Um Longo Outono

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Um Longo

Outono



Um Longo

Outono

EDSON LUIZ DIAS CARDOSO


Copyright © 2018 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Áthila Pereira Pelá

Diagramação

Áthila Pereira Pelá

Revisão

Editora Baraúna

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Andreia de Almeida CRB-8/7889 Cardoso, Edson Luiz Dias Um longo outono / Edson Luiz Dias Cardoso. -– São Paulo : Ed. Baraúna, 2018.

158 p.

ISBN: 978-85-437-0887-4

1. Ficção brasileira I. Título

18-1370 CDD B869.3 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção romântica brasileira Impresso no Brasil Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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“A lua faz silêncio para os pássaros, - eu escuto esse escândalo!” (Os Delimites da Palavra) Manoel de Barros



Capítulo 1 A madrugada congelante esconde a velha estação, que se aproxima fremente, como uma centelha de luz. O barulho do motor do trem, acorda, lentamente, alguns passageiros poucos, que se levantam cambaleantes, pelo frio incessante e pelo sono, que embriaga, tornando o simples abrir dos olhos, uma luta incessante. Poucos passageiros deixam o trem, e saem para continuar sua vida, na cidadezinha que, daqui a pouco poderão vislumbrar melhor, depois da longa e confortável viagem. Ricardo desce e fica sentindo o vento congelar o sangue nas suas veias. Olha para um lado, para o outro, e não reconhece nada. Além do que não tem muita coisa para se ver. A escuridão e a neblina cobrem quase tudo ao redor, não permitindo sequer alguma ideia sobre tudo. Adentra a estação, procurando um lugar mais aconchegante. Precisa tomar um chá ou algo mais quente para beber, e para se esquentar. Aproxima-se do balcão, pede 7


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um chá e sorve lentamente. Sentindo aquele líquido saboroso escorrer e queimar levemente sua garganta. Aos poucos se sente aquecer. Agora, porém, precisa esperar amanhecer, e irá procurar um hotel, pequeno e simples, para dar início ao que se propôs fazer naquele lugar totalmente estranho para ele. Quer começar logo. Não tem a mínima noção do que vai encontrar, o que poderá ocorrer. Mas não está temeroso do que está por vir. O jovem Ricardo sai logo que pode vislumbrar as casas, as ruas e algum movimento. Encontra e se instala no hotel bastante simples. Um prédio histórico, como tudo na cidadezinha inglesa de Grimsby, neste país ao norte do mundo. Pitoresca e acolhedora, já se sente mais tranquilo. Pela janela já conseguiu visualizar alguma paisagem. Ruas arborizadas, casarios em estilo inglês, com seus jardinzinhos caprichosamente organizados e floridos, parecido com uma cidade medieval, às vezes sombria, e outras, engraçada, parecendo uma cidade de brinquedo, daquelas que vem nas caixas para se montar.

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Capítulo 2 Porém, tudo isto começou na sua casa, no interior do pantanal mato-grossense. Escutava sempre o seu avô Albert contando a história da sua vida. – Eram tempos difíceis – falava ‘seu’ Beto. E continuava falando, com os olhos mareados. – Os anos da guerra foram duros, de muita fome, de misérias de todas as formas. Albert nasce em Grimsby, filho de Anthony e Lucy Burn. Todos os três trabalhavam em fábricas de uniformes e armamentos para os soldados que lutavam na guerra. O Primeiro Ministro Winston Churchill quase que obrigou a todos a darem sua contribuição por amor ao país; se não o fizessem, seriam tratados como simpatizantes do nazismo. Hitler já estava bombardeando cidades inglesas, próximas a Londres. Trabalhando nas fábricas, teriam acesso a alimentos, bastante racionados e roupas, para se aquecer naquele inverno rigoroso, e que eram confeccionados com os restos dos panos das fardas. O 9


