Melchiades Corrêa Utrini
Obesidade ~
e distorcao , da imagem
A DIFICULDADE DE RECONHECIMENTO DA IMAGEM CORPORAL PELO OBESO
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Capa
Áthila Pereira Pelá
Diagramação
Editora Baraúna
Revisão
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Utrini, Melchiades Corrêa Obesidade e distorção da imagem : a dificuldade de reconhecimento da imagem corporal pelo obeso / Melchiades Corrêa Utrini. -– São Paulo : Ed. Baraúna, 2018. 15 p. 18-1467
CDD 616.3980019
ISBN: 978-85-437-0866-9 1. Obesidade - Aspectos psicológicos 2. Obesos - Autopercepção 3. Imagem corporal 4. Psicanálise I. Título Índices para catálogo sistemático: 1. Obesidade : Aspectos psicológicos
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Agradecimentos A minha filha Júlia, por ter entendido a falta de paciência e as tantas vezes que com ela não pude brincar ou mesmo estudar... A minha esposa e amiga, Catia Cristina, companheira de muitas jornadas, por toda ajuda e paciência durante este percurso; mas, e acima de qualquer coisa, por tudo que já compartilhamos, conseguimos e ainda haveremos de construir juntos. A Creuza, minha mãe, incentivadora de sempre na busca de conhecimento. À memória de meu pai, Melchiades, com imensa gratidão e saudade. Infelizmente, não lhe foi possível assistir a essa conquista. A Carla, minha irmã, sempre pronta a estimular-me o desenvolvimento profissional. Aos meus familiares, que sempre me ofereceram apoio incondicional, impulsionando-me a prosseguir nesta caminhada acadêmica. A todos os pacientes que acreditam no trabalho os profissionais do Núcleo de Índice de Massa Corporal (NIMC).
SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ............................................. 7
2. OBESIDADE MÓRBIDA: UM PROBLEMA PARA A PSICANÁLISE ........................................... 14 2.1 Abordagem histórica da obesidade mórbida como doença ................................... 18 2.2 A intervenção cirúrgica ................................... 30 2.3 Abordagem psicanalítica e a obesidade ............ 40 2.4 Desejo e gozo .................................................. 59 2.5 Uma nova sintomatologia ............................... 69
3. IMAGEM CORPORAL NA CONTEMPORANEIDADE .......................... 74 3.1 O corpo .......................................................... 76 3.2 Imagem corporal ............................................ 86 3.3 Imagem corporal e obesidade ......................... 101
4. JÁ NÃO SOU MAIS A MESMA: POSSO VER-ME ......................................... 110 4.1 O corpo que volto a habitar ........................... 112 4.2 Nova percepção da imagem corporal .............. 116 4.3 Clínica de obesidade: fragmentos de casos ..................................... 122 4.3.1 Caso 01 ................................................. 122 4.3.2 Caso 02 ................................................. 125 4.3.3 Caso 03 ................................................. 128 4.3.4 Caso 04 ................................................. 130 4.3.5 Caso 05 ................................................. 132 5. CONCLUSÃO ............................................... 136 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........... 142
1. Introdução Ao pensar a obesidade, o que vem de imediato à mente é: “um sujeito preguiçoso, lento, que come muito, engraçado e que não se envergonha, pois é só fechar a boca e parar de comer muito que emagrece”, conforme entendem alguns. Em contrapartida, isso faz lembrar aquela frase de Gille Lambert apud Dualib (2000) “Emagrecer é morrer um pouco” (idem, ibidem, p.103). Ou seja, emagrecer denota sofrimento. Portanto, é possível considerar que ‘fechar a boca’ significa emagrecer e que emagrecer significa morrer lentamente, sabe-se que a realidade é bem outra. Mesmo porque não se alcança um objetivo tão facilmente e tão simplesmente quanto possa sugerir tais preceitos, pois na época presente a obesidade é considerada, em todo o mundo, uma doença que tem levado a óbito muitas pessoas. Por outro lado, indaga-se, por que então a obesidade, que outrora representava um padrão de beleza, não raro retratado em quadros, em painéis emoldurados, foi retirada daquele patamar de preferência que ocupava na sociedade, convertendo-se em uma enfermidade, o mais das vezes concebida na atualidade como epidemia mundial? É sabido que o homem sempre se preocupou em conceituar o belo. Com o passar dos tempos, esse conceito foi se transformando de acordo com Obesidade e distorção da imagem 7
