras quilombo e território têm muito em comum. Mas, enquanto os quilombos se configuram como uma situação singular, de contornos culturais evidentes e de percursos históricos concretos, o território sempre precisa ser qualificado, referido a uma determinada situação, pois, por este termo, adquirese uma compreensão mais geral sobre a relação que grupos, comunidades ou sociedades estabelecem com seus espaços de vida. O quilombo é uma dessas qualificações. Contudo, tanto nas falas dos seus habitantes e das demais pessoas que se referem aos quilombos, como nos textos legais ou de estudo, território se torna um recurso para designá-los e, principalmente, para identificar relações de pertencimento e marcas de usos ancestral e continuado, a fim de se encaminhar possíveisQuandodemarcações.oespaçoapropriado
6 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e a base de lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico. 2006.
N S OL AS PALAVRAS
5 SILVA, Shyrley da; SILVA, Vandeir José da. Quilombos brasileiros: alguns aspectos da trajetória do negro no Brasil, 2014.
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9 Muito embora a palavra apropriação designe, genericamente, a ideia de adequação, neste texto, ela adquire, também, o significado teórico de produção de uma finalidade no espaço, em que ela ocorre, com o sentido de condução da vida, em busca de autonomia. Diferencia-se, desse modo, do uso de um espaço, sem essa devida destinação, como ocorre, por exemplo, no uso das matas, para a pratica do extrativismo. Ver, sobre o tema, os trabalhos de Agnes Heller, Sociología de la vida cotidiana, 1977, e de Henri Lefebvre, La producción del espacio, 2013 [1974].
8 BONNEMAISON, Joël; CAMBRÉZY, Luc. Le lien territorial. Entre frontières et identités. Géographie et cultures, Paris: Association Géographie et Cultures; Éditions L’Harmattan, n. 20, p. 7-18, 1996.
O Decreto Presidencial nº 4.887, de 2003, que regulamenta os procedimentos de identificação, de reconhecimento, de delimitação e de demarcação dessas terras estabelece o reconhecimento, a partir da identificação de remanescentes das comunidades de quilombos (artigo 2º) e de suas terras ocupadas, como as que lhes garantem as reproduções física, social, econômica e cultural (§ 2, do artigo 2º). Quer dizer, permite reconhecer o vínculo da população àquele território e ao seu uso específico, muito embora o limite a essa fixidez. Deixa de considerar o trânsito no território maior do país e o vínculo mais aberto de territorialidade, que envolva percursos, além dos limites, associados à fixação das populações. Mesmo assim, apesar da objetividade destes, os procedimentos
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As constatações partem desse fato mais preciso e concreto, dada a visibilidade que expressavam, por constituírem um grupo social diferenciado, que se via relativamente isolado em relação a seu entorno. Mas são as relações ali mesmo estabelecidas, como a vida em coletividade, as atividades de sustentação do próprio grupo, sem necessidade de responder a outrem, e a apropriação do lugar, de modo diferenciado ao comumente encontrado nas regiões em que se encontram, que, notadamente, contribuem para o contexto social do qual fazem parte. Delineando-se um quadro tipicamente territorial. Em contrapartida, o termo território, em sentido teórico e não estritamente legal, por ser aplicável a diversas situações, ganha ares de forte validade ao designar a situação do espaço apropriado por um grupo ou sociedade8. Essa aplicabilidade, contudo, tem sido tomada como recurso de contestação, à medida que um mesmo espaço esteja envolvido em situações, como conflito de uso, de apropriação9 efetiva de um espaço ou, simplesmente, de divergência de interesses em relação à área em que os quilombos se situam.
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes povos e grupos sociais, em suas relações com os recursos da natureza”7 .
7 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terra de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livre”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupadas, 2008, p. 25. Para Rafael Sanzio Araújo dos Anjos, originaram-se de inúmeras formas: 1. Ocupação de fazendas falidas; 2. Compra de propriedade, por escravos alforriados; 3. Doações de terras para ex-escravos, por proprietários de terras; 4. Pagamentos, por prestação de serviços em guerras oficiais; 5. Terrenos, de ordem religiosa, deixados para ex-escravos; 6. Ocupações de terras, sob controle da Marinha do Brasil; e 7. Extensão de terrenos da união, não devidamente cadastrados. Cf. ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Territórios das Comunidades Quilombolas no Brasil: segunda configuração espacial. Brasília: Mapas Editora & Consultoria, 2005. 1 mapa temático articulado. Escala aproximada de 1: 6.000.000, folheto.
Como se pode ver, o quilombo não é apenas uma área em si, independente das relações que possui. Sua área é ocupada e possui movimento de vida, com uso dos recursos do lugar e as memórias, associadas a tudo isso. Tais aspectos, mesmo que combatidos desde o início da formação dos quilombos, não negam o próprio fato. São territórios. Contudo, a partir do dispositivo constitucional, a possibilidade do reconhecimento social amplo, além do próprio reconhecimento das comunidades, requer sua legalidade, ou seja, além do fato, também, o seu estabelecimento em direito. Envolve, portanto, duas expressões de território, duas territorialidades: a original, fundadora, e a legal, oficial.
MAIS QUE VIVIDO, QUE TAMBÉM SEJA LEGAL
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo S de verificação, como os que constam na Instrução Normativa nº 57, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)10, abre-se um campo de análises, pelo qual a validação, a rejeição ou os ajustes nos referidos estudos, laudos, relatórios e processos, são possíveis.
11 Ver o desenvolvimento desse argumento em FOULCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber, 2001 [1976], assim como sua aplicação, para a análise do poder, associado ao espaço e ao território, em RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder, 1993 [1980].
12 BONNEMAISON, Joël. Viagem em torno do território, 2012.
A ideia de que o território se origina do ordenamento oficial é um erro, pois retira a legitimidade originada das práticas sociais e das relações das coletividades com seus espaços vividos e do viver continuado. O que se reconhece oficialmente refere-se ao poder de Estado, das instituições de governo das populações e dos recursos disponíveis11. O território original, por sua vez, nasce das relações de convivialidade e de marcas produzidas pelas coletividades no espaço material12 , e seu âmbito (extensão e limites) deriva, justamente, da ocorrência espacial desses fatos. O quilombo, portanto, guarda essa essência em seu interior, mas também deve ser visto a partir das relações estabelecidas pelas populações 10 INCRA, Instrução Normativa nº 57, 2009.
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A questão em jogo é se, de um ponto de vista legal, as terras em uso serão configuradas como território quilombola, livres de conflito com outra função territorial (como Terra Indígena, área militar ou Unidade de Conservação) ou em uso aberto a relações de mercado. Mesmo com tudo isso, a legalidade não destitui a natureza territorial da relação entre populações quilombolas e as terras de suas vivências. Quer dizer, por sua natureza, os quilombos, desde o seu início, não dependeram de uma lei para se configurarem em territórios (áreas apropriadas, em uso e com presença de coletivos e com consciência dessa relação), embora a lei constitua instrumento para que as instituições estabeleçam a legalidade ou não desses territórios.
15 LEITE, Ilka Boaventura. O projeto político quilombola: desafios, conquistas e impasses atuais, 2008. Ver também: RODRIGUES, Bruno de Oliveira; REZENDE, Tayra Fonseca; NUNES, Tiago de Garcia. Movimento Negro e a pauta quilombola no Constituinte: ação, estratégia e repertório, 2019.
16 RODRIGUES; REZENDE; NUNES, op. cit
Reivindicações maiores estiveram presentes, mas, principalmente, o antirracismo e a conquista de direito, aos territórios quilombolas, foram encaminhadas à Assembleia Nacional Constituinte de 1988, por meio da Convenção Nacional do Negro16. A conquista do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADTC), da Constituição de 1988, é o ponto de partida, que concede às comunidades remanescentes de quilombo, que estejam ocupando suas terras, o direito à propriedade definitiva das mesmas. Tratase, porém, de uma propriedade com “estirpe” territorial, posto que ela não se negocia. Tem o status similar ao da Terra Indígena e ao de uma Unidade de Conservação e está legitimada por processos histórico e social-antropológico, e deve ser legal. Desse modo, quando se trata de um quilombo, adentra-se a um plano de dupla territorialidade, que envolve os diferentes planos do poder e a concretização do que é vivido/vivenciado.
Porém, é generalizada a percepção que evidencia as origens do território, como expressão do poder normativo, e que lhe atribui funcionalidades políticas e
14 RAFFESTIN, op. cit.
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É preciso examinar com atenção essa questão, pois a adoção de um referendo teórico que exclua a expressão territorial do que foi e do que é vivido, ao soar como verdade absoluta, invalidaria a experiência humana, estabelecendo a injustiça por uma simples opção, que, efetivamente, significam ignorância e rechaço, assim como se constituíram as decisões históricas, que buscaram excluir o negro de um projeto de nação.
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo S OL negras com todo o sistema, que lhe causou dominação13. Ora foi refúgio, ora terra cedida ou herdada, ora lugar encontrado, sem ocupação anterior. Deste modo, sua constituição deriva do poder espalhado, fluído, que, diferentemente do poder das instituições, está presente em todas as relações14. Mas a formalização destes territórios quilombolas não deve ser desprezada e, inclusive, constitui demanda e luta pelo seu reconhecimento por parte das populações negras e de seus movimentos sociais, que, a partir da formação do Movimento Negro Unificado, em 1978, ganham expressão nacional15 .
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AS TERRITORIALIDADES
FORMAL E VIVIDA
A origem das relações entre sociedade e espaço, geradoras de territórios, decorre de ocupações efetivas, de percursos predominantes e de referências linguísticas, que vinculam a presença de populações em espaços respectivos.
13 ARRUTI, José Maurício. Quilombos, 2009.
18 ALLIÉS, Paul. L’invention du territoire. 1980.
A soberania vinculada ao Estado deriva dos poderes mais absolutos, que os monarcas detinham sobre o espaço, pelos quais exerciam a dominação. Os habitantes comuns desse espaço deviam obediência ao soberano, por viverem em seus domínios. Ao monarca e a seus intermediários destinavam tributos, por ali viverem e produzirem. Mas, na medida em que tais domínios – o reino ou o império – foram, lentamente, configurando-se em espaços políticos, a soberania foi se transferindo para um ente jurídico, a instituição inventada para a administração: o Estado. Nesse processo, a submissão mais direta do habitante ao soberano vai sendo substituída por sua relação com o território, e com a instituição, que passa a responder por ele. A relação de dominação, que aos poucos, vai se desprendendo da soberania, passa a ter, com o Estado, a regulamentação para se realizar. Amparada por um suposto interesse geral. É desse modo, por exemplo, que se concede a propriedade da mão de obra no período escravocrata e que, posteriormente, dá-se o estabelecimento de contratos com trabalhadores “livres”. As relações, em geral, passarão a ser mediadas pela vida em território comum e, não mais por uma obediência diretamente pessoal18 . Esse formato se espalhou pelo mundo inteiro, junto à construção das nações modernas, tornando-se padrão19. É uma espécie de fusão entre área geográfica, hegemonia de valores na sociedade e o estabelecimento de instituições20. Vai nascendo, desta maneira, o território, como expressão de poder político, que conhecemosJuntamentehoje.aessa operação, também vai se difundindo, por toda a parte, o papel de administrador do Estado, como estabelecer instalações, portos, construir estradas e entrepostos, estipular taxas sobre o exercício de atividades, definir áreas de ocupação territorial, gerir sistemas de contagem, organizar sistemas de vigilância, etc.21 Algumas destas incumbências eram anteriormente função da Igreja, como o conhecimento e o registro dos próprios habitantes, pelos atos do batismo, do casamento ou do sepultamento dos corpos. Registrar pessoas,
19 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional, 1989.
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21 Ver, em ALLIÉS, op. cit., sobre a formação do vínculo administrativo do Estado com o território e, em FOULCAULT, Microfísica do poder, op. cit., sobre o reconhecimento das populações como parte dos territórios e da orientação do poder em sua administração.
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FOULCAULT, Michel. Microfísica do poder, 1979, sobre a transferência da dominação do âmbito da soberania para o âmbito do poder em geral. Nesse sentido, permaneceria a soberania como um referente de legitimidade na estruturação da política dos países ocidentais. Estado e território, portanto, em função da soberania a eles associada, não diretamente envolvidos com a dominação, mas legitimadores das relações sociais.
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo S econômicas. Essa visão é comum nas formulações mais tradicionais da Ciência Política e da Geografia Política: como área de manifestação e de poder do Estado, vincula-o, essencialmente, aos exercícios de soberania e de poder político17 .
20 ESCOLAR, Marcelo. Crítica do discurso geográfico, 1996.
17 COSTA, Wanderley Messias da. Geografia política e geopolítica: discursos sobre território e poder, 2008. Em
625 Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo S conhecer a população, organizar a higiene e estipular padrões de instrução são responsabilidades, que vemos, hoje, normalmente vinculadas ao Estado, seja por qual governo estiver em sua direção22 .
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Guarda-se essa ideia como razão fundante, por causa da passagem da dominação direta das populações ao estabelecimento da ideia de liberdade de exercício da dominação, pela posse dos direitos particulares sobre a terra e sobre as posses de bens. As posses sobre a terra, não resultando mais de outorga, por parte do soberano, e se configurando como propriedade privada, a partir da Lei de Terras, de 1850, traz a necessidade da formalização da relação com a terra e com as coisas da terra. Em termos práticos, não ter a posse de meios, para levar a vida adiante, é se tornar sujeito assujeitado, condição equivalente à de outros trabalhadores livres. Além disso, os negros formaram populações, as quais se buscou tornar invisíveis, perseguidas, expulsas, incriminadas e colocadas em posições subalternas23 .
23 CAMPOS, Adrelino, Do quilombo à favela: a produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro, 2011.
24 FOULCAULT, Michel. Op. cit., p. 289-290.
24 22 BADIE, Badie; HERMET, Guy. Política comparada, 1993.
Porém, mesmo com todas as tentativas de exclusão e de apagamento da sua memória oficial, a presença das populações negras é fator inquestionável no estabelecimento de vínculos com os espaços que ocupam. Espaços, estes, que constituíram e que constituem as territorialidades vividas e vívidas dos quilombos rurais e urbanos brasileiros.
Muitas funcionalidades, responsabilidades de Estado, possuem expressão territorial, como uma maneira de se resolver conflitos ou pactuar por certo uso geral do território. Delegar poderes, conceder direitos de exploração e definir áreas de ocorrência de atividades são maneiras de assinalar, no espaço geográfico, a marcação de uma lei, em geral, utilizando-se da cartografia como ferramenta.
Território implica uma relação imprescindível entre um conjunto de pessoas, um grupo, uma comunidade ou uma população. [...] a população será o ponto em torno do qual se organizará aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido de que a população será o objeto que o governo deverá levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado. A constituição de um saber de governo é absolutamente indissociável da constituição de um saber sobre todos os processos referentes à população em sentido lato, daquilo que chamamos precisamente de ‘economia’. A economia política pode se constituir a partir do momento em que, entre os diversos elementos da riqueza, apareceu um novo objeto, a população.
Mas este é um ponto de vista de dominação, de controle territorial. População não é, simplesmente, um número, um conjunto a ser governado, dirigido, administrado, com alguma finalidade. A face vívida de uma população envolve grupos, comunidades, etnias, etc. E, se parcelas de uma população geral são vistas em diferença, em preconceito, em segregação – em racismo, mesmo –, é porque constituem grupos, populações em populações.
oficial colonial se sabe com clareza que, no período entre 1871 e 1920, 3.390.000 imigrantes europeus chegaram ao país, dos quais: 1.373.000 eram italianos; 901.000, portugueses e 500.000, espanhóis. Muitos europeus no Brasil vão ocupar territórios onde já estavam estabelecidas populações africanas ou de seus descendentes, como, por exemplo, a ocupação de imigrantes italianos (1880) no sítio de Sapucaí, na região do grande Quilombo do Campo Grande, na antiga Província de Minas Gerais. É importante notar que esse número se aproxima dos quase 4.000.000 africanos que foram retirados de seu habitat natural e trazidos para o Brasil oficialmente entre 1520 e 185026 .
Tais números representam, efetivamente, importante contribuição populacional. A população de afrodescendentes do Brasil superou os 117 milhões de habitantes, em 2019, correspondendo a cerca de 56% do total de habitantes27 . Mais da metade dos brasileiros. É um contingente significativo, que se distribui por todo o território do país, compondo o conjunto e fazendo parte da dinâmica das relações sociais e econômicas. Nada é mais próprio de uma população do que sua língua. No vocabulário do português brasileiro, consta significativa presença de palavras oriundas de línguas africanas. Algumas são de uso muito recorrente, como: bengala, cachaça, cachimbo, caçula, encabular, milonga, minhoca, quindim 28. Além das palavras introduzidas, também a sonoridade da fala, em que se destaca a vocalização silábica, quase plena, tem atestado, tanto a africanização do português como o aportuguesamento do africano29 .
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29 CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. 2001; Ver também FREIRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal,2003.
28 MENDONÇA, Renato. A influência africana no português do Brasil, 2012.
25 ANJOS, Rafael Sanzio Araújo. Geografia, cartografia e o Brasil africano: algumas representações, 2014.
26 Ibidem, p. 342. 27 Cf. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), IBGE. Disponível em https://sidra.ibge.gov.br, acesso: 21 de julho de 2020.
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Rafael Sanzio dos Anjos indica que a imigração forçada de africanos para o Brasil entre os séculos XVI e XIX envolveu em torno dos quatro milhões de pessoas25. Comparando-se com a população de imigrantes europeus, trazida entre os finais do século XIX e inícios do século XX, vê-se certa supremacia de imigrantes negros.DoBrasil
31 Ver a discussão do argumento sobre a constituição de espaços próprios, de lugares apropriados à condução da vida em grupo e em construção de autonomia em HEIDRICH, Álvaro Luiz. Vínculos territoriais – discussão teórico-metodológica para o estudo das territorialidades locais, 2017.
No processo de perda de seus territórios originais, permaneceu, entre as populações africanas, a memória de suas geografias originais, de seus hábitos, de sua cultura, que, por mais que tenham sido abafados, puderam ser recriados junto a si mesmas. O que se fixou por aqui, produziu uma típica reterritorialização, porém muito própria, pois mesclou-se à cultura existente, incorporando-se a ela.
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Juntamente à contribuição linguística, tem-se, na culinária, o dendê, o acarajé, o vatapá, o mugunzá, o quibebe; na dança, o samba, o maracatu, o boi-bumbá, o reisado, o maçambique; nos instrumentos, o afoxé, o agogô, o chocalho-depé, a cuíca, a maraca, o xilofone, etc. Práticas aqui revividas e reelaboradas, como também nas religiões de matriz africana herdadas, compondo-se rico universo simbólico. Em função do processo que essas populações vivenciaram, parte desse contingente se manteve singularizado em grupos de família extensa e territorialmente associados, conhecidos e identificados como quilombolas. Seus locais de moradia, muitos dos quais também eram aldeamentos de organização econômica, devem ser vistos como autênticos espaços próprios, bastante singulares, que permitiram manter a perpetuação do grupo 31. Tais lugares, em geral, não se formalizaram como parcela de terra individualizada e vêm se mantendo em uso coletivo. Tal singularidade expressa outra feição, tipicamente territorial, pois constituíram os quilombos, que, além de lugares de presença e de práticas cotidianas, são, também, de identificação e de reconhecimento dos grupos que ali vivem. Consta, nas informações publicadas no sítio eletrônico da Fundação Cultural Palmares (FCP), um total de 3451 Comunidades Remanescentes de Quilombos e, deste montante, 2793 se encontram certificadas. No entanto, constam apenas 32 com titulação definitiva e 14 com titulação parcial32. Levantamento realizado por 30 HENRIQUES, Isabel Castro. Território e Identidade: o desmantelamento da terra africana e a construção da Angola colonial (c.1872-c1926), 2003.
32 Além destas titulações, uma se encontra com titulação, apenas, pela FCP, 122 já possuem Relatórios Técnicos de Identificação e Demarcação (RTID) e 99 estão em trâmites posteriores, como análises de recursos e publicação de portarias e de decretos no Diário Oficial da União (DOU). Em relação às comunidades já certificadas, notase que as tituladas perfazem menos de 2% e as que já contam com RTID, menos de 8%. Os dados consultados na obtenção destas informações estão apresentados no sítio eletrônico da FCP, junto às certidões expedidas
São marcas ou marcadores territoriais os elementos e os aspectos das práticas existentes no espaço vivido, que, mesmo sendo alterados ou desmantelados, por processos de colonização, podem ser revividos30. No caso brasileiro, os marcadores negro-africanos migraram, junto às populações que os praticaram, como recriação de suas territorialidades. Esse processo envolveu ampla distribuição populacional do povo negro, tornando-o pertencente à geografia do novo país.
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Como se tem visto, as territorialidades quilombolas não se resumem a áreas físicas e a demarcações. Demarcações são absolutamente necessárias, no sentido de se alcançar às populações negras, herdeiras de suas próprias histórias, o direito à permanência em seus espaços. É justamente esse o sentido da busca: permitir que a territorialidade formal faça jus à territorialidade vivida. Quer dizer, é a ligação entre populações e seus espaços de vida, o que, em verdade, interessa assegurar. Não é a simples propriedade, que, genericamente, poderia ocorrer em qualquer lugar, não, uma funcionalidade isenta de relações.
33 ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos. Op. Cit. O autor registra que, além das instituições oficiais, de âmbitos federal, estadual e municipal, também coleta informações das entidades negras presentes e dos documentos de pesquisas, realizadas em universidades brasileiras.
35 ARAÚJO, A. M. de; NAZARENO, E. Processos de etnogênese na formação de identidades de comunidades afro descendentes, 2013.
34 LIMA, Luana Nunes Martins de. A constituição de um território identitário pela garantia dos direitos fundiários: o sítio histórico e patrimônio cultural Kalunga, 2013.
Rafael Sanzio Araújo dos Anjos33 contabilizava 2.228 ocorrências de povoações quilombolas, já no ano de 2005. Conforme o detalhamento apresentado neste Atlas, junto à Fundação Palmares, já se encontram sete comunidades quilombolas com certidão no município de Porto Alegre, mas já se sabe da existência de outras duas em processo de reconhecimento.
Essas relações se expressam pelo uso dos recursos ambientais, pelo conhecimento das espécies vegetais, que simbolizam seus entendimentos de estar no mundo, os quais são inseparáveis, em seus encaixes no meio. Constituem elementos de formulação de identidades, em relação aos lugares que reúnem esses aspectos. Como espaços apropriados à continuidade de suas vidas, proporcionam a constituição da sociabilidade comunitária e a materialidade, para o amparo, frente às afetações externas34. Em resumo, seja em feição material, seja em feição imaterial, tal é o que dá condições à permanência identificada e à reprodução de seus modos de vida. Quando tais comunidades percebem a possibilidade de que esses aspectos sejam garantidos, por meio da formalidade territorial, passam a compreender e a recuperar seus laços com a própria memória35, que lhes foi sendo usurpada, pelo estabelecimento de relações abstratas, voltadas apenas ao valor mercantil da localização de seus territórios.
Deste modo, as áreas de suas vivências, os quilombos, envolvem mais do que a pura materialidade, do que o terreno em si. O território quilombola expressa um complexo, que envolve, além do terreno e de sua posição, em relação às geografias em contexto, principalmente, três aspectos: (1) as relações às comunidades remanescentes de quilombos (CRQS), atualizada até a Portaria nº 118/2020, publicada no DOU em 20 de julho de 2020. Disponível em http://www.palmares.gov.br/?page_id=37551, com acesso em 14 de outubro de 2020.
36 Situação muitas vezes designada por negritude, um termo de amplo significado, que tem dado certo contorno de identificação, pelo que pessoas brancas também se inclinam a aceitá-lo, na medida em que compartilham do universo simbólico afrodescendente. Contudo, não está distante de controvérsia, por produzir certa interferência na formulação das identidades afrodescendentes. Ver essa discussão em FERREIRA, R. F.; CAMARGO, A. C. As relações cotidianas e a construção da identidade negra, 2011.
38 FERREIRA, Ricardo Franklin; CAMARGO, Amilton Carlos. ‘Donos do lugar’: a geo-grafia negra camponesa do Sapê do Norte – ES, 2010.
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Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo estabelecidas pela presença dos corpos negros e aparentados à comunidade36; (2) as práticas espaciais efetivadas no lugar, que envolvem o modo de vida, as atividades realizadas, cotidianamente, que mesclam a autenticidade de suas origens, suas trajetórias e suas relações interculturais; e (3) suas memórias e seus imaginários, que entrelaçam as concepções do que viveram, do que vivem e do que imaginam percorrer, que fazem a conexão entre suas presenças, seus fazeres e seus espaços. Esses três aspectos querem dizer: a territorialidade se faz por vivências, por constructos. O lugar existe, pois é composto por uma objetividade material, mas ele também depende dos vínculos, estabelecidos pela presença dos corpos atuantes, pelas coisas ali elaboradas, constituídas, pelos relacionamentos e pelas ligações, presentes em memórias, em oralidades, em falares. Não são terrenos, passíveis de intercâmbio; não possuem equivalentes monetários. São constructos únicos. Eles contêm o sentido mais completo de espaço apropriado. Trata-se de um espaço elaborado, de um construído, afeito a um modo de vida. Quando são quilombos rurais, suas terras possuem uso bastante diferenciado das orientações do chamado agronegócio, priorizando-se a reprodução social, frente à reprodução de capitais. Tais usos interagem com as dinâmicas do território, pois as atividades não se desligam das memórias, mas se associam a elas, como as brincadeiras de infância, que não se separam do aprendizado, junto aos adultos, juntamente com o respeito aos marcadores de religiosidade37 . Geralmente, as comunidades também se envolvem com a prestação de serviços nos estabelecimentos da região.
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37 LIMA, Gerson Diniz; GIANASI, Lussandra M. Etnoterritorialidade quilombola de Macuco no município de Minas Novas e Chapada Do Norte/Vale do Jequitinhonha-Minas Gerais, Brasil: mapeamentos e análises. 2011.
Práticas tradicionais realizadas no meio, nas matas de suas regiões, acabam em conflito, na medida em que recursos naturais, antes, negligenciados, passam a ter valor econômico. Desse modo, não apenas a existência do quilombo em si, mas, também, dos percursos que compõem suas territorialidades negra e quilombola, constituem tensões e batalhas por conquistas. Envolver-se em tal situação estabelece ligações evidentes entre presença, prática e ganho de consciência38, cuja territorialização é necessária, para que a existência do grupo se torne viável.
Muitas vezes vistos como terras sem dono, por não constituírem propriedades individuais, os quilombos, volta e meia, encontram-se sujeitos à grilagem.
Ossanha.Quilombos
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Entre todos eles, a presença dos coletivos se associa às práticas do lugar e às memórias de suas trajetórias, aspectos que culminam e que estão associados,
40 RATTS, Alecsandro José Prudêncio. O mundo é grande e a nação também: identidade e mobilidade em territórios negros, 2000.
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39 AVELAR, Gilmar Alves de; PAULA, Marise Vicente de. Comunidade Kalunga: trabalho e cultura em terra de negro, 2003.
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O território do quilombo, pela possibilidade da integração desses vínculos, traz engendrado, nele mesmo, um repertório de lugares de importâncias afetiva, simbólica e política próprio do grupo, que permite a manutenção dos costumes peculiares de seu povo39. No lugar, recriam-se as possibilidades do amparo e do “[...] esquecimento intencional de situações tristes ou desagradáveis, que revoltam, de um tempo que os envolvidos nas conversas não [desejam] recordar”40 . Alguns desses aspectos também existem em espaços urbanos, relativizandose, porém, o conjunto de práticas, à medida que essas têm, na ligação com a cidade, a sua configuração compreendida. Porto Alegre conta com o registro, até agora, de nove territórios desse tipo, como os que constam no presente Atlas, os quilombos das famílias Silva, do Areal, dos Alpes, dos Fidélix, dos Lemos, dos Machado, dos Flores, Mocambo e a comunidade Ouro do Reino de Oxum e urbanos, como os desta cidade, são aqueles que derivam da presença in loco das comunidades negras, anteriormente, vinculadas ao trabalho em casarões, como a comunidade do Quilombo do Areal, ou em instituições que cediam espaço de moradia a grupos familiares, a fim de assegurar a mão de obra de que necessitavam, como o Quilombo dos Lemos. Também se referem à ocupação de pedaços do espaço urbano, isentos de atenção, por seu ordenamento, como os quilombos dos Machado, dos Fidélix, da Família Silva e da associação cultural Mocambo, bem como de áreas, antes, rurais, que, agora, fazem parte do espaço urbano da cidade, como é o caso dos quilombos dos Alpes, da Família Flores e da comunidade quilombola Ouro do Reino de Oxum e Ossanha. Seus povoadores, em parte, são oriundos do meio urbano da própria cidade e outros, de fora da capital. Quando derivam de ocupação por emigração de áreas rurais, é porque um coletivo, com enlaces de parentesco, deparou-se com opções de sobrevivência exauridas nos locais de origem. A característica comum, de tais grupos apresentarem laços de parentesco, é um dos fortes indícios de herança dos sistemas de mantença de mão de obra, herdeira dos sistemas escravistas. Evidentemente, em qualquer uma dessas situações, é a presença de população quilombola que enuncia tais espaços. Isto é, são eles mesmos que os legitimam, faltando-lhes apenas a formalidade territorial, enquanto a sua legalidade ainda não estiver conferida.
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45 PEREIRA. Patrícia Gonçalves. O Quilombo dos Machado e a pedagogia da ginga: deslocamentos em busca da vida, 2019.
Pelo fato de que os quilombos se inserem em territórios de maior dimensão, de suas regiões e do país, é preciso ter em conta que suas populações, suas
Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo junto à materialidade da área ocupada. Assim é, por exemplo, a vivência carnavalesca do Quilombo do Areal, que, desde 1930, tornou-se referência desta manifestação cultural em Porto Alegre, que, ainda hoje, mantém um bloco de Carnaval e a Associação Comunitária e Cultural Quilombo do Areal, por meio da qual se ministram oficinas de percussão e se recepcionam visitantes41. No Quilombo dos Alpes, a presença é marcada, não, apenas, pelas moradias, mas pelos percursos, identificados nas trilhas, associadas a marcadores vividos, os quais guardam fatos memoriais e signos religiosos, de cultivo, de criação e de extrativismo42. Cultuam religiões de matriz africana, mas convivem, internamente, com praticantes de religiões cristãs, revelando-se o intercâmbio próprio das dinâmicas socioespaciais. Junto à presença, registram-se aspectos importantes do conjunto de práticas, de usos e de memórias, que, associados, contribuem na construção de suas etnogêneses43. É o que se dá com a guarda da memória, pela oralidade e pelos objetos seus, que revigoram as lembranças de trajetórias, o que se evidencia nas associações culturais e comunitárias44, pela prática de manifestações próprias das culturas afrodescendentes, como é o caso da Capoeira de Angola Rabo de Arraia, no Quilombo dos Machado, que lhes permite a apropriação de toda a simbologia do jogo e da arte da capoeira, em meio ao enfrentamento que os leva à defesa de suas origens45, compondo, integralmente o que se entende por território. Enquanto cada um desses vínculos expressa um aspecto, o conjunto inseparável de todos eles expressa o que é o próprio quilombo. Cada um deles ganha seu próprio sentido, em sua articulação com o outro. Por isso, entende-se a quebra de qualquer um desses elos como desterritorialização.
Não lhes conferir o documento, que lhes estabelece o direito, impedir a realização de suas práticas, depreciar suas memórias, restringir seus percursos são maneiras de desfazer seus territórios. Por outro lado, esses mesmos elos lhes conferem o poder, com o qual jogam, que reside na confiança e no estabelecimento de seus vínculos, de suas vivências, de suas memórias e de suas identidades.
