Aline Basztabin
SĂŁo Paulo 2016
Copyright © 2016 by Editora Baraúna SE Ltda
Projeto Gráfico Editora Baraúna Revisão
Priscila Loiola
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________
Impresso no Brasil Printed in Brazil
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br
Rua da Quitanda, 139 – 3º andar CEP 01012-010 – Centro – São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.EditoraBarauna.com.br
Sumário Introdução...................................................................6 Nota.............................................................................8 Capítulo 1..................................................................10 Capítulo 2..................................................................23 Capítulo 3 .................................................................35 Capítulo 4 .................................................................45 Capítulo 5..................................................................55 Capítulo 6 .................................................................65 Capítulo 7..................................................................76 Capítulo 8..................................................................88 Capítulo 9..................................................................98 Capítulo 10..............................................................110 Capítulo 11..............................................................122 Capítulo 12..............................................................133 Capítulo 13..............................................................148
Aline Basztabin
Introdução Dor. Três letras que juntas possuem significado forte. Aquela sensação de algo pontiagudo entrando e machucando o coração. Aquele aperto que arranca lágrimas dos olhos ocasionando muitas vezes até a falta de ar. Mudanças geram dores. As dores necessárias para a evolução do ser humano. Algumas experiências causam dores que impregnam na personalidade do ser. Viver torna-se mais difícil e pesado. A vida não seria vida se não houvesse a esperança que chega trazendo conforto no peito, acalmando ansiedades e dores. A esperança é filha da fé, e a fé é a mãe de muitas virtudes. A essência da dor é baseada em fatos reais de um casal que adotou Aurora sem conhecer a sua essência. A essência, aquela que nasce conosco, essa nunca muda. Ela revela quem realmente somos e qual é a origem de nossos pensamentos. Gostaria de apresentar-lhes a história de Alexsander. Polonês e sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Vinte e cinco anos de idade, ele é bonito, alto, elegante e possui olhos azuis cristalinos. Seus olhos, embora jovens, já presenciaram toda a dor que o ser humano é capaz de praticar com o seu próximo. Conheceu a maldade vestida de vaidade e orgulho. Reconstruiu sua vida na cidade de Nova York. Apaixonou-se por Rose. Rose é mulher independente. Possui costas largas de cobranças de sua família e da sociedade por ainda não ter 6
A Essência da Dor
se casado no auge de seus 32 anos. Vive sufocada. Rose nunca havia namorado alguém e tão pouco se apaixonado. Era exigente com homens. Dona de beleza incontestável, apaixonou-se por Alexsander, não importando-se com sua essência atormentada pela dor. Casaram-se no inverno de 1952. Numa igreja simples, juraram amor para toda aquela vida e talvez até para as próximas. Juraram amor eterno. Talvez o tempo fosse certo inimigo, mas o amor não precisava de tempo, o amor entre eles precisava de corações sinceros. O amor uniu-os de forma indiscutível. Entretanto, não contaram com o desafio que a vida havia preparado para o casal. A infertilidade. Decidem deixar as mágoas da vida saírem e adotam Aurora. Aquela que trouxe a luz novamente e tornou-se a razão de respirar do casal. Aquela que encheu o peito de Alexsander e Rose de felicidade. Fez com que seus corações batessem fortes mais uma vez. Embora Aurora fosse o motivo do casal serem completos agora como pai e mãe, Aurora também foi a razão do maior pesadelo e dor daquele casal. Aurora possuía algo negro em seus olhos e alma perturbadora. Nunca soube-se certamente qual tipo de anjo havia feito aquele ser. Eu gostaria de levar vocês nessa viagem de algumas décadas atrás e atravessar o tempo com Alexsander e Rose. Um casal que vivenciou dores comuns, embora suas essências fossem diferentes. Cujas dificuldades eram dominadas à noite e ressurgidas a cada amanhecer. Venha comigo. Tenho uma história para contar. Aline Basztabin
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Aline Basztabin
Nota Dedico essa obra ao casal Alexsander e Rose. Ao Alexsander, porque serviu e ainda serve como modelo de vida. Uma enciclopédia móvel. Eu tenho profundo respeito por sua história e compreendi melhor os desígnios de Deus e da dor. Sim. A dor é uma semente que se não for trabalhada, cresce e torna-se maior que nós. Algo que consume com nossa identidade e põe fim em sonhos que poderiam ser realizados. Toda vez que vejo os olhos azuis de Alexsander, eu posso sentir sua tristeza, decepção por Aurora e a saudade de Rose. Seu braço direto. Seu pilar para continuar vivo. O seu grande amor. Como com todo casal, houve brigas e histórias para serem contadas. Infelizmente Rose nos deixou em novembro de 2002. Até hoje eu sinto a presença dela em minha memória e lembro bem dos merengues que ela cozinhava como ninguém. Sinto falta dela e de seu humor. Certa vez, me lembro, estávamos na praia e havia faltado luz na madrugada. Rose acordou assustada, tudo estava escuro. Ela acordou Alexsander e a mim, pronunciando o fim do mundo. Alexsander riu e disse a ela que só havia faltado luz. Todos rimos. Rose foi uma pessoa especial em minha vida e a saudade talvez não seja a palavra que possa descrever esse sentimento. 8
A Essência da Dor
Lembro bem dos domingos ensolarados que passávamos juntos. Alexsander cozinhava massa de máquina. Aquelas máquinas que fazem a pasta da massa. Quando eu fico perto de Alexsander, minha alma se esbanja de compaixão, porque eu ainda não vivi o bastante para poder entender as diferenças formas de dores que ele vivenciou. Eu aprendi a amá-lo acima de tudo como ser humano e entender sua forma de ser. Entender seus pensamentos. Não tenho a intenção de expor a história desse casal de uma maneira negativa, muito menos de desprezar a adoção. Eu particularmente acredito que o ato de adotar alguém é um ato de muito amor. Mas, infelizmente, esta história não teve esse final feliz. Coisas ruins acontecem o tempo todo, as coisas dão erradas. O segredo é juntar os cacos e seguir adiante. Minha ideia é compartilhar os sofrimentos e ensinamentos que a vida nos proporciona. Talvez alguém possa entender esses sentimentos descritos a seguir. Todos temos alguma bagagem que, se compartilhada, talvez poderá ajudar a amenizar a dor de outras pessoas. Para concluir, eu escrevi esta obra com muito amor pois nós três passamos momentos bons. Obviamente, nomes foram trocados para preservar a identidade dos personagens. As cidades, eu mantive a originalidade.
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Aline Basztabin
Capítulo 1 “Você terá que ser forte” Polônia — 1939 Noite de fim de verão típico na Europa e com uma brisa fria pronunciando o outono. Assim, a Polônia estava sufocada com inseguranças. O sol já havia se posto, dando lugar à uma noite com futuros pesadelos imagináveis e insustentáveis à dor do ser humano. As folhas das árvores começavam a cair e suas cores já desbotadas permaneciam no chão, chão o qual mais tarde em uma madrugada qualquer seria invadido por diversos soldados nazistas. Naquele ano, o verão não havia dado grandes felicidades aos habitantes da cidade. Ele não quis aquecer, talvez com medo do outono que logo chegaria acompanhado de homens altos e uniformizados. Naquele ano, as pessoas estavam com o sentimento de medo. Havia rumores. Sentiam o cheiro da insegurança pairando nas ruas. A chuva típica do clima do país limpava ou talvez amenizava as inseguranças dos habitantes da cidade, que era muito bem arborizada e com cores opacas pintadas nos prédios. Alexsander morava em um vilarejo em Bilka Szlacheca. Em uma casa velha e com decorações limitadas a
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A Essência da Dor
móveis de madeira de cores marrom e branca. Os abajures em forma arredondada e com capa de tecido desfavorecia a iluminação da casa. As cortinas com tons mornos combinavam com as cores dos móveis. Alexsander era um garoto pré-adolescente de 12 anos. Como todo pré-adolescente, não gostava de reuniões de família e muito menos do dever de cuidar do seu irmão mais novo, de 6 anos, Zigmundo, o caçula da família. Devido à sua pouca idade, não entendia o que acontecia a sua volta. Porém, entendia de seus medos. Alexsander frequentava a escola da cidade, estudava apenas com meninos. A escola naquela época era uma tortura, professores com didáticas extremamente antigas e muito exigentes. Não havia uma postura correta tratando-se de aluno. O professor sempre seria o mestre e o aluno, o comandado. Não era permitido o aluno questionar. Essa postura de hierarquia fazia com que Alexsander odiasse cada dia mais a vida escolar. Não gostava de estudar e muito menos de fazer a lição de casa. Alexsander, mesmo com pouca idade, já se destacava com seu temperamento agressivo e explosivo. Diversas vezes batia em seus colegas por discussões triviais fora da escola. Não era amigável. Sua personalidade já era classificada como difícil. Ele não era do tipo que levava desaforo para casa. A raiva fazia com que seu sangue fervesse. Sua mãe talvez fosse a culpada pelo comportamento do seu filho mais velho. Naquele tempo, o amor era quase que uma palavra esquecida os lábios das pessoas. Sua mãe, Anna, era uma mulher tradicional, sempre com o mesmo estilo de roupa. Naquele tempo, toda mulher possuía seu estilo 11
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de roupa igual ao de sua mãe: vestido preto na altura do joelho e cabelo com duas presilhas de cada lado. Anna era mulher de vida muito sofrida, não possuía compaixão nem mesmo pelos seus filhos, mas isso não significava que não os amassem, pelo contrário, Anna somente possuía seus filhos como a felicidade. Seu casamento era fracassado. Cansada da vida e das traições do marido, havia tentando diversas vezes fugir de casa com outros homens, que logo a abandonavam quando tomavam o conhecimento de que já era mãe de dois filhos. O preconceito era o sobrenome daqueles cidadãos. O pai de Alexsander era o homem que trabalhava na família. Ele era o chefe da casa. Josef não era homem de duas palavras, era severo na educação de seus filhos. Talvez havia aprendido aquele comportamento na Primeira Guerra Mundial. Seu coração não possuía amor. Possuía coração embriagado pelo álcool e perdia-se em cada esquina, em bares da cidade. Toda noite era um tormento na vida da família de Alexsander, seu pai chegava bêbado, causando brigas e desentendimentos entre todos. Era difícil de respirar o ar pesado que ele deixava por onde passasse. Isso explicava o comportamento de Alexsander. Quando a noite caía, chegava com ela os batimentos rápidos nos corações daquela família. Naquele tempo, o amor não era desse mundo, e Deus não reinava na Terra. — Nosso pai está chegando, Alexsander. Desliga o rádio – disse Zigmundo olhando pela janela com olhos fixos na imagem do pai, mesmo à distância. — Eu sei, sinto o pavor chegar em casa – respondeu Alexsander levantando-se do sofá. 12
A Essência da Dor
— Será que vamos brigar hoje? — Espero que não – Alexsander colocou sua mão no ombro de seu irmão, como consolo. — Não chora. Não fica nervoso. Sabe que nosso pai não gosta quando choramos. — Tudo bem – Zigmundo fechou a cortina. — Vem, vamos para mesa. A janta está quase pronta e você sabe que nosso pai não gosta de não estarmos na mesa quando ele chega em casa. — Lavem as mãos. Voltem para a mesa com postura. Sentem como homens que um dia serão – ordenou sua mãe. — Sim, mãe. A porta abriu-se e surgiu a imagem de um homem embriagado pelo álcool. Coração severo, judiado por aquela vida miserável que viviam. Cantando uma canção indecifrável na linguagem alcoolizada, Josef entrou em casa fechando a porta com força, porém, a cantoria parou no momento que Josef não avistou os meninos à mesa. A regra era clara. Quando ele chegasse, todos já deveriam estar esperando por ele em suas devidas posições na mesa. A mesa era de forma oval, típico de decorações na época, a toalha de mesa era simples, entretanto, Anna cuidara da decoração. Dos pratos e talheres. Aqueles pratos de porcelana que Anna havia herdado de sua mãe eram convidativos para a refeição. Logo estariam todos perdidos e quebrados entre paredes desmoronadas. — Onde estão os meninos, Anna? — Calma. Pedi que fossem lavar as mãos. Já devem estar voltando – deu um passo para trás. — Sabe que não gosto que não estejam na mesa. 13
Aline Basztabin
— Alexsander! Zigmundo! Venham para mesa. Vamos comer. Não me façam esperar – Josef começara a gritar em casa, e seu eco fazia com que os batimentos cardíacos de Alexsander e Zigmundo quase saíssem de suas bocas. — Meninos! Venham rápido – Anna chamou. — Sente-se, Josef, meu marido. A mesa já está pronta – puxou uma cadeira para ele. — Quero saber dos meus filhos. O que fez com eles? Tentou fugir com outro homem e largou os meninos em algum canto qualquer? — Não, Josef. Acalma-se. — Pai, estamos aqui. Não vamos brigar por isso – disse Alexander sentando-se à mesa. — Muito bem, assim que deve ser – Josef caminhou em direção à mesa, desorientado pelo efeito do álcool. — Sente-se, Josef. Hoje temos sopa de beterraba – serviu o prato do marido. — Somente eu trabalho. Eu trago a comida para essa casa. Vocês deveriam ter mais consideração por mim. Trabalho duro. — Sim. Nós sabemos disso – todos concordaram para não haver mais discussões. — E além do mais, já está na hora do Alexsander sair da escola e ajudar em casa – tentou achar a melhor forma entre a colher de sopa e sua boca com odor forte. — Não, pai! – exclamou Alexsander. — Como é? Está me questionando? Sabe que os livros são caros e não podemos pagar, além do mais, escola nos tempos em que vivemos é somente para a elite – devolveu a colher ao prato. 14
A Essência da Dor
— Sim, eu sei, pai – concordou. — Josef, meu marido. Acalme-se. Por favor. Vamos comer. — Não tenho fome. Essa conversa terminou com meu apetite. Quero uma bebida. Amanhã será seu último dia na escola, Alexsander. Não tenho dinheiro para comprar seus livros e não quero mais falar sobre isso. Você irá trabalhar comigo. — Tudo bem, pai – Alexsander começou a agradecer a Deus ou qualquer outro tipo de divindade por ter terminado aquele assunto. Aquela noite seria a última em que todos estariam reunidos. A noite terminou com o ar pesado na família de Alexsander. Depois daquele “tudo bem, pai”, a família resolveu não pronunciar nenhuma palavra a mais. As coisas já estavam muito difíceis nas ruas, o clima já estava pesado demais para manter dentro de suas casas a insegurança. Brigas só iriam piorar a convivência entre eles. Zigmundo, o caçula da família, permaneceu em silêncio absoluto até o dia seguinte. Assistir a seu pai e o trato dele com os demais, sem respeito ou qualquer outro sentimento bom, fez com que medo e fragilidade de criança pequena o consumissem. Trancou-se no silêncio. Não precisaria ser inteligente em nível máximo para sentir que algo iria acontecer, algo grande iria mudar a vida da família. Talvez mudar a história daquele país e outras coisas mais que a guerra traz consigo. Anna retirou os pratos da mesa e apagou a luz. Carregando seu marido até o quarto, deitou-o na cama, mas ele, por já estar totalmente alcoolizado, não pôde 15
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ B331e Basztabin, Aline A essência da dor : você conhece a sua essência? / Aline Basztabin. - 1. ed. São Paulo : Baraúna, 2016. ISBN 978-85-437-0691-7 1. Romance brasileiro. I. Título. 16-35628
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
________________________________________________________________ 22/08/2016 26/08/2016 Impresso no Brasil Printed in Brazil
DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br
Rua da Quitanda, 139 – 3º andar CEP 01012-010 – Centro – São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.EditoraBarauna.com.br
Sumário Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 Nota. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 Capítulo 1 - “Você terá que ser forte”. . . 10 Capítulo 2 - o marido “salva vida”. . . . . . . . 23 Capítulo 3 - o trabalho do destino . . . . . 35 Capítulo 4 - as dores do mundo. . . . . . . . . . 46 Capítulo 5 - te amo daqui até a lua . . . . . . 55 Capítulo 6 - cicatrizes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 Capítulo 7 - a esperança é filha da fé. . . . 76 Capítulo 8 - a essência vestida de pureza. . . 88 Capítulo 9 - aquela que mata em silêncio . . 98 Capítulo 10 - o começo do fim . . . . . . . . . . 110 Capítulo 11 - me diz o que pensa, te direi com quem anda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 Capítulo 12 - não mexe-se no estragado. . 133 Capítulo 13 - a dor do adeus . . . . . . . . . . . . 148
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Introdução Dor. Três letras que juntas possuem significado forte. Aquela sensação de algo pontiagudo entrando e machucando o coração. Aquele aperto que arranca lágrimas dos olhos ocasionando muitas vezes até a falta de ar. Mudanças geram dores. As dores necessárias para a evolução do ser humano. Algumas experiências causam dores que impregnam na personalidade do ser. Viver torna-se mais difícil e pesado. A vida não seria vida se não houvesse a esperança que chega trazendo conforto no peito, acalmando ansiedades e dores. A esperança é filha da fé, e a fé é a mãe de muitas virtudes. A essência da dor é baseada em fatos reais de um casal que adotou Aurora sem conhecer a sua essência. A essência, aquela que nasce conosco, essa nunca muda. Ela revela quem realmente somos e qual é a origem de nossos pensamentos. Gostaria de apresentar-lhes a história de Alexsander. Polonês e sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Vinte e cinco anos de idade, ele é bonito, alto, elegante e possui olhos azuis cristalinos. Seus olhos, embora jovens, já presenciaram toda a dor que o ser humano é capaz de praticar com o seu próximo. Conheceu a maldade vestida de vaidade e orgulho. Reconstruiu sua vida na cidade de Nova York. Apaixonou-se por Rose. Rose é mulher independente. Possui costas largas de cobranças de sua família e da sociedade por ainda não ter 6
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se casado no auge de seus 32 anos. Vive sufocada. Rose nunca havia namorado alguém e tão pouco se apaixonado. Era exigente com homens. Dona de beleza incontestável, apaixonou-se por Alexsander, não importando-se com sua essência atormentada pela dor. Casaram-se no inverno de 1952. Numa igreja simples, juraram amor para toda aquela vida e talvez até para as próximas. Juraram amor eterno. Talvez o tempo fosse certo inimigo, mas o amor não precisava de tempo, o amor entre eles precisava de corações sinceros. O amor uniu-os de forma indiscutível. Entretanto, não contaram com o desafio que a vida havia preparado para o casal. A infertilidade. Decidem deixar as mágoas da vida saírem e adotam Aurora. Aquela que trouxe a luz novamente e tornou-se a razão de respirar do casal. Aquela que encheu o peito de Alexsander e Rose de felicidade. Fez com que seus corações batessem fortes mais uma vez. Embora Aurora fosse o motivo do casal serem completos agora como pai e mãe, Aurora também foi a razão do maior pesadelo e dor daquele casal. Aurora possuía algo negro em seus olhos e alma perturbadora. Nunca soube-se certamente qual tipo de anjo havia feito aquele ser. Eu gostaria de levar vocês nessa viagem de algumas décadas atrás e atravessar o tempo com Alexsander e Rose. Um casal que vivenciou dores comuns, embora suas essências fossem diferentes. Cujas dificuldades eram dominadas à noite e ressurgidas a cada amanhecer. Venha comigo. Tenho uma história para contar. Aline Basztabin
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Nota Dedico essa obra ao casal Alexsander e Rose. Ao Alexsander, porque serviu e ainda serve como modelo de vida. Uma enciclopédia móvel. Eu tenho profundo respeito por sua história e compreendi melhor os desígnios de Deus e da dor. Sim. A dor é uma semente que se não for trabalhada, cresce e torna-se maior que nós. Algo que consume com nossa identidade e põe fim em sonhos que poderiam ser realizados. Toda vez que vejo os olhos azuis de Alexsander, eu posso sentir sua tristeza, decepção por Aurora e a saudade de Rose. Seu braço direto. Seu pilar para continuar vivo. O seu grande amor. Como com todo casal, houve brigas e histórias para serem contadas. Infelizmente Rose nos deixou em novembro de 2002. Até hoje eu sinto a presença dela em minha memória e lembro bem dos merengues que ela cozinhava como ninguém. Sinto falta dela e de seu humor. Certa vez, me lembro, estávamos na praia e havia faltado luz na madrugada. Rose acordou assustada, tudo estava escuro. Ela acordou Alexsander e a mim, pronunciando o fim do mundo. Alexsander riu e disse a ela que só havia faltado luz. Todos rimos. Rose foi uma pessoa especial em minha vida e a saudade talvez não seja a palavra que possa descrever esse sentimento. 8
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Lembro bem dos domingos ensolarados que passávamos juntos. Alexsander cozinhava massa de máquina. Aquelas máquinas que fazem a pasta da massa. Quando eu fico perto de Alexsander, minha alma se esbanja de compaixão, porque eu ainda não vivi o bastante para poder entender as diferenças formas de dores que ele vivenciou. Eu aprendi a amá-lo acima de tudo como ser humano e entender sua forma de ser. Entender seus pensamentos. Não tenho a intenção de expor a história desse casal de uma maneira negativa, muito menos de desprezar a adoção. Eu particularmente acredito que o ato de adotar alguém é um ato de muito amor. Mas, infelizmente, esta história não teve esse final feliz. Coisas ruins acontecem o tempo todo, as coisas dão erradas. O segredo é juntar os cacos e seguir adiante. Minha ideia é compartilhar os sofrimentos e ensinamentos que a vida nos proporciona. Talvez alguém possa entender esses sentimentos descritos a seguir. Todos temos alguma bagagem que, se compartilhada, talvez poderá ajudar a amenizar a dor de outras pessoas. Para concluir, eu escrevi esta obra com muito amor pois nós três passamos momentos bons. Obviamente, nomes foram trocados para preservar a identidade dos personagens. As cidades, eu mantive a originalidade.