a cultura de cada momento. Hoje, embora sob outra perspectiva, observa-se a existência de uma excessiva preocupação com a beleza, com a saúde, com um corpo musculoso e magro, possibilitando o surgimento de inúmeras práticas de exercício corporal, de técnicas de intervenção modernas, enfim, de um sem-número de novidades não só no mercado cosmético, como também no comércio de vitaminas. Tudo isso faz aflorar, de maneira contundente, a importância que atualmente é concedida ao cultivo da juventude, da beleza, do corpo saudável e da boa forma, a estabelecer um estilo de viver e um estilo de ser. A verdade é que, a partir de tais fatos, torna-se mais fácil imaginar porque a obesidade passou a ser considerada uma enfermidade. É como se ela refletisse aquele outro lado da moeda que ninguém quer representar, por entender que se colocar nessa condição significa ser rejeitado, revela uma possibilidade de estar ou de vir a estar enfermo. Afinal, sabe-se que existem muitas comorbidades, isto é, não há quem ignore a existência de uma grande quantidade de doenças associadas, doenças essas que tornam a obesidade um pecado. São muitos os métodos ofertados que prometem alcançar o emagrecimento cobiçado, como, por exemplo, as conhecidas e famosas dietas da lua, a dos carboidratos, a das proteínas, a da água, e tantas outras, sem que se tenha uma real comprovação científica de sua eficácia. Embora a redução do peso acon8 Melchiades Corrêa Utrini
teça de fato e quase sempre com algum sofrimento, é sabido também que logo depois ocorre um retrocesso e a pessoa volta a ganhar peso, caracterizando o chamado efeito sanfona, que é o mais desanimador e decepcionante para esse sujeito, por levá-lo a engordar ainda mais do que antes. Porém, como tais procedimentos não davam conta desse tipo de comportamento, mormente em se tratando de obesidade mórbida, a medicina adotou um novo procedimento, visando à eliminação de tecidos adiposos, a que denominou cirurgia bariátrica, de forma a impossibilitar seu retorno. Em outras palavras: o objetivo é minimizar o surgimento daquilo que se convencionou caracterizar como efeito sanfona, com vistas a proporcionar mais qualidade de vida ao sujeito. Tal método implica algumas atitudes da equipe de profissionais, mas principalmente do sujeito com obesidade, na perspectiva de alcançar o resultado esperado, que é emagrecer com qualidade de vida. Esse recurso há de possibilitar a realização da façanha que para muitos constitui a última cartada. Aqui, esbarra-se em outra questão, objeto primeiro deste trabalho: a imagem que grande parte dos obesos preserva de si mesmos é constituída por uma representação distorcida, não havendo comparativo com a realidade da própria imagem, daí, inclusive, não reconhecerem o quão avantajado se encontra aquele corpo. Mas como eles conseguem emagrecer e reconhecer sua imagem corporal? Pergunta-se após se submeterem à cirurgia bariátrica. Por certo que Obesidade e distorção da imagem 9