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41 MARQUES, Olavo Ramalho. Entre a avenida Luis Guaranha e o Quilombo do Areal: um estudo etnográfico sobre memória, sociabilidade e territorialidade negra em Porto Alegre, RS, 2006.
42 PIRES, Cláudia Luísa Zeferino et al O sagrado e o território da ancestralidade à atualidade no Quilombo dos Alpes – Porto Alegre – RS, 2016.
43 ARAÚJO, A. M. de; NAZARENO, E., op. cit.
44 SILVA, Taís Medeiros. Trajetórias e desterritorializações e reterritorializações – estudo de caso: Comunidade quilombola da Família Fidélix, Porto Alegre – RS, 2015.
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Estabelecimento, acontecimento, conhecimento: as territorialidades negras são, por seus elos, daqui mesmo S comunidades, também possuem vínculos com eles. Compõem, como já visto, as suas populações e participam dos quadros cultural, econômico e político maiores. Pode-se compreender dois aspectos, em relação a isto: os quilombos são territórios de menor dimensão, inseridos nos maiores; e suas populações vivenciam o que chamamos de multiterritorialidade46, a expressão de vivências múltiplas. Os âmbitos referenciais mais importantes, para os são o seu próprio território vivido e o seu encaixe nas escalas local, regional e nacional. Nestas escalas desenrolam-se os contextos de coexistência e de conflito. Mas, ao mesmo tempo em que se delineiam as tensões, que envolvem as disputas territoriais, as enunciações de segregação, de racismo e de estratégias de invisibilidade47, também são cenários de diferentes formas de participações social e política, de contribuição cultural e de engajamento econômico.
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A escala do nacional joga um peso de grande importância, principalmente, no que diz respeito à definição das territorialidades formais, que podem culminar na titulação requerida pela autodeclaração. Contudo, este âmbito também é vivido pelas comunidades quilombolas, evidentemente. Assim, conjuntamente aos vínculos territoriais quilombolas, ligados diretamente as suas comunidades, essas populações participam, junto à escala nacional, ao menos, de duas outras referências: como populações afrodescendentes e como segmento da população do país. Enquanto, junto ao quilombo, um dos elos de vinculação se expressa na presença dos corpos negros e aparentados, em âmbito nacional, a presença tende a ser manifestada na representação48 que fazem delas, o que elas acolhem por identidade. No que se refere à condição de população afrodescendente, tanto se vinculam por suas referências de corpos racializados, como por movimentos sociais representativos, como o Movimento Negro Unificado. No que se refere ao segmento da população nacional, situam-se nesta, também, por sua identidade nacional. Combinam-se, deste modo, vínculos territoriais quilombolas, afrodescendentes e (afro)brasileiros. Similarmente, o modo como se revelarão suas práticas territoriais e suas memórias, capazes de contribuir na construção de seus vínculos, poderá estar, da mesma maneira, associado. Será preciso, porém, estar atento às representações hegemônicas, que, historicamente, têm promovido a separação dessas realidades. Os compromissos que se têm, portanto, são de reiterar a participação afro-brasileira no todo, de
48 HALL, Stuart. Cultura e representação, 2016 [2013].
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territoriais
47 Ver sobre este tema os estudos de BONETTO, Helena. A invisibilidade negra na cidade de Porto Alegre: Uma pesquisa sobre imaginários urbanos, 2018; e VIEIRA, Daniele Machado. Territórios negros em Porto Alegre (1800-1970): Geografia histórica da presença negra no espaço urbano, 2017.
46 Toda condição humana, na verdade, tende a ser multiterritorial. Depende tanto dos encaixes de um território menor nos contextos territoriais maiores, como também se revela pela sobreposição de territorialidades. Ver, como um exemplo diretamente associado a quilombos: RUBERT, Rosane Aparecida. Comunidades remanescentes de quilombo: alguns desafios ao olhar antropológico, 2007; e como um aspecto teórico mais geral: HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade, 2008.
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fortalecer sua contribuição em todas as esferas, de enaltecer sua experiência e de se apropriar da noção territorial (presença, prática e memória/identidade), ao mesmo tempo. Voltando-nos ao título deste texto, reconhecendo o que se estabeleceu, o que aconteceu e o que se conhece. Portanto, cabe, também, o acolhimento.
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A OPERAÇÃO DE IDENTIFICAR UM PARTICULAR A UM GERAL, O EXEMPLO EMPÍRICO À IDEIA Conceito é um enunciado acerca de caracteres que permitem a operação mental de identificar um particular a um geral. Por exemplo, o conceito de mamífero permite que espécies tão diversas como elefantes, camundongos, baleias, morcegos, tigres, coelhos, humanos, cavalos e focas sejam enfeixados no mesmo grupamento de animais vertebrados de sangue quente, pele com a presença de pelos e filhotes gestados no ventre da mãe e, depois do parto, alimentados por leite sugado em glândulas mamárias. Evidencia-se um elemento determinante da operação propiciada pelo conceito: sua extensão, a possibilidade de incluir ou excluir o particular em relação ao geral. Assim, considerando os caracteres definidores do que seja mamífero, é possível incluir o golfinho entre os mamíferos e não entre os peixes, ainda que golfinhos nadem e vivam o seu tempo integralmente nos oceanos e mares.
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
REGO Tiago Bassani RECH
COMO CITAR: REGO, Nelson; RECH, Tiago Bassani. Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 637-663 637637
Conceitos referem-se desde ao que é comumente adjetivado como ocorrência concreta até o que é habitualmente classificado abstrato. Elaboremos uma conceituação sobre o belo: algo que desperta sensações de harmonia, de sublime, deleite, e exige especial experiência e percepção em comum entre quem se refere a algo classificado como belo e quem acolhe a comunicação, algo talvez nítido como vivência, mas refratário a ser explicado e fixado por enunciados sintéticos e precisos. Façamos contraste com a conceituação de rocha: agregado sólido composto por um ou mais minerais e com sua variedade descrita e agrupada em três conjuntos quanto à gênese, magmáticas, sedimentares e metamórficas.
NelsonAMOR INSURGENTE, DE VILA DE MALOQUEIROS A LUGAR TERRITÓRIOTERRITORIALIZADO,LUGARIZADO
Conceito, palavra derivada do latim conceptus, do verbo concipere – conter, formar dentro de si. Palavra que denota a noção de que é possível expressar enunciados em relação aos quais nossas operações mentais devem incluir o que ali cabe e decidir-se pela exclusão do que não se ajusta.
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Espaço geográfico, território, paisagem e lugar estão entre conceitos que operam complexas identificações de particulares a gerais. Porém, cuidado, essas palavras – espaço geográfico, território, paisagem, lugar – não são, por si mesmas, conceitos. São palavras. Essas palavras evocarão conceitos diversos dependendo do contexto teórico onde estiverem inseridas.
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Lugar, a mesma palavra será denotativa de sentidos conceituais diversos se inserida em construção ideativa de Yi-Fu Tuan ou em construção de Milton Santos. E nuanças conceituais poderão ser encontradas no interior de cada um desses dois referenciais, dependendo da época de determinada elaboração em suas respectivas trajetórias teóricas.
Contudo, sem que ela o saiba, nossos conceitos podem trazer consequências para a sua vida e a de seu filhote. Nossos conceitos ligam-se às suas vidas tanto pelo evitado – poderíamos enxergar a mãe elefanta menos como vida e mais como dinheiro a ser obtido do marfim – quanto pelo efeito produzido: talvez a doação de alguns dólares a mais à ONG que tenta proteger animais da obsessão de autodenominados esportistas caçadores em busca do troféu de fotografias e vídeos de seus pés e botas sobre cadáveres.
QUANDO O OBJETO PESQUISADO É SUJEITO, QUE RESPONDE AO QUE SE DIZ SOBRE ELE Voltemos, por instantes, aos mamíferos. Observemos, ali, a elefanta à sombra benfazeja de grande árvore. Surge agora o filhote que estava oculto atrás da perna de tronco da mãe. Ambos deslocam-se até outra árvore, mais baixa e nova, a elefanta busca folhas mais suculentas e o filhote acompanha a mãe aonde ela for. A boa alimentação da mãe garantirá a possibilidade de alimentar o filhote com leite de elevado valor nutritivo. Ela fará isso independente de analisarmos ou não sua ação em termos de equação alimentícia e alheia ao fato de a designarmos como animal, vertebrada, sangue quente, mamífera, mãe e de escrevermos com certas licenças, como comparar a dimensão da perna a um tronco e reconstituir imaginariamente sua presença na lembrança de cena que podemos ter visto diretamente na planície africana ou na tela da tevê.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S De rochas a olhares sobre os olhares lançados às raças e etnias, o conhecimento geográfico é tecido com concretos e abstratos numa trama onde as noções de abstrato e concreto variam conforme as perspectivas em ação e as escalas nas quais as perspectivas operam.
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Assim também em relação ao local concebido como lugar à maneira de Tuan ou à maneira de Santos. Pensemos sobre a argila transformada nos tijolos
2015, (1979) 2015], uma determinada área que tenha significado especial de bom afeto para o indivíduo deixa de ser mero local. Eleva-se a lugar, com sua fusão de lembranças e de acontecimentos renovados, experiência de vistas, sons, cheiros, combinação acolhedora de ritmos naturais e artificiais – passado, presente, expectativa de continuidade. Em relação ao local que se torna lugar, a pessoa desenvolve sentimentos de gratidão e talvez posse, lugar que, para outros, talvez continue a ser apenas local. Quem ama o lugar talvez desenvolva contra estes outros um estado de alerta de menor ou maior intensidade, eles serão as potenciais forças adversas invasoras do lugar. Inversamente, serão meu grupo outros que compartilhem do amor pelo lugar.
Para Santos [(1996) 2017], o que define o lugar não são seus caracteres tomados apenas como o interior de um ponto no espaço, mas a consideração desse lugar como espaço de relações contextualizadas por múltiplas e imbricadas escalas, uma teia de objetos e ações com causa e efeito e que atinge tanto as variáveis internas já existentes quanto novas que irão se internalizar. Para Santos, “mais importante que a consciência do lugar é a consciência do mundo, obtida através do lugar” (2005, p.61).
Porém, é plausível supor que os tijolos não sentem o mesmo afeto pelo visitante cotidiano nem pelo seu orientador – leitora e leitor compreenderão daqui a algumas linhas que essa observação é importante e não apenas momento de gracejo no texto.
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Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL que formam as paredes de prédios baixos e casas no bairro Restinga, em Porto Alegre. Pensemos sobre as pessoas que nele residem. Nós dois, Nelson e Tiago, autores deste texto, sentimos bom afeto pela Restinga. Mais intensamente, Tiago, porque é professor no bairro e cotidianamente se encontra envolvido com pessoas e vivências da docência, e faz desses envolvimentos sua pesquisa-ação de doutorado. Menos, Nelson, que mantém relação indireta com o cotidiano da Restinga, mas ainda assim um bom afeto, por osmose existencial, na medida em que tem sido orientador de graduandos, mestrandos e doutorandos que pesquisam sobre a docência neste bairro. Pois bem, os dois autores do texto sentem bom afeto pela Restinga, pelas pessoas da Restinga, e isso se prolonga na forma de afeto pela paisagem do bairro, o que inclui prédios e casas na familiaridade que sua visão adquire aos olhos de visitante cotidiano. Por consequência, cores e demais aparências estão presentes nessa familiaridade e afeto e, assim, numa apreensão de conjunto, concebe-se que os tijolos que formam as paredes estão incluídos no sentimento.
Nelson e Tiago concebem a Restinga como lugar por meio de diferentes lentesParaconceituais.Tuan[(1974)
O conceito de Santos tem a complexidade da consciência do mundo obtida através do lugar e da potência do lugar que se faz consciência crítica da teia de objetos e ações com causa e efeito que, desde fora, atinge todas as variáveis internas.Noentanto, o conceito de Tuan destaca uma placidez que se apresenta tantas vezes num fim de tarde, numa conversa com o dono da quitanda, uma placidez sem a qual algo de essencial se perderá na compreensão do bairro. Porém, o conceito de Santos virá nos trazer a necessária lembrança de que talvez o dono da quitanda pague ao narcotráfico uma taxa de salvo conduto para não ser molestado, e que o traficante, por sua vez, está sujeito a pagar taxa ao policial para que este o deixe “trabalhar”, e que polícia trata branco de um jeito e trata negro de outro jeito. Não obstante, o lugar de Tuan ressaltará a diária vibração de adolescentes no recreio escolar, no pátio, onde não discutem se o funk carioca é o melhor ou se melhor é o pop no inglês que eles não entendem, ambos são ótimos, agitam os corpos, efêmero diário que parece eterno, celebração que se sobrepõe a tudo, paixão por este lugar e por este momento. No entanto, porém, não obstante, a operação de identificar particulares empíricos a enunciados
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Mesmo assim, bairro que é lugar amado para grande parte das dezenas de milhares de pessoas que o habitam, sentimento intenso que contagia professores que moram em outros bairros, mas que ali vivem a docência.
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O conceito elaborado por Santos é um guia poderoso e necessário para montar o quebra-cabeça desse bairro de maioria negra e pobre tantas vezes discriminada por outros habitantes da cidade, que flertam com a fantasia de morar numa metrópole branca e europeia ou ianque. Observe-se, na cidade de Porto Alegre, os nomes ingleses de centenas de restaurantes, bares, lojas, estabelecimentos de estética e de outros serviços, os nomes franceses, italianos e alemães que, juntos, somam outras centenas. E observe-se a ausência de nomes africanos. Qual cor de pele os monumentos quase exclusivamente prestigiam?
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado
O conceito topofílico elaborado por Tuan é imprescindível para compreender o sentimento de muitas pessoas da Restinga pelo bairro – e tremendamente insuficiente.
O conceito de Tuan é insuficiente para compreender o sentimento da Restinga, pois o amor de Tuan não é vigorosamente entranhado de raiva contra a ausência de dignidade, de revolta, luta de classes, luta racial, luta pela igualdade entre gêneros.
Restinga, bairro de tensões decorrentes de disputas de narcotraficantes pelo domínio, de criminalidade entranhada no cotidiano, de lembranças de crimes que ultrapassaram em muito a violência usual. Bairro de pessoas que vão para o trabalho e retornam para casa em ônibus que demonstram o motivo de comparar a superlotação a sardinhas comprimidas dentro de lata.
Retornemos aos tijolos que formam as paredes de prédios e casas de pessoas de pouca renda. É plausível supor que os tijolos não sentem afetos pelas pessoas que têm bem-querer pela paisagem do bairro, o que inclui esses tijolos. Mas recordemos a elefanta mãe, ela desconhecia os conceitos por meio dos quais era observada e comentada, mas vimos que, dependendo de nossa perspectiva – essa perspectiva que ela ignorava –, sua sorte e a do filhote podiam variar da mais nefasta até a continuidade da fruição de sombras refrescantes de árvores, de folhas tenras e suculentas, do gozo do leite da mãe. Assim, para os tijolos. Supomos que eles não retribuem ao nosso sentimento, mas nossos conceitos e o bom afeto (ou desafeto) poderão ter consequências sobre o devir de casas e prédios.Entãoo que dizer se pensarmos na relação não com tijolos, mas com pessoas? Se a operação de identificar particulares a enunciados gerais interfere na existência do objeto quando este nada sabe acerca de conceitos, o que acontece
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Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S OL gerais não cessará de evidenciar que a luminosa apreensão do sensível no lugar em Tuan é prenhe do vazio de uma insuficiência gritante. E que a necessária compreensão complexa e crítica, propiciada pelo lugar em Santos, poderá perder algo da alma se relegar ao posto de secundário o apelo do sensível vivido como fenômeno que pulsa aquém, durante e além em relação à análise da inserção do indivíduo ao macro.
Mas Santos, na verdade, não relega ao posto de secundário o apelo do sensível e das emoções e sentimentos que ao sensível se ligam: para ele, o lugar, ao mesmo tempo em que é o quadro de referência pragmática ao mundo e, deste, recebe solicitações e ordens precisas para ações condicionadas, é também o teatro insubstituível das paixões humanas, geradoras da multiplicidade cotidiana das manifestações de espontaneidade e criatividade.
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A pesquisa geográfica inspirada em Tuan garantirá essa atenção que não será confundida com atenção ao evento, mas, sim, atenção à inscrição do evento como fenômeno nas mentes. Contudo, essa atenção inspirada em Tuan não garantidamente discernirá a outra inscrição: do mundo no lugar, da teia de objetos e ações com causa e efeito e que atinge tanto as variáveis internas já existentes quanto novas que irão se internalizar.
Porém, numa abordagem realizada com apoio no conceito de Santos, não necessariamente essa atenção ao ver, escutar, tocar, sentir e às emoções e aos sentimentos ocorrerá pela via dos modos como os fenômenos inscrevemse nas mentes. Essa atenção pode ocorrer por outras formas de apreensão relacionadas a eventos, o que também trará os afetos ao primeiro plano, mas não garantidamente os modos como os fenômenos estão inscritos nas mentes, com a multiplicidade de seus dizeres e de suas memórias.
Apresentaremos uma explanação sobre a Restinga, sua história geográfica e um apontamento sobre a atual importância das escolas no bairro. Na
Quando o objeto de pesquisa é sujeito que se automovimenta em função da pesquisa desencadeada, ressalta-se a importância de não negar ao objeto, aliás, ao sujeito, a possibilidade de relação com dois conceitos opostos se ambos são acolhidos como necessários pelo sujeito incluso no “objeto” investigado. A oposição entre os dois conceitos, aqui se manifesta como simultânea necessidade de ambos em sua diferença. Ao invés de afastar e engendrar perspectivas estanques na (falta de) relação de uma com a outra, a diferença incita ao diálogo. A tensão da diferença se produz como atração. Ambos os conceitos favorecem a passagem da relação sujeito-objeto para uma relação sujeito-sujeito.
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Pensar sobre conceitos é eixo central para essa prática feita por vários em rede, pois todos os dias faz-se necessário compreender acontecimentos com o auxílio do olhar teórico. No cotidiano educacional, o teórico é desestabilizado pela prática projetada pelo teórico: práxis.
Lugar ou território? A reflexão sobre a experiência dos acontecimentos volta a dizer: ambos. Lugar territorializado. Território lugarizado.
Lugar definido pela pulsação topofílica ou lugar definido pela consciência crítica acerca do mundo que ali se internaliza com suas agruras e potências? Ambos, pois não se trata de tomar partido a priori por um ou por outro, é preciso escutar os “nativos” e, para os pesquisadores intérpretes dessa escuta, suas falas respondem: ambos os conceitos lhes servem para identificar experiências a enunciados e significar de outros modos os acontecimentos de sua vida.
CONTINUADA Qual pesquisa? A referência feita a uma pesquisa não é relativa a algum projeto específico, ainda que um dos autores deste artigo esteja empenhado, no momento, em sua tese de doutorado e o outro, em estar junto na função de orientador. A pesquisa referida é melhor do que uma tese de doutorado: é aquela praticada in/formalmente todos os dias por vários que observam práticas, discutem conceitos e teorias, trocam ideias e propostas, e assim o fazem dentro e fora de salas de aula, de reuniões de conselhos escolares, de gabinetes docentes, dentro e fora dos horários dos contratos de trabalho. Diz respeito principalmente a quem é professor e presença cotidiana no bairro, mas também envolve a quem a acompanha desde outro lugar de escuta.
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Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S quando o objeto responde conscientemente aos conceitos, discute os conceitos, apropria-se ele mesmo, o “objeto”, da operação de discernir com quais enunciados gerais identifica seus eventos particulares e assimila essa reflexão à sua prática?
SIM E NÃO, A RESTINGA NO CENSO DEMOGRÁFICO
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Quanto ao rendimento médio dos responsáveis por domicílios no bairro, os dados informam que este é de 2,10 salários mínimos, enquanto a média municipal de rendimento é de 5,29, o que coloca a Restinga entre as áreas de média mais baixa de Porto Alegre. Em linha geral, essa estatística confirma o vivido dia a dia. Com índice que não chega à metade da média municipal, o bairro está entre os locais mais pobres da cidade. Num país de renda per capita não elevada associada à concentração exacerbada da renda, estar entre os mais pobres significa estar à margem de razoáveis condições de saneamento básico e de outros aspectos relacionados a equipamentos e serviços urbanos.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL sequência, apresentaremos falas de moradores que expressarão a conquista da territorialidade. A territorialidade se encontrará com os dois sentidos de lugar referidos. Retornaremos à questão lugar/território por meio do acréscimo de conceitos de território e territorialidade que auxiliem na compreensão da Restinga. Nesse processo, será situado o grande acontecimento educacional na história e na geografia da comunidade, a implantação do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Restinga. A conquista e a produção continuada do Instituto Federal, Campus da Restinga, tornou-se catalisadora da autoconstrução da comunidade. Seu regimento, conforme publicado em 2021 no site institucional, declara que o Instituto procura promover a formação de cidadãos capazes de enfrentar e superar desigualdades, associadamente à missão de ofertar educação profissional, científica e tecnológica, inclusiva, pública e de qualidade. O site informa que o Campus Restinga, em 2020, contava com 1300 estudantes ativos, distribuídos em doze cursos, em três turnos de oferta de atividades. Cinco dos cursos são de nível superior: Licenciatura em Letras, Português e Espanhol, Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, Tecnologia em Eletrônica Industrial, Tecnologia em Processos Gerenciais e Tecnologia em Gestão Desportiva e de Lazer. Um é de nível técnico subsequente ao ensino médio: Guia de Turismo. Um é de nível técnico concomitante ao ensino médio: Técnico em Redes. Cinco são de nível técnico integrado ao ensino médio. Três destes são: Eletrônica, Informática e Lazer. Os outros dois são voltados à modalidade de educação de jovens e adultos no ensino médio: Agroecologia e Comércio. Além desses doze cursos, o Instituto é polo num curso de especialização a distância: Práticas Assertivas da Educação Profissional Integrada à Educação de Jovens e Adultos.
Os dados do Censo 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística confirmam expectativas e ao mesmo tempo são contestados por moradores e observadores da Restinga.
A REMOÇÃO E DEPOIS A Restinga originou-se, décadas passadas, a partir de outros locais e toponímias.Restinga é termo que designa formações sedimentares arenosas costeiras recentes (período Quaternário) e uma comunidade vegetal adaptada ao solo arenoso e ao ambiente litorâneo, conforme pode ser observado em Ribeiro (2003). A formação de restinga inclui locais nos quais o ambiente litorâneo deixou de ser presente, mas, na escala geológica, correspondem a um passado
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644 Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S Os mesmos dados informam que a população da Restinga era de cerca de 52.000 moradores em 2010 (aproximadamente 3,7% da população municipal, situada em torno de 1.400.00 habitantes). Esse dado é contestado por moradores e observadores, que afirmam números notavelmente superiores para a população da Restinga e indicam o que seria o fator para a diferença entre sua estimativa e a estatística oficial: fragilidades no modo de realização do censo, o que incluiria o receio de vários dos recenseadores em percorrerem todos os recessos do bairro, caracterizado pela presença de criminosos armados que exercem controle territorial.Outrodado desperta indagações. Segundo o censo, 41% dos habitantes da Restinga se autodeclararam negros ou pardos, índice parecido com a média dos demais bairros mais pobres (Arquipélago, Bom Jesus, Cascata, Coronel Aparício Borges, Lomba do Pinheiro e Mário Quintana), enquanto esse porcentual é de apenas 3% para os bairros de maior poder aquisitivo em Porto Alegre (Bela Vista, Boa Vista, Higienópolis, Moinhos de Vento e Mont’Serrat). Esses dados confirmam o esperado: o porcentual de população negra/parda na Restinga é 13,66 vezes maior do que o mesmo índice nos bairros de renda mais elevada. Porém, há indagações relacionadas ao modo como a pesquisa é realizada. Há rumores de que parte dos recenseadores induz a se declararem brancas (na escolha entre branco ou pardo) ou pardas (na escolha entre pardo e nergro) as pessoas em dúvida quanto à autodeclaração. E também é comentário corrente que muitas pessoas de matiz afrodescendente menos ou mais evidente não precisam de indução alheia para se autodeclararem brancas. Tais rumores e comentários indicam que o porcentual de população que poderia se declarar negra talvez seja significativamente maior do que o registrado nas estatísticas. O que nos interessa aqui não é a mensuração exata de porcentuais populacionais quanto à aparência da melanina na pele, mas o registro de como a condição da pessoa negra permanece estigmatizada, ao ponto de tornar questão polêmica o que poderia não ter essa importância – as nuanças da cor da pele – se o contexto social ainda não fosse de dominante desigualdade econômica associada à discriminação racial. Isso nos remete à história geográfica da Restinga.
Chamava-se Ilhota o principal entre os locais anteriores de populações que deram origem ao aglomerado da Restinga. Localizava-se adjacente ao Centro de Porto Alegre. Estudos como os de Araujo (2019), Gamalho (2009), Soster (2001) e Zamboni (2009) reconstituem a história geográfica da transferência populacional da Ilhota para a Restinga. Nos primeiros anos do século 20, sobre terrenos onde hoje estão a Praça Garibaldi e quarteirões inclusos no polígono formado pelas avenidas Venâncio Aires, Aureliano de Figueiredo Pinto, Érico Veríssimo, Ipiranga e Azenha, estendia-se parte da planície de inundação de dois riachos confluentes e com muitas sinuosidades em seus leitos, portanto, com pouca velocidade de vazão. Eram frequentes os alagamentos quando chovia, atingindo ruas da cidade de Porto Alegre, que já se expandira até as cercanias dessa extensa área. Os riachos receberam diferentes nomes ao longo do tempo.
A extensão ainda permanecia sujeita a alagamentos, apesar das obras. Com o passar das décadas, esses terrenos não cobiçados pelos endinheirados nem pelos extratos médios e pobres de renda, passaram a ser ocupados pelos mais pobres que viviam em estado de miséria na cidade crescendo em torno. Constituíramse vilas de malocas em diferentes pontos da extensão, com diferentes nomes, porém, simplificadamente, muitas vezes referidas por um nome único – a Vila da Ilhota, ou, apenas, a Ilhota.
Maloca é uma cabana de uso coletivo que caracteriza o modo de vida de alguns povos indígenas no Brasil. No Rio Grande do Sul, passou a ser usado
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL tão recente que suas feições encontram-se preservadas. Até meados da década de sessenta, século passado, a planície arenosa, que viria a ser transformada em populosa área urbana, caracterizava-se ainda como restinga natural. Ela distava da cidade de Porto Alegre e essa circunstância foi decisiva para que tenha sido repentinamente ocupada por um contingente majoritariamente negro – distância, isto é, uma população incômoda aos olhos da sociedade branca foi removida para lá.
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O principal desses riachos era o Arroio Jacareí, conhecido também como Arroio do Sabão, hoje chamado de Arroio Dilúvio, tendo sido o seu trajeto bastante retificado e alterado em comparação ao leito daquela época. As primeiras obras, visando o redirecionamento e parcial retificação do Arroio Dilúvio, foram realizadas entre 1904 e 1906. Dessas primeiras obras, resultou que um veio remanescente do curso anterior passasse a ser braço morto, com águas paradas, fétidas e infestadas por mosquitos. O leito morto formava uma ilha de pequena dimensão, denominada Ilhota pelos populares, localizada em parte no que hoje é a Praça Garibaldi e na área contígua em direção à atual Avenida Ipiranga.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado popularmente para designar habitações citadinas improvisadas com sobras de madeira, papelão e lona, sendo seus moradores chamados de maloqueiros. No Brasil, diferente do modo como o termo é utilizado na Europa, vila costuma designar, na linguagem popular, um conjunto urbano de casas construídas com esse modo improvisado e precário, ou seja, casebres.
A eles juntavam-se imigrantes rurais resultantes do êxodo, no qual, trabalhadores do campo desde sempre sem terras ou de escassa terra eram dispensados das lavouras por proprietários e capatazes em função da mecanização do campo.Como tempo, muitos dos casebres haviam se encorpado de materiais menos precários e se beneficiado de trabalhos de reconstrução, tais moradias elevando-se em um degrau em sua qualidade: de miseráveis para pobres. O que significava que estava mais enraizada, nos terrenos úmidos, aquela população de biscateiros, empregadas domésticas, atendentes em lojas, funcionários públicos em funções de pouca hierarquia, operários, boêmios e também a parcela de alcoolizados, mendigos, batedores de carteiras, assaltantes e outros personagens incômodos aos olhos, ouvidos, sensibilidade e conveniências da classe média vizinha.
Araujo (2019), Gamalho (2009), Soster (2001) e Zamboni (2009) situam a remoção da Ilhota no contexto da denominada política de higienização das grandes cidades brasileiras, colocada em curso a partir da década de cinquenta não mais de maneira pontual e esporádica, mas de modo sistemático. Em Porto Alegre, as remoções de vilas de malocas, localizadas em várias partes do perímetro da área central expandida, foram justificadas com o lema “Remover para Promover”, o que significava principalmente a promessa da construção de melhores casas, pelo poder público, para os removidos.
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A população das vilas (ou vila, o crescimento dos aglomerados de casebres tendia a fundi-los numa extensão contínua) era constituída pelas segunda, terceira, quarta gerações de descendentes de escravizados. Filhos, netos e bisnetos de despossuídos de terras, rendas e liberdade, sendo eles, os descendentes, também possuidores, de nascença, não de propriedades nem de facilidades, mas do estigma colado à pele pela discriminação exercida pela sociedade branca.
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O grande problema era que, ainda que habitações e condições sanitárias fossem precárias, as vilas estavam próximas aos locais de trabalho (como as
Na década de sessenta, estendiam-se as vilas desses maloqueiros por uma área calculada em vinte e dois hectares, com terrenos úmidos em volta e além da ilhota formada pelos vestígios do antigo braço morto e comprimidos entre dois bairros de extrato médio de renda, Menino Deus e Cidade Baixa, e um bairro de renda entre média e baixa, Azenha.
O contingente removido foi alocado numa chamada vila de transição, na qual, inexistiam infraestruturas e se reproduziram as mesmas condições de esgoto a céu aberto e precariedade habitacional, embora em terrenos secos, mas sem as compensações da proximidade do urbano em torno. Talvez em contextos anteriores tenham existido momentos de alguma verdade na propalada intenção de plano total para a transferência, mas, na conjuntura da execução, as promessas de rápida construção de moradias, de distrito industrial e de implantação de equipamentos e serviços não foram cumpridas.
Em 1970, foram iniciadas e, no ano seguinte, concluídas as obras de um conjunto habitacional. No entanto, mesmo a realização com atraso da promessa de novas habitações se mostrou duvidosa, pois estas precisavam ser compradas por meio de financiamento de longo prazo e com prestações nem tão acessíveis,
Sabe-se que tais promessas foram recebidas com desconfiança pela população da Ilhota – e aqui é importante registrar que, em grande parte, reconstituir essa história somente é possível, segundo Araujo (2019), por pesquisas orais, pois a materialidade documental sofre da mesma condição à qual está sujeita a presença negra em espaços que passaram a ter maior interesse para o branco: o apagamento.Éimportante
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S OL casas de particulares para o trabalho das empregadas domésticas, ou as lojas, para balconistas), e a remoção para promover levaria seus habitantes para longe desses locais, assim como distantes ficariam escolas e postos de saúde, sem mencionar a carência quanto ao transporte coletivo.
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No caso da transferência da populosa Ilhota para a Restinga, envolvia um plano urbano completo, com instalações industriais próximas para gerar empregos, implantação de transporte coletivo, equipamentos e serviços básicos, tais como os relacionados à educação e à saúde.
Em função disso, outros projetos políticos somavam-se à promessa de habitações.
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Em 1967, o exército executou grande transferência populacional para a distante formação de restinga, situada no meio que, então, era rural. A remoção de 1967 foi a mais marcante por suas dimensões (não há certeza quanto ao número de alguns milhares de pessoas que ocupavam os terrenos alagadiços da Ilhota e proximidades) e pelo modo incisivo da ação do exército.