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Capítulo 1 “Você terá que ser forte” Polônia — 1939 Noite de fim de verão típico na Europa e com uma brisa fria pronunciando o outono. Assim, a Polônia estava sufocada com inseguranças. O sol já havia se posto, dando lugar à uma noite com futuros pesadelos imagináveis e insustentáveis à dor do ser humano. As folhas das árvores começavam a cair e suas cores já desbotadas permaneciam no chão, chão o qual mais tarde em uma madrugada qualquer seria invadido por diversos soldados nazistas. Naquele ano, o verão não havia dado grandes felicidades aos habitantes da cidade. Ele não quis aquecer, talvez com medo do outono que logo chegaria acompanhado de homens altos e uniformizados. Naquele ano, as pessoas estavam com o sentimento de medo. Havia rumores. Sentiam o cheiro da insegurança pairando nas ruas. A chuva típica do clima do país limpava ou talvez amenizava as inseguranças dos habitantes da cidade, que era muito bem arborizada e com cores opacas pintadas nos prédios. Alexsander morava em um vilarejo em Bilka Szlacheca. Em uma casa velha e com decorações limitadas a
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móveis de madeira de cores marrom e branca. Os abajures em forma arredondada e com capa de tecido desfavorecia a iluminação da casa. As cortinas com tons mornos combinavam com as cores dos móveis. Alexsander era um garoto pré-adolescente de 12 anos. Como todo pré-adolescente, não gostava de reuniões de família e muito menos do dever de cuidar do seu irmão mais novo, de 6 anos, Zigmundo, o caçula da família. Devido à sua pouca idade, não entendia o que acontecia a sua volta. Porém, entendia de seus medos. Alexsander frequentava a escola da cidade, estudava apenas com meninos. A escola naquela época era uma tortura, professores com didáticas extremamente antigas e muito exigentes. Não havia uma postura correta tratando-se de aluno. O professor sempre seria o mestre e o aluno, o comandado. Não era permitido o aluno questionar. Essa postura de hierarquia fazia com que Alexsander odiasse cada dia mais a vida escolar. Não gostava de estudar e muito menos de fazer a lição de casa. Alexsander, mesmo com pouca idade, já se destacava com seu temperamento agressivo e explosivo. Diversas vezes batia em seus colegas por discussões triviais fora da escola. Não era amigável. Sua personalidade já era classificada como difícil. Ele não era do tipo que levava desaforo para casa. A raiva fazia com que seu sangue fervesse. Sua mãe talvez fosse a culpada pelo comportamento do seu filho mais velho. Naquele tempo, o amor era quase que uma palavra esquecida os lábios das pessoas. Sua mãe, Anna, era uma mulher tradicional, sempre com o mesmo estilo de roupa. Naquele tempo, toda mulher possuía seu estilo 11
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de roupa igual ao de sua mãe: vestido preto na altura do joelho e cabelo com duas presilhas de cada lado. Anna era mulher de vida muito sofrida, não possuía compaixão nem mesmo pelos seus filhos, mas isso não significava que não os amassem, pelo contrário, Anna somente possuía seus filhos como a felicidade. Seu casamento era fracassado. Cansada da vida e das traições do marido, havia tentando diversas vezes fugir de casa com outros homens, que logo a abandonavam quando tomavam o conhecimento de que já era mãe de dois filhos. O preconceito era o sobrenome daqueles cidadãos. O pai de Alexsander era o homem que trabalhava na família. Ele era o chefe da casa. Josef não era homem de duas palavras, era severo na educação de seus filhos. Talvez havia aprendido aquele comportamento na Primeira Guerra Mundial. Seu coração não possuía amor. Possuía coração embriagado pelo álcool e perdia-se em cada esquina, em bares da cidade. Toda noite era um tormento na vida da família de Alexsander, seu pai chegava bêbado, causando brigas e desentendimentos entre todos. Era difícil de respirar o ar pesado que ele deixava por onde passasse. Isso explicava o comportamento de Alexsander. Quando a noite caía, chegava com ela os batimentos rápidos nos corações daquela família. Naquele tempo, o amor não era desse mundo, e Deus não reinava na Terra. — Nosso pai está chegando, Alexsander. Desliga o rádio – disse Zigmundo olhando pela janela com olhos fixos na imagem do pai, mesmo à distância. — Eu sei, sinto o pavor chegar em casa – respondeu Alexsander levantando-se do sofá. 12
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— Será que vamos brigar hoje? — Espero que não – Alexsander colocou sua mão no ombro de seu irmão, como consolo. — Não chora. Não fica nervoso. Sabe que nosso pai não gosta quando choramos. — Tudo bem – Zigmundo fechou a cortina. — Vem, vamos para mesa. A janta está quase pronta e você sabe que nosso pai não gosta de não estarmos na mesa quando ele chega em casa. — Lavem as mãos. Voltem para a mesa com postura. Sentem como homens que um dia serão – ordenou sua mãe. — Sim, mãe. A porta abriu-se e surgiu a imagem de um homem embriagado pelo álcool. Coração severo, judiado por aquela vida miserável que viviam. Cantando uma canção indecifrável na linguagem alcoolizada, Josef entrou em casa fechando a porta com força, porém, a cantoria parou no momento que Josef não avistou os meninos à mesa. A regra era clara. Quando ele chegasse, todos já deveriam estar esperando por ele em suas devidas posições na mesa. A mesa era de forma oval, típico de decorações na época, a toalha de mesa era simples, entretanto, Anna cuidara da decoração. Dos pratos e talheres. Aqueles pratos de porcelana que Anna havia herdado de sua mãe eram convidativos para a refeição. Logo estariam todos perdidos e quebrados entre paredes desmoronadas. — Onde estão os meninos, Anna? — Calma. Pedi que fossem lavar as mãos. Já devem estar voltando – deu um passo para trás. — Sabe que não gosto que não estejam na mesa. 13
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— Alexsander! Zigmundo! Venham para mesa. Vamos comer. Não me façam esperar – Josef começara a gritar em casa, e seu eco fazia com que os batimentos cardíacos de Alexsander e Zigmundo quase saíssem de suas bocas. — Meninos! Venham rápido – Anna chamou. — Sente-se, Josef, meu marido. A mesa já está pronta – puxou uma cadeira para ele. — Quero saber dos meus filhos. O que fez com eles? Tentou fugir com outro homem e largou os meninos em algum canto qualquer? — Não, Josef. Acalma-se. — Pai, estamos aqui. Não vamos brigar por isso – disse Alexander sentando-se à mesa. — Muito bem, assim que deve ser – Josef caminhou em direção à mesa, desorientado pelo efeito do álcool. — Sente-se, Josef. Hoje temos sopa de beterraba – serviu o prato do marido. — Somente eu trabalho. Eu trago a comida para essa casa. Vocês deveriam ter mais consideração por mim. Trabalho duro. — Sim. Nós sabemos disso – todos concordaram para não haver mais discussões. — E além do mais, já está na hora do Alexsander sair da escola e ajudar em casa – tentou achar a melhor forma entre a colher de sopa e sua boca com odor forte. — Não, pai! – exclamou Alexsander. — Como é? Está me questionando? Sabe que os livros são caros e não podemos pagar, além do mais, escola nos tempos em que vivemos é somente para a elite – devolveu a colher ao prato. 14
A Essência da Dor
— Sim, eu sei, pai – concordou. — Josef, meu marido. Acalme-se. Por favor. Vamos comer. — Não tenho fome. Essa conversa terminou com meu apetite. Quero uma bebida. Amanhã será seu último dia na escola, Alexsander. Não tenho dinheiro para comprar seus livros e não quero mais falar sobre isso. Você irá trabalhar comigo. — Tudo bem, pai – Alexsander começou a agradecer a Deus ou qualquer outro tipo de divindade por ter terminado aquele assunto. Aquela noite seria a última em que todos estariam reunidos. A noite terminou com o ar pesado na família de Alexsander. Depois daquele “tudo bem, pai”, a família resolveu não pronunciar nenhuma palavra a mais. As coisas já estavam muito difíceis nas ruas, o clima já estava pesado demais para manter dentro de suas casas a insegurança. Brigas só iriam piorar a convivência entre eles. Zigmundo, o caçula da família, permaneceu em silêncio absoluto até o dia seguinte. Assistir a seu pai e o trato dele com os demais, sem respeito ou qualquer outro sentimento bom, fez com que medo e fragilidade de criança pequena o consumissem. Trancou-se no silêncio. Não precisaria ser inteligente em nível máximo para sentir que algo iria acontecer, algo grande iria mudar a vida da família. Talvez mudar a história daquele país e outras coisas mais que a guerra traz consigo. Anna retirou os pratos da mesa e apagou a luz. Carregando seu marido até o quarto, deitou-o na cama, mas ele, por já estar totalmente alcoolizado, não pôde 15
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perceber o esforço que sua mulher fizera, tão pouco não pôde perceber a sombra negra que acompanhava-o em sua vida. Anna percebeu um vento gelado passando pelos corredores de sua casa. O inverno não havia chego ainda, mas sentiu o vento gelado passar por seu rosto. Ela parou entre o corredor e a porta do quarto. Aquele vento gelado era como anúncio do pouso de algo negro na face da Terra. Anna não quis pensar no pior. Mal sabia que seria a última noite em que avistaria seu marido com vida. Decidiu verificar os meninos e a cada passo naquele chão de madeira, sentia o vento gelado chegar mais e mais perto de sua família. Talvez esse vento fosse a chegada dos demônios que Alexander rotularia mais tarde. No dia seguinte, os ânimos já estavam mais calmos na casa de Alexsander. O céu estava cinza. Ele vestiu-se com calça social e um pulôver. Seu irmão Zigmundo acordara com algum pressentimento muito ruim, talvez fosse culpa da última noite. Anna estava esperando os meninos na mesa, hoje o café da manhã não seria muito delicioso, apenas um copo de leite e um pão dormido de dois dias. Josef já havia saído de casa, talvez para o trabalho ou talvez tenha saído na madrugada para buscar mais bebida. Nunca se soube ao certo. — Venham, meus filhos, venham tomar café com sua mãe – fez sinal para sentarem-se perto dela. — Onde está o pai? – questionou Alexsander. — Não sei, já saiu, mas não sei aonde ele foi. — Ah, que bom. Assim podemos nos sentir melhor sem a presença dele – replicou Alexsander. — Não diga isso, meu filho. Ele é seu pai. 16
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— Poxa, mas não tinha homem melhor para você escolher para ser nosso pai? – tomou seu copo de leite quente e questionou sua mãe. — Malcriado! Ele pode ter todos os defeitos e ser um pouco severo. Mas é seu pai e é ele quem traz comida para essa casa. — Não parece, mãe. Tem faltado comida em casa! — Shii. Silêncio. Está acontecendo algo lá fora – manifestou-se Zigmundo. — É bomba! – exclamou Alexsander. — Abaixam-se! – com um grito desesperado, Anna tentou salvar seus filhos. A invasão no território polonês havia começado naquele verão de 1 de setembro de 1939, numa sexta-feira com madrugada nublada e na trigésima sexta semana do ano. Era o começo do pesadelo inesquecível de qualquer ser humano naquele tempo. As bombas invadiram as casas vizinhas e com o estouro, voaram diversos pedaços dentro da casa de Alexsander. Paredes foram derrubadas, e o sangue humano já estava em todas as partes. Era difícil de respirar no meio de tantas explosões. A cada cinco minutos, caía outra bomba, cada vez mais perto da família de Alexsander. A família entrou em pânico. Não havia como sobreviver àquelas bombas. A cidade estava em chamas, havia fogo por toda parte na casa de Alexsander, tudo o que eles possuíam, já fazia parte do passado. Zigmundo não teve forças para mexer-se. Começou a chorar compulsivamente. Anna carregou-o em seu colo, e Alexsander acompanhou sua mãe. Chegando à antiga rua, viram o estrago que as bombas já haviam feito em questão de minutos. Encontraram 17
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diversos corpos estendidos no chão, alguns faltando cabeça, outras somente pedaços do corpo, intestinos e outras partes espalhadas pela rua. Entre os corpos, Alexsander e Anna avistaram Josef, seu corpo estava partido em dois. Seu paletó de veludo, que antes era azul marinho, agora estava repleto de sangue. Viram também vizinhos e colegas de escola ou até mesmo aquele vizinho que conheciam só de vista. Todos estavam mortos, atingidos pelas bombas. Não havia tempo de despedidas, as pessoas lutavam por suas vidas, os poucos que sobreviveram ao ataque de bombas estavam congelados de medo e de insegurança do futuro, tentavam esconder-se, porém, não havia lugar seguro. Não havia onde pudessem parar por algum segundo e respirar, talvez até entender o que estava acontecendo. Havia crianças perdidas de seus pais e adultos sendo mortos por bombas que aniquilavam seus corpos. Quando o bombardeiro cessou, os soldados dominaram a cidade onde a família de Alexsander morava, eram milhares deles por toda a parte, executavam todos que encontravam no caminho. Com agressividade, invadiram o norte com 630 mil soldados, e o sul com 886 mil. A cidade foi cercada por dezenas de tanques de guerra. Eles faziam com que o chão tremesse por onde passassem, mas comparando com o tremor dos corações dos habitantes da cidade, isso era pouco. Não havia como escapar diante de tantos “demônios”, como Alexsander os dominou. Eles dominaram a Terra. Cada canto daquela linda cidade onde cresceu Alexsander já não pertencia mais a eles. Alguns deles prenderam diversas famílias. O inferno havia decidido instalar-se no planeta. 18
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Entre uma pilha de corpos e paredes destruídas, Anna sentou-se no chão atrás de uma parede ainda intacta, puxando seus filhos contra seu corpo, e deu o último conselho. — Alexander, meu filho. Vamos fazer um acordo – disse segurando com toda sua força as mãos dos meninos. — Sim, mãe. — Agora somos nós três. Eu, você e seu irmão. Não saberemos o que vai acontecer – engoliu a saliva. — Acho que vai acontecer o pior, mãe – respondeu Alexsander tentando puxar ar para seus pulmões. — Não sei, meu filho, sinceramente eu não sei. Mas vamos fazer um acordo – piscou o olho direito na tentativa de acalmar seus filhos. — Sim, mãe! —Se por acaso o destino, ou esses homens, nos separar, vamos combinar algo. — Acha que vão nos separar? – perguntou Zigmundo com olhos molhados de choro. — Não sei, meu filho. Vou rezar para que não. Mas vocês terão que ser fortes, principalmente você, Alexsander. Não sabemos o que poderá acontecer. Você terá que ser forte. — Qual é acordo, mãe? – Alexsander perguntou apreensivo. — Se formos separados e isso não terminar logo, teremos que aguentar o máximo que pudermos. — Como assim, mãe, aguentar o máximo que puder? – os olhos confusos de Alexsander demoraram para entender o que sua mãe queria lhe dizer. — Você vai ter que ser forte, Alexsander. Se eles nos separarem, e se tudo isso ainda não estiver terminado, 19
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vamos marcar um lugar para nos encontrar – abraçou seu filho mais novo em seu peito. — Mesmo que dure cinco ou dez anos, mãe? — Sim. Não importa o tempo que passar. Um ano depois de tudo isso terminar, teremos que nos encontrar em frente ao relógio Big Ben, em Londres, na Inglaterra, ao meio-dia, por uma semana inteira. — E se não nenhum de nós aparecermos lá? — Então isso quer dizer que fomos mortos. Ou um de nós três morreu – baixou a cabeça. — Me deixa ver se eu entendi, mãe: quando completar um ano que isso tudo terminou, teremos que encontramos no relógio do Big Ben na Inglaterra, ao meio-dia, durante uma semana, isso? Mas por que uma semana mãe? — Porque temos que dar tempo para todo mundo chegar ao relógio. — Como faremos isso? – perguntou espantado. — Não se preocupe, você encontrará um jeito – acariciou os cabelos lisos de seu filho mais velho. O coração de Alexsander, o qual já estava em pânico, parou de bater por alguns segundos e faltou-lhe o ar. A sensação de desmaio foi forte, porém, sua mãe segurou-o pelo braço e lembrou-o: — Você terá que ser forte. Anna levantou-se rapidamente quando avistou alguns soldados aproximarem-se de seus filhos. Cercados de todos os lados, os soldados juntaram-nos com outros poloneses que haviam sido capturados. O medo era dominador, e a paralisia corporal impedia qualquer movimento lógico de sobrevivência. Não houve um prédio que não fosse o alvo 20
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dos soldados nazistas. E por falar neles, eram milhares deles marchando armados e invadindo o território polonês. Todos altos com uniformes de tecido grosso. As pessoas podiam sentir o ódio em seus olhos e a violência em sua essência. Estampado com símbolo do nazismo em seus uniformes, violentamente espalharam bandeiras e as penduraram em toda a parte do território vizinho. Eles pareciam invencíveis. — Mulheres de um lado. Homens do outro! – ordenou o soldado com estatura alta e frieza na voz. E dessa forma milhares de famílias perderam-se. Mulheres se perderam de seus maridos e filhos. Outras se perderam de seus pais e irmãos e dezenas deram adeus aos seus familiares naquele momento. A despedida mais dolorosa que o ser humano pode aguentar talvez seja o adeus, o nunca mais, o adeus da incerteza e o constante sentimento de morte que dominam suas almas e roubam suas essências. Deixaram de possuir controle sobre suas vidas naquele momento. Deixaram de ser seres humanos. Eles se tornariam escravos de pijamas listrados em campos de concentrações, alguns maiores, alguns menores. Anna, como mãe, previu o pior que poderia acontecer. A separação. Os soldados separaram sua família ali mesmo na rua, como rebanho de ovelhas. Decidiram seus destinos. Embaixo do céu coberto de cinza e com cheiro de maldade na atmosfera, fizeram filas de homens e mulheres. Foi a última vez que Zigmundo, seu filho caçula, foi visto com vida por sua mãe. A regra era clara: mulheres de um lado e homens de outro. Logo nas primeiras horas da guerra, a maldade não tinha limites. Aqueles anjos do mal não apenas executavam 21
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ordens contra aqueles pobres civis poloneses, como os tratavam mal. Eles invadiram o país e roubaram a dignidade dessas pobres criaturas. Eles possuíam alma negra, fétida. Incapazes de amar e cegos pela ambição de ser a nação mais poderosa. Não perceberam que eram manipulados como bonecos em apresentações de teatro. Para eles, não existia diferencia entre humanos e excreções de animais.