uma segunda questão é esse reconhecimento mesmo da imagem corporal que advém da tomada de consciência desse corpo, já em processo de emagrecimento. A cirurgia por si só produz uma euforia nessa estrutura física, que então deixa de ser considerada achacada, enfermiça, doente, e passa a ansiar por se tornar mais um, dentro dessa sociedade, cujos estereótipos para ser bem sucedido é ser magro, delgado, é possuir um corpo “sarado”, é consumir todo tipo de suplemento alimentar. Chama a atenção o fato de se perceber o quanto esses sujeitos, apesar de grandes não só fisicamente, mas inclusive no excesso de peso e de gordura corporal que carregavam, acreditavam que não eram tão gordos assim. Diante disso, afloram outras perguntas que se acredita serem pertinentes neste momento: onde tais sujeitos se encontravam durante todo esse tempo? O que faziam de suas vidas? O fato é que, com a autorização dos convênios de saúde para efetuar tais procedimentos, essas pessoas começaram a sair de casa – reduto em que permaneceram por muitos anos, às vezes deprimidos, ansiosos e largados sobre uma cama. A maioria desses pacientes não relaciona o comer à ansiedade. Os obesos mórbidos raramente buscam acompanhamento psicológico para tratamento da corpulência, por desconsiderá-la como doença e por não estabelecerem associação do comer com aspectos psicológicos, acreditando poder lidar sozinhos com a doença. 10 Melchiades Corrêa Utrini
Assim, para esclarecer e dar suporte a este trabalho utilizar-se-á a teoria psicanalítica, pois é nela que se percebem parâmetros para responder a questões como: que corpo é esse, assumido por determinados pacientes, e por que, para eles, a imagem apresenta-se distorcida da realidade? Também é na visão de sujeito da teoria psicanalítica que se pode falar desses pacientes com obesidade e de suas dificuldades em lidar com a imagem e com um corpo tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que quer enquadrá -lo no diferente, no esquisito, no mórbido. Isso faz pensar que a obesidade poderia ser a justificativa de uma histeria moderna, que se apresenta como uma doença para atender a pulsões tão menosprezadas do sujeito de uma sociedade, cuja estética se expressa como mais valorosa que o próprio sujeito. Portanto, a fim de melhor compreender por que, na obesidade mórbida, a imagem corporal apresenta-se muitas vezes distorcida e o que acontece, depois da cirurgia bariátrica, para que a imagem corporal volte a se apresentar de forma real, buscar-se-á suporte em estudiosos da teoria psicanalítica, cuja referência principal é Sigmund Freud. Para tanto, os capítulos serão divididos de maneira a possibilitar uma criteriosa investigação desse campo ainda tão pouco explorado na contemporaneidade. Neste estudo, porém, pretende-se destacar apenas o que diz respeito à cirurgia bariátrica, que aparece na atualidade como a forma mais efetiva para se tratar a obesidade mórbida. Assim, em um primeiro Obesidade e distorção da imagem 11
momento, tentar-se-á elucidar, sob uma perspectiva histórica, o discurso globalizado da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o modo como essa organização nos apresenta a obesidade como sendo somente uma doença, esquecendo o indivíduo em sua subjetividade. Após isso, buscar-se-ão conceitos da teoria psicanalítica, para elucidar esse físico tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que deseja enquadrá-lo no diferente. E será justamente nesse corpo habitado por pacientes obesos, que se concentrará este estudo, na perspectiva de encontrar resposta para a questão que motiva a investigação: por que a imagem corporal se apresenta, aos obesos, distorcida da realidade? Utilizar-se-á, também, a visão que a psicanálise propõe para obesidade. Ou seja, para esse método terapêutico, a obesidade só se classifica como um sintoma a partir do momento em que ela incomoda o próprio sujeito. Caso contrário, ela não é entendida como enfermidade. Inicialmente, tentar-se-á estabelecer um pequeno histórico da obesidade, de modo a evidenciar todo o processo que acarreta essa suposta doença. A pretensão é chegar aos propalados métodos de emagrecimento, o que vai levar ao foco deste trabalho, que é o resgate da imagem corporal, pensando a cirurgia bariátrica como uma alternativa desse mesmo resgate. Após isso, tentar-se-á exprimir o que a psicanálise considera sobre o tema obesidade, incluindo, nesse caso, a obesidade mórbida, que é a modalidade mais perversa da doença. Há de se falar, também, do 12 Melchiades Corrêa Utrini