A partir de 1966, momento em que a ditadura militar já se fazia vigente no Brasil, aconteceram parciais remoções dos aglomerados designados, na memória popular oral, tanto por outros nomes como enfeixados pelo nome único de Ilhota.
observar que saneamento e urbanização do próprio local onde a Vila da Ilhota se assentava seria alternativa menos custosa do que o plano completo prometido. No entanto, tal opção aparentemente nunca figurou entre as considerações de sucessivas gestões na prefeitura da cidade.
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Enquanto o poder público esquecia as promessas relacionadas ao novo local, nos mesmos anos subsequentes à retirada da população da Ilhota e vilas próximas, os antigos terrenos alagadiços adjacentes ao perímetro central da cidade foram saneados e urbanizados pelo poder público, o que possibilitou que os terrenos fossem incorporados como áreas de valor para empreendimentos imobiliários. Desse modo, a Vila da Restinga nasceu marcada pelos signos do engodo e do arbítrio.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S mesmo que baixas – baixas, em comparação a quais rendas? Disso resultou a evasão de parte da população transferida e, da qual, não há meios de estimar seu porcentual relativo ao conjunto reassentado, assim como originou a chegada de novos moradores, que, mesmo pobres, tinham como assumir o compromisso das prestações. Por óbvio, os evadidos se defrontaram com o destino de condição marginal mais acentuada do que antes em seu retorno à cidade. Para quem permaneceu, a precariedade anterior foi trocada pela precariedade em outra área, menos úmida, porém, distante da cidade.
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Mais de vinte quilômetros separam a atual Restinga da antiga Ilhota, uma grande distância para aquela época, considerando os limites do urbano, as condições de transporte e a distribuição de equipamentos, serviços e postos de trabalho. Mesmo hoje, a Restinga continua sendo local distante, relativamente não à imutabilidade da medida em quilômetros, mas ao tempo necessário para o deslocamento, uma hora de automóvel, em dia de trânsito com o congestionamento habitual. Mas que pertinência há em falar de deslocamento em automóvel próprio quando a população em foco é a da Restinga? Essa pertinência estaria relacionada apenas a uma minoria, sendo que o congestionamento habitual de carros é devido aos bairros de classe média que se formaram na mesma direção sul. Ônibus é a medida mais pertinente para tempo associado a deslocamento, e não só o tempo é procedente para essa avaliação, mas o conjunto das condições. Assim, podem ser até duas horas para cada uma das duas viagens diárias, ida e volta, de pé, passageiros prensados no ônibus superlotado.
No mapa 1, está delineada a área do atual bairro Restinga e aproximadamente localizada a área da extinta Ilhota e dos outros núcleos de malocas que lhe eramConformepróximos.diz a frase antiga, o tempo não para. No mais de meio século transcorrido desde o fim da Ilhota, a população da Restinga não cessou de aumentar e expandir-se em área ocupada. Em 1990, foi promulgada a lei municipal que oficializou o grande aglomerado como bairro, embora seus moradores, notadamente os mais velhos, ainda se refiram ao local – ou melhor, ao lugar – como a Vila da Restinga, composta pelas chamadas Restinga Velha
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL (crescida a partir da área onde foi originalmente assentado o contingente trazido da Ilhota e de outras vilas) e Restinga Nova (crescida a partir do conjunto habitacional construído em 1970/71). As partes velha e nova foram contornadas por diversos núcleos menores com diferentes graus de precariedade urbana, todos formando o mesmo bairro. A Restinga Nova é a parte que apresenta extrato de renda menos baixo, melhores condições infraestruturais e comércio diversificado, não obstante ser também caracterizada pela pouca renda.
de práticas cotidianas evidencia que as escolas na Restinga são centros onde acontecem e crescem as atenções às identidades culturais. Atenções que incluem simultaneamente o sentimento topofílico pelo lugar e a leitura crítica do mundo a partir do lugar.
QUALIDADE ESCOLAR E QUALIDADE DE VIDA NO ENTORNO, A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE ENTRE ESCOLA E COMUNIDADE
Em cada escola pública brasileira existe a possibilidade para o afloramento de um paroxismo: o drama de professores obstaculizados na tentativa de realizar seu melhor trabalho pela própria estrutura educacional em que estão inseridos. Essa estrutura engloba desde a específica escola em que um determinado professor atua até as condições mais gerais que contextualizam cada local e nele se internalizam. Condições, essas, que incluem a escorchante combinação de salários baixos com jornadas de trabalho excessivas, considerando o número de alunos por turma e o próprio número de turmas sob a responsabilidade de cada professor. Tais condições também envolvem muitas vezes uma multiplicidade de fatores associados à precariedade do entorno socioeconômico da escola.
Pela bibliografia disponível, e mesmo por meio daquilo que a oralidade e a memória dos antigos relatam, parece-nos imprudente, face à insuficiência dos dados, arriscar conjecturas acerca de como seriam as visões políticas da população da Ilhota e demais vilas removidas sobre o seu lugar e a cidade, o país, o Contudo,mundo.os relatos parecem evidenciar que, ao longo do tempo, ocorreu um adensamento da consciência política do povo da Restinga. Isso estaria refletido na mobilização e organização frente às adversas condições estruturais sociais, com o aumento da capacidade reivindicatória para a obtenção de equipamentos e serviços urbanos. Por exemplo, o estudo de Gamalho (2009) indica a multiplicação dos estabelecimentos de ensino na Restinga. Esse mesmo adensamento de consciência política estaria presente nas representações feitas acerca de si mesmos, com a valorização da cultura afrodescendente em suas múltiplas manifestações e consequente elevação de autoestima.Oacompanhamento
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Gadotti (2013) reporta-se ao documento Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005) para vincular a qualidade à quantidade. Se qualidade significa melhorar a vida das pessoas, de todas as pessoas, não há como falar em qualidade se o acesso a esta estiver restrito a uma minoria. E acrescenta: é impossível que a qualidade da educação seja boa se a qualidade de vida de uma comunidade for ruim – adversas, as condições de vida do professor e do aluno: “Não podemos separar a qualidade da educação da qualidade como um todo, como se fosse possível ser de qualidade ao entrar na escola e piorar a qualidade ao sair dela.” (2010, p. 7).
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Um olhar ingênuo e não familiarizado aos dramas do cotidiano docente pode gerar comentários negativos e irrefletidos sobre a falta de qualidade do ensino. Assim como um olhar ardiloso e consciente da própria malícia pode alimentar os mesmos comentários e o lugar-comum que camufla a realidade.
Amor insurgente, de vila Figura 1 – Mapa de localização da Restinga e da região da Ilhota na cidade de Porto Alegre*
Fonte: organizado por Nathany Blank (2021), a partir de IBGE (2019) e PMPA (2021)
*Para a elaboração do mapa de localização da Restinga e da Ilhota na cidade de Porto Alegre, foram utilizados os shapefiles de bairros da cidade de Porto Alegre, disponibilizados pelo site da prefeitura da mesma, e os shapefiles do estado do Rio Grande do Sul, do Brasil e da América Latina, disponibilizados pela base digital do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A localização da Ilhota foi feita, a partir da vetorização manual, utilizando, como base, os mapas históricos da cidade de Porto Alegre. Com essas informações disponíveis, foi realizada a organização dos dados no software ArcGIS 10.3.
Aigner (2003; 2006) Brunel (2006) e Laitano (2003) estão entre autores que demonstram um movimento impulsionado, na Restinga, por diversos sujeitos pedagógicos, vinculados tanto ao ensino no sistema formal quanto à educação não formal. Trata-se de movimento híbrido no encontro entre o institucional e o espontâneo e que produz compreensões do lugar no ambiente educacional (formal ou não formal) e produz o educacional como gerador de estudos, atividades e dizeres que repercutem na comunidade – pesquisas sobre cultura da África negra e manifestações globais e contemporâneas derivadas, análise local de problemas ambientais, relações entre juventude da periferia urbana e circulação na cidade, entre outros focos de atenção. Compreensão do lugar Restinga engloba: caracteres que se apresentam no lugar, a Restinga no contexto da cidade, a cidade no contexto do país, o país no contexto do mundo, a presença do mundo no bairro. A comunidade da Restinga reivindica escolas. E aqui se faz necessário destacar o movimento inverso e recíproco: as escolas da Restinga reivindicam a presença da comunidade e reivindicam a favor das questões da comunidade. A Restinga reivindica Restinga: o distrito industrial que há cinquenta ou sessenta anos foi prometido; mais ônibus, pois viagem em pé e prensado duas vezes por dia é desrespeito à cidadania; mais escolas; respeito racial.
Moll (2006) destaca a emergência de concepções e práticas que fazem da cidade – com suas adversidades, possibilidades e desafios – o próprio espaço pedagógico a ser articulado à sala de aula e à escola. Aponta para a pedagogia que pode acontecer entre professores e alunos que trazem temas, problemas, alternativas e sujeitos da cidade para dentro da sala. A escola pode contribuir para estruturação de projeto pedagógico municipal e as bases podem contribuir para o nacional. Reciprocamente, o congressual em nível mais abrangente pode percorrer o caminho até as partes.
Ao articularmos escola e o pensar sobre a cidade contextualizada no país – por exemplo, na discussão sobre racismo e desigualdade social – torna-se oportuno recordar que o conceito de Santos considera o lugar como espaço de relações atravessadas por múltiplas e imbricadas escalas, teia de objetos e ações com causa e efeito que atinge tanto as variáveis internas já existentes quanto as novas que irão se internalizar.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S OL Há, pois, uma associação profunda entre querer melhorar a escola e querer melhorar o contexto no qual a escola se situa. Em sua resistência e criação de caminhos, professores constroem projetos pedagógicos em níveis variados de abrangência e em diferentes modos de interlocução com os contextos.
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Era um lugar totalmente desconhecido.
– Vão me jogar pra onde? O que eu tenho lá? Não tem nada. Não tem transporte, não tem saúde, não tem segurança, não tem água, não tem luz. Que eu vou fazer naquele lugar? Por que tão me tirando daqui pra aquele lugar?
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EM DUPLO SENTIDO, O SENTIMENTO DE LUGAR LEVA À LUTA
TERRITORIAL; A TERRITORIALIDADE CONQUISTADA LEVA AO SENTIMENTO DE LUGAR, EM DUPLO SENTIDO
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S Hoje, pouco – talvez, quase nada – conseguiremos saber sobre como eram as visões de lugar, cidade, país e mundo das populações removidas da Ilhota e vilas adjacentes. Apagou-se. Hoje, podemos saber sobre a Restinga.
Os diversos depoimentos a seguir são de Maria Clara Cardoso Nunes, Ênio Messias Nunes, Nelson da Silva, Djanira da Conceição, Maria Salete da Silveira Pinto, Maria Guaneci Marques de Ávila, José Luiz Ventura e Claudia Maria da Cruz, moradores de longa ou média data na Restinga e líderes comunitários.
Os três trechos foram extraídos de depoimentos coletados, gravados e cedidos pela historiadora Neila Prestes Araujo, que estava realizando sua pesquisa de mestrado quando se tornou amiga de Tiago e o apresentou para diversas lideranças comunitárias.
O casal Maria Clara Cardoso Nunes e Ênio Messias Nunes foi para a Restinga cinco anos após a chegada dos removidos de 1967. Os primeiros três trechos a seguir podem ser lidos a partir da perspectiva da relação entre desterro, reterritorialização e encontro com os desterrados por outros que também vivem o drama de morar e para lá se dirigem. Vários dos moradores iniciais eram conhecidos do casal, inclusive alguns parentes, e isso, somado à impossibilidade de continuarem a pagar aluguel em endereço próximo ao centro da cidade, determinou sua ida para a área que, naquele momento, já começara a ser chamada de Restinga Velha pelos moradores. Na ocasião da mudança, Maria Clara estava mais convicta do que Ênio em relação a assumir os riscos.
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Este segundo trecho, sobre os acontecimentos no período que antecedeu a ida, quando, em visitas a conhecidos e parentes, foi se consolidando a decisão favorável à mudança para o novo local: Nós vivíamos já aqui dentro. As pessoas, os primeiros que vieram para cá, a gente já tinha essa convivência com eles aqui. Era questão de solidariedade, eles faziam questão da nossa presença aqui. Eu chegava num domingo de tarde, não me acomodava na casa dos meus parentes, eu passeava,
– O senhor não tem água na sua casa? – Não, não tenho.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL conversava com um vizinho, conversava com outro. (Encena, a seguir, a memória de diálogos passados.)
Quase vinte anos depois, Maria Clara e Ênio estavam entre as lideranças comunitárias a lutar pela implantação de instituto federal de ensino na Restinga. E trinta anos após o início das ações em prol do estabelecimento que viria a ser o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, Campus Restinga, rememoram o processo em entrevista para Tiago, que gravou depoimentos dos moradores anteriormente citados.
Maria Clara: Então, foi através da luta. Com o aumento da população da Restinga, nós começamos a pensar no futuro. Segundo grau, faculdade, a coisa toda. O que a gente pensava? População jovem da Restinga está crescendo muito, onde vamos colocar essa juventude pra estudar? Nós
– Vamos procurar uma bica mais próxima da sua casa pro senhor pegar água, né? Então foi criando um vínculo com essas pessoas. Quando eu resolvi vir, achei que aqui era minha identidade, era minha terra. Vou embora pra Restinga, eu falei. Esse aqui (encena o que Ênio dizia antes da mudança).
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Tiago: Como a implantação do campus virou prioridade para vocês?
– Então tá, nós vamos procurar bica mais próxima da sua casa.
Nestes trechos, Maria Clara expõe a mobilização política da comunidade:
– Não, eu não vou pra esse fim de mundo... Porque eu não vou pra lá, porque não sei o quê... Nesses trechos, observamos o quanto foi aflitivo o dilema de ir ou não para o novo local e como elos de solidariedade surgidos em torno de ações concretas e necessárias para a vida, como procurar uma bica de água mais próxima, foram fundamentais para a tomada de decisão de Maria Clara e Ênio. Foram para o novo local porque um vínculo forte formara-se antes mesmo da ida. Esse vínculo era a resposta tanto para quem já se encontrava lá quanto para quem estava a decidir se iria ou não: o vínculo garantia a sobrevivência. De teto e água a outras necessidades, como o trabalho, que depende da possibilidade de ir e vir, a narrativa de Maria Clara testemunha sobre o dia a dia de antes:
Não tinha ônibus. Se a pessoa tinha carro, carreta, carroça, se dizia que tinha condição própria. Mas quem não tinha, tinha que ir até a 38 (parada de ônibus), que é a Belém Novo (linha de ônibus), no entroncamento, pegar, esperar, o Belém Novo, Lami, pra ir pro Centro.
A gente saía, convidava os vizinhos.
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A participação política foi forte pra construção do Instituto Federal. Não foram os políticos, fomos nós, moradores da Restinga.
Sobre os sentimentos pessoais:
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vamos partir pra uma luta maior. Pode ser até que fique no caminho o nosso sonho, mas a gente teve que criar coragem pra lutar. O que vamos fazer? Nós começamos a se inteirar das notícias da construção de institutos federais. Quem sabe a Restinga tem condições de trazer o Instituto Federal?
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Sobre os significados retrospectivo e atual do Instituto:
Isso já virando os anos 2000. Foi muita luta. Bati boca, foi muito interesse político. Só que o nosso interesse é uma política conjunta, política comunitária. E nós sofremos muito por causa disso, porque sempre tem alguém que monta em cima da política comunitária pra poder crescer. Aí nós começamos a fazer a campanha pra reivindicar o nosso anseio, o desejo que era a vinda do Instituto Federal. Batemos aqui de porta em porta, fizemos muitos encontros, muitas reuniões, muitos convites pra as pessoas se engajarem na causa, muitos líderes da redondeza aqui da Restinga. A Restinga já estava com uma quantidade de líderes comunitários que também desejavam o campus. Foi aí que a nossa força cresceu. Não era uma nem duas pessoas, eram centenas a bater de porta em porta.
Tiago: E hoje, qual o sentimento pelo campus?
Sobre a participação da comunidade na organização inicial do Instituto:
Ênio: Revolução e uma grande evolução.
Maria Clara: Olha, como minha casa. Esse é o verdadeiro sentimento, minha casa porque eu gosto de onde tem educação, onde tem rede de ensino, uma construção de ensino bem organizada, bem dirigida.
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Maria Clara: Ah, participamos, a gente achava assim, num primeiro momento, que o curso técnico teria que começar pela informática. Notamos uma revolução muito grande. A informática estava dominando todos os campos de trabalho, então nós queríamos avançar também. Então vamos começar pelo começo, informática. Que daí, depois da informática, vem o próximo curso. Eu vi a maior explosão de interessados.
Maria Clara: Essa revolução, como é que eu vou dizer? É uma revolução do bem. Porque o que não se tinha lá nos anos 70, o que não se acreditava até meados dos 80, aconteceu. E tudo que não se acreditou de repente acontece, é uma revolução. Mas é uma revolução do bem. Junto com essa revolução vem uma evolução muito benéfica pra uma comunidade que necessita mesmo, uma população pobre que não tem condições de ingressar numa faculdade particular, até mesmo não tem condições de conseguir vaga na faculdade pública. Ela agora tem aquilo ali, essa base, tem esse escoro.
Tiago: Hoje, olhando o campus, o que ele significa para vocês?
Tiago: Quando o campus foi construído, como aconteceu a decisão sobre os cursos? Vocês participaram também?
655 Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL
Recordemos que os ônibus demoravam demasiadamente a passar na Restinga. Isso, somado à distância até o Pronto Socorro e a Santa Casa na área central, situa a hipótese “se desse qualquer coisa...”, mencionada por Nelson. Ou seja, ninguém moraria na Restinga se não fosse marginal, que no estereótipo internalizado no senso comum não significa à margem, posto à margem pelo processo social, mas, sim, bandido. A compreensão do peso desse estereótipo demonstra o sentido decisivo contido no simples dizer “mas essa situação foi se modificando”, que atesta a luta da população para a melhoria de suas condições de vida.
Nos depoimentos, podemos observar que há um esforço em busca de conquistar territorialidade, isto é, conquistar expressão para um modo de melhor viver que, para tal, precisa crescer em sua capacidade de ingerência sobre uma parcela do espaço. E observa-se que essa luta tanto fomenta quanto
Nelson da Silva está entre os moradores mais antigos da Restinga, junto com Maria Clara e Ênio. Em entrevista para Tiago, ele se refere ao estigma sofrido pelos primeiros moradores: O pessoal dizia morou na restinga, é marginal. Porque era absolutamente impossível sem uma condução, um posto de saúde não tinha aqui. Se desse qualquer coisa com a tua família, tu tinha que ir até o Pronto Socorro ou até a Santa Casa. Não tinha recurso nenhum, nada. Mas essa situação foi se modificando.
Maria Clara: Olha, porque leva anos e anos pra construir uma casa. Então, tudo que tu coloca na construção da casa, tu valoriza. Até um prego colocado na madeira precisa de cuidado pra que não se deteriore. Tem que fazer manutenção da casa pra ela não se deteriorar. E assim é o Instituto. Eu vou lá até hoje. Eu vou e me sinto no dever de continuar. Dessa história eu faço parte. É uma conquista da nega velha aqui, de outros velhos que estão aí, uns que já partiram. Outros, que ainda estão aí, têm o mesmo sentimento.
Eixo fundamental a ser pensado nesse enunciado que formulamos diz respeito exatamente a esse “menos ou mais consolidado”, principalmente ao “menos”. Trata-se mesmo de território sob essas condições denotativas do relativismo expresso pelo “parcial nível de posse”?
Tiago: A senhora caracteriza como, esse campus que é resultado de trabalho seu e de várias pessoas? A senhora disse que sente como se fosse sua casa. Pode explicar mais o sentimento?
Sendo a territorialidade a expressão de um modo de viver, que, para existir, precisa disputar e conquistar ao menos um parcial nível de posse sobre determinada parcela do espaço, essa parcela de espaço, menor ou maior, pode ser concebida como território – menos ou mais consolidado – do contingente populacional com algum grau de coesão societária e que ali exerce o modo de viver em questão.
A gente fez inúmeras lutas pela Restinga. Quando a gente faz a gente nem se dá conta, né? Agora a gente olha e pensa. Bá, mas não é que a gente foi corajoso? Como é que a gente enfrentou isso? E a gente não tinha medo, a gente ia e fazia. Como tantas lutas também que teve pelos ônibus. A gente deitava no chão. O único jeito que eles arrumaram pra tirar as pessoas de lá foi dando serviço pra quem não tinha.
Para estudar era uma dificuldade, eram dias e dias indo na Secretaria de Educação rezando para conseguir uma vaga e as escolas não davam. (Maria Salete refere-se à busca de vagas para seus filhos)
A gente fez um levantamento superficial e encontramos mais de 700 crianças e adolescentes que estavam fora da escola. Os governos diziam que não, que dentro da Restinga tinha escola pra todo mundo. Nós conseguimos provar que não era verdade. Fizemos três dias de inscrição dentro da escola pra quem estava fora da escola. Fizemos uma vaquinha, pagamos carro
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Então teve essas histórias e eu fico muito feliz hoje. É a concretização de um sonho, que foi a Restinga sair das páginas policiais pra as páginas da educação.
O depoimento de Maria Salete da Silveira Pinto amplia a exposição feita por Djanira sobre o crescendo acontecido na organização da comunidade:
território se conquista. Mais do que a estreiteza do binarismo do “sim, ali existe um território” ou “não, ali não existe um território”, Zambrano propõe atenção para um sentido de pertencimento a uma comunidade que confronta com a ordem de outros e se organiza de acordo com padrões de diferenciação frente a essa ordem confrontada: há território em processo. Observe-se como esta fala de Djanira da Conceição corporifica o comentado por Haesbaert e Zambrano: Às vezes a gente marcava reunião pra sábado, a gente chegava lá e o Centro Administrativo da Restinga estava fechado. Daí, muitas reuniões a gente fazia na rua, a gente se sentava na calçada e a gente fazia. Às vezes o cara do barzinho era parceiro. Vocês sentem aqui, ele dizia pra nós. A gente comprava uma garrafa de café, ficava ali fazendo as reuniões. Teve uma época que os guris da resistência tiveram que ocupar o Centro Administrativo.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado S é alimentada por: 1) sentimento topofílico, 2) consciência do atravessamento do lugar pelos dramas do mundo, e também por suas possibilidades. Há esforços cotidianos por apropriações. Isso nos remete à formulação de Haesbaert (2004) quanto a não se reduzir a noção de território a um binarismo expresso meramente em termos de ter-se, ou não, a hegemonia. Mais do que sim ou não congelados: existe o movimento. Haesbaert refere-se a posses –em muito, simbólicas – que marcam o diverso e o complexo a desestabilizar o estabelecido e a engendrar novas estabilidades associadas a territorializações parciais e Zambranoprovisórias. (2001)sintetiza:
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Haesbaert e Zambrano enfatizam o simbólico contido na posse. A posse veicula o simbólico e é veiculada pelo simbólico. A posse não se reduz ao simbólico e não há posse sem o simbólico. Em todas as falas aqui reproduzidas, a expressão do simbólico no longo processo de posse engloba desde a escolha de palavras para caracterizar relações de solidariedade e confrontação até o que poderia ser sinalizado com a constituição de cursos que estabelecessem tanto oportunidades frente ao trabalho quanto pontes entre sujeitos urbanos e rurais, entre vizinhos e outros que, no sentimento ampliado, também passam a ser próximos. A construção do grande prédio é plena de simbolismos, onde técnica, cuidado ambiental e o dialógico dos seminários se encontram, e o receber “luz de todos os lados” abre para uma multiplicação de significados. O que dizer do ato de fazer o censo dos que estão fora da escola dentro da escola e com isso provar que o discurso oficial era falso e o discurso da comunidade, verdadeiro?
Este outro trecho do depoimento de Maria Salete demonstra a complexidade a que chegou o movimento:
Foi construído de uma forma que gasta quase nada de luz porque recebe luz de todos os lados. Todas essas características foram coisas que se discutiu muito, sabe?
Os depoimentos de Djanira e Maria Salete exemplificam formas diferentes e complementares de posse. Cada uma, ao seu modo e no seu momento, por certo, necessária. Convergentes no objetivo em comum.
Nós fizemos acho que uns três grandes seminários, assim com mais de 150 pessoas participando. Grandes seminários pra decidir que escola nós queríamos pra nossa comunidade. Porque ela tinha que ser diferente. Nós fizemos um levantamento de cursos, pra ver quais eram os cursos mais apropriados pra comunidade. Nós discutimos muito a questão da Restinga ser quase que uma área rural. Então nós temos que atingir esse público que mora em sítios ao redor, com a questão da agroecologia. Cursos que começassem a dar suporte pra comunidade se desenvolver. Então os primeiros cursos saíram desses seminários. E a construção também. Ela tinha que ser uma construção que não gastasse muita luz, que tivesse luminosidade, que tivesse aquela entrada de ar, sabe?
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL de som pra passar na Restinga toda e incentivar as pessoas a ir lá e dizer quem não tinha escola.
“Então tá, nós vamos procurar bica mais próxima da sua casa.” “Não era uma nem duas pessoas, eram centenas a bater de porta em porta.” “O pessoal dizia morou na restinga, é marginal.” “Muitas reuniões a gente fazia na rua, a gente se sentava na calçada e a gente fazia.” “Os guris da resistência tiveram que ocupar.” “A gente deitava no chão.” “Nós conseguimos provar que não era verdade.” “Grandes seminários pra decidir que escola nós queríamos pra nossa
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Por isso que eu digo que, depois da conquista do Campus, veio uma nova luta. Veio a destinação das verbas, o projeto da continuação. Mas tudo teve etapas, não foi estalar os dedos e estava tudo pronto, a gente sabe disso.
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Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL comunidade. Porque ela tinha que ser diferente.” “É a concretização de um sonho, que foi a Restinga sair das páginas policiais para as páginas da educação.” Entendemos que esses são exemplos do empírico guardado em memórias que se manifestam como narrativas da saga comunitária e podem ser identificados à ideia: a posse não se reduz ao simbólico e não há posse sem o simbólico.
Eu não consigo mensurar a satisfação que tenho, de ter lutado muito, de ter apanhado muito, porque a sociedade não entendia. O poder público não entendia a importância dessa escola no nosso bairro.
Há o poder do capital, que, se não confrontado, reduz pessoas a recursos e, por extensão, a sub-recursos e não-recursos, e as pode levar ao desenraizamento absoluto, pois recursos existem para serem alocados e desalocados. Há o poder do Estado em níveis variados e contraditoriamente articulados, que pode reduzir-
Haverá melhor demonstração de sentimento de pertença, destino compartilhado, do que preparar o futuro para os próximos e reconhecer heranças recebidas nos vínculos entre gerações?
O sentir-se pertencente gera perspectivas de destino compartilhado estendidas no tempo e no espaço. Manifestam-se vínculos entre presente, memória e projeto de futuro nestas três falas, respectivamente, de Maria Guaneci Marques de Ávila, José Luiz Ventura e Cláudia Maria da Cruz:
Para isso que foi pensado, para isso que foi defendido com unhas e dentes.
Para Haesbaert (2004), reconhecer o caráter imanente do esforço de territorialização na vida de indivíduos e grupos sociais abre para outro reconhecimento – do potencial desse caráter imanente para perspectivas políticas.Olongo processo de posse que os depoimentos narram, des/contínuo e complexo, com toda sua carga em busca de legitimação simbólica, procura produzir-se como algum contrapoder na medida em que confronta a estrutura social que marginaliza seus sujeitos e mais marginalizaria se, por estes, num crescendo de organização, não fosse confrontada. A diferença de destinos entre as populações da Ilhota e da Restinga evidencia a mudança a que pode chegar esse crescendo de territorialização do contrapoder dos periféricos na arena das negociações com o poder.
Uma coisa bem importante pra comunidade sentir assim, ah, eu sou um exemplo, eu entrei, eu não teria curso superior se não tivesse entrado no IF. Então isso aí mostra que, além de ter uma força de vontade, tu ter o espaço que te aceita abre muitas portas. Isso serve de incentivo pros jovens e pros mais velhos.
Dizendo de modo mais simples e não menos verdadeiro. Por que precisa ser protegido, o lugar de amores e de consciência do mundo precisa afirmar-se posse e diferença em confronto, território. Por que possibilita a vida em amores e consciência do mundo, o território de luta significa-se também como lugar de amores, lugar de consciência do mundo. Lugar e território, ao mesmo tempo.
LUGAR TERRITORIALIZADO; TERRITÓRIO LUGARIZADO
apossar-se ou estar em movimento de posse de um território é condição para a territorialidade como expressão de um viver possibilitado por esse território e, dependendo dos sujeitos desse viver, o território pode passar a significar lugar de referência para sentimento de pertença e de destino compartilhado, lugar no mundo e diante do mundo para o qual os sujeitos afirmam simultaneamente sua diferença e identidade.
Há miséria, barbárie, alienação. Há processo. Há conjunto de questões de luta – há uma mesma/múltipla luta e, nesta, a conquista e produção continuada do Instituto Federal, Campus da Restinga, tornou-se catalisadora da autoconstrução da comunidade.
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A produção de sua territorialidade, expressão do modo de viver num território em processo, vem conduzindo a comunidade da Restinga ao sentimento de lugar em duplo sentido: topofílico e consciência crítica do mundo a partir do lugar. O sentimento de lugar em duplo sentido vem conduzindo a comunidade da Restinga à produção de sua territorialidade.
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL se ou não a aparelho do capital, assim como pode tornar-se, o Estado, a razão de si mesmo a serviço da reprodução de seu poder em separado da sociedade. Há o poder do narcotráfico, que viceja nas feridas do tecido social e explicita a violência como possibilidade sempre latente na constituição do poder.
Ante o afeto pelo lugar e a discriminação que este sofre, poderíamos fazer a pergunta: amor ou indignação? No entanto, a pergunta estaria pressupondo excludentes entre si o amor e a indignação, e o pressuposto é tolo. O amor haverá de indignar-se quando pessoas, unidas por sentimento de pertença, conscientizarem-se umas às outras das agressões ao seu destino compartilhado. Amor indignado. Indignação amorosa.
Lugar territorializado: amor pelo lugar forma perspectivas para a consciência do mundo, consciência do mundo forma perspectivas para o amor pelo lugar, consciência e amor realizam-se na defesa e, portanto, posse do lugar como território a ser produzido por consciência e amor em processo por sujeitos que, em graus variados, compartilham destino associado ao lugar e ao desdobramento do lugar em Territórioterritório.lugarizado:
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado
N S OL
Os autores deste texto avaliam que ilusório e arrogante seria acreditar que esta pergunta possa ser respondida a priori em relação à história e à geografia do mundo, do país, da cidade em movimento.
REFERÊNCIAS AIGNER, Carlos Henrique de Oliveira. Educação Popular em Porto Alegre, geografia e cidadania. In: REGO, Nelson; AIGNER, Carlos: PIRES, Cláudia; LINDAU, Heloísa (org.). Um Pouco do Mundo Cabe nas Mãos, geografizando em educação o local e o global. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.
Nosso objetivo não foi fazer um cotejo entre diversos conceitos acerca de lugar e território – trazíamos definidas duas perspectivas de lugar e uma de território desde o diálogo situado na pesquisa continuada, praticada in/formalmente todos os dias por vários que observam práticas, discutem conceitos e teorias, trocam ideias e propostas, e assim o fazem dentro e fora de salas de aula, de reuniões de conselhos escolares, de gabinetes docentes, dentro e fora dos horários dos contratos de trabalho.
O que ressaltamos é que, ao reivindicarem inclusão cidadã para si (e, em movimento de ampliação, para outros), em alguma pequena medida, os habitantes da Restinga modificam a sociedade que confrontam. E qual a medida para predizer até onde o pequeno poderá crescer?