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Capítulo 2 o marido “salva vida” Estados Unidos - 1952 Rose. Americana, nascida no ano de 1920, no estado de Nova York. Delicada como uma rosa e forte como seus espinhos, assim era Rose. Possuía vibração fascinante e diversificada, com qualidades de autoexpressão. Pele branca como a neve e macia como a seda. Seus cabelos ruivos naturais e cacheados era sua marca por onde passava. Sua boca carnuda atiçava a curiosidade dos homens em prová-la e seus olhos verdes água, bem, eles eram indecifráveis aos homens. Possuía cílios grandes naturais. Nunca havia se apaixonado, nunca havia tido algum tipo de namorado. Rose era exigente na escolha do homem que passaria com ela o resto da vida. Sempre vestida elegantemente com roupas dos melhores tecidos, chapéus elegantes e vestidos comportados, isso quando não vestia longos. Rose vestia seu vestido preferido de cetim branco até o joelho. Gostava de usar pérolas e brincos pequenos perolados, o que era uma combinação perfeita com sua pele e cabelo ruivo. Não gostava de parecer vulgar. Possuía postura reta e educada, por conta disso era julgada como
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arrogante, mas chegando mais perto de Rose, poderia perceber uma doçura e tristeza incontestável. Conseguiu abrir sua própria loja de tecidos. Rose vendia e confeccionava os melhores tecidos da cidade. Confeccionava vestidos para as mulheres de alta classe e ternos para homens com poderes executivos. Rose era o desejo de consumo dos homens. No auge dos seus 32 anos, não era magra nem era gorda. Rose era um tipo de mulher elegante, sem paranoias sobre seu corpo. Possuía postura e isso quase bastaria para sentir-se feliz. Possuía bom senso de humor na maioria das vezes. Porém, naquela época, as mulheres não eram muito bem vistas fazendo algum tipo de brincadeiras com as palavras. Não tinha problemas em expor suas opiniões, o que fez seus negócios na loja irem muito bem. Organizada, líder, dinâmica. Essas eram umas das características que Rose possuía. Sua alma tinha perfume de rosas, como o seu nome já falava. Sua única família era sua irmã mais velha, seu cunhado e seu sobrinho. Sua irmã Isabel assumiu todas as responsabilidades da casa depois da crise de 1929, a qual seus pais perderam toda a fortuna da família e a depressão pela perda levou-os ao suicídio. Isabel vivia um casamento dos sonhos: casa, carro, dinheiro sempre na carteira, filho, marido amável, atencioso e que a amava mais do que sua própria alma. Era aquele tipo de amor que duraria a vida toda. O problema de Rose era um pequeno detalhe. A cobrança. Rose possuía costas largas de cobranças da sociedade e de sua família por não ter se casado e por não ter filhos ainda, naquela idade. Isso a entristecia e roubava o sorriso de seu rosto. Cansada das mesmas cobranças 24
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todos os dias e de lugares com mesmas pessoas com assuntos banais de fortuna, Rose pensou diversas vezes em suicídio. Porém, algo lhe dizia no fundo do seu coração que deveria esperar o tempo que fosse pelo “seu marido”. Talvez fosse sua mãe assoprando em seu ouvido e em seus pensamentos. Talvez fosse apenas sua imaginação. — Rose, olhe meu filho para mim por alguns minutos. Irei verificar se meu marido está bem. Ele disse que iria conversar com alguns amigos logo ali na esquina e não voltou. Isso já faz mais de uma hora – Isabel olhou o relógio de pulso levantando-se do banco da praça. — Tudo bem, Isabel, vá. Cuidarei de meu sobrinho – respondeu Rose. Rose permaneceu no banco que dava em direção ao seu sobrinho brincando com outras crianças. Ela imaginou quando seria mãe. Questionou sobre sua vida em pensamentos e todas as dúvidas que ela causa. Passados alguns minutos, foi desperta pela presença repentina de sua irmã. — Já voltou? — Sim, eu falei que era só para dar uma olhada. Ele está falando de negócios com os sócios da loja. – sentou-se novamente no banco da praça. — Meu sobrinho comportou-se muito bem – comentou Rose. — Acredito, ele é uma criança sensacional. Não tenho queixas da minha vida. — Fico muito feliz por você, minha irmã. Sabe que admiro muito você, não sabe? — E eu te amo muito, Rose. Mas você tem que casar e ter filhos. Você já está com 32 anos. 25
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— De novo essa história? – revirou os olhos. — Por que você não dá uma chance e conhece o amigo do meu marido? Ele é bem-sucedido, quer muito casar e construir uma família – disse com voz suave. — Ah, Isabel, você sabe como eu penso. Não quero casar por casar, e você sabe que o nosso ciclo de amigos está me pressionando. — Não é pressão, Rose. É a verdade. Você precisa casar – pegou em sua mão. — Eu sei, Isabel, você acha que já não me sinto mal o suficiente para saber disso? Você me lembra o tempo todo que preciso casar. Não irei casar com qualquer um. Irei casar com quem eu escolher e me apaixonar – colocou sua outra mão em cima de sua irmã. — Rose, presta atenção no que vou dizer: o que não te desafia não te fortalece. Formar uma família e criar filhos é um desafio muito grande, mas que no fim você sente-se a pessoa mais fortalecida da vida. Sente-se mulher. — Entendo, minha irmã, mas eu não irei casar com qualquer um. Eu irei casar com quem eu irei passar a vida inteira. — Você é tão bonita. Deveria dar chances aos rapazes que tanto querem conhecer você. — Tudo bem, pensarei sobre isso – desfez as mãos e tentou terminar com o assunto logo. — Hoje você irá conosco na janta da senhora Angie? – questionou com tom de entusiasmo. — Não, minha irmã. Aquele povo é muito mais do que eu posso aguentar – desabafou com suspiro profundo. — Por quê? 26
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— Porque eles sempre estão falando coisas desagradáveis quando deveriam fechar a boca. — Tudo bem, mas eu peço que vá, por mim. Não gosto muito, mas devo ir porque meu marido vai ter uma conversa sobre negócios com eles. Por favor, vá comigo. — Tudo bem! O que eu não faço por você, minha irmã? – respondeu com um largo sorriso. — Obrigada, Rose! Aliás, obrigada por vir comigo hoje no Central Park. — Não precisa agradecer. Hoje está lindo o dia. O clima está agradável. As pessoas, com a chegada do verão ficam mais felizes, não acha, Isabel? — Sim. Concordo com você. Mas agora tenho que ir. Te vejo hoje à noite, certo? – e chamou seu filho. — Sim. Às 8 da noite estarei pronta. Mas por enquanto eu vou ficar mais algum tempo aqui. Quero ficar um pouco só, tudo bem? — Tudo bem. Até mais – deu um beijo no rosto da irmã. Rose permaneceu sentada sozinha em um banco do Central Park. Aquele dia estava com clima agradável. As pessoas estavam saindo de casa e passeando pelo parque. Algumas com família, outras, solitárias, e outras enamoradas com seus namorados. Rose cruzou suas pernas e pôs suas mãos em cima delas. Ficou um bom tempo observando tudo. Era como uma terapia ficar só e observar as pessoas, não que fosse julgá-las, mas isso abria sua mente. Talvez entendesse mais o comportamento humano observando-o. Avistou um senhor lendo seu jornal sozinho, sentado em um banco perto dela, pensou em puxar algum assunto, mas 27
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não achou viável. Avistou crianças passeando com seus pais, imigrantes, de todos os lugares do mundo, ucranianos, russos e outras nacionalidades. Sua atenção foi presa por um homem de terno branco. Elegante. Visivelmente mais novo do que ela e visivelmente imigrante nos Estados Unidos. Rose pôde reconhecer de longe o tipo do tecido de seu terno. Era um tecido muito bom, de boa qualidade. Rose ficou observando o trato que esse homem de terno branco tinha com uma mulher mais velha, provavelmente sua mãe. Ele era gentil, tratava-a como muita delicadeza e afeição. Uma certa admiração por ambos Rose sentiu. Não soube o porquê, mas teve muita vontade de aproximar-se e conhecê-los. Muito provavelmente teriam história de vida interessante, mas provavelmente passaria por estranha em puxar assunto com eles. Encheu seu peito de coragem mesmo assim e levantou-se do banco. As batidas de seu coração aumentavam a cada passo dado por ela, enquanto seguia em direção àquele homem. Não entendeu sua curiosidade e seus batimentos. Foi chegando mais e mais perto... Chegara perto daquelas pessoas que nunca havia visto na vida. Sua boca ficou seca de repente. Não sabia ao menos ao nome deles. Parou em frente de ambos. Não conseguiu pronunciar nenhuma palavra na frente daquele homem de terno branco acompanhado de uma senhora mais velha em cadeira de rodas. Rose percebeu que aquele homem alto com quase dois metros de altura e com olhos azuis havia mexido com seu coração de certa forma. Talvez a sua alma reconhecera sua outra metade. 28
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— Você está bem moça? – perguntou o rapaz de terno branco. — Sim. Tudo bem – respondeu Rose gaguejando. — Podemos ajudar você? – perguntou a mulher na cadeira de rodas. — Hum... hã... eu estou perdida. — Minha filha, você é da cidade, não é mesmo? Percebo pelo seu sotaque. — Sim. É verdade. Mas me perdi porque queria ir ali, mas eu me perdi aqui – tentou gesticular, mas perdeu-se em seus próprios movimentos. — Você está nervosa, moça. Fique calma. Você está sozinha aqui? Como você se chama? – perguntou o rapaz de terno branco. — Rose. E você? – ela ficou nervosa ao escutar aquele tom de voz tão forte. — Eu me chamo Alexsander e essa é minha mãe, Anna. — Prazer em conhecê-los. Desculpe, tenho que ir – saiu correndo. Alexsander havia transformado-se em um homem muito atraente, com pele clara e cabelos pretos. Elegante e aparentemente calmo. Havia certo peso na essência dele. Talvez possuísse a essência da dor. Como todo sobrevivente da guerra, não mencionava aqueles episódios de pesadelos que haviam passado. Nem mesmo conversava com sua mãe sobre isso. Rose, por sua vez, impressionou-se com aquele homem chamado Alexsander e agiu como uma adolescente, sem entender o que estava sentindo. “Nome de imperador”, pensou ela. Seu rosto com aparência oval e com olhos azuis cristalinos ficaram gravados na mente de 29
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Rose. Prestou atenção nas mãos dele, com várias cicatrizes e um pouco suja de óleo, que faziam contraste com o terno branco. Rose despediu-se da presença de Alexsander e de sua mãe rapidamente. Não soube como lidar com seu coração palpitando forte dentro peito. Horas já haviam se passado, e Rose ainda lembrava do rosto de Alexsander. Isabel estava esperando-a na sala de estar na casa do anfitrião. Aquele jantar seria como uma tortura aos ouvidos de ambas. A mesa de jantar estava impecável, flores dando um toque de delicadeza. Os pratos de porcelana com desenhos florais e copos de cristais passavam o ar de sofisticação. Havia diversos copos e talheres para cada convidado, os copos de vinhos, os copos de água e os talheres exercendo sua função, além de confundir a cabeça dos convidados. O jantar naquela noite seria o mais tradicional de pessoas com poderes econômicos: maionese de salmão, salmão defumado de iogurte, acompanhado de filés de peixe. A iluminação estava perfeita, e os mordomos foram todos bem receptivos com a chegada dos convidados. Os convidados estavam todos muito elegantes. Os homens estavam com ternos com tecido de qualidade, e as mulheres usavam vestidos com tons neutros, mas Rose, como sempre, destacava-se por sua beleza e maneira de vestir. Rose pôs um de seus vestidos confeccionados por ela mesma, na altura de dois palmos abaixo do joelho e com decote quadrado no peito, de cor de vermelho sangue e com segunda camada de renda preta com alguns brilhantes, nada muito chamativo. Rose apreciava descrição. Prendeu seus cabelos ruivos com presilhas imperceptíveis e 30
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colocou uma tiara com poucos brilhantes. Rose usou pouca maquiagem naquela noite, batom de cor nude e algum blush para parecer com aspecto mais saudável. — Bem-vindos à residência da senhora Angie! – recepcionou-os um dos empregados da casa. — Obrigado – todos responderam com educação e com sorriso no rosto. — Sentem-se por favor. O jantar em breve será servido – informou outra empregada da casa. — Não sei por que isso tudo, se vão falar bobagens e fofocas a noite inteira – Rose falou baixinho no ouvido de sua irmã. — Também não sei, Rose, mas estamos aqui só de passagem. Vamos fazer certo para acabar logo. — Tudo bem. Farei o melhor possível. — Boa noite a todos os meus convidados. Obrigada pela presença de todos – a senhora Angie chegou à sala e faz um gesto para que todos sentassem em suas cadeiras. A senhora Angie era uma mulher rica, porém, enriqueceu pela riqueza de seu marido. Acreditava que o casamento era obrigatório para mulher e que o marido deveria ser tratado como Deus na Terra. No fundo do seu íntimo, era uma mulher infeliz e acomodada por sua situação. Sua única distração era a vida alheia. Aquele jantar oferecido por ela seria a propósito de matar as fofocas que circulavam entre os amigos de que seu casamento estava acabado há muito tempo e de fato estava, mas como ela era dominada pela vaidade, preferiu viver seu próprio inferno do que separar-se. Entre conversas e sobremesas, Isabel não conseguiu permanecer em silêncio. 31
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— Então, senhora Angie, como vão as coisas no negócio? – perguntou Isabel forçando algum assunto qualquer. — Tudo em ordem – respondeu o marido da senhora Angie provando a todos que em entendia de tudo era ele, e não ela. — Fico feliz por vocês. Mas qual é o motivo do convite? – perguntou Rose ansiosa. — Está tudo muito lindo, senhora Angie. — Quero anunciar o casamento de minha irmã. Estão todos convidados. Esse é o motivo desse jantar. Mandarei os convites essa semana mesmo – Levantou-se da cadeira e pegou a taça na mesa para brindar. — Obrigada, senhora Angie. Com certeza estaremos presentes – Isabel, sempre muito educada, disfarçou o tédio do convite brindando com todos. — Tenho uma fofoca, coisa de mulher. Ficaram sabendo que a senhora Diva separou-se do marido? Fiquei sabendo que ela vai ter que criar os filhos sozinha. Coitada. Tenho pena dela sem marido – comentou sobre a vida alheia e sentou-se novamente em sua cadeira. — Coitada por que, senhora Angie? Melhor sozinha do que má acompanhada, como já diz o ditado, ou melhor, melhor sozinha do que vivendo um tormento na vida a dois. — Mas ela não vai ter marido para pagar as contas. Olha que horror! Quando todos souberem, ela ficará malfalada – olhou para Rose. — Senhora Angie, me desculpa a sinceridade, mas cada um lê com os olhos que possui e interpreta conforme suas convicções. Eu apoio a decisão da senhora Diva, se ela não está feliz no casamento, tem que separar-se E 32
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pelo o que vejo, a senhora prefere viver um casamento fracassado do que ser feliz – Rose respondeu elegantemente tomando uma taça de champanhe. — Rose! – exclamou Isabel. — Assim você me ofende, senhorita Rose! Como atreve-se? O que você entende de casamento? Se demorar muito, vai ficar estéril. — E como a senhora atreve-se a falar mal da vida alheia? Já diz a bíblia, se quiser ser amada, seja amável. Estou sendo autêntica, senhora Angie, e pelas minhas convicções, ser autêntica não é nenhuma ofensa – respondeu com olhar de malícia e colocou a taça de volta na mesa. — Estou sendo autêntica com minhas opiniões, senhorita Rose. Se digo que se demorar muito para ter filhos ficará estéril, é porque isso acontece. — E a senhora é médica para afirmar isso? Bem, senhora Angie, admiro sua sinceridade comigo, mas alegar sinceridade não lhe dá o direito de grosserias. — Rose! Por favor. Não exponha suas opiniões revolucionárias – com o olhar, Isabel pediu que encerrasse aquele assunto. — Tudo bem, minha irmã, mas, para ela, uma pessoa autêntica em suas opiniões virou ofensa pessoal. Aliás, aposto que ela nem ao menos conhece o significado dessa palavra. — Quero fazer um brinde a todos vocês que estão presentes! Quero brindar à nossa amizade e ao casamento de minha irmã! – a senhora Angie tentou fugir da conversa que não soube responder. Aquele jantar parecia não ter fim para a família de Rose. Pessoas rindo e gozando da posição social que pos33
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suíam. Humilhando quem não era do mesmo ciclo ou quem não era casado, como era o caso de Rose. Tudo isso fez Rose sentir-se péssima. Talvez ela possuísse um coração com certa revolta por não ter se casado ainda. A expressão facial do rosto de Rose mudou quando recordou o que havia passado naquela tarde. “Alexsander é o nome dele”, pensou. Na despedida das pessoas tão superficiais, como pensava Rose, a senhora Angie abraçou Rose dizendo algumas palavras, um pouco tremidas, com medo que alguém as ouvisse, porém o orgulho de perder uma discussão falou mais alto. — Farei algumas mudanças no meu ciclo de amizade. Se você não ouvir falar mais de mim ou não receber meus convites, é porque provavelmente você foi uma delas – disse ao pé do ouvido enquanto despedia-se Rose. — Não preocupe-se, senhora Angie. Felicidade no seu casamento fracassado. Tenha uma ótima noite – Rose simplesmente sorriu.