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frio era implacável. No inverno, os termômetros chegavam, invariavelmente, a níveis muito abaixo de zero grau. Naqueles tempos, para complicar ainda mais, havia semanas que as temperaturas eram tão baixas, que chegavam a acumular metros de neve pela cidade toda. Era um sofrimento imenso para todos os habitantes, já tão massacrados pelas ameaças da guerra às portas das suas casas. Era um sofrimento só. Pouquíssimas pessoas tinham algumas condições e roupas apropriadas. A escassez de bens no país inteiro era muito grande. Faltava quase tudo. Até lenha para acender as lareiras e aquecer as casas, que se tornavam polares nessa época. Muitas vezes, pessoas eram presas por roubarem em plantações vizinhas, um resto de alguns legumes. Para matar a fome, muitos usavam essa artimanha. Quantas vezes se ouviu falar de pessoas que morriam de forme e de hipotermia. Desde crianças até idosos. A situação era de uma verdadeira calamidade pública. Nunca se viu tantos sofrimentos em Grimsby, como naquele período. O avô às vezes pigarreava, para disfarçar o embargo na voz, com o choro de tristeza e saudade que teimava em vir à margem dos seus olhos. Olhava longamente o horizonte. O que pensava nunca conseguimos desvendar, não tínhamos como saber, só imaginar. Imaginava-se muita saudade, percebia-se muita dor nas suas palavras, ou até mesmo incertezas. Nunca voltaria para sua terra natal; não 10


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conseguiria nunca mais rever o lugar onde nasceu, e que de certa maneira foi feliz; assim como talvez não consiga reverter a situação em que está até hoje, e que gostaria muito de resolver. – Certa vez – voltava a falar, com a voz empostada, misturando o português com o sotaque inglês que nunca perdeu – eu e meus pais tivemos que roubar pão para comer. Muitas vezes passamos fome. Estavam expostos num mercadinho, os pães muito bonitos e exalavam um cheiro maravilhoso. Enquanto meus pais conversavam com o dono, distraindo-o, eu escondia, apavorado, com medo de ser pego, um dos pães dentro do blusão enorme que eu vestia, e que cabiam facilmente, eu e mais uma pessoa. Naquela noite o jantar estava garantido. Mas o pão precisava ser suficiente para vários dias; não se podia dar ao luxo de comê-lo de uma só vez. Era obrigatório racionar. Às vezes eu chorava pedindo mais. Eu tinha mais fome. Era adolescente e trabalhava como homem adulto, e gastava muita energia. A nossa casa até que era muito boa, bem construída. Herança que meu pai recebera, bem nos arredores da cidade, um lugar muito aprazível. Era uma casa bonita, feita de pedras, como quase tudo na cidade, com uma varanda e um pequeno e aconchegante jardim na frente. Aos fundos, alguns metros de terreno, nos permitiam plantar rabanetes, batatas e outros legumes, na época da fartura. 11


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Quando começou a Segunda Guerra Mundial, em 1939, eu tinha cinco aninhos apenas, e estudava em casa. Minha mãe e meu pai me ensinavam um pouco de matemática e inglês, além de plantar também. A vida, nessa época, ainda era boa, apesar da simplicidade e das poucas coisas de que dispúnhamos. Mas ainda era bom, bastante agradável aquela vida no interior. Fazíamos piquenique no verão, quando o sol nos dava o ar da sua graça, aquecendo-nos maravilhosamente. Também íamos à praia, no Mar do Norte. Eram tempos realmente maravilhosos. Meus pais eram pessoas muito alegres, brincalhonas, felizes mesmo, guardando-se as devidas proporções, para ingleses do interior. Nossa casa sempre foi um ambiente muito agradável. Meu pai tinha uma velha harmônica, e tocava músicas folclóricas; mamãe cantava e eu rodopiava pela sala. Eram momentos muito especiais da nossa pacata vida. Todas as manhãs, papai saia para o trabalho numa livraria da cidade. Minha mãe, além das lides domésticas e da plantação nos fundos do quintal, costurava e consertava roupas, em casa mesmo, na velha máquina, que ganhara de presente de casamento da tia Meg. Ajudava bastante nos gastos de casa. – Hoje vou cozinhar espinafre refogada com cordeiro e batatas assadas para o almoço. O que você acha, Albert? – Tudo o que a senhora faz é muito gostoso mamãe. – Meu menino querido, como você é bondoso! 12