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As concepções de lugar territorializado e território lugarizado, a partir da experiência da Restinga, não indicam a tentativa de demarcação de linha rígida ao redor de uma área. Os depoimentos demonstram que não se trata de estabelecer muro entre um dentro e um fora: a luta que confronta é também reivindicação pela educação como um dos fatores – fator fundamental – para a inserção cidadã da comunidade na cidade, no país, no mundo. Há afirmação de sua diferença diante da história e da geografia que, desde muito antes da Ilhota e desde muito além do espaço da antiga vila dos maloqueiros, produzem diáspora e marginalidade. Mas essa afirmação da diferença é ao mesmo tempo reivindicação pelo que lhes poderá incluir (eles acreditam) de outro modo –digno – na sociedade que confrontam. O quanto de ilusão eles talvez carreguem?
AIGNER, Carlos Henrique de Oliveira. Geografia e Educação Ambiental: construindo a cidadania a partir da valorização do lugar na Escola de Municipal Professor Larry
Se a operação de identificar particulares a enunciados gerais interfere na existência do objeto quando este nada sabe acerca de conceitos, o que acontece quando o “objeto”, isto é, o sujeito responde conscientemente aos conceitos, discute os conceitos, apropria-se ele mesmo da operação de discernir com quais enunciados gerais identifica seus eventos particulares e assimila essa reflexão à sua prática?
Amor insurgente, de vila de maloqueiros a lugar territorializado, território lugarizado N S OL Ribeiro Alves. In: REGO, Nelson; MOLL, Jaqueline; AIGNER, Carlos (org.). Saberes e Práticas na Construção de Sujeitos e Espaços Sociais. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006.
BRUNEL, Carmen. Os “Estranhos” na Escola e na Cidade: reflexo de um fenômeno estigmatizante que afeta os jovens que habitam a periferia das grandes cidades. In: REGO, Nelson; MOLL, Jaqueline; AIGNER, Carlos (org.). Saberes e Práticas na Construção de Sujeitos e Espaços Sociais. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2006. GADOTTI, Moacir. Qualidade na Educação: uma nova abordagem. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2010.
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REFERÊNCIAS CARTOGRÁFICAS
Foto: Cláudia Pires, 2021
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
Ênio MessiasAS VÁRIAS FACES DA NEGRA PORTO ALEGRE NAS TRAJETÓRIAS DE MARIA CLARA E DE ÊNIO DA RESTINGA *
* Entrevista realizada em agosto de 2020 aos integrantes do NEGA/UFRG: Cláudia Luisa Zeferino Pires, Lara Machado Bitencourt, Marina Vargas Leonhardt e Mariana Nicolini Acosta
NUNES Maria Clara NUNES
COMO CITAR: NUNES, Ênio Messias; NUNES, Maria Clara. As várias faces da negra Porto Alegre nas trajetórias de Maria Clara e de Ênio da Restinga. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 665-669 665665
“O meu encontro com o Ênio, digamos, foi um encontro por acaso; um acaso do destino. Nos encontramos, pela primeira vez, em frente ao Pronto-Socorro. Ele saía do mesmo evento que eu, mas, no evento, a gente não tinha se visto. Encontramo-nos, mesmo, na frente do Pronto-Socorro. Ele se encantou com a morena, aqui, e perguntou se podia me acompanhar, até a minha residência. Eu era guria; tinha uns 17 anos, na época, e vinha passando por ali, porque, naquela época, eu morava perto, na própria Av. Venâncio Aires, onde fica o Pronto-Socorro. Em resumo, o Ênio me acompanhou até a minha residência, e, dali, selamos um relacionamento, que temos, até hoje. Já são 52 anos de vida a dois. Foi um encontro do destino, que parece que veio tudo certinho.”
O AMOR QUE É VERDADEIRO, CADA DIA AUMENTA MAIS
“Eu sou Ênio Messias Nunes, natural de Cachoeira do Sul, nascido no dia 4 de julho do ano de 1941. Atualmente, moro na Restinga, onde resido há 46 anos. E eu, sou a Maria Clara, tenho 73 anos. Nasci em Porto Alegre e também resido na Restinga há 46 anos.”
1 Primeira tribo carnavalesca de Porto Alegre. Hélio Dias, o Seu Hélio, citado por Ênio, foi um dos fundadores do Caetés, em 1946.
“Antes de morar na Restinga, eu morei, ali, na Rua Barão do Gravataí; depois, na Rua Saldanha Marinho, na Rua Santana, na Rua São Francisco, em frente ao Bailão do Chiquinho. Depois, ainda morei no bairro Bom Jesus e em Viamão. Só, então, eu vim para a Restinga. Em 1956, aos 16 anos, já estava morando, aqui, em Porto Alegre, mas, antes, eu vinha seguido à cidade com minha falecida avó. Vim morar, em definitivo, aqui, em Porto Alegre, em 1956. Fui fazer Senai e acabei morando no Areal da Baronesa, na Rua Barão do Gravataí. Eu comecei a frequentar o Carnaval da Baronesa, depois de 1953, quando ainda tinha de 13 para 14 anos. Da Baronesa, eu recordo, também, do tempo do campo do Grilo e da saída do bloco de Carnaval, que tinha na quarta-feira de cinzas, que também chamávamos de enterro dos ossos. Nesse dia, saia o pessoal do Que Sobrou da Luta. Reunia-se uma turma, cada um com seus instrumentos, que saía da Baronesa e ia tocando, até a Santana. Na Baronesa, eu acompanhei os primeiros anos da Imperadores do Samba, porque os primeiros ensaios da Imperadores saiam, ali, da Travessa Pesqueiro. Eu morei na casa do primeiro Rei Momo Negro de Porto Alegre, o Rei Lelé. O Lelé foi meu cunhado e era ele que agilizava o Carnaval daquela zona. Ali, tinha, também, o Seu Hélio, que faleceu há pouco tempo, mas era carnavalesco e foi um dos fundadores dos “Caeté”1, que era na esquina da Av. Getúlio Vargas com a Barão do Gravataí. O sobradinho existe, até hoje, ao lado da Praça Garibaldi. Tinha, também, o clube “Nós os Democratas” na continuação da Rua Olavo Bilac.
666 As várias faces da negra Porto Alegre nas trajetórias de Maria Clara e de Ênio da Restinga N S OL ÊNIO E AS LEMBRANÇAS DA ILHOTA, A PARTIR DO AREAL DA BARONESA
Anteriormente, nas ruas Barão e Baronesa do Gravataí, não tinha calçamento, então o pessoal das muambas levantava muita poeira. Isso, no tempo em que as escolas iam, com seus “cofrezinhos”, fazer visitas, para coletar um dinheirinho da vizinhança, a fim de melhorar as fantasias. Na esquina entre essas duas ruas, tinha um coreto, em que ficava o bar da Dona Alaíde, e, mais para a frente, onde, hoje, fica a igreja do Pão dos Pobres, era o campo do Grilo, que ficava onde era o Bar do Carvalho, em frente a Dona Alaíde. Onde hoje tem o supermercado do Menino Deus, era o campo de futebol do Nacional e, depois dali, tinha o campo dos Eucaliptos, 80% do pessoal da Ilhota e da Baronesa era colorado e os que não eram, eram gremistas, como o Lupicínio Rodrigues, que fez o hino do Grêmio, porque o bonde ‘tava em greve e o pessoal saiu do bar, que eles frequentavam, em torno da praça Garibaldi, e foram a pé, até o Olímpico. Foi assim que ele fez o hino do Grêmio.
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2 A expressão se refere, tanto à expansão territorial de Porto Alegre, como, também, à Restinga, bairro do extremo Sul de Porto Alegre, uma cidade à parte e independente da cidade de Porto Alegre. Devido à distância de 20 km entre os bairros Centro e Restinga, a falta de infraestrutura inicial do bairro e as lutas dos moradores, para a implementação dos aparelhos urbanos básicos de educação, de transporte e de saúde, a Restinga é, também, um dos maiores bairros, em extensão, de Porto Alegre, contando com 38,56 km², o equivalente a 8,10% da área do município.
As várias faces da negra Porto Alegre nas trajetórias de Maria Clara e de Ênio da Restinga CLARA E A CIDADE QUILOMBOLA CHAMADA RESTINGA
N S OL MARIA
Da Ilhota, propriamente, eu não tenho muita lembrança, mas, quando eu era criança e morava na Lomba do Asseio, no Cristal. Veja bem: o bairro não tinha nem nome; era chamado de Lomba do Asseio. Nós passávamos por ali, mas era um pouco mais distante da região, mesmo, da Ilhota. Nós passávamos pela ponte de pedra, em que corria o riachinho da Ipiranga. Eu digo nós, porque eu andava com o pai e com a mãe, quando vínhamos para o Centro, por um motivo ou outro. Mas eu tenho, assim, uma vaga lembrança dos casebres da Ilhota, que, sinceramente, hoje, eu entendo que era uma miséria. Mas, naquela época, eu não entendia assim; para mim, tudo aquilo era normal.
Quando nós tivemos as primeiras reuniões, organizadas aqui na comunidade, eu falei, em uma delas, que a Restinga era um quilombo: uma cidade, dentro da cidade... hoje, ainda tem gente que questiona: “Mas como, a Restinga é uma cidade?” Me irritam, essas pessoas, que não enxergam a Restinga como um quilombo/cidade.
Eu também fiz a minha parte, mas a nossa luta foi muito grande, muito sofrida. Eu penso na história dos quilombos, lá atrás; faz com que eu me questione.
Eu costumo dizer que nós, quando viemos para cá, só tínhamos o Sol e a Lua, e o Sol nasceu para todos, mas a sombra era para poucos. Houve muitas pessoas, com que eu tive contato, que vieram ajudar a cidade a crescer2; não tiveram medo do futuro e arregaçaram as mangas e foram à luta. São pessoas, que, hoje, eu fico na plateia, aplaudindo. Não falo por mim, pois eu não fiz mais do que a minha obrigação, ao me juntar a esse povo e a ajudar a erguer essa cidade. Esse lugar me inspirou a vontade de lutar e de ajudar nosso povo.
Me faz pensar que essas pessoas têm vergonha de ser deste quilombo. Quilombeiros, digamos assim. Nós, os primeiros habitantes, não temos nenhuma vergonha, nenhum constrangimento, de dizer que a Restinga
Quando nós viemos para a Restinga, teve muitas e muitas histórias de pessoas, que foram removidas, e todo o povo antigo sabe que a remoção foi muito triste e angustiante, pois, da maneira como foi feita, a remoção, ficamos sem saber o que aconteceria, daí para frente. Esse povo todo não foi consultado e nunca foi chamado para ser ouvido pelos governantes, que organizaram a remoção. Por que motivo as pessoas da Ilhota, da Colônia Africana, da Araclândia e de tantas outras comunidades centrais, viriam para um lugar tão distante, sem planejamento de nada, sem nenhuma condição básica de sobrevivência?
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As várias faces da negra Porto Alegre nas trajetórias de Maria Clara e de Ênio da Restinga N S OL é um quilombo; é um quilombo organizado e urbanizado. Nós ajudamos no progresso desse quilombo e graças a todo esse povo, heróis da resistência, hoje, somos o que somos.
Pessoalmente,
Nós somos uma cidade, que podia ser um pouco melhor, mas que, em vista do que era, antes, do padecimento que tínhamos, hoje, nós vivemos num paraíso; meio paraíso, digamos assim. Mas nós estamos bem; criamos uma cidade do futuro, para os jovens, mesmo, que tenha muitos que não dão valor a toda a história da Restinga. Essa criação de progresso, tem uns, que não dão valor para a riqueza desta história, mas os antigos dão e, enquanto a gente tiver força, vida e saúde, para continuar lutando, a gente vai continuar lutando. E a Restinga é um quilombo, sim! É um quilombo urbanizado. Tanto é que, num censo, que houve, um tempo atrás, descobriram que a pele da Restinga é quase totalmente negra. Eu me sinto orgulhosa; me sinto muito orgulhosa, em ser considerada uma restingueira, de ter a pele negra, como a maioria da população da Restinga, que, além de sofrida, é negra, e a história não podia ser melhor e mais bonita do que a da nossa Restinga, dessa gente toda, que veio da Ilhota, da Santa Luzia, da Conceição e de outras muitas comunidades. Foi uma infinidade de vilas, que veio se instalar, aqui, na Restinga, que fizeram dessa cidade a sua base, a sua vida, a sua história. toda essa luta só enche de orgulho ao meu velho e a mim, que estamos há 46 anos na Restinga. Ficamos cheios de orgulho e de agradecimento por todo esse povo, que veio nos dar força, principalmente, a nós, que sempre estivemos à frente das lutas comunitárias. Eles deixavam nas nossas mãos o poder de resolver as coisas, mas eles ficavam por trás, dando força e a benção e nos aplaudindo de pé. Isso é muito bom! É gratificante e, se tivesse que fazer tudo de novo, eu faria, com muita força.
N OL SABERES E FAZERES QUILOMBOLAS: UMA AGENDA PARA EDUCAÇÃO
Seguimos perguntando, aos que nos acompanham: o que vocês seriam capazes de fazer por amor a uma pessoa querida? Por amor a seus filhos e as suas filhas? O amor é um sentimento político, com força revolucionária – como lembram bell hooks e Paulo Freire –, mas, na lógica capitalista, sempre foi rebaixado, como elemento pouco racional. Quando surge, no desabafo de mães quilombolas, o amor tem a força de se interpor a decisões ilegítimas, de clamar, para que “salvar o ano letivo” não seja mais importante do que salvar a vida das comunidades.
MANIFESTO POR AMOR AOS NOSSOS FILHOS E AS NOSSAS FILHAS
Porque não é possível conceber uma criança quilombola como uma partícula, a ser isolada em um quarto só seu. Uma criança quilombola é agente importante e constitutivo de uma trama comunitária e mandá-la à escola implica mandar um quilombo inteiro, junto com ela!
O que todo mundo consegue perceber nesta crise planetária é a facilidade, com que este vírus poderá ser utilizado em uma guerra biológica. Para isso, necessita, apenas, que as medidas políticas de extermínio em massa de populações, que estão em curso e aquelas que já se apresentam no horizonte, não sejam barradas. No interior de um sistema econômico, que já estava em crise, por seus próprios mecanismos de funcionamento, esse sacrifício é estratégico, já que ele necessita de que “alguns morram” para seguir vigente. Como disse o chefe da nação, “[...] alguns vão morrer [...] e daí?”. Sabemos que estes “alguns” serão muitos e que serão muitos dos nossos. As pessoas que amamos: crianças, jovens, adultos, idosos, são consideradas, pelo sistema vigente, mão de obra barata, que poderá ser substituída pelo automatismo da Indústria 4.0. QUILOMBOLAS
QUILOMBOLA RS
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
Acredito que nenhuma mãe, nenhum pai, vai querer colocar a vida dos filhos em risco; muitos deles são asmáticos ou têm outra patologia crônica e fazem parte do grupo de risco; o meu filho é asmático e ele não volta, em junho. Tamy – mãe no Quilombo dos Machado “Os governantes não pensam na saúde dos nossos filhos. Se pensassem, não escolheriam estas medidas. Nós pensamos, porque temos amor pelos nossos filhos. Geneci – mãe no Quilombo Flores
COMO CITAR:
FRENTE
FRENTE QUILOMBOLA RS. Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas. In: Pires, Cláudia Luísa Zeferino; Bitencourt, Lara Machado (orgs). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 671-679 671671
Levando em conta o art. 227 da Constituição Federal de 1988, que afirma ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e às convivências familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, de discriminação, de exploração, de violência, de crueldade e de opressão, e considerando, também, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que nos assegura que a responsabilidade pela vida das crianças e dos adolescentes é da sociedade, da família e do Estado, bem como o disposto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que afirma, contundentemente, que, para qualquer ação, que incida sobre as dinâmicas dos territórios de comunidades tradicionais, que dizem respeito à vida, há a necessidade de consulta às comunidades, e entendendo que, em Porto Alegre, as medidas de educação, de saúde e de território são realizadas, há tempos, sem consulta prévia às comunidades, mas que o momento acarreta responsabilidades de vida e de morte muito acentuadas e que a vida das pessoas, dos filhos e das filhas, não é negociável – como esbraveja a mãe quilombola –, problematizamos a opção adotada pelo sistema educacional, relativamente às nossas crianças, afirmando que tais medidas evidenciam o modo, pelo qual a estrutura institucional racista – que é formada por pessoas – é direcionada contra nós. As atividades do ensino remoto, tentativas de uma educação a distância, passam longe das nossas realidades nos territórios. Os gestores da educação e os professores da rede pública parecem desconhecer ou desconsiderar essas realidades, ao proporem atividades que necessitam largamente de Internet e de computadores e de celulares eficientes, de impressoras, etc.
673 N S OLManifesto por amor aosossos filhos e as nossas filhas
Reforçamos que não estamos perdendo pessoas, em termos numéricos, apenas; estamos perdendo pessoas, sem a possibilidade de despedidas justas e honestas às histórias de vida dos entes queridos, dignos do nosso amor. Nossas crianças são nossa força e nossa potência; são o que temos de mais precioso e de mais sagrado. Sendo assim, colocando em risco uma criança quilombola, coloca-se em perigo a continuidade de uma comunidade. Mas, talvez, seja exatamente esse, o plano. Quando foi anunciada, no final de abril, a possibilidade de retorno às aulas em junho de 2020, bateu-nos um sentimento de revolta: Não podemos arriscar a vida deles, eles não irão fazer distanciamento social e muito menos ficar o período todo de máscaras. Acorda, seu governador idiota, não existe possibilidade de retorno, vai ser um caos! Ano letivo se recupera, a vida do meu filho não é negociável.
674 Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas N S OL Figura 1 – Montagem de imagens de famílias de alguns dos quilombos de Porto Alegre Fonte: arquivos da Frente Quilombola do RS, do Quilombo dos Flores; Quilombo dos Machado; Quilombo Lemos (s/d)
675 Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas N S OL
1. As aulas não podem voltar, antes de que as escolas sejam espaços seguros e de que as pessoas não corram riscos, nesta pandemia, e antes de que se tenha uma solução coerente com a vida, a partir da área da saúde. Antes disso, as crianças quilombolas não voltarão, pois o quilombo todo estará em perigo, se isso acontecer.
Tão grave quanto o que foi relatado, até aqui, é a qualidade das atividades, que chegam às nossas casas. Estas atividades precisam do nosso suporte, mas não levam em consideração as nossas experiências, para que possamos contribuir com o processo de aprendizagem de nossos filhos. As atividades são segmentadas, como se o aprender fosse fragmentado, como se a vida fosse fragmentada! Parece que os professores não conversam entre si! Também nos manifestamos contra o volume quantitativo dessas tarefas, que acaba estressando e não contribuindo para as rotinas das crianças, que estão em casa. Elas, muitas vezes, se desinteressam pelas tarefas atribuídas, quando poderiam estar tomando esse tempo para aprender, para questionar e para refletir sobre outras coisas, mais conectadas a este momento tão difícil.
676
N S OL
Afirmamos o posicionamento em nota pública do CPERS-Sindicato, ao anunciar que “[...] abrir as escolas neste momento seria armar uma bomba biológica em cada região do estado”. Estamos de acordo com a União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME-RS) que entende que “A vida vem em primeiro lugar.” Compreendemos, também, que há toda uma rede profissional, que precisa ser manejada, para que o atendimento educacional se efetive. O posicionamento da Famurs alerta que “[...] para tomar a decisão de retorno, será preciso ter critérios técnicos, que garantam a preservação da comunidade escolar e que contribuam para a redução da velocidade de disseminação do vírus”. A União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME/RS) se posiciona a favor da manutenção da suspensão das atividades escolares para todas as redes (municipal, estadual e privadas): [...] amparado pelas orientações dos órgãos de saúde, pois não há como garantir a segurança de alunos, dos profissionais da área da educação e dos familiares, tendo em vista que não há como manter a distância recomendável entre os alunos em sala de aula ou a higienização permanente dos espaços escolares Eles ainda destacam que “[...] a nível de estado ou país, não temos um protocolo de ação, com critérios que possam garantir a saúde da comunidade escolar”.Diante do exposto, destacamos nossos posicionamentos:
Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas
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N S OL
Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas
Assinam este manifesto: Mães e pais dos territórios, que constroem a Frente Quilombola do RS Quilombo da Família Silva Quilombo Areal da Baronesa Quilombo da Família Fidélix Quilombo dos Alpes Quilombo dos Machado Quilombo da Família Flores Quilombo da Família Lemos Quilombo Ylê de Oxum e Ossanha – Mãe Paty
2. Permanecendo em casa, as atividades atribuídas não podem seguir do modo como vem acontecendo, sem levar em conta a infraestrutura real das comunidades, sem consultá-las em momento algum, contrariando, não, apenas, as manifestações de inúmeros órgãos competentes, mas deixando de levar em conta a saúde emocional do nosso território, submetendo crianças, a nós e às comunidades a grandes transtornos.
Se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo! Reparações históricas e humanitárias, pelos crimes contra as nossas humanidades! Ficaremos vivas e vivos, por amor aos nossos filhos e as nossas filhas!
O modelo, até então, adotado só amplifica as injustiças.
3. Nossos antepassados construíram este estado, com seu sangue e com seu suor, passaram por muitos momentos de crise, enfrentaram muitas doenças e lutaram em muitas guerras. Em pleno século XXI, não aceitaremos, em nome de suas memórias e por amor aos nossos familiares, esta medida de extermínio das comunidades quilombolas, negras, de periferias. 4. Apoiamos a todos e a todas profissionais da educação, da saúde e das áreas fundamentais, que precisam seguir funcionando, bem como trabalhadores e trabalhadoras da limpeza, dos supermercados e outros; apoiamos aos que compreendem o que está realmente em jogo, a partir das ações irresponsáveis do presidente, do anúncio do governador do estado e das medidas adotadas pelo prefeito. A saúde das pessoas e das comunidades deve ser a prioridade neste momento.
Núcleo de Estudo Geografia e Ambiente (NEGA/UFRGS)
Movimento Popular Pedagógico Escola do Povo Movimento em Defesa da Educação Sindicato dos Municipários de Porto Alegre (Simpa)
Laboratório Urgente de Teoria Armada (LUTA) (NEABI/UFRGS)
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Apoiam esse manifesto: Centro de Referência Afroindígena Ocupação Baronesa Associação Cultural Capoeira Angola Rabo de Arraia-ACCARA-Mestre UtopiaRatinhoe Libertação do Povo Negro (OLPN)
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Coletivo Ninguém solta a mão, resistindo pela educação Coletivo de Professoras e Professores da disciplina Encontro de Saberes/ InstitutoUFRGS
Coletivo Alicerce Amigos da Terra Brasil (ATBR)
Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE/UFRGS)
OrganizaçãoLutapara
Grupo de Trabalho Autonomias, Territórios Y Memorias: Geopolíticas en Disputa (Conselho Latinoamericano de Ciencias Sociales)
Quilombo da Anastácia Coletivo Negro Ubuntu ConselhoUkama de Educação Popular da América Latina e Caribe Associação dos Supervisores de Educação do Estado do Rio Grande do Sul Café(ASSER)comPaulo Freire
Comitê Corona Viamão Escritório Modelo da UFRGS Urbanismo contra o Corona RS Professorxs pela Democracia da UFRGS
Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas
África-Américas (IAFRA) Núcleo de estudos afrobrasileiros e indígenas do IFSUL – Campus Sapucaia do FórumSul de EJA do RS (FEJARS)
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BRASIL. Presidência da República. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm. Acesso em: 17 out. 2020.
Manifesto por amor aos nossos filhos e as nossas filhas S OL Sindicato dos artistas e técnicos em espetáculos de diversão do Rio Grande do Sul (SATED/RS) Fórum de Ação Permanente da Cultura Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito Quilombo Macanudos Coletivo quilombola da FURG de Educação e Relações de Gênero (GEERGE/UFRGS) Intersindical Porto Alegre, outono de 2020.
GrupoNEABI/FURGdeEstudos
da República. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/ decreto/d5051.htm. Acesso em: 17 out. 2020. AULAS da rede pública estadual do RS serão retomadas somente a partir de junho. Gaúcha ZH. Disponível em: html.publica-estadual-do-rs-serao-retomadas-somente-a-partir-de-junho-ck9n3bvnr006m015njwxhhjn5.https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/04/aulas-da-rede-Acessoem:17out.2020.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 17 out. BRASIL.2020.Presidência
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COMO CITAR: GOMES, Vanderlei de Paula. A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 680-690 680680
sobrevivência
A CIDADE QUE APRENDE SABERES DA
GOMES
A proposição dessa escrita busca relatar duas formas diferentes de entender a visitação ao Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, ambas tendo como eixo de compreensão principal, os aprendizados no contato com a mestra griô Janja – Rosângela Ellias – principal liderança de resistência e sabedoria sobre a cultura do quilombo. O público visitante, em maior grau de vivência na experiência de condução, é composto por professores e professoras da rede municipal de ensino de Porto Alegre, levados ao Quilombo dos Alpes em ação via Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, quando vivi a condição de Assessor de Educação das Relações Étnico-Raciais, no período entre os anos de 2011 e 2015. Outro público, conforme relatado em visita, foram crianças de um projeto social de artes do maracatu, denominado Tambores da Vila, do qual faço parte da coordenação, desde o ano de 2013. Para levar professores e professoras, inicialmente, tive que conhecer um pouco o Quilombo dos Alpes. Meus contatos com o Núcleo de Estudos, Geografia e Ambiente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEGA/POSGea/ UFRGS) foram fundamentais. Nosso encontro não foi agendado, pois ocorreu no próprio quilombo, em atividades de trabalho com professores visitantes, que já acessavam o Quilombo dos Alpes, através da escola próxima, a EMEF GabrielApósObino.acessar o território do Quilombo dos Alpes, não na totalidade de sua extensão, mas, principalmente, no aconchego de seu acolhimento na pessoa de mestra Janja, por sua forma de nos mostrar a toponímia, a história de sua ancestral, D. Edwirges e as estratégias de construção de casas, moradias e lugares de daquela mulher, sua mãe. Depois dessa pequena introdução entendi que levar professores e professoras ao Quilombo dos Alpes poderia ser de extrema importância para desmistificarmos muitos estereótipos que temos, enquanto educadores, sobre os significados e a diversidade de entendimentos sobre as formas de viver, existentes nos Quilombos: desde os Alpes até aqueles que investigamos, mesmo de maneiras distantes da vivência presencial. QUILOMBOLAS
Vanderlei de Paula
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
QUILOMBOQUILOMBOLAORALIDADEDODOSALPES
A partir do princípio de que “[…] meu mapa são minhas pernas”, marca da personalidade da Mestra Janja, iniciávamos nossa caminhada nas trilhas do Quilombo dos Alpes. Uma sensação muito interessante, que vivíamos juntos. era o fato de que estávamos em uma aula, uma turma constituída apenas por professores e professoras, lecionada por uma mestra griô de um quilombo urbano de Porto Alegre, que trabalhava nossos aprendizados, a partir de sua história de vida. Esses aspectos, da vivência educativa no quilombo dos Alpes, que não eram lembrados, diretamente, constituíam-se em perspectivas, que se abriam e ajudavam-me a ampliar a divulgação sobre o conceito da pedagogia griô, com a prova concreta na autoridade de ensino realizada junto à mestra Janja, nas conversas e caminhadas pelo mapa coparticipativo.
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A forma de vivência com os professores assume o envolvimento corporal como um todo na caminhada e, assim, ocorrem várias maneiras de propagar as amenidades subjetivas da amizade e do afeto nas relações interpessoais entre os
Os encontros com professores e professoras no quilombo, que iniciavam pela manhã apresentavam, como recepção, um bom café caseiro bem completo, considerando as demais formações de professores e professoras dessa natureza, nas quais eu me fazia presente como Assessor de Educação das Relações ÉtnicoRaciais, Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre. Depois de passar por um almoço na sede da Associação Quilombo dos Alpes D. Edwirges (o Octógono Dejanira) os encontros seguiam pela tarde, quando, em algumas visitações, até fazermos uma roda de troca de saberes entre docentes municipais de Porto Alegre e do NEGA/UFRGS e lideranças do Quilombo dos Alpes.
A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes A visita de educadores tinha o objetivo de proporcionar o contato, principalmente, com as demandas elencadas e catalogadas no trabalho de mestra Janja na prestação de suas informações à construção do mapa de trilhas, denominado mapa copartricipativo,construído em parceria com o pessoal do NEGA/UFRGS. Esse mapa cartografou, a partir de caminhadas e de escutas da mestra Janja e outras pessoas do Quilombo dos Alpes, pontos significativos para a população do quilombo. Essas marcas constituíram algumas trilhas, que fizeram parte do mapa coparticipativo. A visitação de professores era conduzida pela própria mestra Janja. Na maior parte dos encontros que tivemos, a sabedoria da mestra sobre as marcas do lugar e da própria paisagem e seus conhecimentos sobre a vegetação, com expressão de grande sabedoria sobre medicina tradicional, demonstrada diretamente na identificação das ervas existentes na trilha, que a mestra percorria nos morros, matos e nas picadas do Quilombo dos Alpes: as várias formas de nos comunicarmos com a mestra Janja, em sua caminhada, aliada à sua maneira de nos mostrar ruínas, vegetações e a própria toponímia do território do Quilombo constituía a vivência proporcionada a professores, professoras e a outros visitantes.
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Dentro dos aspectos que ligam os professores à prática de aprendizados com uma mestra griô (Janja), a vivência se ligava a experiências para além do campo teórico conceitual de assimilação do aprendizado e dos elementos vivenciais, que consolidam a configuração das representatividades cultural e social de um mestre ou mestra de saberes populares de tradição oral. O sentimento de aprender, que se propaga, não exatamente, no momento das vivências, mas em constatações, contidas nos relatos de fatos da história da mestra Janja, assim como nas de outros mestres e mestras griôs. No caso da mestra Janja, a vivência mostra lugares e formações de ruínas existentes, além de seus saberes sobre os diversos tipos de ervas e de plantas do campo, elementos que se constituem em provas históricas e geográficas.
Depois da maioria das vivências, muitos dos professores e professoras, que encontramos em outras formações da assessoria de educação das relações étnicoraciais, afirmavam o reconhecimento dos saberes e dos fazeres vivenciados com a mestra griô dos Alpes. Essas observações, a partir do meu lugar de trabalho, na assessoria, vieram a constituir outra forma de avaliação a afirmativas e conceitos 1 A Lei n º 11.645/2008 altera a Lei nº 9.394/1996, modificada pela Lei nº10.639/2003, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e cultura afro-brasileira e indígena”http://www.planalto.gov.br/ccivil_03_Ato2007-2010/2008/Lei/ L11645.htn. Acesso em: 18 mar. 22020
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A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes S participantes do roteiro de visitas. Em um percurso que, normalmente, durava de cinquenta minutos a uma hora e meia, o convívio tornava-se propício à prática da escuta: em cada parada da mestra Janja, no momento de responder aos questionamentos, os docentes, também conhecedores de algumas ervas ou vegetações, aproveitavam para comprovar as formas de utilização desses vegetais nos tratamentos de saúde ou na utilização de ornamentos florais. A vivência também proporciona um deslumbramento com a paisagem do lugar, algo que alterava, de maneira sutil, mas bem visível, o grau de espontaneidade dos participantes da caminhada de aprendizado, ao longo das trilhas do mapa coparticipativo do Quilombo dos Alpes, desenvolvido pelo NEGA (2018) e denominado “Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes: percursos, memórias e identidades”. Muitas das visitações tiveram êxito nas questões de desmistificar alguns conceitos muito generalizados sobre as populações de quilombos, mas boa parte das visitações teve um tom de visitação turística, carente dos enfoques que ligavam a ação pedagógica aos fazeres de ensinos, determinados pela Lei nº 10.639/2003, alterada pela Lei nº 11.64520081, cujo espectro de abordagem liga os quilombos à história dos povos negro, afro-brasileiro e africano, remanescentes de povos escravizados em nosso país.