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Capítulo 3 o trabalho do destino Semanas haviam se passado depois daquele episódio no Central Park. Alexsander tinha pensado naquela moça que dizia estar perdida. Alexsander já era um homem feito. Com a vida perturbada na pré-adolescência, não se interessou por enamorar-se por alguma moça. Havia chegado aos Estados Unidos em 1948 com sua mãe e uma mala de roupas. Aprendeu inglês e espanhol rapidamente. Frequentou diversas escolas na tentativa de viver uma vida normal. Mas normal era palavra que não existia no vocabulário dele. Nada depois de uma guerra seria normal. Ele era belo, mas seus olhos azuis eram tristes. A falta de fé na humanidade e as dores faziam-no entristecer-se. Aquele par de olhos azuis cristalinos denunciava o que havia passado nos últimos anos: o campo de concentração, a fuga, a fome, mortes e frases do tipo “cala a boca, seu cachorro, você merece morrer”, ditas pelos soldados ou pelos demônios. Todas aquelas lembranças ainda eram muito vivas em seus olhos e em sua mente. Porém, em uma tarde de domingo de verão, Alexsander resolveu passar em uma lanchonete, sentar-se e tomar um café expresso, comer algo, talvez. Aquela lanchonete ficava na esquina de sua casa, e não havia muita coisa
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especial para se fazer ali. Era espaçosa com mesas brancas e bancos azuis. O chão era marrom, um tanto atrevida a decoração para época, mas fora o suficiente para encher o estabelecimento de novos fregueses. Vários quadros compunham a decoração. Alexsander queria apenas sentar-se, tomar um bom café, escutar as músicas que tocavam e com a ajuda de Deus encontrar alguns conhecidos. Quando abriu a porta, ele reencontrou Rose em seu primeiro olhar, que prendeu-se a ela, sentada sozinha tomando seu café da tarde e olhando através da janela, de onde contemplava o horizonte. Ela estava com cabelos soltos, e a cor de seus cabelos ruivos e cacheados chamava a atenção de qualquer um, aquele par de brincos perolados fazia contraste perfeito com seus cabelos e sua pele. Alexsander não soube entender muito bem a razão de Rose estar com aparência triste. Não pensou duas vezes antes de fazer juntar-se a ela. — Com licença, senhora. Desculpe-me se incomodo-a, mas você não é a moça que estava perdida algumas semanas atrás no Central Park? – perguntou parado ao lado da mesa. — Sim. Era eu mesma. Alexsander seu nome, acertei? – respondeu Rose com olhos surpresos em vê-lo. — Sim. Alexsander. Você se chama Rose, certo? — Sim. Me chamo Rose! — Nome bonito. — Obrigada. Quer sentar? – perguntou ela. — Acho que não ficará bem se me virem com você. — Por quê? Você tem namorada? — Não. Claro que não! Por acaso você tem namorado? 36
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— Não. Eu não tenho – sorriu e fez o gesto de negação com a cabeça. — Ok. — Bem, sente-se, então. Eu não ligo muito para o que as pessoas pensam. — Obrigado – Alexsander aceitou o convite sentando-se em frente de Rose. — Quer beber algo? Vou pedir outro café para mim. — Sim. O mesmo para mim também. — Olha, me desculpa por aquela vez no parque... eu estava perdida – tentou explicar-se. — Tudo bem. Não se preocupe. Eu entendi. Mas você queria dizer algo, não? — Não, não. Estava só perdida – desviou o olhar de Alexsander. — Ok. Então me conte, Rose, por que está aqui sozinha? — Gosto de passar meu tempo tomando café e lendo um bom livro. E você? — Eu gosto do café. — E quantos anos você tem, Alexsander? Me parece ser mais novo... — Tenho 25 anos, e você? — Você é muito novo para mim. Eu tenho 32. Você poderia ser meu irmão – forçou o sorriso e tentou disfarçar a decepção. — As pessoas censuram aquilo que não compreendem. Na verdade, idade não quer dizer nada. Tenho 25 anos, mas já vivi muito – Alexsander sentiu-se incomodado com o comentário de Rose. 37
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— Mas com 25 anos, o que se pode ter vivido? Recém está começando a vida. — Não para quem sobreviveu à guerra. Como eu disse, as pessoas censuram o que não sabem ou não compreendem – retrucou Alexsander imitando o gesto de Rose. — Desculpa, não quis ser grosseira. E como você veio parar na América? — Eu comprei uma passagem área. Uma para mim e outra para minha mãe. Resolvemos vir – a essa altura Alexsander já tinha perdido o sorriso. — Entendi. Bem, desculpa, não quis ser grosseira com minhas perguntas. — Tudo bem, Rose. O que você faz aqui? Me refiro, trabalha com o quê? Não vai me dizer que é do tipo mimada de família rica, não é mesmo? – deu um largo sorriso irônico. — Não. Nem se quisesse, eu poderia ser. Eu tenho uma pequena loja de tecidos. Costuro e faço todo o resto. — Gostei. Mulher de negócios. Bem, eu sou mecânico. Tenho um pequeno espaço onde conserto os carros. Conserto e vendo peças... E moro com minha mãe no andar de cima da minha loja – tomou o primeiro gole de seu café. — Aquela senhora que estava no parque era sua mãe, certo? Eu imaginei, você tratava-a muito bem. Ela deve ser um amor de pessoa. Dever ser bom ter pais – comentou Rose com tristeza no olhar. — Não, mas ela não é não. Ela é como toda mãe que preocupa-se demais e termina invadindo a privacidade do filho. Chega a ser irritante. Mas a trato muito bem, porque tenho sorte de tê-la viva ainda. — Por que sorte? – perguntou curiosa. 38
A Essência da Dor
— Perdi meu irmão mais novo no campo de concentração na Polônia e meu pai foi morto nos primeiros minutos em que os demônios invadiram nosso país – Alexsander fechou-se novamente. — Eu sinto muito, Alexsander. Desculpa perguntar. Bem, fique à vontade de quiser falar sobre isso. — Não, obrigado, Rose! Eu estou bem. Mas e quanto a você? E seus pais? — Ah! – exclamou Rose. — Minha história é muito triste. Tem certeza que quer ouvir? – perguntou um pouco envergonhada. — Claro, a partir de agora você é minha amiga. Tenho interesse em saber o que aconteceu com você – disse em um tom de brincadeira, mas ao mesmo tempo demonstrando interesse nela. — Bem, tenho uma irmã a qual me criou. Nossos pais suicidaram-se na crise de 1929. Eu era pequena, lembro bem do tiro que foi disparado no quarto em que eles estavam. Eu e minha irmã estávamos brincando no nosso quarto quando tudo aconteceu. Meu pai era diabético, havia perdido as duas pernas e já estava em cadeira de rodas há algum tempo. Quando veio a crise, eles perderam tudo o que tinham. A saúde de meu pai já não estava muito boa. Minha mãe não teve forças o suficiente para aguentar tudo. Minha irmã é tudo para mim. Equivale o que sua mãe é para você. É tudo o que eu tenho. Mas não reclamo o que Deus tirou de mim, senão fosse assim, talvez não me tornaria uma mulher forte e madura, com opiniões próprias e com um coração valioso. Se não fosse assim, talvez nunca saberia dar valor a mim e a quem me rodeia – disse com olhar cabisbaixo. 39
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— Sinto muito por tudo o que passou. Agora tem um amigo. Assim, passaram horas conversando. Aquela conversa de ping-pong. Um perguntava, o outro respondia e vice-versa. Foi a maneira que encontraram de conhecer um ao outro. Rose estava encantada com a presença de Alexsander, e ele estava fascinado com a elegância com que ela comportava-se: a maneira de sorrir, de comer delicadamente, de pôr as mãos na mesa e dizer sua opinião sem ser vulgar. Prestou atenção no colar que ela usava, no jeito que tomava seu café e na calma com que falava. Alexsander ainda estava na defensiva. Não queria abrir sua vida, embora Rose fosse um encanto de pessoa, sem dúvidas. Rose impressionou-se com a beleza de Alexsander e sua história de vida. Lembrou-se de sua idade, sete anos mais novo do que ela, porém, “deve ter a impressão que já viveu a vida inteira por tudo o que passou”, pensou ela consigo. Não perceberam as horas passarem e quando deram-se por conta o dia já havia terminado, a lanchonete já estava quase fechando e eles foram os últimos a sair. Combinaram na semana seguinte de tomarem um café juntos novamente, no mesmo local e na mesma hora. Sem compromisso. Sem pressa. Queriam sentir suas almas leves como uma pena, rirem como crianças e sentirem-se amados como homem e mulher pelo menos uma vez na vida. Apaixonaram-se naquela tarde. Naquele verão de 1952. — Isabel, minha irmã! Tenho que falar com você – entrou em casa agitada. — Nossa, o que aconteceu? Por que está vermelha no rosto? – perguntou Isabel assustada. 40
A Essência da Dor
— Acho que encontrei. — Encontrou o quê? Perdeu alguma coisa? — Quero dizer, encontrei o homem com quem vou me casar. — Jura, Rose? Como isso? Onde? Como ele é? – puxou sua irmã pelo abraço e sentou-se no sofá. — Ele é forte, alto, possui mãos grandes e orelhas grandes também – sorriu sozinha. — Isso é bom, dizem que quem possui orelhas grandes viverá por muito mais tempo. — Pode ser. Por isso ele é sobrevivente da guerra. — Sobrevivente da guerra? Então deve ser bem mais velho que você! — Não, minha irmã, pelo contrário. Ele tem 25 anos. — Só 25 anos? – perguntou curiosa. — Não diga só 25 anos, ele tem muito mais histórias e lições de vidas do que eu e você juntas – fechou seu rosto na seriedade. — Mas tem 25 anos e você 32! – exclamou Isabel na tentativa de fazer Rose cair na realidade. — Não seja preconceituosa, Isabel! — Não é preconceito. Só estou dizendo a verdade. — É, sim. Preconceito é quando você julga as coisas sem ao menos conhecer primeiro. E quando conhecer Alexsander, perceberá que idade não importa nada, ou quase nada. Ele é educado, gentil, aprendeu inglês e espanhol rapidamente e com muito esforço. Não julgue para não ser julgada por terceiros – olhou para sua irmã com reprovação. — Tudo bem, Rose. Mas no que trabalha? — Ele é mecânico. 41
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— Mecânico? Pelo menos ganha bem – sorriu Isabel. — Ah, Isabel, não seja aquelas pessoas mesquinhas procurando dinheiro nas pessoas. Sabe que não me importo com isso. Já sou uma mulher independente e já tenho meu próprio dinheiro. — Eu sei. Desculpa. É preocupação de irmã mais velha. Só isso. Quem sabe você não organiza algo e podemos conhecê-lo melhor? Não sei, talvez um cinema, um jantar. Pense e me diga quando estiver tudo pronto. Farei muito gosto em conhecer esse moço – sorriu feliz por sua irmã. Isabel dera uma boa ideia. Ir ao cinema com Alexsander, ou um jantar, o que fosse, para o apresentar a todos. Preferiu ir ao cinema. Sim, seria uma oportunidade ótima de apresentá-lo para sua irmã e cunhado, talvez acabaria com aquela má impressão que homens mais novos não combinam com mulheres mais velhas. Alexsander era diferente, aparentemente calmo, educado, respeitador, trabalhador, forte, alto, olhos azuis, seu nome impunha respeito, nome forte e, acima de tudo e o mais importante, nunca havia questionado ou cobrado Rose por nunca ter se casado. Alexsander era quem Rose procurava em sua vida. Talvez fosse a metade que faltasse para deixá-la preenchida. Algumas semanas passaram-se até Rose organizar o assunto do cinema. Havia confirmado com sua irmã a presença de Alexsander para conhecê-los algumas semanas mais tarde. Aquele típico encontro de casais. Conforme o combinado, Alexsander apareceu com um ramo de rosas vermelhas em frente ao cinema meia hora antes. Queria confirmar todos os detalhes. Percebeu que a fila estava longa e talvez se eles atrasassem poderiam perder o 42
A Essência da Dor
filme. Ele sabia somente o nome do filme, não sabia do que se tratava. Confiou no gosto de Rose. Alexsander agiu como um verdadeiro cavalheiro e comprou os bilhetes do cinema para todos. Estava vestido com o mesmo traje que quando viu Rose pela primeira vez. O terno branco. Naquele sábado, quando casais geralmente sairiam para namorar, naquela noite quente de verão, sem vento, Alexsander sentia ansiedade em seu coração, vontade de casar-se e passar o resto da vida com Rose. Assim desejou, assim aconteceu. — Olá, Alexsander. Bom ver você, faz tempo que já estava esperando-nos? – perguntou Rose sem conter a felicidade na chegada ao cinema. — Não muito, Rose. Estava ansioso, só isso. Na verdade, meu coração corre para ver você – colocou a mão no coração sem importar-se com quem estava vendo. — O meu também – certo silêncio pairou no ar. — Bem, esta é minha irmã. Isabel. E minha irmã, esse é Alexsander. — Prazer. — Você tinha razão, minha irmã, ele é mesmo muito bonito e educado. — Esse é meu cunhado, Zíbio. — Prazer — responderam, ao cumprimentarem-se com um aperto de mão. — Vamos entrar na fila e comprar o ingresso. — Não precisa, tomei a liberdade e comprei para todos os bilhetes – mostrou os ingressos. — Quanta educação e generosidade. Muito obrigada. Então, vamos entrar, quero aproveitar o melhor lugar – exclamou Zíbio. 43
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— Sim, claro. E do que trata-se o filme? – perguntou Alexsander. — O filme chama-se “Daqui até a eternidade”. Sobre um soldado da guerra que apaixonou-se por uma grande mulher – Isabel respondeu à pergunta do seu futuro cunhado. — Pode ser o filme de vocês! – exclamou com tom de brincadeira. — Filme de guerra? Eles fizeram filme sobre aquele horror? – perguntou petrificado pelo medo. — Sim, eu acho que sim. Não sei, iremos descobrir agora – respondeu Rose colocando seu braço entrelaçado com o dele. O coração de Alexsander, somente de ouvir a palavra guerra, disparou como um alarme interno por seus medos e lembranças. Pensou que poderia controlar seu desconforto, afinal estava com Rose e sua família. Rose, aquela noite, estava deslumbrante com suas roupas e joias, nas quais Alexsander tentou prender sua atenção. Estava com uma saia de cintura alta e com camisa social branca, suas mãos vestiam luvas de rendas de punho baixo. Não queria passar uma péssima impressão sobre sua pessoa. Alexsander sentou-se na poltrona ao lado de Rose, aquela sensação de vivenciar tudo outra vez em sua mente fez seu coração bater mais rápido, sua mão gelar e sua boca secar. Aqueles nazistas deixaram sua marca na vida de Alexsander. Tiraram seu irmão de seus braços e bagunçaram sua vida e mente. Difícil conviver com o passado quando se não tem respostas. As luzes apagaram-se e sua mente transportou-o de volta àquelas cenas tão cruéis e desumanas. Fechou os olhos logo nas primeiras cenas do 44
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filme, não pôde assistir, saiu correndo do cinema, deixando as pessoas perplexas com aquela atitude. Alexsander correu como estivera em uma fuga, talvez ele fugisse das suas próprias lembranças. Ele pôde sentir por alguns segundos o odor dos corpos em cima dele em sua fuga. Pôde sentir o odor das latrinas em sua narina. Correu, desaparecendo daquele local em segundos.
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Capítulo 4 as dores do mundo — Sinto falta do Zigmundo – desabafou em voz alta consigo, sentando na escada da porta de casa. — Por que você passou por isso? Você era pentelho, mas eu gostava de você. — Eu também, meu filho, sinto muito a falta dele – Anna aproximou-se de Alexsander sentando ao seu lado e dando-lhe tapinhas nas costas como consolo. — Ele era apenas uma criança sem poder defender-se. Passou tanta fome – dizia Alexsander com cabeça baixa. — Todos passamos fome. Meu peito dói toda vez que penso nele – levantando seu olhar, Anna tentou consolar seu filho mais velho. — O meu peito também dói. Mas se quiser perguntar o que aconteceu com ele eu irei responder, mas se você não perguntar, eu vou gostar mais. — Tudo bem, meu filho, eu sei o que aconteceu com seu irmão. O mesmo que aconteceu com milhares de crianças no lugar onde ele estava. Não perguntarei nada. — Obrigado – correspondeu o carinho com beijo no rosto de sua mãe. — Preciso ficar só. — Não quer conversar um pouco? Por que está tão abatido? 46
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— Agradeço, mãe, mas prefiro ficar um tempo só. — Tudo bem. Boa noite. Vou dormir – levantou-se e sacudiu sua saia preta para tirar a sujeira da escada. — Não, mãe, espere. Vamos conversar – mudou de ideia. — Nunca falamos sobre o que aconteceu. – estendeu-lhe a mão e a pediu para sentar. — É difícil lembrar de tudo o que passamos – puxou o ar. — Como você fugiu do campo, mãe? Era quase impossível – perguntou admirado com a bravura de sua mãe. — Mas tinha que fugir, não acha? Aquilo era um inferno e passamos muito frio. — Sim. Também passei muito frio. Aliás, muitas pessoas morreram de frio – acrescentou Alexsander. — Eu posso imaginar – puxou o ar mais uma vez. — Vou contar: eu vi milhares de mulheres morrendo eletrocutadas. Aos gritos, foi tudo muito triste. — Minha mãe, passamos por muita coisa nessa vida – Alexsander tentou consolar sua mãe, mantendo seu olhar estava fixo ao chão. — Mas eu só resisti por você e por Zigmundo. — Ele era só uma criança... — Eu vi e senti a tristeza de milhares de mulheres sofrendo pela separação dos filhos. Aquilo que vivemos, fome, maus tratos, trabalho escravo, não era comparável com a dor de uma mãe quando separada de um filho. Vi diversas mulheres que atiraram-se contra as cercas para terminar logo com todo aquele sofrimento. — Morreram eletrocutadas? – perguntou Alexsander voltando seu olhar para Anna. — Sim. Principalmente quando estava chovendo. 47
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— Sinto muito, mãe – voltou seu olhar ao chão. — Mas como a senhora fugiu? — Me juntei com mulheres fortes. Coisa rara de ver naquelas situações. Fugimos numa madrugada da troca de turno, estava tão frio que pude sentir meus pulmões com dificuldade de respirar. Estava algo em torno de 10 graus negativos. Não tínhamos roupas. — Mas por que a senhora não esperou até o verão? — Porque seríamos as próximas a serem eletrocutadas. — Entendo. Mas fugiu para onde? – pensou em algum lugar. — Para a floresta, claro. Assim como eu – concluiu por ele mesmo. — E fomos encontradas por um bando de homens e mulheres fazendo justiça. Mas eles pelo menos não fizeram nada conosco – sorriu aliviada. — Minha mãe, por que tudo teve que ser assim? — Não sei. Deve ter sido a vaidade do homem querendo dominar algo que não pode dominar: a liberdade. E você, meu filho, quer me contar? — Hoje não, mãe. Desculpa. — Mas o que aconteceu com você hoje? Brigou com aquela moça que estava conhecendo? — A Rose? – perguntou a sua mãe com sorriso no rosto. — Sim. A Rose. Por acaso tem outra? – perguntou desconfiada. — Não, claro que não tenho outra. Nós tentamos ir ao cinema. — Tentaram? Como assim? Perderam o filme? — Não. Ela escolheu um filme de guerra. — Ah, de guerra? Bem, não precisa me dizer nada. Já entendi seu sentimento. 48
A Essência da Dor
— Então, mãe, não gostaria de contar para ela tudo o que passei. — Pois conte, ela precisa saber da verdade. Você gosta dela? — Sim e muito. — Então seja honesto. Conte seu passado, não é vergonhoso sobreviver à guerra. E acredito que ela seria uma ótima moça para você. Quantos anos ela tem? — Trinta e dois. — Nossa, 32 anos. Sete anos mais velha que você – exclamou sem pensar. — Mas não me importa. Eu gosto dela assim mesmo – replicou Alexsander. — Se você quer ela, meu filho, então conte a verdade sobre o que aconteceu conosco. — Sabe, mãe, a parte boa que eu tinha morreu com Zigmundo. Não tenho muita vontade de estar vivo ultimamente, mas Rose... tem algo nela encantador. — Então, agarre-se nesse sentimento – exclamou a Alexsander dando uma dose de energia. — E o pai? — O que tem seu pai nessa conversa? – perguntou espantada. — Não sente saudade dele? — Se eu disser que não, serei muito insensível, mas se dizer que sim, eu serei mentirosa. Então, posso dizer que meu sentimento por seu pai foi bom enquanto durou. — Não sentiu nada quando viu o pai morto, no chão, todo cheio de sangue? — Um pouco. Meu filho, irei dormir. Estou cansada – tentou encerrar a conversa e esquecer o que aconteceu. 49