conceito de desejo e de gozo, além do surgimento de uma nova sintomatologia e como ela é pensada por esse método terapêutico criado por Freud. Ainda sob a ótica da teoria psicanalítica, se tentará elucidar o motivo pelo qual esse corpo é tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que deseja acondicioná -lo no dissemelhante. Mesmo porque, será nesse corpo que compete o paciente com obesidade, que se concentrará este estudo, cuja aspiração é buscar resposta a mais uma das questões que o motivam: por que a imagem corporal se apresenta distorcida da realidade para o obeso? O terceiro capítulo se ocupará da imagem corporal na contemporaneidade, momento em que se utilizará a visão dessa imagem e sua formação no psiquismo do sujeito obeso. Examinar-se-á, ademais, o corpo, de modo a franquear uma vereda para se chegar à razão última deste trabalho, que é falar sobre a distorção da imagem na obesidade mórbida. No quarto e último capítulo, trataremos desse novo corpo e da imagem corporal, depois da cirurgia bariátrica. Também se utilizarão fragmentos de casos clínicos, na perspectiva de ilustrar e demonstrar que a obesidade traz consigo uma distorção de imagem que afeta o psiquismo do obeso.
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2. Obesidade: um problema para a psicanálise “Aprisionado dentro de todo homem obeso existe um homem magro que apela desesperadamente para ser libertado1”). (CONNOLY, 2005)
Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos dez principais problemas de saúde pública do mundo, a obesidade vem crescendo em ritmo alarmante no Brasil. Mas o que é obesidade? Obesidade, nediez ou pimelose2 quer significar uma doença crônica multifatorial, na qual a reserva natural de gordura aumenta até se associar a certos problemas de saúde ou ao aumento da taxa de mortalidade. Representa o resultado do balanço energético positivo, ou seja, revela uma ingestão alimentar superior ao gasto energético (WIKIPÉDIA, 2012).
1 Tradução do autor: “Imprisoned um every fat man, a thin one is wildly signaling to be let out” In: CONNOLLY, C. The unquiety grave: a word cycle by Palinurus. Inglaterra: Persea, 2005. 2 Tecnicamente, antepositivo de origem grega pimelē, ês = gordura, mais o sufixo grego-latino -ose, usado para formar substantivos referentes a processos patológicos e doenças, processo mórbido. 14 Melchiades Corrêa Utrini
Nas diversas etapas de seu desenvolvimento, o organismo humano traduz o resultado de diferentes interações entre o patrimônio genético (herdado de pais e familiares), o ambiente socioeconômico, cultural e educativo e o ambiente individual e familiar. Daí as pessoas apresentarem diversas características peculiares que as distinguem, especialmente em relação à saúde e à nutrição. A obesidade é o resultado de várias dessas interações, em que chama a atenção os aspectos genéticos, ambientais ou comportamentais. Atualmente, este último – o comportamental – parece ser o mais importante para o desenvolvimento dessa patologia. Assim, a obesidade aparenta trazer repercussões não só de ordem clínica, mas também de aspecto psicológico, ainda que manifestações psíquicas possam ser consideradas causa ou efeito da obesidade. Em assim sendo, filhos de pais obesos apresentam alto risco de se tornarem também pessoas obesas, da mesma forma que determinadas mudanças sociais são passíveis de estimular o aumento de peso em certos grupos de pessoas. Independente da importância de tais causas, o ganho de peso haverá de estar sempre agregado a um aumento de ingestão alimentar e a uma redução do gasto energético correspondente a essa ingestão. Aliás, é possível que o aumento da ingestão decorra da quantidade de alimentos ingeridos ou de modificações em sua qualidade, resultando numa ingestão calórica total elevada. O gasto Obesidade e distorção da imagem 15