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2 A pedagogia griô foi criada pela educadora Lillian Pacheco, a partir da sua prática pedagógica no Grãos de Luz e Griô, em Lençóis, (BA), (...) e integra mito, arte, ciência, história de vida de sábios e seus fazeres tradicionais nas comunidades. Coloca, como centro do saber, a vida, a identidade e a ancestralidade dos estudantes e professores. A vivência, a oralidade e a corporeidade são referências do processo de elaboração do conhecimento; os griôs e mestres griôs, protagonistas na educação da comunidade, são a principal referência pedagógica, junto a educadores e a pesquisadores brasileiros da educação biocêntrica de Rolando Toro, da educação popular de Paulo Freire, da educação das relações étnico-raciais positivas de Vanda Machado e as produções acadêmicas, que já versam sobre a própria pedagogia griô. Disponível em: http://graosdeluzegrio.org.br/pedagogia-grio/oque-e/. Acesso em: 3 set 2020.
A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes N S OL da pedagogia griô2, que divulgávamos nas formações continuadas promovidas no período letivo da Secretaria Municipal de Educação (SMED) e disponibilizadas a professores e professoras das unidades de ensino do município de Porto Alegre.
Um dia nublado, em que as nuvens davam pequenas tréguas nas descargas de água, em nossa vila. Uma pequena região da cidade de Alvorada, em que as ocupações habitacionais irregulares não permitiram às crianças terem praças ou outro tipo de área de convivência, com um mínimo de segurança à prática do direito fundamental de brincar. Assim, esperamos o ônibus no único lugar, que se tornava espaço de convivência na vila: a Escola Municipal Vereador Cléo dos Santos. Naquele lugar, em que as crianças viviam, diariamente, horas e horas de aprendizados, pelo ensino formal da escola, durante a semana, foi durante os sábados à tarde, que nasceu o projeto de maracatu, em um grupo denominado, pelas próprias crianças, Tambores da Vila. Aqui, um pequeno relato da história do processo, que possibilitou às crianças do grupo Tambores da Vila levarem uma oficina de maracatu ao Quilombo dos Alpes em Porto Alegre, em um encontro entre crianças da periferia e as crianças do Quilombo dos Alpes.
O ônibus que esperamos juntos, na tarde chuvosa daquele sábado, foi lotado para o Quilombo dos Alpes. Os coordenadores do grupo de maracatu já conheciam o Quilombo e sabiam de que o Octógono Djanira – como é chamada a sede da Associação Quilombo dos Alpes Dona Edwirges – seria bom espaço de convivência, para um encontro entre as crianças da vila e as crianças do quilombo, que teriam oportunidade de conhecer os instrumentos musicais do maracatu.
A ideia, de levar as crianças ao Quilombo dos Alpes, foi apenas sair da própria vila, sair de Alvorada. Isso, por si só, já foi o bastante, para mobilizar as crianças e conseguir a autorização de seus pais, através da mediação feita pela escola na qual o projeto de maracatu ocorre. À medida que foi se aproximando a data do passeio, algumas perguntas foram chegando aos ouvidos da coordenação do projeto Tambores da Vila e trabalhos de preparação e de esclarecimento se fizeram necessários.
VISITAÇÃO DE ALUNOS: QUILOMBO DOS ALPES
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3 Ver mais em: http://www.facebook.com/1523733101207645/posts/245063618150661/
A coordenação do projeto, que originou o grupo Tambores da Vila, não era formada por professores da escola. Eu, como morador, e mais um griô 4
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A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes S Aos professores e professoras da EMEF Vereador Cléo dos Santos, tivemos que falar para nos fazermos entender que o Quilombo dos Alpes faz parte de uma diversidade de modos de existir e de resistir, que são características de quilombos.
Ao abordarmos o tema do quilombo, na orientação a alguns pais, seus questionamentos avançavam, em direção a alguns tipos de preconceitos, provenientes da falta de informação, ligados, principalmente, a questões sobre a fragilidade das culturas religiosas do espaço para o qual estaríamos levando as crianças. Tal se deu, porque a escola de Alvorada é situada num bairro habitado por muitas pessoas evangélicas. Além dos questionamentos sobre as razões das propriedades de terra dos negros e das negras que fugiam da escravidão, as perguntas dos pais se referiam a formas generalizadas de ver as culturas religiosas dos quilombos, em si, como espaço de práticas religiosas de matriz africana, apenas, as quais não são aceitas por uma grande maioria dos habitantes da região da escola, fiéis evangélicos. Esses aspectos foram os mais difíceis de coadunar à compreensão na comunidade, os quais fizeram com que algumas das crianças do projeto de maracatu não estivessem com o restante do grupo, aguardando na chuva, pelo nosso transporte, financiado pela escola, pois alguns pais e mães religiosos, da vila, não permitiram que seus filhos ou filhas fossem nesse passeio. As forças de prazer e de jocosidade, envolvidas no fazer e no tocar um instrumento de percussão, fizeram com que as próprias crianças tivessem que fazer suas negociações: “Melhor não ir ao passeio, mas poder continuar no projeto”, disse-me uma das meninas, impedidas de ir ao passeio.
Na época, muitos dos docentes ficaram surpresos, diante do fato de que esse quilombo e mais quatro territórios, assim denominados, vistos de maneira muito superficial e generalizadora nos conteúdos escolares, faziam parte da categoria de quilombos urbanos de Porto Alegre. Inclusive, uma professora, que residia na região da Av. Nilo Peçanha, na capital gaúcha, veio a compreender melhor a identificação de algumas casas do Quilombo da Família Silva, localizado em sua região de moradia, em Porto Alegre, as quais continham placas com identificação do governo federal.
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Assistimos vídeos e outras informações e, a partir disso, fomos muito bem compreendidos e ficamos de organizar, também, um passeio de professores ao Quilombo dos Alpes, articulação que não foi possível, devido a alterações nas dinâmicas de relacionamento do Projeto com aquela escola. Atualmente, o projeto Tambores da Vila não acontece mais na mesma escola3 .
4 Entendida como palavra adaptada ao português pela estudiosa Lillian Pacheco em seu livro “Pedagogia Griô a reinvenção da roda da vida” (2006), trazida das tradições bambara komo, de griots africanos do noroeste da
Acesso em: 18 out. 2020.
No contexto da fotografia mostrada aos professores, a mestra se encontrava no meio de professores da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, em uma das caminhadas de formação, proporcionada pela vivência da mestra Janja no território do Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre. Essa imagem nos ajudou a fazer compreender que a visitação ao quilombo poderia ser bastante instrutiva, tanro para professores quanto para estudantes da escola.
No contexto de compreensão das formas de ensinar e da idade de cada nação de maracatu, desde as mais antigas, de Pernambuco, fomos estabelecendo África (no Mali) ligados, principalmente, à tradição do mestre Tierno Bokar, de quem foi discípulo o estudiosos africano Hampâté Bâ, que traz à tona tradições de linhagens familiares griôts (palavra do idioma francês) à literatura acadêmica, em seus conceitos, ligados à ideia do sangue que circula, os diellis africanos, que detêm em memórias cerebral e corporal, os conhecimentos e as histórias de ancestrais, saberes de linhagens, expostos em suas comunidades e em suas caminhadas de griots. Dessa vertente, a autora vai adaptar ao idioma português, falado no Brasil, expressando-o como griô. <http://graosdeluzegrio.org.br/pedagogiagrio/ publicacoes-pedagogia-grio/>.
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A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes N S OL (Edu Cordeiro), fazíamos a mediação da relação entre a escola, as crianças e os jovens, participantes do projeto, e os pais dessas crianças. Para sermos compreendidos, tínhamos que visitar muito a escola e conversar com a direção. Nunca conseguimos que o maracatu fosse estudado por alguma disciplina dos professores, que atuavam nessa escola, mas percebemos que os temas relacionados aos quilombos foram abordados em disciplinas de história e, também, em algumas atividades de artes. A articulação, para trazermos mestres e mestras do maracatu de Recife (PE), era feita pela coordenação do projeto e por Edu Cordeiro, acionando uma rede de batuqueiros de maracatu, que temos em Porto Alegre e Rio Grande do Sul.
Mostramos as fotos dos mestres de maracatu que já haviam visitado a escola, sem que os professores soubessem dessas atividades, por serem realizadas nos fins de semana e, juntamente com a foto dos mestres de maracatu, mostramos a foto de D. Rosângela Ellias (mestra Janja), que se constitui na grande liderança e mestra griô do Quilombo dos Alpes.
Acesso em 9 set. 2020
Um tema que tentamos conectar, nas conversas com as crianças, participantes do Tambores da Vila, e com os seus professores, quando discutimos os motivos para fazermos a troca de saberes com o Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre, foi a questão do saber de tradição oral. No diálogo que tivemos com os professores, mostramos que o projeto de maracatu já estava há uns três anos na escola, ocorrendo todos os sábados à tarde e que já tínhamos trazido, através de uma rede de colaboração, com agentes culturais do maracatu, os mestres dessa arte afro-brasileira, das principais nações de Recife (PE). O grupo docente não sabia dos acontecimentos da escola, aos fins de semana e também não tinha informações sobre os quilombos urbanos de Porto Alegre, mesmo sendo, em sua maioria, habitantes da capital gaúcha.
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Segundo Pacheco, (2006), em suas adaptações da palavra griot à diversidade de culturas de povos tradicionais do povo brasileiro, na articulação no projeto Ação Griô Nacional, realizada pelo Programa Nacional Cultura Viva do Ministério da Cultura, iniciado na gestão do ministro Gilberto Gil e concluído na gestão de Juca Ferreira, foram necessárias as seguintes caracterizações: griôs aprendizes, griôs e mestres ou mestras griôs. Conforme Pacheco, o griô se expressa e atua como um:
Líder de grupos culturais e associações locais que trabalham com tradições orais e/ou a animação popular: capoeirista, jongueiro, cantador, entre outros; Pessoa com facilidade para transmitir a sabedoria de tradição oral por meio da fala e da palavra, como uma arte ou magia: repentistas, contador(a) de histórias, músico(a), trovador(a), contador(a), poetas em Figura 1 – Mestra griô Janja, instruindo professores na trilha das ervas do Quilombo dos Alpes, em mapa coparticipativo, realizado pelo NEGAUFRGS, durante a formação de professores e de professoras da RME POA. Fonte: 2207520000..&type=3.https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1256004671122344&set=pb.100001384691503.-Acessoem:9set.2020.
analogias entre a desenvoltura de saberes de resistência das formas de sobrevivência dos mestres de maracatu, em relação aos elementos de saberes, contidos na contação das histórias de vida da mestra Janja. Assim, com essa conversa, abordamos os conceitos de griô, no sentido de compreendermos características e peculiaridades nos ofícios, desenvolvidos ao longo da vida da mestra. Foi necessário fazermos o embasamento, segundo Pacheco e Caires (2006), que fundamentam o conceito de griô e que criam o modelo de ação pedagógica da pedagogia griô.
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Considerando todo o trabalho, feito antes de sair de Alvorada, para levarmos as crianças da Vila São Pedro em Alvorada, ao Quilombo dos Alpes, ainda assim, no dia do passeio, as crianças e alguns pais esperavam, com certa ansiedade, a chegada do transporte. Os pais, porque veriam e porque conheceriam mestra Janja; as crianças, porque mostrariam seus jeitos de tocar e porque veriam como eram as crianças do quilombo e o próprio Quilombo dos Alpes. Chegamos ao Quilombo dos Alpes próximo das quinze horas. Descemos, em contato com uma chuva leve. A preocupação era com as peles dos tambores alfaias (de maracatu), pois ficam mais difíceis de serem afinadas em dias úmidos.Nacurta caminhada, até a sede da Associação do Quilombo dos Alpes, mesmo, em um dia nublado, a beleza da paisagem envolveu a corporeidade das crianças e dos pais do projeto Tambores da Vila. Impressionados pela altura (a altimetria do morro, em que se localiza a sede, está acima de 250m) e pela diferença, ao olhar Porto Alegre, a partir do Quilombo dos Alpes, os visitantes foram tomados pelo mais completo encantamento. Muitos paravam, mesmo com a chuva, para olhar a imensidão da beleza do lugar. Ao entrarmos no Octógono, percebemos que tudo aconteceria ali. Imediatamente buscamos amparo, junto ao NEGA, do qual partira a proposição
Entretanto, o caso de mestra Janja, e os de outras pessoas, com características de história de vida semelhantes às dela, é entendido, na pedagogia griô, como a expressão de uma mestra griô, segundo Pacheco, (2006), podemos observar que mestres ou mestras griôs são, normalmente: Reconhecidos(as) nas comunidades como líderes espirituais, com a sabedoria da cura ou de iniciação para a vida, procurados(as) e requisitados(as) por pessoas de diversas regiões (são, por exemplo: curador, parteira e rezadeira, pajé, pai e mãe-de-santo, mestres de capoeira, diretores teatrais, mestres de bateria, boêmios compositores, artistas circenses, professores aposentados ou a caminho, poetas declamadores, contadores de história entre outros, mestres de ofício); Conhecedores(as) e fazedores(as) de conhecimentos iniciados ou iniciadores/as de um ramo tradicional em artes e ofícios diversos relacionados às ciências da vida, por exemplo: tecelão(ã), ferreiro(a), sapateiro(a), ourives, pescador, caçador, rendeira(o), construtores de instrumentos musicais ou brinquedos, escultores, etc; Pessoa com história de vida de tradição oral; Que se identifique com a figura do/a e do/a mestre(a); Idade mínima 50 anos. (op. cit., p. 49)
A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes N S OL geral que percorrem o País ou estão ligados a uma família/comunidade; Pessoa com história de vida de tradição oral; Músico, instrumentista, animador de festa; Pessoa que se identifica com a figura do(a) caminhante, do(a) viajante e contador/a de histórias; Idade mínima 40 anos. (PACHECO, 2006, p. 47)
A decoração envolvia a expressão do quilombo, como lugar, juntamente com a expressão de culturas de artes afro-brasileiras, vividas por pessoas, que querem se compreender, mesmo, sem saber em que profundidade, experimentando todas as belezas e as dificuldades de serem brasileiras na totalidade de suas vivências.
Os questionamentos dos pais, iniciaram no ônibus, de volta a Alvorada.
Após esse momento, tocamos para o pessoal do Quilombo e as crianças, tanto do Quilombo dos Alpes, quanto da escola de periferia, de Alvorada, se divertiram muito com as brincadeiras de roda.
Foram relativamente intrigantes, pois vivemos um dia, em que a mestra Janja brincou, juntinho com a gente, nas cantorias, nas suas maneiras de comemorar a vivência boa das crianças e, principalmente, no abraço fraterno, que ela dá nas pessoas que revê, assim que chegam ao Quilombo. Quanto a essas atitudes, os pais afirmavam que não viram diferença nenhuma na mestra griô, pois não conseguiram vê-la falando, ou fazendo as atividades, que havíamos informado que vivenciaríamos junto à mestra nas trilhas. Explicamos que ela não é uma pessoa de muitas conversas, como não tínhamos tido sol, durante o dia, não
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Iniciamos as conversas em uma grande roda e nos dividimos em oficinas.
Posso dizer que as alfaias foram a grande sensação, pois a oficina de maracatu tornou-se a grande atração do encontro. Iniciamos envolvendo as crianças do quilombo na primeira rodada de vivências com o maracatu. As crianças e os jovens do Tambores da Vila estavam ansiosos para se apresentar e observavam como as crianças do Quilombo dos Alpes se encontravam com os tambores.
Notamos que, mesmo, apreciando as crianças do Quilombo tocando as alfaias do Tambores da Vila, os estudantes da escola de Alvorada, tinham uma espécie de deslumbramento.
A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes N S da conexão entre todos participantes do encontro. A comunidade quilombola dos Alpes preparou uma exposição de ervas locais e, junto a este espaço, iniciei a interação entre as crianças e os jovens do projeto Tambores da Vila e as crianças do Quilombo dos Alpes. Houve a entrega de sachês de ervas, de que as crianças gostam muito e, a partir disso, iniciaram-se muitas conversas. Perguntas como: onde tu estuda? Mas não é muito longe? Lá na escola, tu fala que tu é de Quilombo? Essas foram as perguntas mais marcantes entre as crianças da escola e as crianças do Quilombo dos Alpes, quando estavam olhando os sachês, que estavam expostos em banquinhas no Octógono, tipo uma feirinha, com preços em cada um deles, produzidos pelas pessoas do quilombo, com ervas das trilhas do lugar. A decoração do Octógono estava bela e nossos tambores alfaias, que eram uns quinze, mais os tambores de nossos amigos do grupo de maracatu Truvão, de Porto Alegre, que também estavam por lá: totalizavam umas vinte alfaias no centro do Octógono, emitindo e vibrando todos os sons de nossos ancestrais.
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De outra forma, temos que compreender que a expressão artística cultural do maracatu, apresentada pelas crianças e regida pelo griô Edu Cordeiro, apesar de ser de pertencimento étnico-racial do mesmo povo do quilombo, mostravase apenas como um momento efêmero de encontro, sem o viés da formação trabalhada com professores e com professoras. Para ambos os agrupamentos sociais, da vila e do quilombo, a experiência vivida, na forma de um momento de lazer, tornou-se um espaço superficial de relacionamento, descortinado, diante de um trabalhador, de uma trabalhadora (pai ou mãe das crianças) de periferia, com rasa formação educacional, proveniente, na maioria dos casos, de um sistema de ensino público, que invisibiliza a real compreensão que se possa ter dos valores humanos e sobre as epistemes de povos negros e indígenas.
havíamos conseguido acessar os outros ambientes, repletos da riqueza da paisagem e vegetação do Quilombo.
Figura 2 – Griô Edu Cordeiro, ministrando a oficina de maracatu para crianças do Quilombo dos Alpes, com as crianças do projeto Tambores da Vila, de Alvorada, observando. Fonte: https://www.facebook.com/Tamboresdavila/photos/1794784630769156.
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Nesse contexto, entendemos a dificuldade experimentada pelos pais e mães das crianças, considerando as informações que as pessoas receberam sobre os graus de saberes e de valores dos aprendizados que a mestra Janja disponibilizava, a partir de seus conhecimentos, adquiridos em sua história de vida, a professores e a professoras, graduados, que iam ao Quilombo dos Alpes, na busca de saber e de compreender a profundidade do apagamento incutido na história de vida da mestra.
Acesso em: 9 set. 2020.
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994. MACHADO, Vanda. Ilê Axé: vivências e invenção pedagógica. Salvador: EDUFBA/ SMEC, PACHECO,2000.Lillian.
Pedagogia Griô – A reinvenção da Roda da Vida. Lençóis, 2006. PACHECO, Lillian; CAIRES, Márcio (org.). Nação Griô – O parto mítico da identidade do povo brasileiro Lençóis: [s.n.], 2008. 5 Resolução nº 8/2012 do CNE/CEB, publicada no Diário Oficial da União, em Brasília, em 21 de novembro de 2012 (DOU, 2012, P. 26).
A cidade que aprende saberes da oralidade quilombola do quilombo dos Alpes S Na visão das pessoas adultas, que levamos ao quilombo, predo inou a lógica do apagamento sistêmico das culturas indígenas e quilombolas, quanto à contribuição destas para à história dos valores positivos da nação brasileira, ligados, naturalmente, a estereótipos, em relação ao conceito de quilombo, muito distante dos conceitos atualizados pela Constituição Federal de 1988.
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REFERÊNCIAS BRASIL. Conselho Nacional de Educação, Resolução nº 8/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 21 nov. 2012. Seção 1, p. 26.
DOWBOR, Fátima Freire. Quem educa marca o corpo do outro. São Paulo: Cortez, 2007.
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Após o passeio, nosso diálogo ainda continua, a partir de uma visão muito mais distante, ainda mais, quando se pensa que, nas escolas, particulares e públicas de todo o sistema nacional de ensino brasileiro, existe uma orientação, para que se trabalhem os conceitos da educação escolar quilombola, regida pelas diretrizes curriculares nacionais pedagógicas da educação escolar quilombola, estipuladas no ano de 20125. Igualmente, o sistema de ensino deve obrigação à prática das Lei nº 10639/2003, alterada pela Lei nº 11645/2008. Mas as crianças voltaram à vila, provocando a coordenação do projeto Tambores da Vila a voltarem ao quilombo no dia da feijoada, que havia sido anunciada, como uma das atividades do próximo fim de semana, no Octógono do Quilombo dos Alpes, ao que respondemos que a atividade seria em um final de tarde, início de noite, não sendo apropriado para crianças e para jovens. Ficamos de voltar ao Quilombo dos Alpes, pois a mestra Janja nos afirmou que o que fizemos, juntos, com os tambores, foi o tipo de vivência, que se faz necessária para a população do quilombo, principalmente, para as crianças e para os jovens.
POTÊNCIAS
Gládis Elise Pereira da Silva
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
COMO CITAR: KAERCHER, Gládis Elise Pereira da Silva; FURTADO, Tanara Forte. Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 691-700 691691
EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E EDUCAÇÃO PARA AS DISTANCIAMENTOSAPROXIMAÇÕES,ETNICORRACIAIS:RELAÇÕES
KAERCHER Tanara Forte FURTADO
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O combate ao racismo é um dos maiores desafios da sociedade brasileira, na atualidade. Herança do passado escravista, o racismo se atualiza, cotidianamente, em ações e em omissões, impetradas por indivíduos e por instituições, reificando a assimetria entre brancos, negros e indígenas nas condições concretas de vida e no acesso aos equipamentos públicos, constitucionalmente apontados como “universais”.Nestesentido, refletir sobre as práticas escolares e sobre como, em tais práticas, combatemos efetivamente o racismo, é um exercício necessário e urgente. Mais do que isso, precisamos atentar aos caminhos percorridos, aprender com nossos esforços jurídicos, teóricos e práticos, para colhermos, de fato, os frutos de nosso trabalho na materialização de uma sociedade racialmente equitativa.Cabelembrar que educamos, sempre, de um lugar: de um ponto de vista, de uma perspectiva teórica, de um viés didático-pedagógico, que sustenta nossa prática educativa. Esses balizadores apontam, em última instância, um modelo de sociedade, um modelo de princípios éticos e estéticos, que nos humaniza, que nos situa no mundo. Neste capítulo falaremos de um lugar específico: o lugar de duas professoras, que, de modo distinto, vêm se ocupando de construir práticas de educação
formativas, falamos do lugar de duas professoras, que, habitadas por incertezas pedagógicas, vêm promovendo encontros, descobertas e iniciativas de educação antirracista, que vão ganhando corpo nas escolas e tensionando o racismo, dentro das práticas, dos discursos e das instituições educativas.Istoposto, precisamos lembrar, como apontava Michel Foucault, em seu brilhante Genealogia do racismo, que: [...] o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano. A justaposição, ou melhor, o funcionamento, através do biopoder do velho poder soberano do direito de morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do racismo. E é aí, creio eu, que efetivamente ele se enraíza. (FOUCAULT, 1993, p. 309)
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Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências S antirracista, dentro das salas de aula, fundamentando-as em teorizações consistentes do campo da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), a partir dos documentos legais, que regram este campo educativo e, sobretudo, da construção de uma didática da ERER que inclua, fundamentalmente, a mediação dos conflitos raciais nas escolas. Nossa experiência na coordenação do curso UNIAFRO/UFRGS vem nos possibilitando conviver, em diversos municípios do Estado do Rio Grande do Sul, com os professores da educação básica, e presenciar suas dificuldades na implementação da educação antirracista, considerando os entraves institucionais às suas práticas, mas, sobretudo, a potência de suas aprendizagens.Destasandanças
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Recordamos, aqui, em especial, que o Estado brasileiro utilizou seu “soberano direito de morte”, quando foi promotor das assimetrias raciais em diversos momentos históricos: a partir do descobrimento, quando implementou a política de apropriação das terras, através do extermínio dos povos indígenas; quando promoveu o tráfico e a escravização de africanos; quando, por ação direta (como em Palmares) ou por omissão (como no abandono ou na demora na demarcação e na titulação de terras quilombolas), largou à própria sorte os descendentes diretos dos africanos escravizados, que se organizaram em comunidades quilombolas; quando criou políticas de ação afirmativa, incentivando as imigrações alemã e italiana no sul do país, com o objetivo de assegurar as políticas eugênicas e de branqueamento da população; quando criou, antes e após a abolição da escravidão, um ordenamento jurídico, que impediu ou dificultou o acesso da população negra aos equipamentos do Estado, tais como saúde, educação e moradia; nas políticas de saúde, sob a desculpa do “sanitarismo”, quando perseguiu a população negra, para, supostamente, “vaciná-la”, na prática, objetivando desalojá-la dos centros urbanos; nas políticas
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Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências S OL de urbanismo, quando, sob as égides da revitalização e da modernização das capitais, promoveu a expulsão da população negra dos centros urbanos, deslocando imensos contingentes populacionais para as periferias, sem a estrutura do Estado (saneamento, rede viária, postos de saúde, escolas, entre outros).Especificamente
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em relação às comunidades quilombolas, o soberano poder de morte do Estado se faz sentir na demora pela demarcação das terras e na omissão em garantir a proteção de territórios e de quilombolas, frente a toda sorte de perigos – especulação fundiária e imobiliária, perseguições e assassinatos, entre outros crimes – que efetivamente materializaram as condições assimétricas, às quais são também submetidas, hoje, as populações quilombolas de Porto Alegre. Em variados processos históricos, políticas públicas e projetos para a Nação, o Estado brasileiro não conseguiu impedir que a potência surgida no enfrentamento ao racismo, gerada na organização dos grupos a ele submetidos – negros e indígenas –, fizesse aflorar produções teóricas e culturais, que apontaram para a necessidade de integrarmos, aos processos educativos escolares, os saberes por eles Dessaproduzidos.potência,protagonizada
nas lutas das comunidades quilombolas, nasce, em última instância, o ordenamento legal, que, hoje, regra a educação quilombola. Mas o que entendemos por quilombo? E, a partir daí, o que compreendemos por educação quilombola? Tomamos, aqui, a conceituação de quilombos como grupos culturalmente diferenciados, que se reconhecem como tal, que possuem formas próprias de organização social, sendo detentores de conhecimentos, de tecnologias e de práticas, geradas pela tradição, que mantêm, com o território e com os recursos naturais, uma relação distinta, colocando-os como condição para as suas (re)produções cultural, social, religiosa, ancestral e econômica.
Mas, para que entendamos melhor como estes princípios se materializam no atual ordenamento legal educativo, precisamos atentar para os modos, pelos quais a ERER foi se construindo no Brasil, na contemporaneidade...
Estes modos de ser e de estar no mundo apontam para uma forma distinta de educação: a educação quilombola, que preserva estes princípios, como organizadores das práticas educativas.
Será de fundamental importância, ainda, a participação do país na Organização das Nações Unidas (ONU ), resultando no compromisso do Estado brasileiro em: (a) admitir seu papel ativo na promoção das desigualdades raciais no país; (b) assumir o compromisso de combate sistemático ao racismo; e (c) criar mecanismos de promoções da igualdade racial e da reparação.
N S OL O ORDENAMENTO
LEGAL DA ERER E A EDUCAÇÃO ESCOLAR
Cabe referir que, antes da abolição e até a Constituição Federal de 1988, há um longo percurso de idas e de vindas na legislação, sempre pautado pela luta e pelo protagonismo dos negros e das negras na busca pela obtenção de seus estatutos de cidadania plena, cabendo especial destaque à presença proativa do Movimento Negro, quer nas promoções da educação e da formação da população negra, quer nas construções da legislação e das políticas públicas.
A participação do Brasil na I Conferência Mundial para o Combate ao Racismo e à Discriminação, realizada em 1978, em Genebra, foi fundamental, para o tensionamento das ações, até então, desenvolvidas pelo Estado brasileiro na superação do racismo, fazendo com que a tese da “democracia racial” começasse a perder força, dando lugar a visões mais complexas e pertinentes acerca dos modos, pelos quais as relações raciais foram sendo construídas no Brasil. A declaração, surgida ao final desta conferência, apontou que todas as formas de discriminação, baseadas na teoria de superioridade racial, na exclusividade ou no ódio consistiam em violações dos direitos humanos fundamentais, condenando, também, o Apartheid (regime de segregação racial, que vigorou na África do Sul, até 1991) como crime de lesa-humanidade e como afronta à dignidade humana. A partir da conferência, o isolamento, ao qual o estado Sul-Africano foi submetido (com impedimento de participação nas Olimpíadas, por exemplo), e os embargos econômicos, os quais sofreu, desencadearam o processo de
QUILOMBOLA: ENCONTROS E DESENCONTROS DE UMA NOVA EPISTEME EDUCATIVA A ERER, como uma ativa preocupação do Estado brasileiro, materializada em legislação específica, é demarcada, somente, após a redemocratização do nosso país. Somente a partir de 1988, há garantias legais, para a construção de políticas efetivas de: (a) universalização do acesso à educação; e (b) fomento público de toda a educação básica.
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Será a Constituição Federal de 1988, que irá estabelecer a educação como direito de todos e como dever do Estado, colocar o racismo como crime e fixar as bases, para o entendimento da base multirracial da nacionalidade brasileira. Todos estes preceitos incidirão sobre a garantia de direitos da população negra e, legalmente, servirão de base para a criação de políticas públicas efetivas de combate ao racismo.
Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências N S OL derrocada do Apartheid (materializado anos mais tarde) e sinalizaram, para as demais nações, que o racismo passaria a ser tensionado, com efeito.
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Também realizada em Genebra, Suíça, no ano de 1983, a II Conferência Mundial para o Combate ao Racismo e à Discriminação Racial acentuou o tensionamento do racismo no Brasil e fortaleceu as lutas internas pela garantia de direitos à população negra, já naquele momento, vivendo intensas lutas internas pela redemocratização. Em sua carta final, a conferência afirmava que o “[...] racismo e a discriminação racial são aflições contínuas, que devem ser erradicadas do mundo”. A conferência revisou e avaliou ações, tomadas durante a Primeira Década de Combate ao Racismo (1973 a 1982), além de buscar a formulação de medidas específicas, que assegurassem a implementação de instrumentos, para a eliminação de práticas racistas e discriminatórias. O documento final recomendou o lançamento da Segunda Década de Combate ao Racismo (1983 a 1992) e possibilitou que se buscasse, dentro do Brasil, a construção de frentes institucionais, para combater a inação do Estado no combate sistemático ao racismo, no país.
Criam-se, então, em ordem cronológica, estruturas executivas, financeiras e jurídicas, para materializar os princípios assumidos na terceira conferência. Em especial, dentro do Ministério da Educação (MEC) e na legislação educacional, ocorrem estas mudanças: Em 2004, cria-se a Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECAD – posterior SECADI), instância que responderá, dentro do MEC, pela formação dos professores em serviço e pelo fomento e promoção da
Com a redemocratização e com um presidente do espectro político de centroesquerda (Fernando Henrique Cardoso), o Brasil participou da III Conferência, em Durban (África do Sul), com o firme propósito de implementar ações concretas de combate ao racismo. Em seu plano de ação, a conferência apontou estratégias, para alcançar a igualdade racial efetiva, demandando cooperação internacional, fortalecimento das nações e diversificação de mecanismos, voltados ao combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e às intolerâncias correlatas. A terceira conferência ainda apontou, de modo inédito, para a necessidade de se empregarem recursos e medidas eficazes na promoção de reparação, de ressarcimento e de indenizações para as populações vítimas de racismo.
Na busca de implementar atos que abordassem esses três aspectos (reparação, ressarcimento e indenização), o Brasil passa a adotar um expressivo grupo de ações, sobretudo, nos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, no sentido de consubstanciar o combate ao racismo, enquanto política de Estado.
Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências S educação antirracista e das educações escolares indígena e quilombola no Altera-sepaís; do artigo 26 da LDBEN/96, através da Lei nº 10.639/2003 (alterada, depois, pela Lei nº 11.645/2008), instituindo a obrigatoriedade dos ensinos de História e de culturas Afro-Brasileira e Indígena; Faz-se a Resolução nº 1 do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 2004, que explicita os modos de implementação do artigo 26; Faz-se a Resolução nº 8 do CNE, de 2012, que define as diretrizes curriculares da educação escolar quilombola na educação básica; Faz-se o Parecer nº 14 do CNE, de 2015, que define as diretrizes operacionais, para a implementação dos conteúdos da história e das culturas dos povos indígenas na educação básica, em decorrência da Lei nº Monta-se11.645/2008;umplanonacional de implementação das diretrizes curriculares nacionais, para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e de culturas afro-brasileira e africana.
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Este ordenamento legal aponta para a gradativa regulação dos modos de implementação da educação escolar quilombola, atendendo ao disposto no artigo 1º, parágrafo 1º, inciso IV das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Nacional Quilombola, que estabelece que a educação quilombola deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino localizados em comunidades reconhecidas pelos órgãos públicos responsáveis como quilombolas, rurais e urbanas, bem como por estabelecimentos de ensino próximos a essas comunidades e que recebem parte significativa dos estudantes oriundos dos territórios quilombolas. (BRASIL, 2008)
Ressaltamos esse excerto, para indagar como tem sido compreendida, no município de Porto Alegre, esta disposição legal.
Relembrando que as diretrizes da educação escolar quilombola apontam princípios fundamentais, que deveriam nortear a educação quilombola, quer nos territórios quilombolas, quer fora destes, precisamos refletir para os modos, pelos quais a cidade, através das redes de ensino (pública e privada) e dos sistemas de ensino, nela localizados (estadual e municipal), vem promovendo o que estabelece a lei.
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Assim, podemos afirmar que a lei aponta, já no seu artigo primeiro, que a educação quilombola é elemento organizador do ensino ministrado nas instituições educacionais, que atendem a alunos quilombolas. A lei prescreve,
Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências N S OL ainda, quais são os princípios norteadores do currículo de tais instituições, que devem se fundamentar, se informar e se alimentar: a. da memória coletiva , por nós entendida como a valorização dos saberes ancestrais, repassados oralmente, articuladora da guarda e da ancestralidade das comunidades; b. das línguas reminiscentes, as quais, no nosso entendimento, são um patrimônio nacional vivo, que deve ser estudado, entendido e incentivado; c. dos marcos civilizatórios, que apontam, na nossa percepção, outros modos de organização social, com novas relações com a natureza (e a profunda vinculação e compreensão do/com o território) e com o outro; d. das práticas culturais, percebidas, por nós, como envolvidas nas tradições de vestimenta, de arte, de culinária, de registro e de documentação, entre tantas outras práticas; e. das tecnologias e das formas de produção do trabalho, pensadas, aqui, como vetores estruturantes da vida e das relações de e com o trabalho; f. dos acervos e dos repertórios orais, por nós, tomados como repositórios da memória e da ancestralidade, dos saberes e dos modos de ser e de viver quilombolas; g. dos festejos, dos usos, das tradições e dos demais elementos, que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país; h. da territorialidade, compreendida, por nós, nas dimensões propostas por Pires et al. (2017), que aponta a multidimensionalidade do vivido territorial, pensando-o, a partir de um sistema de relações produtivas e existenciais, que faz emergir uma corporeidade marcada pelo vivido, em que “[...] paisagem, como tempo e espaço, é também marcada pelo vivido” (PIRES et al., 2017, p. 168).
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Consideramos que estes preceitos curriculares deveriam nortear: (a) as políticas públicas de formação de professores, para a atuação, junto à educação quilombola; (b) a proposta de expansão das redes de ensino, de modo a buscar construir escolas, dentro dos territórios quilombolas; (c) as secretarias de educação, quando estas fossem mapear as escolas que, no município, atendem aos alunos quilombolas; e (d) as secretarias de educação, quando estas fossem assessorar as escolas, com vistas à garantia de cumprimento das diretrizes curriculares da educação escolar quilombola.
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Sob o ponto de vista da ERER, perdemos, ao deixar de educar para relações respeitosas, a partir de práticas de convívio, de escuta e de aprendizagem, que, em tais comunidades, são parte do cotidiano das relações.
Para além do questionamento legal, do descumprimento ou não dos preceitos das diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE), interessanos, particularmente, indagar acerca das implicações pedagógicas deste distanciamento: quais prejuízos pedagógicos os alunos quilombolas e os demais alunos têm, ao não serem respeitadas a exigências pedagógicas colocadas em lei?
Quilombo dos Alpes, localizado no bairro Glória; Quilombo do Areal, localizado na fronteira do bairro Cidade Baixa com o bairro Menino Deus; Quilombo Silva, localizado no bairro Três Figueiras; Quilombo dos Machado, localizado no bairro Sarandi; Quilombo dos Fidélix, localizado no bairro Cidade Baixa; Quilombo dos Flores, localizado no bairro Glória; Quilombo da Família Lemos, localizado no bairro Santa Tereza; Quilombo da Família de Ouro, localizado no bairro Lomba do Pinheiro; Quilombo Mocambo, localizado no bairro Cidade Baixa
A partir da existência de tantos quilombos, seria de se esperar que tivéssemos, no município, várias escolas quilombolas, certo? Errado. Não há nenhuma escola quilombola no município de Porto Alegre, o que nos leva a questionar como, de fato, a lei vem sendo (ou não) cumprida.
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Há, aqui, uma perda irreparável de direitos educativos: perdem as crianças e os jovens quilombolas, ao verem ignoradas, no ambiente escolar, sua cultura, sua vivência e sua ancestralidade, mas, dano maior, perdemos todos, ao não aprendermos com suas contribuições.
Questões, como as aprendizagens intergeracionais, as práticas coletivas de religiosidade, de cultura e de trabalho, os modos de compartilhamento da educação das crianças pequenas, entre tantas outras, presentes nestas comunidades, são-nos negadas, tornando a todos nós, cidadãos desta cidade, reféns de culturas de preconceitos e de distanciamentos, em relação aos quilombos, o que termina por fomentar toda a sorte de ações e de omissões preocupantes.
Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências
Tomando o caso de Porto Alegre, temos os seguintes quilombos urbanos:
1. Fazer emergirem as conexões entre território e educação;
2. Construir uma escola, que aposte na emancipação social dos sujeitos e, portanto, que considere as comunidades quilombolas como coparticipes da construção dos currículos escolares, em que seus filhos e suas filhas estão inseridos;
3. Promover uma ação pedagógica, que envolva os territórios, os seus sujeitos, as suas práticas, a sua ancestralidade e as histórias de resistência e de luta das comunidades quilombolas.
Desafiados pela tarefa que a sociedade brasileira nos impõe, para garantir a equidade racial, precisamos, mais do que nunca, crer na potência do ato educativo, nas possibilidades, que a escola pode representar, para que, enfim, façamos justiça às comunidades quilombolas.
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Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências N S OL A partir deste cenário, então, o que propomos? Como pensamos ser possível olhar para além das fronteiras geográficas, culturais e simbólicas, que nos apartam dos quilombos em Porto Alegre? Não temos uma resposta pronta, mas temos pistas, caminhos, que vamos construindo em nosso fazer antirracista cotidiano, nos nossos espaços de atuação. Como aponta o parecer da relatora das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, consideramos que: Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade imposta a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para a frente. (...) Assim sendo, a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime. (BRASIL, 2012, p. 14)
Cremos que quebramos as desconfianças toda vez que buscamos, nas escolas e, em especial, na educação quilombola, respeitar os seguintes princípios básicos:
PIRES, Claudia L. Z. et al. Corporeidade e paisagem: a cosmologia da terra no Quilombo dos Alpes/RS. In: REGO, Nelson (org.). Geografias e (in)visibilidades: paisagens, corpos, memórias. Porto Alegre: ComPasso Lugar-Cultura, 2017.
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BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais. Brasília: [MEC-CNE], 2004.
FOUCAULT, Michel. Genealogía del racismo. Buenos Aires: Allamira; Montevideo: Nordan-Comunidad, 1993.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Brasília: [MEC-CNE], 2012.
Educação quilombola e educação para as relações etnicorraciais: aproximações, distanciamentos e potências
Este texto foi organizado por um grupo,constituído no interior da escola pública, cujo professor e seus alunos, estudantes do ensino fundamental, fazem pesquisas no campo da Educação para as relações étnico-raciais, na comunidade em que atuam. O Coletivo QuilomBonja 1 tem, como objetivo, a produção de autonomia e de protagonismo dos estudantes, por meio de sua inserção em pesquisas, a respeito de temas sensíveis a sua comunidade, com a qual dialogamos sobre modos de praticar a educação popular e o antirracismo na escola pública.
PORTO ALEGRE: CIDADE E PRESENÇA NEGRAS
TERRITÓRIOS NEGROS: OLHARES DA PRESENÇA NEGRA NA PERIFERIA URBANA DE PORTO ALEGRE (RS)
Dharkson
CARDOSO Bruno Xavier SILVEIRA
COMO CITAR: CARDOSO, Taíssa Gomes; SILVEIRA, Bruno Xavier; SEVERO, Dharkson da Rosa. Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS). In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 701-713 701701
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS
Territórios Negros: olhares da Presença Negra na Periferia Urbana de Porto Alegre surge como reflexão das práticas do Grupo e sistematiza, de forma escrita, saberes e experiências de um bairro, envolvido nas tramas socioespaciais dos fenômenos urbanos, sob uma perspectiva racializada. Tal se constitui um convite a problematizar a formação das cidades, com sujeitos concretos, entendendo a diversidade e a desigualdade na produção do espaço urbano, em que coexistem grupos, ações e fenômenos, que caracterizam a complexidade urbana da cidade. Ao final do texto, os autores sugerem atividades, que possam provocar discussões sobre o tema e ampliar as possibilidades de compreensão do tecido urbano e de suas especificidades. Importa,nesta etapa, questionar o leitor sobre suas experiências urbanas, para que reflita a respeito de sua condição cidadã na cidade e, com ela, produza conhecimentos.
Sabemos da importância que as cidades têm na organização do espaço brasileiro. Seja como palco, seja como ponto de encontro e sociabilidade, seja pela concentração do poder e do dinheiro, as cidades encerram a vida econômica e social do país, através dos serviços e das atividades produtivas.
1 O Coletivo QuilomBonja é um projeto de ensino com pesquisa que atua desde 2017 na comunidade escolar da EMEF Nossa Senhora de Fátima no Bairro Bom Jesus, zona Leste de Porto Alegre. da Rosa SEVERO QUILOMBOLAS
Taíssa Gomes
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Para estas autoras, a presença negra na cidade acompanha um lugar, que denota uma expressão espacial do poder, mas, que, devido aos discursos, que oficializaram uma cidade para que fosse branca, essas expressões foram invisibilizadas, de modo a reforçar a não presença negra memória oficial de uma cidade econômica, étnico-racial e culturalmente diversa. É nesse contexto que escrevemos este capítulo, ou seja, para promover uma narrativa, que valorize a presença negra, as suas lutas, as suas memórias e as suas conquistas numa
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Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) S De acordo com a PNAD/IBGE (2015), aproximadamente 84% da população brasileira vive nas cidades. Mas o que significa dizer que 84% de população brasileira é urbana? Em que condições essa população vive? Como ela se caracteriza? Qual é o seu pertencimento étnico-racial? Importa pensar quem é e como vive a maioria das pessoas na cidade e, para fins de problematizar e de elucidar as reflexões, que estão sendo propostas, a questão racial no modelo urbanístico brasileiro será o interesse central desse texto, escrito a partir de experiências de pesquisa sobre as presenças negras no espaço urbano, sobre suas memórias e sobre os lugares social e geográfico que ocupam. O campo empírico dessas reflexões será a cidade de Porto Alegre (RS), vista e pensada nas suas diversidades espacial e étnico-racial.PortoAlegre é nacionalmente conhecida como a capital do Rio Grande do Sul, berço da colonização açoriana no Brasil meridional. Tida, em dados históricos e em documentos oficiais, como uma cidade construída pela imigração europeia, essa narrativa contrasta com memórias, com histórias, com conquistas e com marcas da presença de diversos grupos sociais, que legaram à capital gaúcha uma diversidade cultural, que não se reverteu em políticas de visibilidade e de memória, como formas de reconhecimento político.
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Vieira (2017) explica que as cidades têm memória, porém nem todas as memórias estão presentes nas representações das cidades, e, no caso de Porto Alegre, a perda de memória histórica e a ausência de marcadores territoriais acarretaram representações de não presença do negro no espaço urbano. Bonetto (2018) aborda que, historicamente, Porto Alegre construiu a narrativa de imaginário predominantemente branco e europeu, constituído por representações que a valorizam, a partir, exclusivamente, da escrita espacial branca e de imigração europeia, como a relacionada à fundação da capital gaúcha, que vincula o trabalho que possibilitou seu desenvolvimento ao branco europeu. Segundo a autora, a monumentalidade do Centro Histórico da cidade reforça o legado branco e contribui para a invisibilidade da escrita espacial não branca, pois não há um imaginário de representações negras ou indígenas nas construções do Centro Histórico.
A estrutura urbana brasileira mantém uma história de segregação socioespacial, em que o componente racial estrutura e é estruturado por relações desiguais, manifestadas no espaço urbano. Tal contexto condiciona os imaginários urbanos sobre as presenças e sobre as ausências, que foram naturalizadas como próprias, pelos sujeitos, e, não, quanto às desigualdades, que os atingem. No caso de Porto Alegre, a questão se potencializa, motivo pelo qual a cidade ocupa a posição mais alta no quesito segregação racial, no Brasil, sendo considerada a capital nacional da desigualdade racial, segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 20172 . Na capital da desigualdade racial, os lugares de negros se apresentam fortificados, nas narrativas que os excluem da produção urbana e do protagonismo na luta pelos seus direitos à cidade. Contudo, pensar sob o ponto de vista dessas imagens torna iminente a reprodução do racismo. Faz-se necessário que a lógica se inverta. Os espaços centrais se constituem de grande importância, com sua presença branca europeia, mas essa exclusividade incorre no perigo da história única, por torná-la uma narrativa definitiva, relativamente a grupos e a espacialidades plurais, segundo Adichie (2019).
Mascarar a presença negra no espaço urbano não é exclusividade de Porto Alegre, pois os efeitos do racismo brasileiro são estruturais e se dão na espacialidade, de modo a torná-la uma narrativa, a partir do branco, eliminando os demais grupos da construção social da coletividade. De acordo com Campos (2012), a produção do espaço urbano brasileiro é feita, com base na racionalidade capitalista, com forte conteúdo racializante, definindo os lugares destinados às pessoas, na cidade:Énecessário pensá-la como parte de uma totalidade, visto que a cidade capitalista não seria o que é se não existissem os processos de exclusão espacial dos grupos não dominantes. E dentre estes, a questão étnico-racial na literatura brasileira desaparece, como se as classes sociais pudessem elucidar todas as possibilidades de existência do urbano. (CAMPOS, 2012, p. 96)
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Partir de uma lógica diferente daquela que as narrativas hegemônicas abordam é tratar de reconhecer a diversidade de territórios e de lugares na 2 Pesquisa disponível em: negros-e-brancos-no-pais.htm.https://noticias.uol.com.br/cotidiano/listas/porto-alegre-lidera-desigualdade-entre-Acessoem8mar.2020.
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) N S OL urbanidade, que, ao invisibilizar esse grupo, autoriza e legitima as violências por ele sofridas. É nosso objetivo trazer ao centro do debate as presenças negras e os seus legados, que, na urgência de serem visibilizados, como parte da história da cidade, problematizam essa espacialidade, pluriversalizando-a para além das visões única e exclusiva dos grupos majoritariamente brancos.
EXPANSÃO URBANA E PERIFERIZAÇÃO DOS TERRITÓRIOS NEGROS
O ponto de vista sobre os territórios negros, protagonizando aspectos da formação e da evolução do tecido urbano, muda o modo de conceber a cidade e a forma como os campos de força nela inseridos constituem toda a sua diversidade espacial. Entende-se que a formação de um território negro não ocorre dissociada do processo de urbanização e das relações raciais dele decorrentes, principalmente, nas periferias, em que o modelo urbanístico predominante aprofunda a segregação e condiciona novas territorialidades, a partir da remoção de negros e de pobres do centro da cidade.
Nesse sentido, Santos (2013, p. 10) aponta que a cidade, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico, de que é o suporte, como por sua estrutura física, tornando os habitantes das periferias pessoas ainda mais empobrecidas. Neste caso, pobreza não é exclusividade do modelo socioeconômico vigente, mas, também,
Trazemos a perspectiva dos territórios negros, pois, de acordo com Benedito (2013):
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Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) N S OL cidade, o que está de acordo com as distintas experiências individuais ou de grupos,considerando os muitos sentidos, que compõem o mosaico urbano, tornando possível acessar e conhecer, nessa espacialidade, os pontos de vista dos invisibilizados, pelos quais uma cidade poderá ser reconhecida como menos segregadora.
Os territórios negros de Porto Alegre fomentam compreender a cidade para além de uma narrativa única, ao proporcionarem conhecimentos, que tendem a associar o protagonismo dos sujeitos hegemonicamente invisibilizados, através de redes de cooperação e de solidariedade mútua, de estratégias de sobrevivência e de territorialização e pertencimento, diante dos interditos de uma cidade, que não os acolhe. Nessa direção, sua perspectiva torna possível encontrar uma cidade cujas experiências e formas de sociabilidade entre os grupos étnicos coexistiram e ainda coexistem, ainda que a literatura hegemônica e a história oficial se esforcem por apagá-los.
[...] não há um só bairro ou distrito na cidade onde a presença negra ou afrodescendente seja 100%. Mas é justamente na inscrição ou marcadores culturais e simbólicos que a predominância racial se acentua, por meio de organizações sociais, culturais e políticas as quais efetivam um devir e identidades de memória coletiva negra e afrodescendente. É no percurso do tempo e espaço que a história coletiva, marcada por carências sociais, mas também por articulações de lutas, e os microterritórios étnicos e raciais justificam sua razão de ser. (BENEDITO, 2013, p. 99)
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) N S OL resultado do modelo espacial. Esta leitura exige que se expresse a noção de periferia, qual seja: um espaço que agrega um conjunto de qualificações, com condições econômicas e sociais precarizadas na sua infraestrutura, na relação de seus deslocamentos, na qualidade de acesso aos serviços públicos essenciais, nas questões de moradia e no direito à cidade, em sua totalidade. Sendo um modelo espacial em contradição, ao que se convencionou denominar centro, a periferia compõe a configuração das cidades e testemunha de que modo a condição das populações negras tem sido definida por um conteúdo racializante, que retroalimenta um modelo urbanístico, que a exclui do espaço urbano.
Desde então, há um imaginário intencionalmente criado, para naturalizar o fato de os negros ocuparem estratos sociais subalternizados e espaços de
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Em se tratando de Porto Alegre, a formação de grande parte de suas áreas periféricas está associada ao desmantelamento dos antigos territórios negros do centro da cidade e à nova territorialização daquelas famílias em espaço atualmente considerado periferia, como ocorreu nos bairros Restinga e Bom Jesus, por exemplo. Tais remoções influenciam a ação do mercado imobiliário, acarretando o afastamento das populações negras do espaço central de Porto Alegre, em direção às periferias da cidade, num processo contínuo de migração compulsória, típico do modelo urbanístico brasileiro, inspirado em modelos europeus, tal como observa Gomes dos Anjos (2006):
A partir do trabalho de Vieira (2017), é possível compreender que o início da formação das periferias em Porto Alegre coincidiu com uma das fases da “modernização urbana”, caracterizada pelo desmantelamento dos territórios negros na região central da cidade. Os “melhoramentos urbanísticos” chegaram àquele espaço e as remoções destinaram seus moradores às periferias, de forma a “revitalizar” os espaços centrais da cidade. Sobre a presença da população negra no espaço urbano porto-alegrense, a pesquisadora destaca: [...] desde a fundação da cidade de Porto Alegre, a presença negra é identificável em diversas funções e espaços. Apesar disso, pouco está presente nas narrativas sobre a cidade. Vários fatores contribuem para isso, entre eles, a ausência nos registros oficiais, as remodelações do espaço ocorridas ao longo do século XX e o deslocamento dos territórios negros rumo à periferia. (VIEIRA, 2017, p. 170)
[...] a elaboração e gestão dos planos urbanísticos não dependem exclusivamente de critérios técnicos, mas, sobretudo de posturas políticas, a segregação étnica que os destina à periferia das grandes cidades aparecenos como uma das manifestações da dominação racial que estrutura o poder neste país. (GOMES DOS ANJOS, 2006, p. 103)
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Situado na zona Leste de Porto Alegre (RS), o bairro Bom Jesus é constituído por sujeitos da classe trabalhadora e considerado uma das periferias da cidade, apesar de sua localização geográfica privilegiada. A Vila Bonja, como é popularmente conhecida, tem origem no fracionamento do solo urbano em lotes, para a venda, em 1953, quando o poder público municipal transferiu, arbitrariamente, um contingente populacional para aquele perímetro urbano, então chamado Vila Mato Sampaio. Aldovan Moraes (2011) descreve que as remoções dos territórios negros do centro (Vila dos Eucaliptos, DTO, Caiu do Céu, Areal da Baronesa, Praça Garibaldi e Ilhota) tiveram, como um de seus destinos, a Vila Mato Sampaio, um espaço de abrigo a pessoas empobrecidas e em situação de vulnerabilidade social. A população a ela destinada, entre os anos de 1953, até o início da década de 1980 foi, em sua grande maioria, produto das “modernizações” dos espaços centrais da capital gaúcha, explicando a composição étnico-racial atual do bairro Bom Jesus, que, atualmente, conta com pouco mais de 30 mil habitantes. Este recorte étnico-racial aparece no fenótipo dos moradores, na presença negra no bairro, por meio de marcadores territoriais, como os inúmeros terreiros, os nomes de ruas e praças, a escola de samba, as práticas culturais da juventude, ou, ainda, na resistência à especulação imobiliária, que aprofunda a segregação, haja vista as disputas territoriais com empreendimentos imobiliários na região Leste da cidade. A presença das populações negras no bairro Bom Jesus compreende o segundo maior percentual de população negra da capital, somando 12,4% da população do bairro. De acordo com Porto Alegre (2010, p.8), esse índice evidencia a guetização, a que foi historicamente sendo submetida esta população, cada vez mais longe dos centros financeiro, cultural e econômico da cidade, empurrada para as suas periferias.
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) N S OL periferia, dotados de infraestrutura precária, de forma a se conformarem com essa condição. Assim, tanto a concentração de negros nas periferias como a ausência deles em bairros centrais são reflexos desse processo urbano, que tem suas raízes nas desigualdades raciais. A forma e o modo, pelos quais o fenômeno se expressa no espaço urbano contam sobre a própria história da cidade e dos sujeitos que a fazem, ainda que, hegemonicamente, estes sofram um apagamento social. O bairro Bom Jesus é um exemplo que merece destaque.
O BAIRRO BOM JESUS – POR UMA NARRATIVA AUTOCENTRADA
Vilarino (1998, p. 31), em seu trabalho sobre memórias e histórias da Vila Bom Jesus, observa que, desde a sua formação, o bairro apresenta, como característica, a marcante mobilização, em torno da cidadania e do direito à cidade, por parte de seus habitantes. São mobilizações com contextos de reivindicações, a partir
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) S OL da organização comunitária em torno da canalização e da limpeza de arroios, da construção de pontilhões, para melhorar a mobilidade, da recuperação de prédios públicos e das organizações individuais e coletivas por água, por luz, por pavimentação e por moradia, uma vez que a constante migração para o bairro ampliou e interferiu no seu arranjo e no seu ordenamento espaciais. Conforme depoimento de uma moradora: Lutamos pelo básico para viver, uma vida digna [...] isso faz parte da resistência contemporânea de viver na periferia, num histórico de bairro negro e com a consciência de pertencer a este terreno. Tem muita luta a ser feita, e é preciso se organizar porque qualquer conquista é para o bem coletivo. (Relato pessoal da Moradora L., em 2018)3
Mesmo com os problemas atuais é preciso retomar a força comunitária no interior do bairro. Estamos nos tornando uma comunidade sem memória da nossa história, e isso é perigoso do ponto de vista da mobilização política.” (Relato pessoal do Morador D., em 2017)
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A fragmentação na participação popular e nas lutas coletivas, para o benefício da comunidade, não é exclusiva do bairro. São constantes, as tentativas de elaborar estratégias de defesa, para restabelecer a conexão fragmentada no interior da comunidade. Os moradores entrevistados pelo QuilomBonja entre agosto de 2017 e julho de 2018 apontam que, apesar de seu histórico de mobilizações, há muito a ser feito, pois, atualmente, perdeu-se essa linha de ação: “Queremos retomar a Bonja para além do barro e do esgoto [...], para uma leitura, a partir do projeto de cidade que a gente quer”(relato pessoal do Morador D., em 2017).
Já a Moradora L. destaca que: 3 Entrevista realizada com integrante da Associação de Moradores dos bairros Bom Jesus e Jardim do Salso (AMBOJES), aqui, denominada Moradora L. Neste artigo, faremos referência aos moradores entrevistados, distinguindo-os por letras do alfabeto.
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A fala dessa moradora indica o quão necessária é uma organização comunitária, que atue diretamente com as várias lideranças do bairro, tanto pelo desenvolvimento local quanto pela possibilidade de somar esforços no agenciamento de multiplicadores sociais. Segundo Vilarino (1998), a união dos moradores em associações comunitárias, iniciada nas décadas de 1970 e de 1980 e fortalecida na década de 1990, foi a saída para a solução de problemas imediatos, enquanto conquistas de iniciativa da participação popular foram significativas, ainda que insuficientes, para que, na atualidade, o bairro dispusesse de uma infraestrutura mínima, que garantisse algum acesso dos moradores aos equipamentos urbanos. Como destaca outro morador:
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ONGS, creches, grupos de idosos, o pessoal do RAP, projetos de leitura, grupos de geração de emprego e renda, associação de reciclagem, os jovens das batalhas de rima, líderes comunitários, todos esses juntos podem se organizar e agir no interesse comum de retomarmos a força comunitária. (Relato pessoal da Moradora L., em 2018)
Conhecer o histórico da mobilização política no bairro Bom Jesus nos levou a um projeto, instituído por sua Associação, em parceria com o poder público municipal, chamado Afromosaico. Em entrevista com os componentes da Associação de Moradores dos bairros Bom Jesus e Jardim do Salso (AMBOJES), descobriu-se que, desde 2015, o Afromosaico busca reeducar os moradores do bairro, relativamente à perspectiva de sua pertença racial, utilizando-se de marcadores territoriais e identitários, para registrar a presença negra. A fim de reconstituir as marcas da presença negra na cidade, o Museu do Percurso do Negro criou um conjunto de marcadores territoriais no espaço urbano de Porto Alegre, para valorizar os lugares vivenciados pelos negros na cidade, representando as ocupações afro-brasileiras e reafirmando esses espaços como territórios negros. Visibilizar a cidade pela diversidade de seus moradores, vista a produção local de um bairro com vigorosa história de ocupação afro-brasileira é o objetivo do Afromosaico, e a Associação pensou este projeto em parceria com outras pessoas para combater a violência, a desigualdade e o racismo que nossos jovens estão constantemente sendo vítimas. (Relato pessoal da Moradora L., em 2018)
N S OL
O Morador A identifica o bairro como um quilombo urbano, considerando sua trajetória histórica, sua memória e seu cotidiano, construídos em um modelo
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) [...]
Transitar entre espaços e tempos da Bonja nos coloca diante dos desafios e das dificuldades vividas por seus moradores, mas também expressa articulações, em que a memória dos sujeitos justifica a presença negra, como luta política por melhores condições de vida. O Morador A relembra essa frente de luta, durante o fim da década de 1990 e o início dos anos 2000, ocasião, em que redes de solidariedade significavam a retomada da memória histórica do bairro: Somos um quilombo urbano. Somos um núcleo de resistência cultural, através da nossa arte, rap, samba, carnaval, capoeira e esporte. Lutamos por nossa liberdade em poder viver em um lugar melhor. Lutamos contra a especulação imobiliária que vai tentar nos tirar de nossas casas e nossa vila. Quando vocês contrariam a estatística de evasão escolar e continuam na escola vocês também estão lutando contra tudo isso, isso é fazer parte de uma resistência contemporânea. Isso é fazer parte de um quilombo que mesmo lá atrás não tinha só negros. Tinha índios, brancos e europeus pobres, assim como a nossa Bom Jesus até hoje. (Relato pessoal do Morador A., em 2017)
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) S OL urbanístico excludente. Sua fala evoca a perspectiva de Beatriz do Nascimento, para quem a hegemônica presença negra nas periferias dos grandes centros urbanos se dá como continuidade histórica, em um processo que relaciona os quilombos do passado, formados em África, com os que se formaram no Brasil.
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N
A autora atualiza a noção de quilombos no espaço urbano ressignificado na favela como espaço de continuidade de uma experiência histórica que sobrepõe a escravidão à marginalização social, segregação e resistência dos negros no Brasil. (CARNEIRO apud NASCIMENTO, 2006)
A atualidade do processo analisado por Nascimento (2006) se expressa na vida dos negros e dos quilombolas aparentemente não segregados, apesar dos fenômenos vigentes de subordinação e de dominação. Nessa leitura, as periferias configuram a continuidade histórica da vida dos negros e as marcas espaciais de seu protagonismo, fortemente associado à luta por direitos essenciais às comunidades, a que pertencem. Reivindicar-se como um quilombo urbano enfatiza a dimensão das lutas e das resistências históricas dos povos negros nessa experiência de viver a periferia, ainda que, hegemonicamente, Porto Alegre tenha construído uma narrativa branca europeia em sua história. Não, apenas, as expressões espaciais, geradas pela segregação racial, mas a mobilização, que busca repará-las, influencia as formas de resistência da presença negra nas cidades. Em espaços centrais ou periféricos, o racismo estrutural persiste e, com ele, as potências, encontradas por negras e por negros, que, ao reivindicarem o seu direito de morar, fazem-no no lugar de quem produz o espaço urbano, a partir de seus direitos de viver. As presenças negras nas periferias urbanas demandam cidades plurais, que se reafirmam nas diversidades cultural, política e econômica de seus habitantes e que dispõem de experiências, que servem como legado, para que um novo tipo de cidade sejaNesseconstruído.sentido, o bairro Bom Jesus serve como um exemplo, dentro da diversidade porto-alegrense, haja vista que registrar parte de sua trajetória significa desfazer mitos e derrubar silenciamentos, para avistar uma cidade menos segregacionista, e a Bonja possui uma história, que oferece a Porto Alegre a possibilidade de compreender as diversidades e as desigualdades na produção do seu espaço urbano, rompendo com preconceitos e reconhecendo, na coexistência de diferentes territórios e lugares, o pertencimento negro às suas comunidades.
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Porto Alegre (RS) N S OL QUESTÕES PARA
A Vila que Dona Marli ajudou concentrava uma grande população expulsa dos territórios negros das áreas centrais da cidade e, não por acaso. Ela também era uma mulher negra. A intenção dos moradores era da reconstruir sua dignidade, pela defesa de seu território, o que levou muitas mulheres e seus gritos de resistência, com cartazes amassados, escritos em letras grandes, a lutar por seus direitos. Conquistaram postes de luz, torneiras com água potável, asfalto, escolas e postos de saúde. No entanto, algo chamava a atenção: por mais que as mulheres fossem as organizadoras dos movimentos, eram os homens que decidiam como os frutos conquistados deveriam ser administrados.
Os anos se passaram e a vila de Dona Marli cresceu e, hoje, ocupa uma localização privilegiada na cidade, próxima ao centro, a hospitais e a universidades.