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— Tudo bem. — Mas, por favor, conte sua história para Rose. Todos nós temos bagagens emocionais. Compartilhe com ela isso – disse e levantou-se da escada. — Irei, mãe. Irei. Alexsander dirigiu-se para seu quarto. Sentou-se na cama e puxou uma gaveta com uma caixinha preta que possuía dentro várias medalhas. Olhou seu uniforme da guerra em seu guarda-roupas, lembrou tudo que tentou esquecer, embora aquelas primeiras cenas do filme no cinema com Rose tivessem ativado a morte de seu irmão. Lembrou bons momentos com ele. Quis voltar no tempo e ajudar seu irmão a sobreviver. Seu coração pesou, e uma nuvem negra pousou em seu coração. Algo negro que fez com que Alexsander sentisse raiva de alemães, judeus e todo o resto do mundo. Mas nada poderia ter sido feito naquela época, ele só tinha 12 anos. Não poderia planejar algo para acabar com tudo aquilo. Só poderia fugir para não morrer de fome e de frio. Adormeceu com o uniforme sobre seu corpo. Porém, nenhum nascer do sol era o suficiente para limpar a alma de Alexsander, nenhum amanhecer era forte para vitalizá-lo contra aquele passado em que presenciou. — Alexsander meu filho, acorde! – dizia sua mãe parada na porta. — Que horas são? – perguntou procurando algum relógio por perto. — Meio-dia. E por que está com esse uniforme em cima de você? — Porque é o único meio de estar perto do pai e de Zigmundo. 50
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— Oh, meu filho. — Vou guardar esse uniforme da guerra para sempre comigo. — Tudo bem. Mas não deixe essas lembranças afetarem você – sentou na cama. — Até hoje sonho com aquelas latrinas. Sinto o odor daquele lugar horrível. — Eu também sinto o cheiro fétido dos cadáveres em decomposição. — Sem contar do cheiro da queimação dos corpos. — No seu campo de concentração também queimavam os corpos? – perguntou abismada a sua mãe. — Sim, e muitos. O que vocês comiam? — Batatas. Muitas batatas. — Pelo menos isso. — Meu filho, não podemos esquecer o que aconteceu. Olhe, eu tenho esse número gravado no braço – mostrou seu número de identificação. — Eu também tenho. Olhe – e repetiu o gesto de sua mãe. — Viu só, por isso você tem que se orgulhar por ter sobrevivido. Quantas pessoas gostariam de estarem em nosso lugar? — Eu sei, mãe. Mas alguma parte de mim ficou na Polônia. Talvez a minha inocência tenha morrido lá. Não sei, não me sinto como antes. Mas a senhora não me contou como a senhora chegou ao relógio, onde havíamos combinado nosso encontro –sentou-se na cama ao lado de sua mãe. — Bem, de fato, algo mudou completamente nossas vidas. Muitas coisas perdemos nessa guerra. Mas como eu 51
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havia falado ontem, quando fugimos, nos escondemos na floresta. Estava muito frio, tanto que já não sentia meus dedos, e pensei que iria morrer de frio. Encontramos um bando de pessoas que também estava lutando por suas vidas. Os Partisans. Eles nos ajudaram, eram quase todos homens, mas algumas mulheres nos ensinaram a atirar e tudo mais. — Jura? Quanto tempo você ficou lá? — Todo o tempo. Nós ajudávamos a eles e eles nos ajudavam. Assim que soubemos que a guerra havia terminado, fomos embora. Lembro muito bem que havia um menino de 6 anos, assim como seu irmão, ele era judeu e chorava o tempo todo. Seus pais haviam morrido e alguém de boa alma pegou essa criança e levou para o grupo. Cuidei muito dele, na verdade todo o tempo, porque era uma forma de me manter perto de você e perto de Zigmundo. Ah, que saudade do meu caçula! — Eu sei mãe. Eu entendo. Tudo muito triste. — Eu até tentei trazer ele comigo, mas eu tive muito medo de sair atravessando as fronteiras com uma criança judia e, além do mais, havia outra mulher judia sem marido e sem filhos que pediu muito para ficar com aquela criança. Então eu achei melhor rezar para vocês estarem a salvos e deixar na mão dessa senhora o menino. — Não sei o que dizer. — Não precisa dizer nada. Nem sempre precisamos dizer. — Posso perguntar uma coisa pessoal? — suspirou fundo. — Por que você queria sempre abandonar nosso pai? Ele era tão ruim assim? — O que você achava? Achava ele bom ou ruim? — Eu o achava uma pessoa boa no fundo. Mas algo ruim ele sempre fazia. 52
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— Isso mesmo. A essência dele era muito boa, se não fosse boa, eu jamais teria me apaixonado por ele. A essência dele era muito alegre e sempre com um coração saudável, livre de remorsos e coisas do tipo. — Então por que ele nos tratava tão mal? — Porque embora a essência dele fosse boa, a vida foi muito dura com ele. Tornou a personalidade dele dura, ruim e de difícil acesso. — Entendi. Então a essência dele não era ruim. — Isso. Lembra quando fazíamos sanduíches e entregávamos a quem não tinha nada para comer? Ou quando ele levou roupas de outro menino para lavar? Ou então quando ele mesmo sem dinheiro pagou um lanche para um menino da rua? — Lembro, sim – balançou a cabeça. — Então. Essa era a essência dele. Ele gostava de ajudar as pessoas. No fundo ele era uma boa pessoa. — Mas o que o fez ter uma personalidade ruim? — As experiências da vida. Ele também sobreviveu a uma guerra, à Primeira Guerra Mundial. Perdeu amigos, muitos irmãos e muitos conhecidos. Viu diversas pessoas morrerem da forma muito desumana. Isso endureceu seu caráter, sua personalidade. Seu coração ficou embriagado pelo álcool para esquecer tantas lembranças. — Entendi. Bem, vou me arrumar porque tenho que esclarecer tudo à Rose. — Isso, meu filho. Ela é uma boa moça. Conte tudo a ela. — Obrigado, mãe – agradeceu e logo dirigiu-se para tomar banho. Alexsander sentiu-se revigorado. Arrumou-se e colocou o melhor perfume que tinha. Saiu na rua em direção à lancho53
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nete a qual sempre encontrava com Rose. Seu coração começou a bater rápido só de imaginar que poderia vê-la novamente. “O que será que ela pensou sobre o que eu fiz no cinema?”. Sentia um calor que ia e vinha a todo o momento, talvez fosse a arte do coração em pregar peças e deixar aquela sensação de adrenalina em ver a pessoa amada. “Juro que nem sei porque fico assim”, pensava quando imaginava Rose com ele. Chegou no local cedo, em relação ao horário em que geralmente encontrava Rose. Não importou-se. — Senhorita, desculpa, vi que caiu seu lenço. Tome, está aqui – entregou o lenço a uma bela jovem que estava entrando na lanchonete. — Uau! Que gato! Obrigada, lindo – disse a moça bem mais nova, mostrando interesse em Alexsander. — De nada. — Vem cá, me responde uma coisa: você está solteiro ou já tem outra felina sendo sua dona? — Eu estou esperando alguém chegar. Tenho companhia. — Homem ou mulher? — Mulher. A dona do meu coração, na realidade – Alexsander tentava deixar claro que não tinha interesse. — Ah, que pena. Tome, está aqui meu número de telefone – anotou em um guardanapo. — Obrigado. — Sabe como é... Quando estiver solteiro, me ligue. Podemos combinar algo. Adorei esse seu tipo atlético guerreiro. É sensual. — Senhorita, me dá licença – passou pela moça e voltou a se sentar em seu lugar. “Gente maluca”, pensou. 54
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Capítulo 5 te amo daqui até a lua All my love I give you all my love The skies may fall, my love But I will still be true All my sighs will disappear at last Now that you’re here at last My heart belongs to you Patty Page – All my love
Alexsander ficou preso nas palavras dessa canção. A última frase “my heart belongs to you” mexeu com ele. “Meu coração pertence a você”. “Tenho que dizer tudo a ela hoje”, pensou. Esperou Rose na lanchonete. Todo domingo comiam ali, não só pelos lanches gostosos que eles ofereciam, mas aquele café da tarde era uma marca do casal. Aquele lugar era o marco da história deles. Alexsander esperou Rose para explicar o que havia ocorrido na noite anterior, que teria sido um misto de vergonha e enfrentamentos de suas lembranças que o consumia. Rose por algum motivou atrasou mais do que de costume. “Será que ela vem, depois de tudo o que aconteceu?”. A cada porta aberta por outra pessoa, era um banho de água fria no coração de Alexsander, até que avistou Rose entrando na lanchonete. 55
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— Rose! Minha amiga! Quanto tempo não nos vemos! – exclamou uma amiga. — Que saudade suas, Elisabeth! — Como vai tudo? – perguntou Elisabeth. — Tudo bem, e você? — Casou? — Ainda não, e você? — Não. Mas achei aquele rapaz tão bonito – respondeu dando uma piscada de olho. — Ah, é mesmo? – perguntou Rose curiosa. — Sim! Tenho curiosidade de conhecê-lo. — Elisabeth, eu o conheço. — Jura? – perguntou com voz de decepção. — Sim. Ele é, digamos, meu futuro esposo! — Ah! Desculpa, não quis aparecer atirada! — Por quê? — Ah, eu dei meu telefone para ele... – disse ela envergonhada. — Ele pegou? – perguntou Rose surpresa. — Pegou por educação, eu acho. — Tudo bem. Mas, amiga, ele já é meu! – sorriu. — Paciência! Encontro outro – replicou com tom de brincadeira. — Rose, por favor, me deixa explicar o que aconteceu na última noite – interrompeu a conversa. — Tudo bem, Alexsander, eu entendo o que aconteceu! Essa é minha amiga Elisabeth. — Prazer – deu um aperto de mão. — Prazer, olha, me desculpa pelo o que aconteceu minutos atrás. 56
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— Não se preocupe. — Bem, vou indo Rose! Passe lá em casa para conversarmos! – deu dois beijos de despedida no rosto da amiga. — Claro! – retribuiu Rose. — Lembranças a Isabel. — Claro – respondeu e voltou seu olhar Alexsander. — Foi erro meu ter escolhido aquele filme – colocou sua mão em seus braços. — Não sabia que você não gostava de ver cenas de guerras. — Que bom que entendeu. Fico mais aliviado – suspirou e a convidou para sentar com ele. — Mas não quer dizer que você não tenha que me dizer algo. — Sim. Eu sei. Irei contar tudo a você. Vamos pedir um bom café e algo para comer, certo? — Certo. — Bem, Rose, não sei por onde começar a contar tudo o que aconteceu. Foram tantas lembranças ruins e tantas pessoas queridas que conheci e morreram da pior forma possível... – baixou sua cabeça e concentrou seu olhar em algum objeto qualquer. Não piscava. — Eu entendo sua dor. Sua essência talvez tenha mudado depois que tudo o que passou. Mas lembrem-se: se você sobreviveu a todo aquele horror, não foi ao acaso. Na verdade, não existe acaso em nossas vidas, para tudo existe um motivo. Deus sempre está vigiando nossos passos e permite certas coisas ruins nos acontecer para tornar-nos melhor. – Rose foi tocada pelo sentimento de compaixão e pôs sua mão nas mãos de Alexsander. 57
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— Rose, como Deus permitiu que milhares de pessoas morrerem daquela forma? Como Deus permitiu tamanha dor? Naquele tempo, Deus não estava presente – Alexsander subiu seu olhar ao encontro dos olhos verdes de Rose. Aquele olhar que demonstrava rancor de Deus. — Eu não sei responder suas dúvidas, meu amor. Eu não sou advogada de Deus. Mas eu sei que existe um Deus que nos ama tanto que nos concede o livre arbítrio. — O livre arbítrio de matar? Fazer um holocausto na Terra? Milhares de pessoas morreram sem ao menos saber o porquê – puxou suas mãos e escondeu-as embaixo da mesa. — E milhares de pessoas continuam morrendo, Alexsander. Em aviões que caem, no trânsito, em assaltados, nas ruas...você não pode culpar Deus pelas atitudes do homem. Acredite. Para tudo existe razão – pegou o cardápio para escolher algo para beber. — Tudo bem, Rose. Pensarei sobre isso. Mas eu tenho que contar isso a você pela primeira e última vez. Tento esquecer todo dia, são lembranças dolorosas que não gosto de ficar repetindo – tentou controlar seu rancor. — Conte-me – Rose devolveu o cardápio à mesa. Prestou atenção nas palavras futuras de Alexsander. — Desde que invadiram meu país, vivíamos com a morte – tentava segurar as lágrimas. — Éramos como animais esperando o abate. Eles eram muitos agressivos, eram como soldados do demônio, sem sentimentos, movidos pelo ódio e a vaidade – seus olhos azuis agora já estavam cobertos por lágrimas que não pôde controlar. — Quando vestiam uniforme preto, eram soldados que só faltavam as asas para serem os legítimos anjos do 58
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mal. Era um constante sentimento da morte, eles podiam matar você e você nem saberia o porquê – deu certa pausa para recuperar o ar. — Os que conseguiram esconder e não serem capturados, não podiam confiar em ninguém. Era impossível distinguir os nazistas de outras pessoas, porque eles eram bem-educados e bem-vestidos. Todo mundo poderia ser nazista. Enfim, fomos presos, minha mãe, meu irmão mais novo e eu. Separados fisicamente, porém ligados à dor que até hoje nos persegue. Minha mãe foi para outro campo de concentração. Não sei onde, não sei o nome. Eu e meu irmão ficamos sozinhos no meio de tantos homens que assim como nós estavam aflitos com seu futuro. Outros já sabiam que morreriam – sentiu seu coração bater em descompassos e sua mão soou como se ainda estivesse narrando um filme com cenas muito vivas em sua mente. — Calma, meu amor. Respire. Vamos pedir algo e assim você recupera o ar – chamou a garçonete e mostrou o pedido a ser feito. — Nunca irei esquecer. Estávamos entrando no inverno e não teria como fugir, pois o frio nos mataria – Alexsander não quis esperar para terminar a história. Quanto mais rápido falasse, mais rápido terminaria. — Lembro bem das palavras de minha mãe: você tem que ser forte. E assim fui. No campo, a situação era caótica, sem comida, sem roupas limpas, odores fortes de corpos em decomposição por toda parte. Passei muita fome, perdi muitos quilos e fiquei muito fraco. — Imagino – Rose fitou seus olhos espantados na história de Alexander. Era como um filme. 59
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— Meu irmão morreu de fome, Rose. Uma criança de 6 anos sem ter tido a oportunidade de aprender a lutar por sua vida – foi inútil a tentativa de segurar mais uma vez as lágrimas. Alexsander chorou tudo o que ainda estava guardado no peito. — Não tive forças de chorar por sua morte. Trabalhávamos como escravos em jornadas pesadas. Comíamos batatas o tempo todo e quando não tinha, comíamos as cascas do chão. Sofríamos de diarreia e doenças o tempo todo. Não comíamos nada por vários dias. A barriga doía muito. Eu comi muita grama para sobreviver. Eu não gosto de ver ninguém passar fome hoje em dia – pegou e mordeu o sanduíche que estava esperando por ele na mesa. — Meu amor, se quiser parar de contar, tudo bem. Eu imagino que deve ter sido horrível –Rose segurou as lágrimas, tocada pelo sentimento de compaixão. — Não, tudo bem, meu amor. Eu preciso contar isso a você. Mas essa será a primeira vez e a última vez que falaremos sobre isso. Isso tudo é muito doloroso. — Como quiser – pegando em sua mão. — Eles matavam na madrugada. Tínhamos que sobreviver. Sem aviso, entravam onde dormíamos e matavam as pessoas asfixiando-as. Ouvíamos tudo. Esperei até o verão de 1943 para fugir. Me fingi de morto entre corpos recém-mortos em um monte qualquer a alguns metros de distância do vigia, mas não tinha muito tempo, pois, no outro dia, eles iriam queimar aqueles corpos. Fugi naquela madrugada mesmo. Sem roupa, sem comida. Fugi só com as palavras de minha mãe – fez uma pausa para relembrar das palavras. — “Você terá 60
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que ser forte, meu filho”. Como o campo era afastado da cidade, fiquei vários dias tentando me recuperar do que havia passado. Comi grama, comi animais que encontrava na floresta e dormi por vários dias escondido em um tronco de árvore. Fugi para a Inglaterra. Servi a RAF e fui piloto de aviões de guerra contra Alemanha – sorriu sentindo orgulho de si mesmo. Bombardeava todos eles. Meu avião caiu duas vezes, mas sobrevivi. Fiz grandes amizades naquele tempo. Todos unidos pelo mesmo sentimento. Ódio. Um ano depois do término da guerra encontrei minha mãe no relógio. — Então por isso você gosta de vestir ternos brancos, certo? – com um piscar de olhos, ambos entenderam que já estava tudo bem. — Sim. Paz. Branco significa paz – suspirou. — Você conhece a palavra fé? – perguntou já sabendo da resposta. — Não, eu me esqueci dela. Na verdade, eu a deixei na Polônia. — Você precisará dela para seguir em frente. Fé em dias melhores. Ajuda-se, e Deus te ajudará. Tenho orgulho de você, Alexsander. Tenho certeza que agora você terá uma nova história para contar. Porque uma nova história Deus tem para você. Tudo aquilo que foi perdido, Deus poderá e dará em dobro a você. Fique tranquilo, não contarei nada a ninguém sobre sua história. É segredo nosso – deu um sorriso leve. — Obrigada, meu amor. Começou a chover, você tem algo consigo para proteger da chuva? – perguntou pondo o café na mesa. 61
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— Não, eu não tenho – suspirou preocupada. — Você confia em mim? — Sim – respondeu confiante. — Venha comigo então! Alexsander agora estava aliviado por ter compartilhado com Rose sua experiência e ter ouvido algo que jamais esperava de Rose. Fé. Essa palavra mudou o estado de espírito de Alexsander com tamanha força que fez com que seu peito se enchesse de esperança por novos dias. Nova história. Tudo era novo da vida dele, mesmo levando sua essência dolorosa pelo resto da vida. Não quis pensar sua vida longe de Rose. Puxou-a pela mão e correu para a rua. Aquela chuva típica de verão, como se os anjos de Deus tivessem escutado a dor de Alexsander e resolvido mandar a chuva para lavar sua vida. Na rua todos estava correndo na tentativa de esconder-se dos pingos gelados que estavam caindo. Alexsander dominou-se pelo espírito jovem que no fundo de sua essência ele ainda possuía e não percebia. Parou na chuva, em frente a Rose, aquele ser iluminado que havia entrado em sua vida e que havia mudado seu destino, seus pensamentos. Havia dado alguma esperança de vida a ele. Aquela pele branca e lisa como uma seda, agora molhada pela chuva, e aqueles olhos verdes claros despertaram um sentimento novo em Alexsander que ele não sabia o que era. Os cabelos de Rose ruivos molhados faziam com que ela fosse sensual sem ser precisar fazer esforço. Os anjos do amor haviam descido à Terra e feito alguma mágica, trazendo alguma paz para sua alma. O peito de ambos ardeu de amor, como se fossem ligados por vários fios ao mesmo 62
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tempo em seus corações, presos e amarrados por uma vida toda juntos. Não importasse quais as dificuldades iriam enfrentar no futuro. Aquele laço preso em seus corações era a tatuagem de amor que os anjos haviam feito. Isso iria superar tudo. Era o amor que Rose sempre esperou em sua vida, e Alexsander apaixonou-se por cada detalhe de Rose, mesmo quando ela falava coisas fora da compreensão dele. Ambos olharam-se por alguns segundos nos olhos e não precisou dizer quase nada. Alexsander perdeu o medo e a beijou, embaixo da chuva, parado na calçada e todo molhado. Aquele beijo molhado foi o primeiro de muitos que ainda viriam pela frente. — Rose! — Sim. — Quer passar a vida inteira comigo? Eu não me imagino sem você do meu lado – desabafou preocupado com a resposta de Rose. — Quero ser sua mulher para o resto da minha vida. Você é quem eu estava esperando – respondeu Rose com batidas fortes no peito. — Quer casar comigo? – com respiração ofegante de felicidade fez o pedido a Rose. — Sim! — Quero morrer velhinho do seu lado. Por você eu iria daqui até a lua de bicicleta. — Alexsander, deixe de ser bobo. – sorriu sem jeito pondo a mão no rosto de vergonha. — É sério. Por você eu iria daqui até todo o sistema solar de bicicleta. Eu te amo tanto que meu peito parece que vai estourar – disse abraçando forte Rose. 63
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— Eu também te amo, meu amor. — Juntos seremos um. — Sim, mas eu sou mais velha do que você. — E o que importa? — Eu posso morrer primeiro que você. Hoje não pesa nossa idade, mas quando ficarmos velhos, isso pesará. Talvez não possa ter filhos. — Não importa. Se eu tiver você, minha vida será completa. E se não puder ter filhos, adotaremos – abraçou-a fortemente. Quando a última palavra de Alexsander terminou, com ela terminou a chuva, dando lugar a um lindo arco íris. Como sinal de Deus como benção, os dois fizeram o pacto de eternidade. Juntos até o fim. Juntos até na próxima vida. O amor entre eles era como um presente da vida para ambos, era mágico, eram aqueles sentimentos que não se pode explicar com palavras. Talvez o tempo fosse certo inimigo, mas o amor não precisava de tempo, o amor entre eles precisava de corações sinceros. O amor uniu-os de forma incontestável. O amor uniu-os até o último suspiro de Rose, anos mais tarde.