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Abraçávamos com muito carinho. Era aconchegante estar ali abraçados. Éramos muito unidos, em todas as ocasiões. Aquele calor do abraço, esquentava até a alma da gente. Vinha carregado de confiança e generosidade. Quando meu pai chegava, a alegria aumentava. Os sorrisos e abraços nos contagiavam a todos. Falávamos muito mais do que costumavam os nossos vizinhos, bastante recatados, como a maioria dos ingleses. – Vendi vários livros hoje. O dia foi bastante proveitoso, muito bom para os negócios – falava meu pai visivelmente contente. Ele trouxe para mim dois pequenos livros de Andersen, “A Princesa e o Grão de Ervilha” e “O Companheiro de Jornada”, que, depois, ele mesmo lia para mim, antes de dormir, ou nos momentos de folga e passeios. Aliás, mesmo com todas as dificuldades, tínhamos uma pequena biblioteca. Meus pais gostavam muito de ler e ouvir música. Eram intelectuais, e gostavam muito de poesia. Ouvíamos muito as programações da BBC de Londres, que tocava muitas músicas clássicas. Extasiávamos ouvindo Noturnos, de Chopin; Tristão e Isolda, de Richard Wagner; O Príncipe Igor, de Borodin, e As Quatro Estações, de Antonio Vivaldi, entre tantos outros, como Bach, Beethoven, Mozart, Strauss... Eu gostava muito de ouvir essas músicas. Cresci nesse ambiente meio clássico. Eu vivi sempre dessas fantasias. Próximo à minha casa tinha um bosque com árvores frondosas. Às vezes, meu pai e eu 13


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íamos passear e colher castanhas, que depois eram assadas e nos deliciávamos em casa, todos juntos, ouvindo música na velha vitrola. Brincávamos de reis e príncipes, com castelos e suas torres altíssimas, com um passadiço e com ponte para evitar a aproximação de inimigos que, naquela floresta, estava infestado; andávamos e corríamos como se estivéssemos trotando nos cavalos, possantes animais brancos e vermelhos. As árvores, que alcançavam as nuvens, eram as torres dos castelos, que precisavam ser defendidos a todo custo. A nossa algazarra se misturava com os sons da floresta, e os silvos dos pássaros davam o toque de encantamento àquela estória cheia de mistério e heroísmo. Os ventos que farfalhavam as folhas, os esquilos e outros animais, eram os nossos atentos expectadores, e que observavam, estupefatos, a nossa alegria. Às vezes, o nosso vizinho e meu amigo Aaron vinha conosco, quando o pai dele não estava em casa. Dizia que o pai não gostava que ele saísse para a rua, e brincar com outras crianças. Tinha que brincar com os irmãos, em casa mesmo. Ao amanhecer, Ricardo sai para conhecer a pequena e acolhedora cidade. Quer tomar um primeiro contato, para depois sair para resolver, aquilo que veio exclusivamente para fazer. Olha, curiosamente, as casas, muito bem alinhadas, como perfiladas para um desfile de modas, com arquitetura totalmente diferente do seu país; pessoas indo e vindo dos seus afazeres, que não sei afirmar quais sejam; pouco trânsito de veículos, algumas bicicletas e motos 14


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com bons escapamentos, pois quase não fazem barulho; lojas e mercados com seus clientes e seus funcionários, quase como autômatos, nos seus gestos pré-estabelecidos. O frio ainda é bastante forte. Ricardo se protege como pode, com luvas, cachecol, sobretudo e um boné, que adquirira naquela estação de trem. Se preparou para o que desse e viesse. Quase uma pequena aventura, como costuma dizer. Quase a mesma coisa como morar no meio do pantanal, cujos vizinhos mais próximos são os jacarés, onças e sucuris. Já está acostumado com desafios também. Embora não seja nenhum pouco desagradável. Está curtindo bastante estas férias da faculdade, com essa espécie de missão não tão impossível. Assim espera. Mas Ricardo não tem pressa. Sem contar que leva também, o endereço da antiga casa onde moravam o seu avô Beto e seus pais Anthony e Lucy Burn. Está curioso. Quer saber o que fizeram dela; se existe ainda, e em que estado se encontra. Se alguém tomou conta da casa, que mudanças ela sofreu, e em que tempo da história ela permanece. Por enquanto ele coloca toda sua atenção em encontrar o antigo abrigo para menores órfãos da guerra. Seu avô disse que eram centenas de meninos e meninas, que foram abandonados, ou seus pais morreram, ou mesmo que viviam perambulando pelas ruas da cidade, sem ninguém que os acolhesse. Muitos ainda eram bebês de colo, outros, assim como sua irmã, já eram um pouco maiores; mas também haviam meninos e meninas de sete a doze anos. 15


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