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de O DEBATE A sessão a seguir traz uma reflexão, produzida pelo grupo de estudantes do Coletivo QuilomBonja, na qual sugerem questões, relacionadas à cidade, à periferia e aos territórios de maioria negra, que podem ser trabalhados em sala de aula. O texto é de autoria dos estudantes e se destina a jovens de todas as idades, bem como a educadores, interessados em ler a cidade para além das narrativas hegemônicas instituídas. As questões provocativas foram construídas pelos estudantes, em diálogo com o professor, a fim de fomentar a lógica de “como um bairro de periferia pode ser pensado, sem que estereótipos marquem os seus moradores”. Texto de Apoio A vila de dona Marli Quando se ouve falar de dona Marli, é preciso se lembrar de que ela representa uma realidade, em que aproximadamente 40% das famílias brasileiras são chefiadas por mulheres, portanto cada conquista desta líder comunitária beneficia todo o bairro,em que ela fez história. Na década de 1970, migrou do interior do Rio Grande do Sul e chegou à capital, cheia de sonhos, e, com alguns medos, instalou-se numa vila, que compreendia alguns casebres. Dizia que era longe de tudo e que, para se deslocar, seguia trilhas, feitas pelos moradores no matagal.Umaconversa
aqui; outro papo ali, e ela ia ajudando outras mulheres e suas famílias a ler, a escrever, a se organizar, a ter independência financeira. Juntas, criaram possibilidade de geração de emprego e de renda, obtiveram creches para seus filhos e conseguiram dignidade para o bairro. Mulheres que, em grupo, fortaleciam-se, para sonhar, para lutar e para conquistar mais do que diziam que elas podiam.
2. Como é a cidade, em que tu moras? Ela possui vilas?
Após lerem e dialogarem sobre o texto, para dar continuidade ao processo criativo dos estudantes, sugere-se, como atividade,a construção de uma reflexão escrita sobre as questões abaixo: De acordo com o texto:
4. Observa a paisagem do teu bairro. Tu conheces algum desenho, monumento, prédio ou casa, que faça referência a alguma cultura ou grupo específico? Procura saber a origem e o que ele representa e relata aos colegas da tua classe.
Provocação: o texto aborda o cotidiano de uma periferia, em que a atuação das mulheres é reconhecida como uma conquista do território, que está sempre em movimento. Como é possível abordar este tema em aulas de Geografia? Quais palavras-chave poderiam representar o início das ideias a serem dialogadas? Em que medida o texto pode provocar a reflexão sobre a realidade das cidades brasileira e de seus habitantes?
1. Comente a seguinte frase, dando sua opinião: “por mais que as mulheres fossem as organizadoras dos movimentos, eram os homens que decidiam como os frutos conquistados deveriam ser administrados”.
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Dona Marli foi um marco, uma referência na história e na construção do bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. Ela representa uma história silenciada nos escritos sobre a cidade e sobre o papel das mulheres nas periferias urbanas. Exemplos como o dela se multiplicam pelo Brasil. O que tu conheces sobre o bairro em que moras? O que ele tem a dizer para a tua cidade?
Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) S OL Está circundada por quatro grandes avenidas e por alguns empreendimentos imobiliários. Não possui mais tantos problemas de acesso, embora a passagem de ônibus seja tri cara. Algumas mães e alguns pais reclamam que está pesado para os filhos estudarem fora da vila, enquanto outros pensam que a vida é assim, mesmo, e que seus filhos terão de se esforçar e de aprender na luta, pois a vida lhes obriga a ser Marli. * * *
N
c. Como é possível que uma vila longe de tudo passe a ter uma localização privilegiada na cidade?
a. O que é uma vila?
3. Se Dona Marli morasse no teu bairro/na tua cidade, que desafios ela e os moradores enfrentariam, para melhorar a qualidade de vida do lugar?
b. O que Dona Marli representa? Qual é a tua opinião sobre isso?
Nesseurbano.sentido,
712 Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) N S OL
SOBRE O TEXTO DE APOIO E SOBRE A ATIVIDADE DE
PROVOCAÇÃO
As reflexões tecidas nestas atividades não pretendem concluir um tema tão potente de possibilidades quanto o das periferias urbanas, pautando o seu lugar, com suas formas de organização, nas tramas que constroem a cidade. Trata-se de uma problematização, construída com os estudantes-pesquisadores, sobre temas sensíveis a sua comunidade, tais como a presença negra, a participação das mulheres, a organização comunitária, as identidades e as relações de poder, os quais marcam o cotidiano de grupos com espacialidades singulares, constantemente invisibilizados nas narrativas oficiais e nos estudos sobre a complexidade urbana da cidade. Sobre essa complexidade, os estudantes apontam a escola pública como lugar privilegiado, em que o tradicionalmente instituído pode ser enfrentado num intenso diálogo de saberes com suas comunidades. Por meio deste diálogo, o estudante passa a compreender o vivido, desde o seu bairro, em que reconhece, representa e cria experiências com a cidade, mediante o encontro com o outro, situação na qual reelabora sentimentos de pertencimento no contato com as histórias de vida dos moradores, enquanto histórias do lugar, em conjunto com o espaço as atividades, em suas complexidades, trazem à tona os movimentos da educação escolar na produção do conhecimento e os movimentos dos estudantes na construção de uma escola, que não produz sozinha. A experiência busca dar centralidade aos lugares periféricos e de maioria negra, com perspectivas que façam eclodir o protagonismo na força destes sujeitos, para que, em suas experiências cotidianas, reconheçam suas condições de seres sociais transformadores.
CONSIDERAÇÕES
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N
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Territórios negros: olhares da presença negra na periferia urbana de Porto Alegre (RS) S OL
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EDUCAÇÃO
COMO CITAR: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; ELLIAS, Karina Rejane da Silva BITENCOURT, Lara Machado; ELLIAS, Rosangela da Silva. Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 714-731 714714
Os quilombos urbanos são uma realidade espacial, presente na formação territorial brasileira, sendo responsáveis por formas de organização e de resistência cultural da população negra, que, historicamente, teve sua humanidade castrada, em função do regime escravista.
Os quilombos, durante o período colonial, eram formas insurgentes ao regime, que possibilitaram a sobrevivência e a soberania dos povos negros sobre suas culturas e sobre seus modos de vida. Quilombos urbanos e rurais, Lara da Silva
QUILOMBOLA: ENQUANTO LUTAMOS, SOMOS MOVIDAS PELA ESPERANÇA
PIRES Karina Rejane da Silva ELLIAS
Machado BITENCOURT Rosângela
Cláudia Luísa Zeferino
Este texto apresenta a relação conjunta e participativa de trabalho, além de trocas de saberes entre as autoras, para a construção de perspectivas educacionais no Quilombo dos Alpes, em Porto Alegre (RS) e na cidade. Nosso percurso conjunto vem da problematização de práticas de extensão/comunicação, pesquisa e ensino, vinculadas e comprometidas com a comunidade quilombola. Somos sujeitas, que se integram, porque as narrativas se juntam e se reconstroem nesse processo. Somos movidas pela luta e pela esperança de uma educação com mais equidade, que possa situar o movimento e o direito à cidade e, por isso, a concepção desta narrativa busca visibilizar a caminhada, construída ao longo de sete anos de parceria.
INTRODUÇÃO: NOSSO MOVIMENTO PELA ESPERANÇA
ELLIAS VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
Porto Alegre é a capital brasileira com o maior número de quilombos urbanos1 autorreconhecidos e certificados, pela Fundação Cultural Palmares (FCP). Atualmente, são nove, as comunidades quilombolas autorreconhecidas, porém sete delas estão certificadas pela FCP. Até a atualidade, poucas políticas públicas estão sendo implementadas e as que existem são frutos exclusivos do protagonismo das comunidades quilombolas.
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A demanda por uma educação escolar quilombola na cidade é emergente e foi apresentada como principal reivindicação do movimento quilombola na Conferência Nacional da Educação, em 2010, no Eixo VI – Justiça Social, Educação e Trabalho: Inclusão, Diversidade e Igualdade. Logo, a Resolução CNE/CEB nº 8/2012 constata que a educação escolar quilombola se destina ao atendimento das populações quilombolas rurais e urbanas, em suas mais variadas formas de produções cultural, social, política e econômica. Com base no patrimônio cultural material e imaterial quilombola, “ deve-se garantir aos estudantes o seu direito de se apropriar dos conhecimentos tradicionais e das suas formas de produção de modo a contribuir para o seu reconhecimento, valorização e continuidade” (BRASIL, 2012, p. 3).
A falta de legislação própria e as necessárias reparações históricas, aliadas à notória precariedade de infraestrutura urbana básica, aprofundam ainda mais as desigualdades estruturais enfrentadas pelas comunidades quilombolas.
Esta diretriz salienta, ainda, que escola quilombola é aquela localizada no território quilombola, o que difere de educação quilombola, que deve ser trabalhada por todas as escolas, que atendem comunidades quilombolas, indiferentemente, se urbanas ou rurais. No mapa da Figura 1, é possível observar a espacialização das escolas públicas, próximas aos territórios dos quilombos de Porto Alegre e, na Figura 2, a relação de escolas que constam no mapa.
Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança S OL nos dias atuais, legalmente reconhecidos, são herdeiros destas memórias e destas práticas de resistência. Os quilombos urbanos se fundem com as cidades, conforme se dá o crescimento destas e, não raro, encontram-se nas periferias da cidade e, com isso, confundem-se com as estruturas que estas apresentam.
A resolução também estabelece que esta modalidade de educação deve ser fundamentada, informada e alimentada por diversos marcos, entre eles, a memória coletiva, os valores civilizatórios, os acervos e o repertório oral e a territorialidade. Conjuntamente a esses princípios, a educação escolar quilombola é uma modalidade de educação essencialmente territorial e comunicativa, na qual os sujeitos, estudantes e comunidade escolar, não podem ser ignorados do processo de construção dos currículos, destacado como fator fundamental da configuração de uma educação quilombola.
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1 Fonte: sítio do INCRA, em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-processosabertos-quilombolas-v2. pdf, acessado em: 17 nov. 2020.
716 Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança N S OL Figura 1 – Mapa de localização das comunidades quilombolas e das escolas mais próximas de seus entornos. Fonte: SEDUC/RS (2020) e IBGE (2020)
Educação 2 – Relação de escolas mais próximas do entorno das comunidades quilombolas, presentes no mapa 1. SEDUC/RS (2020)
quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança N S OL Figura
da Figura
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Fonte:
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Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança A educação escolar quilombola, instituída no Brasil, em 2012, como modalidade de ensino orientada pela Resolução nº 8/2012 do Conselho Nacional de Educação (CNE)/Câmara de Educação Básica (CEB), traz para o âmbito legal o reconhecimento do direito fundamental à implementação da educação e de escolas quilombolas nos territórios ou nos entornos dos espaços das comunidades autodeclaradas. Como defendido por Gomes (2013), esta é “[...] uma ação afirmativa, uma forma de colocar em prática políticas, que visam à correção de desigualdades históricas, que recaem sobre determinados grupos sociais e étnico-raciais do país”, tornando-se, assim, uma busca real de acesso a direitos.Apartir do segundo semestre de 2013, através de um convite da Associação Quilombola ao Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente, núcleo de pesquisa/ extensão do curso de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, deu-se início ao processo de mapeamento coparticipativo2 do território, cujo conteúdo é constituído, fundamentalmente, pelas memórias e pelas trajetórias comunitárias vividas com o espaço. Desse período à atualidade, muitas ações de pesquisa/ensino/extensão vêm sendo construídas, sempre pautadas pela pesquisa-ação. A pesquisa-ação corresponde a nossa estratégia metodológica, porque envolve os/as participantes em todas as etapas do processo investigativo (planejamento, desenvolvimento, resultados, avaliação e divulgação), mantém uma ampla relação entre Universidade e comunidade e os resultados/avaliação devem estar comprometidos com os projetos de bem-viver da comunidade e com o diálogo de saberes, movimentando futuros projetos e ações conjuntas.
EXIGE DISPONIBILIDADE
PARA O DIÁLOGO É na disponibilidade, que construímos a segurança, para nos abrirmos ao mundo, indispensável para a construção do respeito às diferenças e aos diálogos das práticas educativas (FREIRE, 1996). É com abertura ao diálogo que inicia a construção da confecção do mapa Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes: Percursos, Memórias e Identidades (sua metodologia está destacada no capítulo Espacialidades Geo-Quilombistas: percursos do nosso fazer). Com a conclusão do mapa das trilhas, evidenciaram-se, no espaço e nas narrativas da comunidade, as necessidades de desenvolvimento territorial, para o benefício comunitário. Desde então, desenvolvemos atividades dialógicas, voltadas para a educação popular e quilombola e para a organização territorial da comunidade. Inicialmente, desenvolveu-se o programa de turismo de base comunitária Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes, com os objetivos de valorizar o trabalho e de promover a geração de renda, a partir do local, através de formações para 2 A metodologia do mapeamento coparticipativo está detalhada no capítulo Espacialidades Geo-Quilombistas: percursos do nosso fazer, presente nesta obra.
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A palavra griô tem origem na tradição oral africana, sendo utilizada para designar mestres, portadores de saberes e de fazeres da cultura, transmitidos oralmente. Segundo a griô Adwoa Badoe, entre os povos do oeste da África, os griôs são aqueles que, há séculos, preservam e transmitem as histórias, principalmente, as que se referem aos grandes líderes e à formação dos reinos, mas, também, às pessoas comuns [...] A palavra griô, ao ser incorporada à cultura brasileira, teve seu sentido ampliado, sendo agregadas ao ofício do griô outras ações, como cantoria, dramaturgia, danças, além da contação de histórias, mas sem perder sua referencialidade, quanto à valorização de transmissão de saberes, por meio da tradição oral (PORTO, 2016).
4 O vídeo organizado pelo coletivo audiovisual Catarse pode ser acessado no link: https://www.youtube.com/ watch?v=1WbPW7KHhB4&ab_channel=ColetivoCatarse
Em 2017, destacamos três oficinas: a primeira, sobre máscaras africanas, que objetivou construir, junto às crianças e aos jovens, suas representações do território, a partir da construção desse elemento cênico ancestral; a segunda, foi 3
Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança S OL educandos e para educadores de escolas públicas e privadas, assim como para grupos da sociedade civil, em geral, tendo, como objeto, os conteúdos da Lei nº 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade de propagação de conteúdos da História e da Geografia de África, associados às relações da cultura afro-brasileira. A divulgação deste programa educacional é feita em uma página da rede social Facebook (https://www.facebook.com/pelastrilhasdoquilombo). Nela, apresentamos e compartilhamos as experiências de aprendizados, construídas na comunidade quilombola. A Figura 3 representa o material de divulgação. As rodas de conversas e as trilhas guiadas são ministradas pela mestra griô3 Rosângela da Silva Ellias (a Janja) (figuras 4 e 5). Essas ações são planejadas e acompanhadas pela comunidade e contam com o apoio da Universidade. O programa de visitação/educação Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes desenvolve atividades, para uma educação quilombola de e sobre Porto Alegre, promove exercícios de apresentação e de interpretação do mapa das trilhas, assim como aproximações pedagógicas com o ensino formal nos níveis de educação básico e superior.Oprograma de visitação da comunidade Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes evidenciou a necessidade de instrumentalização dos comunitários, para o compartilhamento das memórias e dos modos de vida tradicionais do Quilombo. Assim, as práticas pedagógicas, realizadas pelo NEGA/UFRGS e pela Associação Quilombola, foram se consolidando, cada vez mais. Para a divulgação e para o conhecimento prévio do território, foi organizado um vídeo, que apresenta o Quilombo dos Alpes e as suas territorialidades4. Além do público externo atendido, as práticas promovem debates sobre as educações antirracista e quilombola, e atividades, voltadas a atender às crianças e aos jovens quilombolas, também foram desenvolvidas, em 2017 e em 2018, através de ciclos de oficinas, ofertados durante os meses de inverno. As experiências organizadas no contraturno das aulas escolares das crianças e dos jovens da comunidade e, em alguns casos, durante o período de férias, trouxeram, em suas súmulas, as dimensões ético-estéticas da temática quilombola e das identidades territoriais.
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Figura 3 – Folder de divulgação de atividades, que podem ser realizadas no Quilombo dos Alpes. Fonte: arte da capa: Lara Machado Bitencourt. Organização do folder: Marina Orlandi Goulart (2016)
Figura 4 – Roda de conversa entre a Janja e um grupo de estudantes do Curso de Geografia da UFRGS Fonte: NEGA (2018)
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Fonte: NEGA (2016)
721 Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança N S OL sobre a cartografia dos marcadores territoriais do quilombo, sob a perspectiva dos jovens (Figura 6), cuja sistematização foi proposta na monografia de conclusão do curso de licenciatura em Geografia de Matheus Eilers Penha, em 2017; e, por fim, a terceira, foi sobre muralismo, trazendo uma oficina de arte de rua para o espaço da sede da Associação Quilombola e culminando em um mural, elaborado pelos jovens, em parceria com o professor de Geografia e muralista Ben-Hur José Soares. As oficinas de 2018, realizadas com os jovens, ganharam novos parceiros e se desenvolveram, a partir de quatro atividades: a primeira delas foi a oficina de identidade e de ancestralidade, focada na criação de autorretratos e da árvore genealógica das crianças e dos jovens. A segunda, uma oficina de horta comunitária, foi desenvolvida, em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAMS), junto ao setor de educação ambiental, contando com a confluência dos usos e da lida com a terra. Na sequência, a terceira oficina de 2018 contou com a parceria do professor de matemática Ernani Freitas, que trouxe o jogo da Mankala, que trata de uma metáfora matemática para o ciclo da colheita, que era jogado, através de um tabuleiro, pelos povos egípcios originários. Encerrando as atividades daquele ano, realizamos, em conjunto com a professora de dança e educadora social Clarisse Moraes, o percurso dos territórios negros do Centro de Porto Alegre, em que, através de uma saída de campo guiada, os jovens puderam ter contato com as memórias das presenças negras na cidade, para além dos registros de violência, que unicamente inferiorizam a condição do povo negro no currículo Figura 5 – Trilha com estudantes e professores da EMEF Gabriel Obino
Figura 6 – Oficina dos marcadores territoriais, com crianças e com jovens, no Quilombo dos Alpes. Fonte: NEGA/UFRGS (2017) escolar. No Quadro 1, listamos as oficinas realizadas, com registro em vídeo de seusAsdesenvolvimentos.atividadesdesenvolvidas entre 2017 e 2018 tiveram, por objetivo, considerar os saberes e os valores afro-civilizatórios, que são inerentes às identidades quilombolas. Alinhadas à Resolução CNE/CEB nº 8/2012, estas oficinas serviram, também, para despertar uma consciência narrativa das trajetórias negras e quilombolas dos sujeitos do Quilombo dos Alpes, de modo a suprir lacunas formativas, negligenciadas nos currículos escolares formais, que carregam marcas profundas do racismo estrutural, presente em nossa sociedade. Para o antropólogo Kabengele Munanga (2005), as consequências de uma educação, que ignora os valores civilizatórios afro-brasileiros, incidem em situações preocupantes de evasão e de repetência, pois: [...] aceitar que a questão da memória coletiva, da história, da cultura e da identidade dos alunos afro-descendentes, apagadas no sistema educativo baseado no modelo eurocêntrico, oferece parcialmente a explicação desse elevado índice de repetência e evasão escolares. Todos, ou pelo menos os educadores conscientes, sabem que a história da população negra quando é contada no livro didático é apresentada apenas do ponto de vista do “Outro” e seguindo uma ótica humilhante e pouco humana. (MUNANGA, 2005, p. 16)
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Na esteira do programa das trilhas, a partir de 2016, teve início a implementação das bases do Projeto Habitacional Quilombo dos Alpes – JV, financiado pelo
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Mankala: um antigo jogo, de origem africana, que utiliza sementes e que se relaciona ao ciclo da semeadura. Seu principal objetivo, ao simular o ato de semear, é ilustrar a germinação das sementes na terra, o seu desenvolvimento e a sua colheita. Nesta oficina, o professor de matemática Ernani Freitas estimulou o raciocínio lógico dos jovens do Quilombo, por meio da atividade lúdica do jogo da Mankala.
Horta: nesta oficina construímos uma horta coletiva no quilombo, com o objetivo de resgatar as memórias de vínculo com a terra presentes nos quilombolas. Para esta atividade, contamos com a participação da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Sustentabilidade (SMAMS) sob a orientação do geógrafo Carlos Henrique de Oliveira Aigner.
Acesso ao vídeo: Acesso ao vídeo:
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Ancestralidade: para resgatar a ancestralidade da matriarca Edwirges, primeira moradora do morro dos Alpes construímos junto às crianças e jovens seus autorretratos, refletindo também sobre suas origens e relações de parentesco. Organizados os desenhos em uma árvore de tecido, foi possível desenvolver a uma árvore genealógica que representa a presença destas famílias na comunidade do Quilombo dos Alpes.
Acesso ao vídeo: Acesso ao vídeo:
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A cidade aos pés do Quilombo: a educadora social Clarice Moraes apresenta neste vídeo as memórias do percurso dos territórios negros em Porto Alegre. Através da mediação de Clarice, os jovens quilombolas vão conhecendo as histórias e geografias da presença negra na cidade desde a saída do Quilombo dos Alpes
A necessidade de uma educação quilombola territorial se faz indispensável, assim como o desejo da implementação de uma escola quilombola, dentro do território da comunidade. Por isso, foram engendradas práticas pedagógicas, junto e a partir da comunidade quilombola dos Alpes, através de oficinas, ocorridas em 2017 e em 2018. No entanto, com o estreitar dos laços de parceria e com a implementação do projeto habitacional, a relação pedagógica também tem se estendido aos adultos, através de práticas pedagógicas, desenvolvidas em aulas regulares, ao longo de 2019 e de 2020 (Figura 7).
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A PRESENÇA QUILOMBOLA E SEUS SABERES, COMO POSSIBILIDADE DE UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA
Devido à pandemia de Coronavírus, as aulas regulares foram suspensas e atividades a distância estão sendo experimentadas, considerando as limitações da inclusão digital, às quais estão submetidas as comunidades quilombolas e periféricas. Neste espaço, estamos construindo as bases de uma escola quilombola, alicerçada em currículos popular e territorial, que contam com a transdisciplinaridade multisseriada e com preceitos da Pedagogia Situada, de Freire (1986), mediada pela dialógica, enquanto fundamento metodológico desta prática Atualmente,pedagógica.asobrasse encontram em curso e, junto ao projeto habitacional, estamos desenvolvendo o projeto de trabalho técnico social, fundamentado na criação de uma escola quilombola no território do Quilombo dos Alpes. O objetivo é de atender, não, só, à população local, mas de aproveitar as condições espaciais do território do Quilombo dos Alpes para acolher a primeira escola quilombola de Porto Alegre, capaz de atender a toda a população quilombola da cidade, haja vistas as demandas deste público por um currículo escolar, voltado à valorização dos saberes e dos fazeres quilombolas.
Para compreender a educação escolar quilombola, faz-se indispensável observá-la, também, pelos vieses das educações territorial e libertadora, portanto, geograficamente situadas, tomando, por orientação, os modos de ser e de fazer dos sujeitos, que vivenciam o lugar. A implementação de uma escola quilombola
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Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) e gerenciado pelo Ministério das Cidades (atual Ministério do Desenvolvimento Regional), através do Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades. Com o objetivo de construir 50 unidades habitacionais, dentro do território do Quilombo dos Alpes, o projeto habitacional vem sendo implementado, a partir de oficinas de formação de moradores, com atividades de conhecimento e de integração, com base nas diretrizes do edital, realizadas durante os anos de 2016 e de 2017 Em 2018, o projeto foi selecionado e assinado pelas 50 famílias beneficiárias.
no território do Quilombo dos Alpes possui o papel reparador de séculos de exclusão social e faz parte de projetos mais amplos de organização e de gestão territorial, que visam a atender às comunidades quilombolas de Porto Alegre e, não, apenas, ao Quilombo dos Alpes, pois, a partir desta experiência, será possível estreitar os vínculos entre os quilombos e os quilombolas de Porto Alegre, bem como incentivar à implementação de outras escolas quilombolas na cidade.
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Algumas experiências educativas estão se consolidando nas comunidades remanescentes de quilombos [...] boa parte dessas atividades governamentais é de projetos de extensão universitária. Tais experimentos pedagógicos, embora tenham impacto relativamente intenso no interior Figura 7 – Oficina de letramento para jovens e para adultos Fonte: NEGA (2019)
É importante destacar que esta questão deve ser encabeçada pelo poder público, através das secretarias municipal e estadual de Educação, em parceria com o Ministério da Educação, em âmbito federal, uma vez que se tratam de medidas de extrema importância, para a diminuição das desigualdades estruturais, e de grande valor reparatório, que não podem ser sustentadas pela extensão universitária, apenas. Como destaca Paulo Sérgio da Silva (2016):
Esforços, realizados para aproximar as escolas, que atendam à comunidade, têm sido empreendidos, pelo Quilombo dos Alpes, e procuram promover a aproximação e a valorização da cultura quilombola, junto a toda a comunidade da Estrada dos Alpes, frequentadora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriel Obino e da Escola Estadual de Ensino Fundamental Baependi.
Deste modo, é indispensável, a mobilização da estrutura do Estado, em suas distintas esferas de representação, tal qual observa Paulo Sérgio da Silva (2016), para que sejam atendidas às demandas das estruturas física e institucionalizada da escola quilombola e para que se desenvolva um projeto de educação quilombola de qualidade, capaz de atender aos diferentes níveis de ensino da educação básica, acolhendo, não, só, a população quilombola dos Alpes, mas, também, toda a população quilombola de Porto Alegre.
Igualmente, a partir das experiências dos programas das trilhas e das oficinas educativas realizadas, o Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente (NEGA/ UFGRS) organizou o relatório técnico Pelas Trilhas do Quilombo dos Alpes –Experimentações para uma educação escolar quilombola (BITENCOURT et
Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança S OL das comunidades, não conseguem mobilizar a estrutura do Estado, em suas distintas esferas de representação (municipal, estadual e/ou federal), para efetivar uma educação de qualidade, diferenciada, e que atenda os interesses específicos das comunidades remanescentes de quilombos, uma vez que estão restritas ao âmbito de organizações não-governamentais e de projetos de Extensão Universitária, havendo raras experiências no ambiente dos cursos de formação de professores. (SILVA, 2016, p. 76-77, grifo do autor)
Tem se mostrado tão necessário quanto urgente reconhecer os esforços, para a afirmação de uma educação quilombola em Porto Alegre, a partir e para além do Quilombo dos Alpes, pois as faltas de identificação e de pertencimento, por parte dos sujeitos, em relação à escola, associadas à falta de reconhecimento de suas trajetórias e das de seus antepassados, são fatores que favorecem ao abandono escolar. Igualmente, as carências de significação dos saberes quilombolas, dentro da escola formal, frente às demandas da vida cotidiana, e de infraestrutura básica nas periferias urbanas contribuem para o aumento das desigualdades sociais, estrutural falando.
O desejo por uma escola quilombola, sediada no território do Quilombo dos Alpes, sempre foi um sonho, mas, também, uma necessidade, identificada por Rosângela Ellias (Janja) e pelas demais lideranças quilombolas, pois, além de garantir uma educação identitária para as gerações mais novas, representaria uma oportunidade de as gerações mais antigas venceram os obstáculos, gerados pelas exclusões sociais e reproduzidos no universo da escola, que, não raro, ocasionaram e ocasionam a evasão escolar, por parte dos adultos e, também, dos jovens da comunidade.
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Em 2019, através de projeto promovido pelo Memorial da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, foram realizadas oficinas, que promoveram trocas de saberes entre as comunidades quilombolas e as comunidades escolares de Porto Alegre. Deste projeto, resultou a publicação do livro Memórias de trabalho e não trabalho quilombola, organizado por Marcio Meireles Martins, em 2019. Estas e outras iniciativas, promovidas pela universidade, pelos movimentos sociais organizados, com destaque para a Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, que instituiu o Coletivo de Educação, e pelas próprias comunidades representam alguns dos esforços, engendrados pela população quilombola de Porto Alegre, para visibilizar a importância de sua presença, de sua ancestralidade e de sua cultura na construção da cidade. A implementação de uma escola quilombola em Porto Alegre se mostra urgente e necessária. Os esforços empregados pela Associação Quilombola dos Alpes, através da parceria desenvolvida com o Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA/UFRGS), contribuem significativamente para a construção da escola quilombola dos Alpes, contudo a formalização desta escola carece de financiamento e de apoio públicos. As oficinas, desenvolvidas após a conclusão da cartografia das memórias do território do Quilombo dos Alpes, têm fomentado a valorização da identidade quilombola, reforçando uma compreensão negligenciada pela escola formal, ao afirmar que os saberes locais e que os conhecimentos ancestrais do Lugar e do Território quilombolas têm valor e importância na História e na Geografia da cidade, e isso estimula os jovens a se reconhecerem e a participarem da organização comunitária e catalisa a movimentação política da comunidade para além daquela, já exercida pelas lideranças, pois dialoga individualmente com cada sujeito, que se percebe no mundo.
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Educação quilombola: enquanto lutamos, somos movidas pela esperança S al., 2018), que serviu de instrumento, para reivindicar a escola quilombola do Quilombo dos Alpes. Assim, em setembro de 2018, em reunião com a, então, secretária municipal adjunta de Educação Ivana Flores, o NEGA/UFRGS e a Associação Quilombola dos Alpes demandaram, a esta secretaria, medidas, para a efetivação da escola quilombola, dentro do território do Quilombo dos Alpes. Neste encontro, foram destacados os recursos orçamentários, destinados à educação quilombola, existentes no Plano de Ações Articuladas (PAR), promovido pelo Ministério da Educação. Apesar da relevância da demanda e da pertinência das justificativas, não houve notícias sobre nossas solicitações, desde então.
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Foto: Ariel Rocha de Lima, 2021
PELAS TRILHAS
ELLIAS Karina Rejane da Silva ELLIAS
Janja: “Eu conto, sempre, que são 170 anos de existência e de resistência. Existência, porque a gente continua existindo, lá, na área, e resistindo, por conta do reconhecimento, de quando nós nos autoidentificamos como comunidade quilombola.Domomento, em que a gente se autorreconheceu como comunidade quilombola, eu perdi minha identidade; não, de resistência, porque continuamos resistindo, cada vez, com mais força. Mas perdi a identidade, porque, a partir daí, tem todo um processo de reconhecimento, que passa por todos os estudos e as pesquisas, para a titulação. E isso, para mim e para todos nós, era tudo novo; é mexer com documentação, com leis, com coisas do governo. Eu sempre lutava para estar bem longe de política, mas, a partir daí, eu virei uma cidadã! Comecei a votar, porque, até então, eu não me preocupava com título; me mantinha e * Relato obtido a partir do áudio do acervo da disciplina interepistêmica Encontro de Saberes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do segundo semestre de 2017. É organizada pelo coletivo de docentes: Ana Tettamanzy, Carla Beatriz Meinerz, Celina Alcântara, Claudia Luisa Zeferino Pires, Eráclito Pereira, Ingrid de Barros, José Otávio Catafesto de Souza, José Rivair Macedo, Luciana Prass, Maria Elizabeth Lucas, Marília Raquel Albornoz Stein, Mauro Silveira de Castro e Rumi Regina Kubo. Transcrição do áudio: Lara Machado Bitencourt e Taís de Freitas Munhoz
Rosangela da SilvaDO QUILOMBO DOS ALPES, ATRAVÉS DAS PEDAGOGIAS E DAS QUILOMBOLASMEMÓRIASDA
“Meu nome é Karina Rejane da Silva Ellias. Sou filha-irmã da Janja e a acompanho, desde que nasci. Sou moradora do Quilombo dos Alpes e também trabalho na comunidade, como agente comunitária de saúde do Instituto Municipal de Estratégia da Saúde da Família (IMESF) Estrada dos Alpes.”
VOLUME 2 EPISTEMOLOGIAS QUILOMBOLAS
“Meu nome é Rosangela da Silva Ellias, mas todos me conhecem por Janja. Sou presidenta da Associação Quilombola dos Alpes D. Edwirges e moradora do Quilombo dos Alpes.”