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Capítulo 6 cicatrizes — Fui pedida em casamento! – exclamou Rose chegando em casa! — O quê? Mesmo? – Isabel parou tudo o que estava fazendo para dar atenção a Rose. — Mesmo. Estou muito feliz. — Eu também, minha irmã. Alexsander é um bom rapaz. Todos nós gostamos dele – ofereceu um bolo feito por ela mesmo. — Eu sou complemente apaixonada por ele. É com ele que vou passar o resto da minha vida. — Então, vamos preparar tudo: vestido, convites e tudo mais que você tem direito. A senhora Angie vai morrer de inveja – soltou uma gargalhada. — Não, minha irmã. Não precisamos fazer isso, mas confesso que seria muito divertido – respondeu dando gargalhadas. – Não vamos mostrar que somos melhor do que os outros – desfez o sorriso. — E por que não? Ela é muito chata e fica sempre implicando conosco. Lembra que ela falou que você ficaria estéril? Quanto bobagem. — A senhora Angie é infeliz. E pessoas infelizes são muito frustradas por dentro. Por debaixo daquele gla65
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mour todo existe uma pessoa frustrada e negativa – comeu o primeiro pedaço do bolo. — Mas ela não sabe que é tudo isso – replicou Isabel. — No fundo sabe, sim, porque ela tenta mostrar e esbanjar felicidade para os outros. Pessoas que gostam de mostrar suas riquezas e felicidade sempre têm problemas internos. — Sim. Pode ser, minha irmã. Você tem razão. Não vamos convidar. Após várias semanas, o grande dia havia chegado. Alexsander e Rose iriam casar-se. Rose estava divina com vestido branco longo e um ramo de flores amarelas, ao mesmo tempo estava sentindo-se sexy e livre com cabelos soltos e com tiaras de diamantes. Ela podia cheirar a alegria no ar das pessoas ao seu redor. Rose sempre foi uma pessoa seletiva com suas amizades e não gostava de colocar ao seu lado qualquer um. Ela possuía certa saberia oculta. Acreditava que pessoas mornas não possuíam vibração agradável. No dia do casamento, ela estava rodeada de pessoas sinceras e de energia positiva. Alexsander sentiu isso. Conheceu o lado bom do ser humano. Conheceu a alegria vestida de sinceridade e votos de felicidade, isso limpou seu coração de coisas ruins que já havia passado. Isabel certa vez havia dito a Alexsander palavras que passaram pela cabeça dele: só o amor cura. Só o amor tem força o suficiente para curar dores que imaginamos incuráveis. Agora Alexsander teria uma nova família e uma nova história para contar. A igreja era simples e um pouco antiga para os tempos em que viviam. Não importaram-se. Coisas materiais não podiam ser comparadas com toda a felicidade que estavam vivendo. 66
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— Sinto minha pele arrepiada de emoção – Rose exclamou baixinho para Alexsander encaixando seu braço no dele. — Eu também, meu amor. Fique tranquila, tudo dará certo. — Sim – respondeu para ela mesma. — Você tem certeza disso, meu amor? — Do quê? — De querer me ver todo santo dia em sua vida. — Fazer o quê? – suspirou. — Agora eu não tenho mais tempo para desistir, tenho? – olhou para Rose e sorriu. — Quanto senso de humor nessa hora! – exclamou nervosa. – Não tem mais tempo de desistir, sinto muito, meu caro. — Te amo daqui até a lua, de bicicleta – ele tentou acalmar Rose. Alexsander vestia um terno preto e com lenço branco no bolso no paletó. O tempo colaborou com aquele casamento, céu estrelado e, embora gelado, os anjos de Deus compareceram no casamento. A cerimônia havia começado, e os noivos queriam pular aquela parte para ficarem, enfim, sós. O padre colaborou com a ansiedade dos noivos e não prolongou-se em sua fala. Finalizou com aquele clássico: declaro-os marido e mulher. Deixaram a igreja sob chuva de arroz. A alegria era contagiante. Talvez fosse a única da vida do casal. Nunca haviam vivido esse sentimento. Haviam encontrado sua alma gêmea, passariam a vida toda juntos, juntos até o fim, esse era o dilema do casal. Eles encontraram aquilo que muitas pessoas perdem a vida procurando. O amor. 67
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Rose esbanjava energia como ouro e Alexsander era seu motivo. Todos saíram da igreja em direção a uma casa do outro lado da rua onde aconteceu a festa. Comeram e dançaram até a meia-noite com champanhe. Os convidados fizeram aqueles discursos longos. Entre o sobrinho correndo com outras crianças e pessoas dançando felizes, Anna, mãe de Alexsander, sentiu algo que nunca havia sentindo antes: paz. Ver seu, agora, único filho casar-se a fez lembrar de Zigmundo, seu filho mais novo. Imaginou o que poderia ser se não o tivesse perdido. Sentiu seu peito apertar de saudade, mas os anjos que estavam na festa logo socorreram-na chamando sua atenção para Rose. Não havia mulher mais feliz do que ela. Os noivos que agora já eram marido e mulher dançaram como se não houvesse amanhã e, de fato, não houve. Entraram em lua de mel naquela noite mesmo. Viajaram por alguns meses visitando a Europa e conhecendo novas culturas. Tudo era muito mágico. Amaram-se por dias e noites. Conheceram-se profundamente, seus pensamentos, suas dores, suas esperanças. — Olhe como é linda Paris, meu amor – comentou com Rose andando vagarosamente na fila para visitar a Torre Eiffel. — Sim. É muito linda. Obrigada por me trazer até aqui. — Você merece o mundo. — Ei, me dá licença? – disse um sujeito alto e mal-humorado, tentando furar a fila. — Desculpa — disse Rose um pouco assustada com o comportamento do sujeito. 68
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— Esses poloneses que não valem nada – exclamou o sujeito na fila. — Opa! Como é que é, meu amigo? – perguntou Alexsander sentindo seu sangue ferver de ódio. — Eu disse que poloneses não valem nada. — Você é alemão? — Sim. Com muito orgulho. — Pois não deveria. — Por que não? Meu país acabou com o seu – sendo irônico, respondeu a Alexsander. — Deixa de ser ridículo, meu caro. Vocês foram vencidos por dois países que até hoje são muito mais fortes que a suposta Alemanha de Hitler. Aliás, você perdeu algum familiar nessa guerra, não é mesmo? — Sim. Toda a minha família por bombas. — Então, saiba que eu os matei. Eu servi a RAF. Meu caro, então se o seu país destruiu o meu, eu matei a sua família inteira em algum prédio qualquer em que estavam. O que é muito pior, não acha? — Seu bastardo. Seu polonês... — fechou mão e agrediu Alexsander. — Nunca mais fale mal de algum polonês – Alexsander não recuou. Respondeu com a mesma agressividade com que foi agredido. Infelizmente foi a cena lamentável que Rose presenciou em sua lua de mel. Em seguida, os policiais franceses chegaram para recompor os dois senhores que estavam brigando em lugar público. Foram à delegacia e presos. Depois de horas, resolveram todos os trâmites e as consequências daquela briga. A fiança. 69
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— Você está bem, Alexsander? – Rose abraçou seu marido, deixando a delegacia. — Sim, meu amor, não se preocupe. Não gosto desses alemães metidos a donos do mundo. Só isso. — Tudo bem, meu amor. Vamos para o hotel. ****************** — Veja quem encontramos aqui. Como vai, senhorita Rose? Ops, melhor dizendo, senhora Rose! – a senhora Angie havia encontrado um novo brinquedo. — Tudo bem conosco, senhora Angie – respondeu Rose tentando disfarçar o incômodo. — Fiquei sabendo que encontrou alguém para casar – disse com tom de ironia. — Sim. Casamos alguns meses atrás – Rose tentou de todas as maneiras evitar o assunto. — E como está a lua de mel? E os filhos, quando vêm? – acendeu um cigarro. — Nossa lua de mel está ótima. E quanto a filhos, será quando Deus enviar – intrometeu-se Alexsander nervoso. — Já falei que pode ficar estéril, Rose. — Desculpa, mas quem é essa senhora cheia de rugas insultando você, meu amor? — A senhora Angie. Ela costumava ser do nosso ciclo de amizades, mas, como pode ver, ela não compartilha das mesmas ideias. Prefere destilar a fofoca e o preconceito por onde passa – respondeu ao seu esposo e encarou-a nos olhos. — Como é a vida, não é mesmo? Como ela me disse algum tempo atrás, ser autêntica não é ofensa pessoal, meu caro. 70
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— Vejo que aprendeu o significa da palavra autêntica. Andou estudando? – replicou Rose. — Não seja irônica. — Bem, então posso passar a próxima lição a você – puxou o ar e cruzou os braços. — Rose! – Alexsander chamou-a em voz baixa. — Tudo bem, meu marido. Eu posso fazer isso sozinha – sorriu a Alexsander. — Anota no seu caderno, senhora Angie, roubar o sorriso alheio é como roubar ou sabotar sua própria alma. Vou explicar melhor: quando você faz o mal, dizendo coisas para ferir os outros e praticando o preconceito, você mesmo recebe tudo isso em dobro. Tudo o que se larga-se no espaço volta de alguma maneira para você. Deu para entender? – perguntou frisando a testa. — Não sou burra. — Mas parece. Não lê, não estuda. Passa o tempo todo torrando a vida alheia. Não se separa do marido porque é tudo o que você tem, aliás, não tem. Ouvi boatos que ele está traindo a senhora, está sabendo disso? Pois deveria saber, o tempo que a senhora perde torrando nossos amigos, inclusive a mim, deveria gastar em cuidar do seu marido que tanto diz que ama – pegou a mão de seu marido para demonstrar o amor entre o casal. — Deveria ir ao médico ver se pode ter filhos. Ele me parece que é mais jovem do que você. Me parece ser superfértil, ao contrário de você. Aliás, você parece a irmã mais velha dele. — Senhora Angie, a senhora está passando do limite – fechou a expressão de seu rosto. 71
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— Senhora Rose, eu não tenho limites. Eu gosto de ver as reações das pessoas quando escutam a verdade. Você vai tornar-se oca por dentro e você sabe que não poderá ter filhos, não sei por que você engana você mesma com esse casamento. — E seria um prazer para você, não é mesmo? – segurou-se para não agredi-la. — Sim – passou por eles soltando risos de deboche. Aquela lua de mel já havia rendido muitas histórias para contar e ter encontrado a Senhora Angie foi uma delas. Domingo era dia de comer na lanchonete. Eles haviam encontrado uma em uma esquina qualquer. Naquele dia, a lanchonete estava cheia. Algumas horas depois daquele encontro desagradável, a senhora Angie apareceu com seu marido no mesmo local. A presença deles fez Alexsander e Rose sentirem-se desconfortáveis. Invadidos. Aquela tarde seria diferente. Quando Alexsander e Rose já haviam pago a conta e estavam prontos para partir, a senhora Angie e seu marido foram cumprimentar o casal agora como marido e mulher. Grande erro. Todos os presentes naquela tarde seriam testemunhas da essência de Alexsander. — Rose, meu amor, não se abale com isso. Ela é uma velha mal-amada – guardou o dinheiro em sua carteira. — Mas não é justo falar essas coisas para nós – pegou sua bolsa e colocou óculos escuros. — Eu sei – suspirou Alexsander. — Mas você quer se divertir um pouco? — Como? – perguntou curiosa. — Vamos aprontar com ela! 72
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— Não, como eu falei, não podemos fazer essas coisas para o próximo, pois depois volta para nós. – baixou os óculos e o olhou. — Ah, Rose deixa de ser careta. E além do mais, ela merece. Fica incomodando a todos. Vamos! Pense em algo que ela iria odiar! – esfregou as mãos e largou um sorriso. — Bem, dizem que ela sai com outro homem. — Ah, então, podemos ligar para o marido dela e contar para ele ou podemos colocar laxante na bebida dela. — Ah, Alexsander! Que infantilidade – riu e pôs a mão no rosto. — Tudo bem. Mas confessa que seria muito engraçado, não seria? – pegou seu blazer. — Seria. Mas isso é muito infantil. — Tudo bem se não quiser... mas eu ia adorar fazer isso. — Olha lá quem está chegando novamente, meu amor! – exclamou Rose a seu marido. — Essa senhora de novo? — Sim, ela tem prazer em incomodar. — Quem é esse senhor com ela? – perguntou Alexsander mirando o seu alvo. — O marido. — O corno, você quer dizer. — Alexsander. Não sabemos se é verdade. Dizem que ela trai o marido, mas não podemos saber a verdade – entrelaçou seu braço no seu marido, pronto para sair do local. — Melhor não virem falar conosco – fechou seu punho e cerrou os dentes. — Boa tarde, senhora Rose e marido – aproximou-se do casal. 73
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— Boa tarde – ambos responderam sem dar muita importância. — Quero apresentar meu marido ao seu marido. Esse é o Osvaldo – mostrou seu marido como um troféu. — Meu marido chama-se Alexsander. — Prazer – os maridos sentiram que o clima não era favorável a apresentações. — Bem, felicidades pelo casamento – disse Osvaldo. — Sabe, meu marido — disse Senhora Angie —, o Alexsander é sobrevivente da guerra. — Mesmo? Não sei o que dizer. Parabéns? Sinto muito? – sentiu-se desconfortável com aquela situação. — Tudo bem. Não precisa dizer nada – balançou a mão. — Ele é mais novo que a senhora Rose. — Mais novo? — Sim, ele tem 25 anos, e ela tem 32 anos. Não é bizarro? – Alexsander sentiu o sangue ferver em suas veias. Ficou vermelho, mas não de vergonha, e sim de ódio. — Bizarro são esses comentários – replicou Rose. — Qual é o problema com nossa idade? – perguntou Alexsander. — Nada, não. Minha esposa tem essa mania de falar alto o que pensa – Osvaldo tentou acalmar os ânimos, mas foi inútil a tentativa. — Só digo a verdade e repito. Sabe, meu marido, a Rose pode ficar estéril se demorar muito para engravidar – disse tirando o casaco de pele que vestia e colocando-o na cadeira ao lado, com tom de soberania. — Como você chama-se mesmo, meu caro? Osvaldo, certo? 74
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— Sim. — Deixa eu te falar uma coisa — dobrou até o cotovelo seu pulôver. — Sabe que a guerra nos traz à tona o pior lado do ser humano, não sabe? — Ehh... hum... hum... – mal pôde responder, e o marido da Senhora Angie começou a ser agredido em todos os locais no corpo. Alexsander agrediu principalmente seu rosto, era um aviso prévio do que era capaz. — Se a sua mulher incomodar a nossa a vida novamente, você não sabe do que eu sou capaz. Entendeu bem? – segurou com uma mão a gola do casaco do marido da senhora Angie enquanto a outra estava pronta para dar mais um soco em seu nariz. — Sim – respondeu na tentativa que não fosse mais agredido. — Está avisada, senhora Angie – disse Alexsander passando por ela. Os clientes da lanchonete estavam assistindo à agressão sem mover nenhum músculo. Como telespectadores que assistem a uma luta de boxe na TV. Torciam para o mais forte, não importava quem estava com a razão. Briga é briga e ganha quem é mais forte. No final daquela cena, Rose passou pela senhora Angie logo atrás de Alexsander com sorriso nos lábios. Não precisou dizer mais nada.
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Capítulo 7 a esperança é filha da fé Vários anos haviam passado desde a última vez em que viram a senhora Angie. Nunca mais souberam dela. O casamento de Alexsander e Rose estava em crise. Várias tentativas fracassadas de ter filhos foram feitas nos nove anos passados. Nada havia dado certo. Rose havia sofrido três abortos espontâneos. A vida havia golpeado mais uma vez Alexsander. Estéril. Esse foi o diagnóstico do médico. Mais tarde, a vida havia dado outro golpe, novamente. Rose não poderia mais ter filhos devido à idade. Ela morreu por dentro com aquela notícia. A senhora Angie tinha razão. Alexsander guardou em seu peito rancor novamente de Deus e da vida. Não aceitaram, não ouviram o que deveriam ter ouvido das pessoas. Fecharam-se na dor novamente, especialmente Alexsander. Não poder ter filhos com a mulher que havia escolhido para passar a vida toda fez seu coração quebrar como cacos de vidros no chão. Talvez fosse culpa da guerra, aqueles dias sem comer, aquelas diarreias, aquela fraqueza, talvez aquela vida tenha contribuído com a infertilidade de Alexsander. Todos esses pensamentos passavam na cabeça dele. A convivência tornou-se difícil com o sentimento culpa nas costas de cada um. A não aceitação fez o casal
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que tanto havia jurado amor eterno afastar-se por algum tempo. Embora dormindo juntos, a cama permanecia fria a noite inteira. Cada um com sua dor, cada um com seus pensamentos do que poderia ter sido e não foi, e talvez nunca será. A vergonha de assumir a infertilidade perante os familiares fez com que o casal não convivesse mais com pessoas que eram queridas naquele ciclo. Somente Isabel, irmã de Rose, soubera de tudo. Isabel era sua confidente. Rose perdeu aquele brilho nos olhos e sua alma perdeu-se na tristeza. Alexsander não podia ajudar sua esposa, talvez porque ele não pode ajudar-se a si mesmo. Alexsander tinha um defeito muito grande, não conseguia aceitar as coisas como ela são ou talvez procurar uma alternativa, uma segunda opção. A magia de ter filhos próprios havia roubado seus bons corações para sempre. A ideia de não poder gerar um filho em seu ventre fez com que Rose perdesse a fé e seu apego a Deus. Não entendeu por que tanta dor. Essa dor permaneceu como uma cicatriz na vida de ambos. — Rose, minha irmã, abre a porta. Temos que conversar – com batidas fortes na porta, Isabel tinha uma missão: socorrer sua irmã. — Fale – Rose perguntou do outro lado da porta sem querer abrir. — Posso entrar? — Pode – abriu a porta e deu-lhe as costas, caminhando em direção à cozinha. — O que aconteceu com você, minha irmã? — Quero morrer – respondeu colocando água para ferver, para fazer um chá. 77
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— Morrer? Você está maluca? Você está com raiva da vida, Rose. Isso não é certo – puxou uma cadeira e sentou-se. — Estou. Estou rancorosa com ela. — Por quê? — Porque não posso ter filhos devido à minha idade, e Alexsander é estéril. — Minha irmã... — colocou a mão na boca espantada com o estado de Rose. — Eu sei, não comente com ninguém – pegou os chás e colocou-os nos copos. — Não se preocupe. — Estou com tanta dor – exclamou Rose como um desabafo. — Eu imagino, e te ver assim me causa dor, Rose. Eu sinto muito. Mas esse papel de coitada não combina com você. Tenho que dizer isso. Já faz alguns meses que você está assim. — Obrigada. Mas nunca poderei ter uma criança aqui no meu ventre. Essa tristeza me consome. Qual é o segredo para sobreviver ao sofrimento? – colocou a água quente nos chás e ofereceu um a sua irmã. — Rose, você sempre foi uma mulher de esperança. Ágil, movida pela esperteza. Movida pelo brilho dos olhos. Cadê você aí dentro? – puxou a cadeira para perto dela e pegou sua mão. — Não sei, Isabel. Eu me perdi na dor – puxou sua mão para si e apoiou-a na testa, mostrando-se inconsolável. — Então volte. Seja forte. Seu marido precisa de você. — Alexsander começou a beber e todos os dias chega bêbado em casa. 78
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— Ele bate em você? – perguntou espantada. — Não. Claro que não. Ele nem fala comigo – tomou o primeiro gole do chá. — Rose, vocês precisam se ajudar, para o universo, ou seja lá o que for, ajudar vocês. Já falei, minha irmã, esse papel de pobre vítima não combina com você. — Como sermos felizes assim? — Minha irmã, por isso existe adoção – exclamou Isabel dando-lhe certa dose de esperança. — Adoção? – perguntou virando-se a sua irmã. — Sim. Procure ver alguém para informar-se melhor. — Adoção? – perguntou novamente e percebendo que não seria uma má ideia. — Sim, minha irmã. Adoção – suspirou mais aliviada por ter conseguido arrancar algum sentimento bom de Rose. — Mas as pessoas são tão preconceituosas – frisou a testa mirando ao horizonte. — Quem vive sua vida? Quem cuida do seu marido? Quem cuida de você? — Eu sei disso. Você está certa – voltou devagar a seu estado normal. — Então não ligue para esses absurdos. Primeiro você tem que voltar a ser quem você era. Voltar com sua vida, com sua fé, com sua alegria. Voltar para você e seu casamento. — Como? Nós não falamos mais. — Encontre um jeito, minha irmã. Eu sempre vou apoiar você. E quanto à infertilidade, você terá que conviver com isso para sempre. Você e Alexsander. Aceite que a vida fica mais leve convivendo com o problema do que 79
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brigando com ele o tempo todo – disse terminando seu chá e segurando a mão de Rose. — Mas Alexsander pegou o gosto pelo álcool. — Então façam terapia. — Terapia é coisa pra louco. Não sei. Me soa muito forte. — Rose, você quer ou não sair dessa situação? A chave não é estarmos certos com a relação e sim desenvolver um bom relacionamento — falou piscando o olho na tentativa de animar sua irmã. — Concordo. Obrigada por me ouvir. — Não precisa agradecer. Você sabe que sou uma boa ouvinte, e bons ouvintes fazem as pessoas se sentirem melhor. Lute, como disse a mãe do Alexsander: você terá que ser forte. — Você terá que ser forte – repetiu ela balançando a cabeça afirmativamente. – Juntos até o fim. — Como faço para tudo melhorar? – enxugou as lágrimas. — Primeiro, Deus. Quando se coloca ele na frente de um relacionamento, as coisas acontecem mais leves. Segundo, converse com Alexsander. Seu marido não é nada sem você e você não é nada sem ele. Terceiro, pare de se fazer de vítima. Infertilidade não foi escolha, talvez o destino tenha escolhido isso por você. — Você não entende. As pessoas só podem compreender as coisas a partir de suas perspectivas pessoais. E você não sabe o que ser infértil. Quero morrer – as lágrimas começaram a vir à toa mais uma vez. — Quer morrer? Pobre Rose! Condenada pela vida. Façamos o seguinte: sente aqui nessa cadeira e coloque seus braços sob a mesa – ordenou Isabel. — Para quê? 80
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— Obedeça – com voz firme, Isabel resolveu dar uma lição em Rose. — Eu vou estar na sua frente e vou lhe dar uma faca para cortar os pulsos. Quero que você se mate. Vou te ajudar a matar-se, já que quer muito morrer – agora o rosto de Isabel estava sério e decidido. — Mas... como assim? — Rose não entendeu aquela reação de sua irmã. — Vamos. Está aqui a faca, mate-se. Corte o pulso, a garganta, seja o que for. — Não posso, não tenho coragem. — Rose sentiu o coração acelerar só de pensar que poderia perder sua vida por algo que não podia resolver. — Não é que você não tem coragem, Rose. É que você não quer se matar. Sabe por quê? – colocou a faca no faqueiro. — Porque esse seu querer matar é só uma personalidade que você está assumindo. A de coitada. A de vítima. Tudo torna-se mais difícil quando você veste esse personagem, Rose. Até o ar fica difícil para os pulmões. Você quer se matar porque as coisas não saíram como deveriam sair e tudo parece desmoronar. Mas assim é a vida. Quando tudo parece torto e errado e quando aprendemos ter resiliência. — Então preciso de coragem para sair desse personagem. Tenho medo – enxugou as lágrimas novamente. — A coragem não é ausência do medo, e sim a presença da fé de que tudo vai dar certo, apesar do medo estar presente. Pense nisso. Volte para seu casamento. Rose escutou sua irmã. Isabel a havia dado um choque de realidade no dia anterior. Ela jamais teria coragem de tirar sua própria vida. Essa personagem não era Rose. Ela não era como essas pessoas que não podem enfren81
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tar seus próprios problemas. Teria que tirar essa mágoa do coração o mais rápido possível, se não quisesse perder tudo. Deixou a mágoa ir embora junto com a água enquanto tomava banho. Respirou fundo. Lembrou-se de Deus. Rezou e pediu força. Ao terminar, sentiu-se aliviada. Passou algumas horas na banheira enquanto Alexsander ainda estava dormindo. Fechou os olhos e se lembrou de todos os momentos bons da vida. Aceitou a infertilidade como amiga, não como inimiga que estava arrancando lágrimas todos os dias. Horas mais tarde, Alexsander acordou e quando se deu por conta, viu que Rose havia adormecido na banheira. Alexsander entrou no banheiro e quando a avistou, temeu por sua vida. — Rose! Minha vida! Acorde! – correu em direção à banheira e a sacudiu. — Tudo bem, Alexsander. Eu estou bem, adormeci na água quente – disse abraçando-o como criança saudosa. — Então, presta atenção na próxima. Quase matou-me de susto. Já não temos filhos e se perco você, perco tudo – falou largando aquele abraço e oferecendo-lhe a toalha para secar-se. — Desculpa. Não foi de propósito. Ah, quero lhe pedir algo. Não beba essa noite, por favor – saiu da banheira e secou-se. — Por quê? — Tenho uma surpresa. Naquela mesma noite. Alexsander voltou para casa sóbrio. A pedido de Rose, sua amada, percebeu que algo poderia acontecer em sua casa. Não quis ser motivo de 82
A Essência da Dor
vergonha. Chegou em casa depois do trabalho com macacão azul jeans e com blusa branca por baixo. Ele usava uma pochete na cintura com todas as ferramentas utilizadas para conserto de carro. Suas mãos estavam sujas de óleo e seu odor estava forte. —Você está arrumada Rose, vamos sair? – perguntou quando avistou Rose deslumbrante com vestido branco e perfume forte. — Sim. Vá tomar banho e coloque sua melhor roupa — exclamou com sorriso nos lábios. — Vamos aonde? Posso saber? – perguntou cruzando os braços na forma de defensiva. — Como eu falei. Surpresa. — Tudo bem. — Ah, Alexsander, obrigada por não ter bebido hoje – chegou perto do seu marido. — Faço tudo por você – descruzou os braços e tirou o macacão. — Eu te amo daqui até a lua de bicicleta. — Vou tomar banho – ignorou aquela declaração. Alexsander não sabia, mas Rose havia preparado tudo. Aquela noite seria tudo ou nada. A mesa estava posta com pratos elegantes e a toalha da mesa era branca, a cor favorita de Alexsander. As flores que ela pôs na mesa eram rosas brancas, combinando com a toalha. Os talheres de prata faziam parte da peça chave da decoração. — Você não disse que íamos sair? Estou pronto – Alexsander havia posto a melhor roupa para sair com Rose. Terno preto com camisa azul celeste combinando com seus olhos. 83
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— Você está lindo, meu amor. Sim. Vamos sair, sim – exclamou Rose muito feliz por ver que Alexsander havia vestido sua melhor roupa e feito o cabelo perfeitamente para sair com ela. — Agora, me conte, para onde vamos? – cruzou os braços. — Vamos sair dessa situação em que estamos – convidou-o para sentar. — Como assim? Por que essa mesma posta, se vamos sair? – estava meio confuso. — Vamos sair desse clima que nos impede de sermos felizes – respondeu chegando mais perto e descruzando os braços dele. — Não é clima, Rose. Nós não podemos ter filhos. Nosso amor não terá fruto de nada – disse passando por ela e sentando-se na cadeira com má vontade. — Eu sei. Mas vamos deixar toda essa mágoa ir embora, meu amor – puxou uma outra cadeira e sentou-se perto de Alexsander. — Não te entendo. — Eu preparei esse jantar para nos despedirmos e fecharmos essa página em nossa vida. Quero saber se você está disposto a ser meu parceiro nisso. Nos casamos para sermos felizes e não para sofrer. Se quiser permanecer nessa mágoa, melhor não seguir juntos. Me casei com você para ser feliz – disse olhando em seus olhos azuis e frisando a testa. — Tudo bem. O que você pretende fazer? – perguntou ajeitando-se na cadeira e tomando conhecimento da situação. — Adotar uma criança – respondeu feliz. 84
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— Adotar uma criança? Não seria uma má ideia – concordou feliz ao ver sorriso no rosto de Rose. — Teremos que ser fortes, meu amor – fez um carinho no rosto de Alexsander. — Rose, meu amor. Temos sofrido muito com isso. Precisamos de tempo para poder nos organizarmos – retribuiu o mesmo gesto a Rose. — Todo sofrimento é tolerável se temos alguém para suportá-lo conosco. E eu estou com você até o fim – beijou-o com paixão. — Juntos até o fim – concordou Alexsander com um belo sorriso. — Sente-se aqui. Vou pôr uma música para nós. – Alexsander sentiu vivo com a ideia de adoção. Sim, ele poderia ser pai. Isso encheu o peito dele de esperança. — Espere. Deixe-me pegar uma coisa. Comprei essa tarde – mostrou-lhe um lindo buquê de rosas. — Que lindo! Obrigada, meu amor. Você sempre me surpreende. Eu te amo – disse cheirando suas rosas vermelhas, — Rose, eu posso ser tudo o que quiser se eu tiver você do meu lado. — Eu sempre estarei ao seu lado. Mas preciso que você seja forte – respondeu colocando as flores junto com as outras que já estavam na mesa. — Seremos. Me perdoe pelos dias sem falar com você – colocou a música preferida de Rose: “Can’t Help Falling in Love”, de Elvis Presley. — Eu entendo. Você estava com dor, assim como eu. — Eu não posso te dar filhos, Rose – puxou seu braço e a convidou para dançar. 85
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— E eu não posso gerar nenhum filho no meu ventre. Somos iguais, meu amor. Minha irmã está certa, temos que aceitar essa condição e parar de brigar com ela todo o dia. Podemos ter razão ou podemos ser felizes. Qual você quer? – aceitou o convite e colocou seu braço nos ombros de Alexsander. — Eu quero você, pelo resto da minha vida. Não sobrevivi à guerra para perder tudo o que eu tenho. Você. Mas o que as pessoas vão dizer sobre a adoção? As pessoas têm uma mente fechada para essas coisas. — Mente fechada é, na verdade, um problema do coração das pessoas. Uma forma de insegurança e defesa. Eu te amo como nunca amei ninguém. Eu posso atravessar o inferno de pés descalços por você, mas você terá que fazer sua parte nessa nova fase de nossas vidas. — Conte comigo. Juntos até o fim – abraçou sua amada com aquele abraço caloroso que somente ele possuía. O calor do amor sincero. Aquele jantar foi o fim de uma fase ruim e o início de uma fase melhor. Juntos até o fim. A música era suave, com vibrações românticas, com cores de azul celeste e rosa bebê. Dançaram ali, no meio da sala, vestidos elegantemente um para o outro. Sem ninguém em volta, sem nenhum julgamento. Rose apoiou sua cabeça no peito de Alexsander. Podia ouvir os batimentos de seu coração. Rose possuía a necessidade básica preenchida a qual toda mulher precisa: ela era amada e valorizada. Os braços fortes de Alexsander abraçando-a faziam com que ela fosse a mulher mais segura que poderia existir. O perfume que ele exala86
A Essência da Dor
va era como brisa de um anjo de Deus passando na sala. Talvez eles estivessem presentes ali, quando decidiram voltar para seu casamento. Não importava o que iria acontecer, os dois estariam juntos. E assim aconteceu. Passaram a vida toda juntos, aquela vida pertencia a eles, aquele amor foi vivido todos os dias durante cinquenta anos de casados. Eles não sabiam, mas os anjos haviam abençoado aquela união. Com lágrimas que posteriormente transformaram-se em alegrias e dificuldades, que o fizeram perceberam que a vida conjugal, se vivida juntos, a tudo facilitaria. Eles não imaginavam, mas os anjos estavam preparando uma surpresa na vida desse casal. Nunca se soube qual tipo de anjo havia feito a surpresa chamada Aurora.
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Capítulo 8 a essência vestida de pureza Aurora. Aquela que tem significado do nome de uma deusa romana e que nasceu para deixar sua marca do mundo, e de fato, assim o fez. Aurora havia chego de paraquedas na vida de Alexsander e Rose, numa tarde de verão de 1961, com o sol brilhante sem nenhuma nuvem por perto para atrapalhar a sua descida. Era como uma luz ambulante com 3 anos de idade, com olhos azuis como os de Alexsander. Possuía um olhar cativante. Rosto de anjo. Cabelo castanho escuro e liso. Era como um algodão doce de tanta doçura que possuía em seu íntimo e seu exterior. Aquele serzinho de apenas 3 anos entrou na vida de Rose como uma benção de Deus. Deus havia dado uma chance àquele casal para que pudessem tornar-se completos como homem e mulher. Alexsander estava radiante, embora tenha percebido algo estranho em Aurora. Não soube explicar. Não quis encontrar uma explicação. Todos estavam felizes. Principalmente Rose, que, como não havia crescido com sua mãe, tinha como maior desejo tornar-se mãe, assim como a maioria das mulheres. Rose só seria uma mulher 88
A Essência da Dor
completa como mãe. Todo sentimento precisa de algum passado para existir, mas o amor de mãe não precisa, e foi assim que Rose sentiu-se quando Aurora chegou. Aurora trouxe com ela uma luz branca de paz e um alívio no peito do casal. Rose apaixonou-se por Aurora desde o primeiro momento. Não pensou em seu passado. O sentimento de Alexsander e Rose era um misto de ansiedade pelo novo, o coração vibrava com aquele ser correndo para abraçá-los, agora como pai e mãe. Nada era mais importante do que Aurora. Aurora era tudo. Era o marco de uma nova vida de todos. — Alexsander, meu amor. Estou terminando de cozinhar. Será que você poderia dar uma arrumadinha na cama de Aurora? Estou terminando de fazer um bolo – disse cobrindo a tigela com o creme do bolo. — Tudo bem, meu amor. O que mais você precisa? – perguntou Alexsander beijando Rose e Aurora na testa. — Não preciso de mais nada. Aurora tem se comportado bem, você não acha, meu amor? – colocou o bolo no fogo. — Acho que sim. Não entendo muito isso sobre adoção – Alexsander baixou-se na altura de Aurora que estava sentada em sua cadeira de brinquedo. — Ela não é linda, meu amor? Tem seus olhos – exclamou Rose baixando-se em frente a Aurora. — Mas tem sua doçura – replicou Alexsander. — Eu estou apaixonada por ela. — Nós estamos. — Oi, Aurora, minha filha. Como você está linda! Vem com o papai. Tenho um presente para você. – pegou-a no colo. 89
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— Papai – tentou pronunciar algumas palavras certas. — Sim, papai! – respondeu Alexsander muito feliz por ouvir aquilo. — Venha com o papai, tenho um lindo presente para você – carregou-a até a sala de estar, onde estava um lindo presente. — O que você comprou, meu amor? – Rose sentiu seu coração pulsar mais forte com o presente para a filha do casal. — Um urso enorme de pelúcia! Olha que legal, Rose! – colocou Aurora perto do presente. — Sim, muito legal! Ela adorou! Você é um ótimo pai – disse abraçando-o e elogiando-o. — Bem, vou arrumar a cama de nossa filha! – comentou ele. — Nossa filha. Quem diria... Estou feliz por ela estar conosco. — Eu também. — Bem, quero que depois de arrumar a cama, venha tomar um uísque e dançar uma música romântica comigo. Aceita? – perguntou com olhos arregalados a Rose. — Ah, meu amor. Não gosto que você beba. — Ah, vamos lá Rose! Hoje é sábado. Dei duro a semana toda, temos que comemorar! Hoje faz três meses que estamos com a nossa filha – abraçou e beijou Rose. — Tudo bem. Você tem razão. — Vem! Vamos pôr Aurora para dormir juntos. O que acha? – passou por Alexsander e piscou com um dos olhos demonstrando cumplicidade. — Faço tudo por essa família – seguiu Rose até o quarto de Aurora. — Vou ensinar como você a colocá-la para dormir 90
A Essência da Dor
– falou mostrando como fazia para ninar Aurora. — Ela gosta assim, e depois você coloca o bichinho de pelúcia preferido junto a ela. — Entendi – ele estava abismado com a habilidade de sua esposa com crianças. — Ela está caindo de sono. Pode ir, meu amor. Eu fico até ela dormir totalmente – disse segurando a pequena mãozinha de Aurora. — Obrigada. Vou organizar as coisas na cozinha. Te vejo depois. Te amo. — Te amo. O quarto de Aurora era como um conto de fadas, todo colorido e possuía os melhores brinquedos. A decoração havia sido feita por Rose. Ela possuía bom gosto. A cama era como um castelo da Rapunzel, todo lindo e trabalhado com as melhores peças. Naquela noite, Alexsander ficou com Aurora até ela dormir e toda vez que Alexsander percebia que sua filha estava entrando no sono, ele lentamente tirava sua mão que estava segurando com muito amor a de Aurora. Aurora, com medo de dormir, quando percebia o movimento da mão de seu pai, segurava-o com seus pequenos dedos, como um pedido para não deixá-la sozinha. Alexsander, mesmo amando muito sua filha, não conseguia ignorar aquele sentimento de incômodo, de algum aviso de algo superior a ele. Pensou que poderiam ser diversas outras coisas esse desconforto, embora tivesse certeza que nos olhos de Aurora havia algum mistério, algo negro e assustador. Não entendeu aquele misto de amor e pressentimento. Ele nunca fora dessas coisas. Uma mão 91
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segurava a mão de Aurora passando-lhe segurança e a outra apoiava sua cabeça, com pensamentos perdidos naquele novo ser que habituava a casa. Adormeceu ali mesmo, adiando a comemoração da chegada de Aurora na casa. Aurora era uma criança amável. Mas toda vez que Alexsander olhava nos olhos de sua filha, por alguma razão os via negros. Como se não fosse a alma de Aurora naquele pequeno corpo. Talvez fosse um amor estranho. Com a chegada de Aurora, Rose vendeu sua loja de tecidos e arrumou um emprego integral: ser mãe. Em suas horas vagas, ela era dona de casa. Rose estava feliz porque era essa vida que ela queria. Uma família. Não pediu muito a Deus. Estava completa como mulher, sendo mãe, realizada com esposa e sendo amada incondicionalmente por Alexsander. Tudo parecia perfeito. Certa tarde, quando Alexsander já havia saído para trabalhar em sua oficina mecânica, Rose limpou a casa e colocou uma música lenta para dançar com Aurora. Aqueles momentos de mãe e filha que tanto Rose desejou por anos. Pôs uma música lenta e dançou no meio da sala com sua filha. Aurora, abraçada à sua mãe, batia lentamente com sua pequena mãozinha no ombro dela. Aquela pode ter sido a única vez em que houve alguma ligação entre mãe e filha. — Cheguei em casa, meu amor. Vou tomar um banho e trocar de roupa para podermos visitar sua irmã. Trouxe um uísque para mais tarde, somente eu e você. Aliás, vou beber um gole agora – abriu a garrafa e pôs a bebida em um copo em cima da mesa. — Tudo bem. Mas será que você poderia alcançar-me a roupa que eu separei em cima da cama de Aurora? Eu 92
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estou terminando o banho dela. Secando-a, na verdade – pediu a Alexsander com voz alta, de dentro do banheiro. — Claro, meu amor. A verde? A rosa? A azul? Não tem nada em cima da cama – informou chegando no quarto. — Tem um vestido branco e uma tiara azul em cima da cama – Rose gritou do banheiro. — Tem certeza? – perguntou mexendo em alguma gaveta. — Absoluta. — Não achei. — Ah, Alexsander! Deixa, eu vou aí. Eu deixei em cima da cama – abriu a porta do banheiro. — Minha filha, fica aqui que a mamãe já volta em dois segundos. Tudo bem? – deu-lhe dois beijos no rosto. — Tudo bem — respondeu Aurora com voz suave. — Onde você deixou, Rose? Não está em cima da cama! – exclamou Alexsander quando avistou Rose entrando no quarto. — Estava aqui, meu amor. Eu juro que deixei a roupa em cima da cama. — Ah, vai ver você deixou em outro lugar. Mas tudo bem. Escolha outra. — Eu a deixei em cima da cama... Não estou loca – disse procurando a roupa. — Não disse isso, meu amor. Eu vou tomar banho e já me arrumo – desconversou e saiu do quarto. — Aurora! Minha filha. Cadê você? – Alexsander sentiu seu coração apertar quando não avistou Aurora no banheiro e nem no caminho ao banheiro. — O que aconteceu? – Rose gritou saindo do quar93
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to em direção a Alexsander. — Onde você deixou a Aurora? — Aqui no banheiro! – Rose começou entrar em pânico por não ver sua filha onde a havia deixado. — Ela não está aqui! – Alexsander começou a busca pela casa. — Aurora! Aurora! – Rose saiu em direção oposta à de Alexsander na casa. — Rose! Rose! Venha aqui rápido! Achei Aurora – exclamou aliviado. Aurora tinha saído do banheiro e foi encontrada tomando o uísque que Alexsander havia posto na mesa e começado a beber minutos antes. Com apenas três anos de idade, Aurora surpreendeu o casal com essa cena. Sim, com pequenos goles da bebida alcoólica de Alexsander, Aurora começara a mostrar por que havia chegado ao mundo. —Alexsander, tira o copo dessa menina! – ordenou Rose. — Meu deus! Me dê esse copo, Aurora – Alexsander pediu calmamente à sua filha e baixou-se ao nível dela para poder fazer entender-se melhor. — Não peça, Alexsander. Tire o copo das mãos dela. Alexsander tirou o copo e pôs na mesa ao lado. — O que faremos? – perguntou Rose pondo sua mão na testa. Sentiu que algo não estava certo. — Isso é normal ou é a adoção? – Alexsander pôs a mão em seu rosto tentando disfarçar aquele pressentimento que já havia sentido. — Você pegou as informações do passado dela? — Não – exclamou envergonhada por sua atitude. 94
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— E por que não, Rose!? — Não achei necessário. — E agora você acha necessário? – perguntou ironicamente à Rose, decepcionado com a falta de atenção dela. — Sim. Me desculpe. Estava muito apaixonada por Aurora e não prestei atenção nesse detalhe. Meu deus, ela está mergulhando os dedos no uísque e chupando para sentir o gosto. — Teremos problemas – informou Alexsander saindo da sala. Aurora não podia alcançar o copo de uísque, mas o instinto para sentir a bebida a havia feito mergulhar seus pequenos dedos no copo. Rose sentiu o mesmo pressentimento de Alexsander. Aquele dia foi o primeiro de muitos outros que Aurora iria surpreender o casal. —Venha, Aurora. Essa é a sua tia Isabel e esse é seu primo, filho da tia Isabel – Rose apresentou todos da família a Aurora. — Oi, Aurora minha sobrinha! Você quer um docinho? Fiz um muito especial para você. A tia fez merengues deliciosos – mostrando-lhe uma bandeja cheia de merengues. — Não – balançou a cabeça. — E como se dizemos quando alguém nos oferece algo, minha filha? – Rose tentou disfarçar a preocupação dos minutos anteriores. — Tudo bem, minha irmã. Não se preocupe. Preocupe-se em cuidar dela, depois ela me diz “não, tia Isabel, mas obrigada pelo doce” – riu e abraçou Rose. Aurora saiu correndo pela casa. — Muito querida você, minha irmã – puxou uma cadeira para sentar e conversar. 95
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— O que te aflige? — Senti algo não muito bom por Aurora. — Como assim? Ela é sua filha – exclamou espantada. — Eu sei, mas hoje ela saiu do banheiro pelada e bebeu o copo de uísque de meu marido. — Meu deus, ela só tem 3 anos. — Eu sei. Mas meu coração apertou muito forte. Como se algo ruim fosse acontecer – Rose baixou seu olhar e segurou as lágrimas. — Minha irmã, você sabe do passado dela? Sabe que pode enfrentar perguntas do tipo: quem são meus pais e por que eles não me quiseram, não sabe? — Não. Não peguei nenhuma informação sobre o passado dela. — Ah, mas não deve ser nada de grave. Ela só tem 3 anos. O que poderia ser? Uma assassina? Uma foragida da polícia? Ah, minha irmã, não pense no pior. Ensine tudo a ela – deu pequenas batidas nas mãos de Rose. — É, você tem razão – balançou a cabeça. — Você compartilhou esse sentimento estranho com Alexsander? Talvez ele também tenha sentindo. — Não. Achei melhor não falar nada. Estamos tão felizes, não quero pôr dúvidas na cabeça dele – suspirou preocupada. — Rose, se não está bom, tem que falar. Se sentiu algo, tem que compartilhar. O que não pode é passar por situações em que tudo fica entalado com coisas a dizer e incomodando a garganta toda vez que toma um gole d’água. Fale com seu marido. — Tudo bem. Vou pensar nisso. Os animais da casa de Isabel não gostavam da pre96
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sença de Aurora. O cachorro, quando a avistou, não quis ficar perto, como se tivesse cheirado algum odor ruim na essência da menina. Passado algum tempo em que Aurora fora brincar com seu primo, ele entrou chorando na sala e não quis falar com ninguém, somente abraçou sua mãe e não saiu de perto dela pelo resto do dia. O que havia passado com Aurora e seu primo? Nunca se soube. Aos 5 anos de idade, Aurora havia matado todos os gatos que apareceram em sua casa. Aqueles gatos de rua foram as suas primeiras vítimas. Colocava-os em óleo quente que pegava da oficina mecânica de seu pai. Aurora tornou-se difícil de fazer amizades nas escolas onde estudava. Não era mais carismática como antes. Gostava de brincadeiras maldosas e com ela sempre no comando. Ela cresceu forte e saudável. Faltavam-na diversas qualidades para uma criança que até então já tinha 9 anos. E a esperteza era uma delas, pois sempre deixava vestígios de que havia sido ela que cometera pequenas maldades.