COMO CITAR: ELLIAS, Rosangela da Silva; ELLIAS, Karina Rejane da Silva. Pelas trilhas do quilombo dos Alpes, através das pedagogias e das memórias quilombolas da Janja e da Karina Ellias. In: PIRES, Cláudia Luísa Zeferino; BITENCOURT, Lara Machado (org.). Atlas da presença quilombola em Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Letra1, 2021, p. 733-737 733733
JANJA E DA KARINA ELLIAS*
Como a Janja disse, é uma honra, mesmo, para nós, estarmos aqui, no espaço da universidade, porque, no momento em que a universidade começa a se abrir e começa a entender que a gente tem o que falar, tem o que dizer, tem mensagens, nós deixamos de ser somente um objeto de estudo, de pesquisa, da universidade, que vai lá, no quilombo, fazer a sua pesquisa e que quer entender como estão funcionando, as coisas, para a gente, mas que, depois, não dá retorno.
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Pelas trilhas do quilombo dos Alpes, através das pedagogias e das memórias quilombolas da Janja e da Karina Ellias S conseguia me manter, sem nada disso. Conseguia sobreviver e criar meus filhos e meus sobrinhos, sem precisar estar indo votar e ver toda essa safadeza, que está acontecendo, aí, com o nosso país, e entregar nossa existência na mão de pessoas que não tem o mínimo de respeito.
Daí, eu perdi uma identidade, mas estou sobrevivendo; estou conseguindo resistir e estou levando adiante, até porque, no momento, em que a gente se autorreconhece, nós passamos a ter todo uma documentação, para poder manter e para registrar a associação, podendo, a partir de então, encaminhar e reivindicar os direitos de trazer melhorias e estruturas para a comunidade.”
1 A entrevistada se refere ao espaço da disciplina Encontro de Saberes, da UFRGS.
Karina: “Então, a nossa vinda aqui1 é muito importante e muito significante para a comunidade, como um todo. É uma pena não estar toda a comunidade, aqui; os grandes e os pequeninos nos vendo, aqui. Acho que, cada vez mais, a gente tem que frequentar esse espaço, que também é nosso. Assim como toda a vez que vocês vão, lá, no Quilombo, nós recebemos vocês super bem.
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Virmos até aqui e poder ter esse momento de falar é bem gratificante; é muito importante [...], porque, a respeito das comunidades quilombolas, cabe falar que Porto Alegre é a capital que tem mais comunidades quilombolas urbanas. Atualmente, são seis2 comunidades quilombolas urbanas, aqui, e é incrível, que, nos espaços, como o da universidade, das escolas e, mesmo, das secretarias municipais e estaduais, o pessoal ainda não se apropriou dessa informação, pois essa informação não é tão divulgada. Logo, um dos motivos, pelo qual nós viemos, aqui, é esse: nós também queremos contribuir e queremos que a nossa história seja vista pelo nosso ponto de vista. Claro, vocês vão ter as opiniões de vocês sobre o quilombo, mas o importante é que vocês ouviram as pessoas, que moram no quilombo, falando. Não são as pessoas que foram lá e que trouxeram a informação. São o resgate e o registro das nossas vidas e das dos nossos ancestrais, contadas do nosso ponto de vista”.
2 Entre 2017 e 2020, as comunidades quilombolas dos Flores e dos Lemos se autorreconheceram e foram certificadas, pela Fundação Cultural Palmares, ao passo que as burocracias do autorreconhecimento das comunidades de Ouro e Mocambo seguem tramitando. Deste modo, atualmente, são nove, as comunidades quilombolas urbanas em Porto Alegre.
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Janja: “Quanto mais se conta sobre a história do nosso povo e dos nossos ancestrais, mais coisas nós vamos descobrindo e mais coisas vão aparecendo. É um processo que demora, até juntar todo esse quebra-cabeça. Então, não é só resgatar, ali, os Alpes; antes de chegar aos Alpes, nossa ancestral, a Vó Edwirges, veio de algum lugar e, antes desse lugar, os ancestrais dela vieram de outros lugares, logo, é bem longo, esse processo.
na importância de resgatar e de tentar registrar, que nem diz a Karina. Há muitos anos atrás, a gente não tinha o costume de fotografar, até porque, era muito caro, para se ter uma máquina. Entre comprar um pão ou um calçado, uma roupa para nós, quando criança, e comprar a máquina, nós ficávamos com a alimentação e com as roupas. Logo, a gente quase não tem fotografias nossas, de quando criança. Em compensação, das nossas crianças de agora, tem até demais, né Karina? E, hoje em dia, até das formigas a gente tira uma foto, que é para ficar registrado!
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daquele tempo, mas nem tudo tem registro. Tive esse privilégio e, hoje, ainda mexo com meus irmãos, pois tem coisas de que eu falo, que eles dizem que não conseguem lembrar, então eu digo: ‘bem feito! Só queriam ficar correndo; não ficavam perto da Vó; perderam de escutar!’ Tem coisa que ficou gravada da fala da Vó, que não consigo me esquecer; e do tio Wilson, que era um dos filhos dela, que eu também tive o privilégio de ter conhecido. Além deles, conheci mais duas irmãs da Vó, porque, depois da chegada dela 3 O depoimento da Vó Edwirges está registrado no livro Memória dos Bairros – A grande Glória (PMPA, 1995).
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Tem um relato dela, em vida, contando sua chegada3. Quando a Vó diz que veio de muito longe, ela não sabia nem dizer em que local estava; não sabia dizer nem a cidade ou a região. Mas ela dizia: ‘Eu caminhei muito! Dia, noite e, quando cheguei aqui, cheguei sem os coros dos pés de baixo”. Daí, a gente também reconhece a importância do resgate e dos estudos, pois foram os pesquisadores, que foram atrás, o que foi uma coisa bem boa, porque, senão, essa memória ia acabar com a Vó. No relato que ela deixou, não conta de onde veio, porque eu também acho que ela não sabia dizer, mas, com o estudo, com as pesquisas, a gente conseguiu saber e resgatou essa memória. A Vó veio, caminhando, de
Antigamente, eu não sabia da importância de ter guardados uma foto ou documentos do nosso lugar. Mas, com o processo de titulação, hoje em dia, a gente já passa para os nossos essa ideia de preservar, de tomar cuidado, de registrar o que puder e guardar. Foi por ter guardado o relato da Vó em vida, e algumas fotografias e documentos do passado, que fortaleceu o nosso autorreconhecimento.Eutenhotantarecordação
Pelas trilhas do quilombo dos Alpes, através das pedagogias e das memórias quilombolas da Janja e da Karina Ellias
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Quando nós falamos o porquê do quilombo e o que é ser quilombola, a cada dia que passa, quanto mais eu falo, vou aprendendo e me dando conta de que não é só no papel. É o convívio, as nossas vivências e a maneira, com que nós vivemos, ali. A gente quase não saí do território. Nós somos muito conservadoras; muito reservadas, no sentido de preservar nossa forma de viver naquele lugar. Para mim, ser quilombola é isso: é essa aproximação com a família; que nem agora, que eu cuido do tataraneto da tia Joana, de quem eu tenho algumas lembranças, mas com quem não cheguei a conviver muito; nem com ela, nem com os meus primos, mas, agora, nessa volta da vida, ‘tô convivendo com o tataraneto dela. Eu tenho bastante recordação das rodadas dos cantos, puxados pelos meus tios e pelo meu avô; deles estarem no terreiro e das festas, que acontecem ali, mesmo, em que um convida o outro. A nossa família é bem grande, então tem os irmãos, os sobrinhos, os netos, e todos nós moramos muito próximos, uns dos outros. Tem uns, até, que, se saem da porta da sua casa, já entram na porta do outro. Mas, para a gente se encontrar e se conversar, é quando um vai ver a mãe, porque a minha mãe é o centro; é lá que a gente consegue se reunir; é onde eu consigo falar com o meu irmão mais velho ou com o meu outro irmão; isso que, da minha casa, eu olho a casa dele, mas tem dias que a gente nem chega a se ver. Mas, quando bate o final da tarde e vem todo mundo, chegando do serviço, a gente se reúne em volta da mãe e é onde a gente consegue conversar, se entender, planejar o futuro da nossa família e da comunidade. Daí, é sobrinho, é neto, é cachorro, é gato, é todo mundo junto! Para mim, um pouco de ser quilombola é isso: é a maneira de viver!
Pelas trilhas do quilombo dos Alpes, através das pedagogias e das memórias quilombolas da Janja e da Karina Ellias S nos Alpes, ela ainda conseguiu reencontrar com três irmãs. Duas, eu cheguei a conhecer; a terceira, quando eu nasci, já havia falecido. Uma delas era a tia Jaci, uma mulher fora de série, que morou onde tem umas matas, no núcleo, em frente de onde, hoje, está a sede da associação, que a gente briga, para não sair dali, porque era a moradia dela; era para onde nós corríamos, para buscar lenha para a Vó. Ficava no pé de um morro e a tia Jaci cavoucou um paredão, tipo barranco, e ali foi a casa dela. Nós achávamos o máximo, porque era como se ela estivesse morando, dentro duma caverna. Eu fugia da minha mãe; mentia que ia buscar lenha no mato e corria para a casa da tia Jaci. A outra tia era a Joana, que veio a falecer, quando eu era criança, logo eu convivi pouco tempo com ela, mas era muito querida! Ela deixou filhos e primos e, agora, a gente cuida dos nenês dos familiares, para eles irem trabalhar. Então, estou com um, lá em casa, que é tataraneto da tia Joana. Então, eu falo: ‘tu é meu primo!’ e ele, bem pequenininho, acha fascinante!
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BABALOLÁ DUMISSAI | MESTRE PERNAMBUCO | WALDEMAR PERNAMBUCO LIMA
ÁLVARO LUIZ HEIDRICH Bacharel em Geografia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1980), mestre em Geografia, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1985), e doutor em Ciências (Geografia Humana), pela Universidade de São Paulo (1998), pós-doutor, pela Universidade Federal Fluminense (2017), professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2019) e credenciado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua na pesquisa e na orientação em Geografia Social (UFRGS e CNPq), com ênfase no estudo dos vínculos territoriais, da apropriação e das práticas espaciais.
Carnavalesco, criador da Banda Dk e da Rua do Perdão (um espaço aberto ao povo). Presidente e criador da Escola de Samba Pirilampos, compositor, criador do Grupo Temático Pedagógico Ponto Z (Z de Zumbi), escritor, fundador do Teatro de Arena de Porto Alegre, professor mestre em pedagogia griô, ex-secretário de Educação de Sapucaia do Sul, militante e referência em filosofia política, social, cultural quilombista, nacionalista e gaúcho honorário, por trabalhos realizados na cultura e na educação. Contato: waldemarpernambuco@gmail.com
739 N S OL ALAN ALVES-BRITO Homem negro, gay, nordestino, astrofísico, bacharel em física (UEFS), mestre e doutor em ciências (USP, astronomia), com pós-doutorados no Chile e na Austrália. Professor adjunto no Instituto de Física da UFRGS, desenvolve atividades de ensino, pesquisa, extensão e gestão. Integra os Programas de Pós-graduação em Física e em Ensino de Física e coordena o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da mesma instituição. Membro de variadas sociedades de ciência, coordena o PLOAD (Portuguese Language Office of Astronomy for Development) e é representante brasileiro no Office for Education, ambos da União Astronômica Internacional. Foi membro da diretoria da Sociedade Astronômica Brasileira (2018-2020) e integra os Grupos de Trabalho para Questões de Gênero e Equidade Racial da Sociedade Brasileira de Física. Autor de 2 livros de divulgação, um deles finalista do Prêmio Jabuti 2020 na categoria Ensaios de Ciências, tem experiência em temas variados de astrofísica, educação e divulgação em ciências. Idealizador e coordenador dos Projetos Zumbi-Dandara dos Palmares e Akotirene Kilombo Ciência, ambos voltados para a promoção da equidade racial. Ìyàwó Dofono de sì no Ilê Axé Ogunjá, localizado no Recôncavo da Bahia.
Licenciada, bacharel e mestra em Geografia pela UFRGS. Já atuou como pesquisadora em projetos de pesquisa e, atualmente, é professora na educação básica e doutoranda em Geografia na Contato:UFRGS.mandi.bahi@gmail.com
AMANDA CRISTINA BAHI DE SOUZA
Contato: alvaro.heidrich@gmail.com
Contato: alves.brito.a@gmail.com
BEATRIZ GONÇALVES PEREIRA, ‘MÃE BIA’ Moradora e liderança comunitária da Ilha da Pintada, educadora popular e Yalorixá do Terreiro Centro de Umbanda Reino de Iemanjá e Oxóssi do Povo Banto. Contato: biatabaxe@yahoo.com.br
Segunda secretária da Associação Quilombola dos Alpes D. Edwirges, liderança comunitária e filha de Rosangela da Silva Ellias.
Contato: quilombodosalpes@gmail.com
DANIELA RODRIGUES ESPÍNDOLA
Professora do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e integrante do Núcleo de Estudos em Geografia & Ambiente (NEGA/UFRGS), ministrando o curso Aperfeiçoamento UNIAFRO – Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola, promovido pela Faculdade de Educação/UFRGS. Atua junto ao coletivo de professores da disciplina Encontro de Saberes, vinculada ao NEAB/UFRGS. Contato: claudia.pires@ufrgs.br
CLARICE MORAES Graduada em dança, pela UERGS, e pós-graduada em Estudos Culturais, pela UFRGS.
Graduado em Licenciatura em Geografia, pela FURG, especialista em Educação na Diversidade e mestre em Geografia, pela UFRGS. Atualmente, atua como professor na rede municipal de ensino de Porto Alegre/RS. Participante do Coletivo QuilomBonja.
Integrante do Departamento de Educação do Quilombo Mocambo (Associação de Remanescente de Quilombo – Amigos e Moradores da Cidade Baixa e Arredores – Mocambo), que faz parte do processo de preservação e de promoção dos direitos da comunidade negra da Cidade Baixa, desde a década de 1970. Professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre, especialista em História Africana e Afro-Brasileira, pela Faculdade Porto-Alegrense (FAPA), e em Alfabetização e Letramento, pela PUCRS, e graduada em Letras – Português e Literatura de Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
DAIANE DA SILVA ELLIAS
CLÁUDIA LUÍSA ZEFERINO PIRES
Professora do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atua junto ao coletivo de professores da disciplina Encontro de Saberes, vinculada ao NEAB/UFRGS.
Contato: carlameinerz@gmail.com
CARLOS HENRIQUE DE OLIVEIRA AIGNER
Licenciado em Geografia, Mestre em Geografia e Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS. Atua como professor na rede municipal de ensino de Porto Contato:Alegre/RS.carlosaigner8@gmail.com
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Contato: bruno.geo@hotmail.com
Contato: clariceafefe@gmail.com
CARLA BEATRIZ MEINERZ
Contato: danielaespindola@gmail.com
BRUNO XAVIER SILVEIRA
Contato: dmkbgeografia@gmail.com
DHARKSON DA ROSA SEVERO Estudante do 3º ano do ensino médio na Escola Estadual Monsenhor Leopoldo Hoff e estagiário na empresa Caixa Econômica Federal. É participante do Coletivo QuilomBonja. Contato: dharksonsevero470@gmail.com
741 N S OL DANIELE MACHADO VIEIRA
Doutoranda em Geografia no Programa de Pós-Graduação em Geografia (POSGEA) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e docente na rede municipal de ensino de Porto Alegre/RS. Contato: daniele_vieira48@yahoo.com.br
DIEGO MITTMANN KAISER BARBOZA Bacharel em Geografia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2020), e, atualmente, aluno da Licenciatura em Geografia na mesma universidade. Atua no NEGA/UFRGS, desde 2016.
ÊNIO MESSIAS NUNES Morador do bairro Restinga/Porto Alegre/RS e memória viva do bairro Ilhota.
EUGÊNIO SILVA DE ALENCAR | MESTRE PARAQUEDAS Eugênio Silva de Alencar, mais conhecido como Mestre Paraquedas é músico, compositor, carnavalesco e artista plástico, fundador de várias escolas de Samba de Porto Alegre, entre elas a Academia de Samba Puro, Realeza e a Tribo Carnavalesca Os Comanches. Pesquisador e Mestre da Cultura Popular, foi professor na disciplina de Saberes Populares e Tradicionais da UFRGS de composição de sambas enredo, integrante da Frente Quilombola RS e do Instituto Cultural Afrosul/Odomodê, onde é reconhecido como Mestre Griô.
FABIANE FIGUEIREDO XAVIER Moradora e liderança comunitária do Quilombo do Areal e secretária da Associação Comunitária e Cultural do Quilombo do Areal. Contato: fabiffx@gmail.com
DANUZA MENEGHELLO Formada em Geografia, pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestra, pelo Programa de Pós-Graduação em Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2018), professora efetiva do Colégio de Aplicação e capoeirista do Grupo Capoeira Angola Palmares, desde 1990. Contato: dmeneghello11@gmail.com
DUAN KISSONDE Poeta, graduando do curso de História da UFRGS, bolsista CNPq e pesquisador das territorialidades negras em Porto Alegre. Contato: duanbarcelos@gmail.com
ELISANDRO OLIVEIRA VIEIRA, ‘CAÇAPA’ Capoeirista e professor de capoeira e morador e liderança comunitária do Quilombo dos Machados.
742 N S OL FRANCINE
Contato: gsichelero@gmail.com
Contato: gskaaercher@gmail.com
Contato: gaboqueiroz@gmail.com
Filho de Rosalina da Costa Vasconcelos e morador do Quilombo dos Flores.
SUELEN DA ROSA MARTINS
Filha de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa, quilombola do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas.
GUSTAVO FLORES Filho de Geneci de Lourdes Flores e morador do Quilombo dos Flores.
Estudante de Bacharelado em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e atua no NEGA/UFRGS, desde 2018.
Contato: geni.flores10@gmail.com GERSON FLORES
GENECI DE LOURDES FLORES
Professora associada do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenadora do Uniafro/UFRGS, membro do GT 26 do TCE/RS e idealizadora do giz de cera cor de pele PINTKOR/UNIAFRO.
GLÓRIA FARIAS GONCALVES
Tia de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa e memória viva das trajetórias do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas.
Liderança do Quilombo dos Flores, faz parte do projeto social e comunitário Geração Tigres FC, é militante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul e titular do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável de Porto Alegre (COMSANS).
Natural do Recife (PE), reside atualmente em Porto Alegre (RS), possui graduação em Design Gráfico, pelo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), e graduação em Cinema e Audiovisual, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é mestrando em Geografia (UFRGS), com a temática de paisagens sonoras em territórios negros no RS. Desde 2003, desenvolve trabalhos, relacionados à audiovisual, à ilustração e ao design gráfico. É designer, técnico de som direto, artista transmídia e pesquisador autônomo do campo de sonoridades, em suas relações com artes, com tecnologia, com design, com Geografia e com espiritualidade, buscando aprofundar estes campos numa perspectiva afrocêntrica. Atua, enquanto cineclubista, em comunidades negras de Recife e Olinda (PE) e de Porto Alegre (RS), junto ao Cineclube Bamako, pelo qual também realiza produções audiovisuais. Também é educador popular, com experiências em design, em som, em audiovisual e em arte tecnológica.
GLÁDIS ELISE PEREIRA DA SILVA KAERCHER
GIULIA ASSUNÇÃO SICHELERO
GABRIEL MUNIZ DE SOUZA QUEIROZ
JOSÉ RIVAIR MACEDO Casado e pai de quatro filhos(as), nasceu no Paraná, morou e se formou em São Paulo e vive no Rio Grande do Sul, desde o ano de 1994. É licenciado em História, pela Universidade de Mogi das Cruzes (1985), e doutor em História Social, pela FFLCH-USP, realizou estudos de pósdoutorado na Universidade Nova de Lisboa (2001) e na Universidade de Lisboa (2011), atua com pesquisador do CNPQ, desde 1995, é professor titular no Departamento de História da UFRGS e, também, docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade, é sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, coordena a Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do ILEA-UFRGS e é integrante do NEAB-UFRGS. É autor, entre outros, dos livros História da África (Editora Contexto, 2013) e O pensamento africano no século XX (Outras Expressões, 2016) e, em parceria com Nei Lopes, do Dicionário de História da África (Editora Autêntica, 2017). Contato: joserivairmacedo@gmail.com
743 N S OL HELENA BONETTO Licenciada em Ciências Sociais, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora, pela UFRGS, e professora de Geografia na rede estadual do Rio Grande do Sul. Contato: geohelenabonetto@gmail.com
JOSIEL FERREIRA Morador do Quilombo dos Machado/Vila 7 de setembro.
HIAGO GODOI BARTH Estudante de Bacharelado em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e membro do NEGA/UFRGS, desde 2018. Contato: hiagobarth@gmail.com
JOÃO BATISTA DA COSTA VASCONCELOS Filho de Rosalina da Costa Vasconcelos e morador do Quilombo dos Flores.
JOSÉ ANTÔNIO DOS SANTOS Doutor (PUCRS) e mestre em História (UFF), trabalha no Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS/PROREXT/UFRGS). Contato: joseants@hotmail.com
KARINA REJANE DA SILVA ELLIAS Agente de saúde quilombola, primeira secretária da Associação Quilombola dos Alpes D. Edwirges e irmã de Rosângela da Silva Ellias. Contato: quilombodosalpes@gmail.com
JOSÉ CARLOS DOS ANJOS Professor do Departamento de Sociologia da UFRGS e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da mesma universidade. Contato: jcdosanjos@yahoo.com.br
744 N S OL KÁTIA MARQUES Moradora do Quilombo dos Machado.
LARA MACHADO BITENCOURT Geógrafa, bacharela, licenciada e mestra formada pela UFRGS, pesquisadora-extensionista do Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente, em que presta assessoria geo-jurídica às comunidades quilombolas de Porto Alegre. Contato: laaarabitencourt@gmail.com
LAURA ISABEL DOS SANTOS FLORES
Estudante de licenciatura em Geografia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e extensionista do Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente (NEGA). Contato: lauraisf7@gmail.com
MARCOS AURÉLIO PIA Presidente da Associação de Moradores Vila 7 de setembro, morador e liderança comunitária do Quilombo dos Machado.
LAISA ZATTI RAMIREZ DUQUE Bacharel em Geografia (2020), mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, desde 2020, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora-extensionista do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente, desde 2017. Contato: laisazatti@gmail.com
LÍGIA MARIA DA SILVA Presidente da Associação Quilombo da Família Silva. Contato: quilombosilva@yahoo.com.br
LUÍS ROGÉRIO MACHADO CAMILO, ‘JAMAIKA’ Professor de capoeira, integrante da Associação Cultural Capoeira Angola Rabo de Arraia-Mestre Ratinho e liderança comunitária do Quilombo dos Machado/ Comunidade Sete de Setembro. Atualmente, compõe a Frente Quilombola RS (FQRS) e a Articulação Nacional de Quilombos e trabalha com formação de pessoas (pelo desenvolvimento de atividades, como a Capoeira Angola, Maculelê, Afoaxé, etc.). Contato: jamaikarogerio@gmail.com
Irmã de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa e quilombola do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas. MARA REJANE RIBEIRO Prima de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa e quilombola do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas.
MAIARA PRISCILA PERES DA ROSA
MONUMENTA (2009) e pela Câmara Municipal de Porto Alegre (2010).
MARIA ELAINE RODRIGUES ESPINDOLA
Professora aposentada, é filha de Mariazinha, fundadora da Ala Verde Que Te Quero Rosa da Escola de Samba Praiana. Participa em diferentes espaços comunitários e culturais porto-alegrenses, tais como: Orçamento Participativo, Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra/RS, Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro, Comissão de Acompanhamento do Ingresso de Afro-brasileiros da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Associação de Remanescentes de Quilombos, Programa Quilombolas em Rede, criação do Selo Quilombola, Conselho Local de Saúde, Piquete O MOCAMBO (cultura negra gaúcha no Acampamento Farroupilha), além de atuar nas atividades de extensão e de ensino da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como mestra griô, destacadamente, na disciplina Encontro de Saberes
Moradora e liderança comunitária do bairro Restinga/Porto Alegre/RS.
Professora de Geografia da rede municipal de ensino de Porto Alegre (RS). Contato: mariliaguimaraess@gmail.com
Sogra de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa e quilombola do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas. MATHEUS EILERS PENHA Mestre em Geografia, pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia/UFRGS, professor de Geografia na rede municipal de ensino de Cachoeirinha/RS e pesquisador-extensionista do Contato:NEGA/UFRGS.matheuseilers@gmail.com
745 N S OL MARIA CLARA CARDOSO NUNES
Mulher negra e ativista social. A mestra atua na liderança da MOCAMBO e possui reconhecimento como griô (condecoração, por política pública ou não, relativa aos saberes da oralidade dos descendentes de africanos no Brasil) pelo Projeto Museu Percurso do Negro/Centro de Referência Afro-brasileira/Programa
MARIA LÚCIA DOS SANTOS Matriarca do Quilombo dos Machado e memória viva da trajetória da comunidade. MARIANA NICOLINI ACOSTA Concluiu sua formação em Geografia (bacharelado) em 2019, pela UFRGS. Atualmente, desenvolve mestrado na área de Análise Territorial, pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS e cursa Licenciatura em Geografia na mesma universidade. É educadora voluntária no Projeto Educacional Alternativa Cidadã (PEAC), desde 2017, e integra a equipe do Núcleo de Estudos Geografia & Ambiente (NEGA/UFRGS), desde 2019, atuando como pesquisadora e como extensionista em atividades de campo, em levantamento de dados e em produção documental, no desenvolvimento de Cartografia Social com quilombos urbanos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Contato: mariana.nicolini@ufrgs.br
Contato: mocambo.poa@gmail.com
MARILU MARTINS
MARÍLIA GUIMARÃES RATHMANN
Irmã de Patrícia de Lourdes Peres da Rosa e quilombola do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas.
Contato: oniraraujo@gmail.com
PAULO JORGE OLIVEIRA, ‘SEU BAGÉ’ Morador do Quilombo dos Machado/Vila 7 de Setembro.
PATRÍCIA DE LOURDES PERES DA ROSA
SÉRGIO IVAN DOS SANTOS FIDÉLIX Presidente da Associação Comunitária e Cultural Remanescentes de Quilombo da Família Fidélix. Contato: si.fidelix@gmail.com
NELSON REGO Geógrafo e doutor em Educação, professor no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: nelson.rego@ufrgs.br
Filha de Rosalina da Costa Vasconcelos e moradora do Quilombo dos Flores.
746 N S OL NARA MARIA VASCONCELOS DE MELLO
Matriarca, Yalorixá e liderança comunitária do Quilombo Família de Ouro Ilê de Oxum e Ossanhas. Contato: pattydeoxum@gmail.com
PAOLA JULIANA PERES DA ROSA
Bióloga, educadora, mestre e doutoranda em Desenvolvimento Rural, pelo PGDR, integrante da FQRS e do Laboratório Urgente de Teorias Armadas (NEAB/UFRGS) e atua nas áreas de: Epistemologias contracoloniais; Territorialidades insurgentes (Cartografia de quilombos urbanos); e Feminismos insurgentes. Trabalha com formação de professores. Contato: pgpbio8@gmail.com
PATRÍCIA GONÇALVES PEREIRA
SANDRO GONÇALVES LEMOS Liderança comunitária do Quilombo da Família Lemos. Contato: lemosgsandro@gmail.com
ONIR DE ARAÚJO Natural de Niterói (RJ), é advogado formado na Universidade Federal Fluminense, possui formação, também, em Geografia e em Geologia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Como advogado popular e defensor dos direitos humanos, já atuou na assessoria sindical e está voltado, nos últimos 20 anos, à defesa dos direitos territoriais de comunidades quilombolas, em especial, de comunidades quilombolas em contexto urbano. Foi membro do Movimento Negro Unificado e, desde 2010, contribui para a construção da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas na seção do estado do Rio Grande do Sul e, a partir de 2014, para a construção da Organização Para a Libertação do Povo Negro.
TAÍSSA GOMES CARDOSO Estudante do 2º ano do ensino médio no Colégio Rio Branco, estagiária na empresa ParkHub e participante do Coletivo QuilomBonja. Contato: taissaelisangela@gmail.com
TIAGO BASSANI RECH Professor de Geografia do IFRS (Campus Restinga) e doutorando do POSGEA/UFRGS. Contato: rechster@gmail.com
Presidente da Associação Quilombola dos Alpes D. Edwirges, liderança comunitária e mestre griô. Contato: quilombodosalpes@gmail.com
TAIS DE MEDEIROS SILVA Bacharel em Geografia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestra em Geografia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e, atualmente, aluna da Licenciatura em Geografia na mesma universidade. Contato: taism.geo@gmail.com
747 N S OL SÉRGIO VALENTIM Sérgio Valentim é documentarista e produtor cultural, graduando em Museologia pela Universidade Federal de Pelotas-RS, especialista no campo da memória social, pesquisador e diretor do documentário sobre o tambor de sopapo, chamado O Grande Tambor (2010) que reconhece o Sopapo como patrimônio imaterial do Brasil. Dirigiu o documentário Quilombo da Família Silva (2013) e o filme Batuque Gaúcho (2014). Professor de Educação Audiovisual no Ponto de Cultura Teia Viva e da Escola Técnica Mesquita. Integrante da Frente Quilombola RS desde 2007, onde participa do coletivo de cultura e integra a equipe do projeto Museu Quilombola RS. Contato: sergiovalentimjr@gmail.com
TAÍS DE FREITAS MUNHOZ
TANARA FORTE FURTADO Mestre em Educação, pelo PPGEDU/FACED/UFRGS, doutoranda em Educação, pelo PPGEDU, pedagoga do Centro de Formação de Professores da UFRGS (FORPROF) e idealizadora do giz de cera cor de pele PINTKOR/UNIAFRO. Contato: tanara.forte.furtado@gmail.com
Graduanda em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista de Iniciação Científica do Núcleo de Estudos de Geografia & Ambiente – UFRGS (2016-2018). Contato: taisfmunhoz@gmail.com
RAFAEL SANZIO ARAÚJO DOS ANJOS Geógrafo e professor titular do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília e do Centro de Cartografia Aplicada e Informação Geográfica do Instituto Baobás. Contato: quilombo.sanzio@gmail.com Sites: www.projetogeoafro.unb.br e www.rafaelsanziodosanjos.com.br
ROSANGELA DA SILVA ELLIAS, ‘JANJA’
WINNIE LUDMILA MATHIAS DOBAL
WILLIAM DE OLIVEIRA SILVA DA SILVA Professor de Geografia na educação popular, na rede pública de Sapucaia do Sul e na rede privada de Porto Alegre, licenciado em Geografia, pela UFRGS e extensionista do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente (NEGA). Contato: will-cj@hotmail.com
Licenciada em Geografia, pela UFRGS, e pesquisadora-extensionista do Núcleo de Estudos Geografia e Ambiente. Contato: falecomawinnie@gmail.com
VANDA TAMIRES DA SILVA ANTUNES Liderança comunitária do Quilombo dos Machado.
VALÉRIA GONÇALVES LEMOS
WILLIAM FLORES Filho de Geneci de Lourdes Flores e morador do Quilombo dos Flores.
Licenciado em Teatro, pela UERGS, mestre em Geografia, pela UFRGS e componente da coordenação Nação Tambores da Vila – Maracatu. Atua com formação continuada em pedagogias griô para professores, desde 2011. É mestre griô e músico. Contato: vandermonk1@gmail.com
Irmã de Sandro Gonçalves Lemos e moradora do Quilombo da Família Lemos.
VANDERLEI DE PAULA GOMES
748 N S OL UBIRAJARA CARVALHO TOLEDO, ‘BIRA’ Metroviário aposentado, militante do movimento negro, um dos fundadores do IACOREQ e conselheiro do CODENE e CEDH-RS. Contato: biratoledo@terra.com.br
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