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Capítulo 9 aquela que mata em silêncio — Por que você não tem a mesma cor de olhos de sua mãe? – perguntou seu primo com tom de desconfiança. — Porque eu tenho os olhos do meu pai. Eles são azuis como os meus – Aurora respondeu no mesmo tom de voz de seu primo. — E por que você não tem irmãos? — Não sei. Mas é melhor. Gosto de tudo para mim – Aurora respondeu e chegou perto de seu primo como ameaça. — E por que você não tem a cor do cabelo de sua mãe? — Porque tenho o cabelo de meu pai. Castanho escuro. — Você é estranha. Seu nariz não parece nem com o do seu pai nem com o da sua mãe – disse pegando sua mochila da escola e tentando sair da sala de aula. — Não diga bobagens, primo. — Não é bobagem. Você não é parecida com eles, não se deu conta ainda? – passou por ela dando-lhe as costas. — Não é verdade. Eles me amam, e eu, a eles – deixou à mostra uma tesoura e com ela a sua personalidade. — Mas não é estranho que você não seja parecida com eles? Não vi uma foto sua e de seus pais juntos nas 98
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quais se pode perceber alguma semelhança. Você não tem nada em comum. Acorda, prima – disse-lhe parado à porta da sala de aula vazia. — Nunca percebi. — Ah, desculpa então. Não quis ser inconveniente – disse largando um sorriso irônico de canto do lábio. — E por que sua mãe é tão querida e você não? — Não é verdade. — Bem, você não reparou ainda como sua mãe é querida por todos e você não? — Sou como meu pai. Sou mais na minha, fico quieta – tentou achar alguma explicação lógica para as perguntas de seu primo. — Seu pai é um homem muito bom. Sempre nos tratou muito bem. Sempre me deu doces e sempre me trouxe presentes, e quanto a você, nem meu cachorro gosta da sua presença. — Não é verdade, primo – disse pegando a tesoura e apontando no estômago do primo. — E por que sua mãe é muito mais velha do que as mães com filhas de sua idade? Sem ofensa, Aurora, só estou tentando abrir seus olhos – deu dois passos para trás tentando defender-se. — Porque ela me teve muito tarde. Ela não podia ter filhos, eu acho. Trabalhava muito – os olhos de Aurora haviam trocados de cor. Estavam vermelhos de ódio. — Acho que você é adotada. — Como assim? — Meu filho! Venha, já estou te chamando há horas. O que vocês estão fazendo? – Isabel entrou na sala de aula para buscar seu filho e sua sobrinha. 99
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— Tia! Eu sou adotada? – Aurora guardou rapidamente a tesoura no bolso para que Isabel não a visse. — Adotada? Quem falou isso para você? – perguntou apreensiva. — Meu primo – disse olhando-o e encarando-o nos olhos. — Que eu saiba, não é adotada. Aliás, você sabe o que ser adotada? – aproximou-se de Aurora e pegou sua mochila da escola. — Mais ou menos. É quando pais pegam uma criança para si, mas ela não saiu da barriga. — Por aí. São bobagens que passam na cabeça do meu filho, Aurora, não se preocupe – tentou desviar o assunto. — Vem, meu filho, precisamos ir. Já está tarde. Vamos, Aurora. Deixo você em casa. Naquele dia, Aurora conheceu a angústia em seu peito. Conheceu a insegurança e não entendeu a sensação do vazio. Por que seus pais mentiram sobre isso? Bem, na verdade eles nunca falaram sobre adoção ou se ela era filha legítima. Eles eram felizes assim, talvez uma felicidade um pouco estranha, pois Aurora sempre dava dor de cabeça, mesmo quando estavam todos em paz. Chegando em casa, Aurora, já com 9 anos, procurou fotos de sua família. Olhou todas as fotos, uma por uma, no álbum da família, tentando assim achar alguma semelhança, qualquer uma que fosse, além da cor dos olhos. O nariz, o formato dos olhos, das mãos, alguma semelhança no cabelo, o porte físico. Cada foto vista era como uma pontada no peito. Invadiu seu coração o sentimento de não pertencer àquela família. Permaneceu calada até o 100
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dia seguinte, quando observou as outras mães que eram bem mais novas do que Rose. Aurora no fundo de seu coração entendeu o que seu primo quis dizer no dia anterior. Algo não era como ela pensava. — Pai, mãe. Preciso falar com vocês – chegou correndo colocando sua mochila em cima da mesa. — Sim, minha filha. Fale. Precisa de algo? – Alexsander olhou preocupado para Rose. — Sim. A verdade – respondeu séria. — A verdade? – perguntou Alexsander parado do lado de Rose. — Do que está falando, Aurora? — Sou adotada? — Adotada? Quem falou isso? – Alexsander puxou uma cadeira para controlar as pernas trêmulas. — Pai, eu só tenho sua cor de olhos. Eu não me pareço com vocês. Nenhuma foto em que estamos juntos vocês parecem ser meus pais. — Você deduziu isso sozinha? — Mais ou menos. O primo, o filho da tia Isabel, comentou algo. Por que você é tão velha mãe? As mães de minhas colegas não são tão velhas assim – suspirou já desconfiando da verdade. — Sim, Aurora – respondeu Alexsander com voz firme. — Sim o quê? – com olhos arregalados, não acreditou na resposta. — Você é adotada. Sente aqui, vamos contar tudo – pediu com a mão para que Aurora sentasse ao seu lado. — Eu e seu pai não podíamos ter filhos. Ficamos 101
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muito triste e isso quase acabou com nosso casamento. Decidimos adotar uma criança porque queríamos muito ser pais. E encontramos um lindo bebê. Você – explicou Rose e segurou as lágrimas. — Encontraram? Onde? No lixo? – Aurora perguntou com a cor dos olhos vermelhos de raiva. — Não, minha filha. É como se um anjo tivesse lhe trazido para nós. Nós nos apaixonamos por você desde o primeiro momento em que a vimos. — Linda história. Mas quem são meus pais? Preciso conhecê-los! — Não sabemos. – Alexsander com muita dor no peito respondia às perguntas de sua filha. — Como não sabem? Quem me trouxe para essa casa? – quis saber, com olhos cobertos de raiva e angústia por não pertencer àquela família. — Uma mulher soube que queríamos adotar uma criança porque não podíamos ter filhos. Ela veio aqui em casa e trouxe você. Com vestido branco e doce como um algodão-doce. — Quem era essa mulher? — Não a conhecíamos, e ela nos disse que sabia que queríamos adotar uma criança e trouxe você. — Então, você não sabe de onde eu vim! Quem são meus pais ou se tenho irmãos! E se essa mulher me separou de meus pais ou me roubou? E se fui dada como quem não tivesse valor? E se fui encontrada no lixo? Vocês pagaram essa mulher? – perguntou como se alguém houvesse apertado a ferida em sua essência. — Não, minha filha, não pense assim. Nós não 102
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pagamos nada a ninguém. Ela somente nos trouxe você e não falou mais nada. Talvez foi falha nossa não ter investigado seu passado – enxugou as lágrimas. Rose deu a notícia com muito pesar em seu coração. — Mas estamos tão felizes com você em nossa casa que esquecemos de pegar as informações, nada foi mais importante do que ter você perto de nós. — Mas eu não sou filha de vocês. Vocês me pegaram por pena ou para salvar um casamento que já estava fracassado – sentou em frente a seus pais. — Ei, Aurora. Mais respeito com nós. Entendemos seus sentimentos de raiva e de decepção. Talvez até de um vazio enorme que nunca poderá ser preenchido. Mas nós adotamos você porque a amamos desde a primeira vez e nunca lhe falou algo nessa casa. Você tem tudo do bom e do melhor. Porque nós te amamos muito e te queremos muito bem – abraçou forte sua filha. — Quero morrer – recusou seu abraço trancando-se em seu quarto. — Não há nada mais poderoso do que a verdade, Rose. Nós fizemos bem em contar tudo. Deixe-a com sua dor – disse Alexsander tentando consolar sua esposa. — Talvez deveríamos ter contato antes – Rose abraçou seu marido forte. — Sim. Talvez deveríamos ter contato antes. Mas somos pais de primeira viagem. Não podemos cobrar tanto de nós. Não sabíamos como ia ser – Alexsander tentava ser forte em frente de Rose. — Tudo se tornará mais difícil agora – suspirou abraçada a seu marido. 103
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E de fato foi mais difícil. A essência de Aurora era a pior possível. A da mentira. Como filha do diabo, a mentira cresceu no peito dela. Apesar de sua beleza física, não havia bondade em seu coração. Talvez ela usasse a mentira como algo fantasioso da vida que ela gostaria de ter. Colocou a culpa de suas ações na adoção. Inconformada por ter sido abandonada por seus pais biológicos, Aurora cresceu com um coração revoltado. Tudo isso a impediu de bom comportamento em locais públicos. Certa vez, aos 15 anos de idade, desobedecendo uma ordem de sua mãe, Aurora saiu desnuda à rua para ir ao show de uma banda favorita dela naquela época. Saiu somente com vontade de matar-se. Seu pai, Alexsander, buscou-a e foi a única vez que a agrediu como lição. Dizem que agredir filhos não é o melhor caminho. Mas apanhar com aquelas cordas de pular fez Aurora adormecer seu coração revoltado por algumas semanas. Talvez faltassem limites em Aurora. Talvez ela fosse muito mimada. Com cabelos lisos e escuros e com um corpo de causar inveja, seu coração era negro e amparado pela essência que nunca pudera conhecer: a essência dela mesma. Ela não conhecia a si mesma e tão pouco a maldade com qual havia chegado ao planeta Terra. Como a aurora boreal, sua alma possuía diversas cores: cores do rancor, do ódio, mágoa e mentira. Todas elas serviam de camuflagem para ocultar sua verdadeira cor de alma. Seus olhos foram preenchidos pelo ódio. Sentia tristeza extremamente forte para sua idade. Sentia com pesar o lado público da adoção e isso a envergonhava. Ao contrário de Rose, Aurora virou assunto nas ruas, reforçando o mau falatório sobre adoção. Sua per104
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sonalidade difícil e falta de vínculo emocional e traços físicos com Alexsander e Rose facilitaram a sensação do vazio instalar-se em seu coração. Aurora tornou-se especialista em estudar a fraqueza humana do próximo, usava isso contra seus pais ou qualquer pessoa da qual quisesse tirar vantagem sobre. Roubava, mas não somente coisas materiais. Ela roubava consigo a dignidade das pessoas e as transformava em ocas por dentro. Com o passar de anos, o desgosto chegou à vida daquele casal cheio de esperança. Rose deu o melhor de si, talvez tenha errado em mimar demais sua filha, mas amor de mãe é assim. É cuidar. É zelar. É proteger. Alexsander só queria ter tido uma vida normal, e novamente adquiriu o gosto pela bebida alcoólica. Ele a consumia todos os dias para esquecer das dores do mundo. — Então, Mia, como vão as coisas com o Christian? – perguntou abrindo a porta do carro. — Tudo ótimo. Melhor impossível – respondeu contente. — Hum. — Por que Aurora? — Nada, amiga. Eu gosto de ver você feliz. Vamos estudar na sua casa ou na minha? – colocou o cinto de segurança. — Ah, vamos na minha, minha mãe fez biscoitos deliciosos para nós. — Legal. Vamos. — A sua mãe ama você como a minha me ama? — perguntou Mia. — Acho que não. Bem, você sabe, Mia, eu sou adotada. Não creio que deve ser o mesmo amor. 105
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— Não diga bobagens. Claro que é. E me atrevo a dizer mais, eu acredito que sua mãe ama você mais do que se fosse uma filha legítima. — Pode ser – Aurora concordou e revirou os olhos. — Eu e o Chris estamos felizes. Vamos nos casar e espero logo ter filhos. — Casar? Você está pensando em casar com o Chris? – perguntou surpresa. — Claro. Nos amamos – Mia respondeu dirigindo com os cabelos ao vento. — Claro que se amam. — Eu não sei, mas eu estive procurando o meu álbum de fotos com o Chris e sumiu – trocou a marcha do carro. — Não acho em lugar nenhum. — Ah, procura melhor, amiga. Você deve ter guardado muito bem. — É, você tem razão. Mia era uma amiga da faculdade de Aurora. Gente boa. Muito querida. O problema é que ela confiava em Aurora como uma irmã mais velha. Confiava seus sentimentos à Aurora, e seus mais íntimos segredos era ela quem sabia. Mia era muito bem de vida. Aurora não era pobre, mas comparando a Mia, ela seria uma pessoa com situação financeira inferior. Mia era loira, possuía sorriso branco, alma doce. Ela não sentia e não percebia as coisas que Aurora fazia por trás daquela amizade. Aurora apaixonou-se por Christian em segredo, o prometido de Mia. Roubou algumas fotografias de Christian da casa de sua “amiga”. “Ele ainda vai ser meu”, pensava consigo. Aurora queria aquela felicidade que Mia sentia. 106
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Aurora queria sentir como era ser feliz. Christian era um dos motivos da felicidade de Mia, que era uma mulher completa, realizada profissionalmente e pessoalmente, tinha pais amorosos e quase no término da faculdade, já possuía muitos planos para o futuro. Entre os planos de Mia para o próximo semestre estava o casamento com Christian. Aurora no fundo tinha inveja de Mia, por ela ser iluminada. Aquelas pessoas que chegavam nos lugares trazendo luz para os ambientes. Alma inocente. A grama de Mia era bem mais verde do que a de Aurora. E Aurora queria Christian para ela. Ela queria experimentar aquela dose de felicidade que tanto buscava. — Christian, eu quero você para mim! – dizia com tom de brincadeira fechando seu armário da faculdade. — Aurora, deixa de ser boba! – respondeu Christian sem jeito por escutar aquilo. — É sério. — Sabe que sou comprometido, não sabe? Amo a Mia. — Mas ela não te ama, e digo mais. Ela foi estudar com o Marcos. Você sabia disso? – tentou o envenenar contra Mia. — Marcos, o da classe de literatura? – perguntou surpreso e fechando seu armário. — Esse mesmo. Se não acredita, vai lá na biblioteca ver com seus olhos. E digo mais, nesse horário estão a sós. — Não. Não pode ser. Eu acredito em Mia, ela me falaria se isso fosse verdade. — Vem, eu te levo até lá – puxou-o pelo braço. — Você tem certeza, Aurora? — Claro. Eu sou a melhor amiga dela. Sou como a irmã mais velha. Mas confesso que não concordo que ela 107
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vá estudar sozinha com outro rapaz, pois ela já sabe que você não gosta e tem vários atritos. — É. Você tem razão – e entrou na biblioteca. — Falta de respeito, não acha? – suspirou Aurora. — Como você pode casar assim, não é mesmo? — Mia! – exclamou ele espantado com o que viu. — Christian! — Oh, meu Deus, Mia. O que você está fazendo? – Aurora perguntou cinicamente. — Eu não sei. Ele me beijou à força – tentou explicar o que havia acontecido. — E por que você não o empurrou ele? — É, Mia. Por quê? Você está me traindo? — perguntou Christian decepcionado. — Claro que não! — Acabou – informou Christian. — Acabou? – perguntou Mia surpresa. — Acabou? – perguntou Aurora tentando disfarçar a alegria. — Christian, espere aí, vamos conversar... — Por Deus, Mia! Você nunca havia me falado do Marcos para mim... – interrompeu Aurora. — Claro que não! Não temos nada. Ele me beijou e eu não sei o porquê. — Vem. Vamos para casa. Vá ao banheiro lavar o rosto. Eu alcanço você – Aurora consolou Mia. — Tão bela quanto cínica, hein, Aurora – disse Marcos aproximando-se. — Quanto te devo? — Mil dólares. 108
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— Mil dólares? – perguntou surpresa com o aumento do valor combinado. — É o preço. Você acabou de quebrar o coração de sua amiga e é o preço para conseguir aquele abobado do Christian. Aliás, o que você viu nele, hein? — Não é da sua conta isso. Toma, pegue o dinheiro – entregou o dinheiro a Marcos. — Aí, tenho um amigo que acha você a maior gata! Está querendo conhecer você! — Quem? — perguntou sem dar muita importância. — O Nick. — Ah jura?! Eu não tenho interesse nenhum. Diz para ele que eu quero o Christian – fechou sua bolsa e deu as costas. — Tudo bem, então. — Tenho que ir. Lembre-se: boca calada, hein, Marcos – disse de longe
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Capítulo 10 o começo do fim Semanas passaram-se, e o plano de ser a conselheira de Christian estava dando certo. Aurora havia se aproximado dele. Mas Christian, apesar de ser uma boa alma, também não enxergava as intenções de Aurora. Deixou-a entrar em sua vida. Abriu as portas, e Aurora instalou-se como a melhor amiga e melhor companheira. Camuflou-se de santa e estudiosa. Ela havia dado o primeiro beijo em Christian. E por alguns dias pôde sentir algo bom nela mesma. Christian havia tocado alguma parte em sua alma. Tiveram um romance rápido, o que deixou o coração de Mia em pedaços quando soube. — Diga à Mia que uma velha amiga está aqui para falar com ela – disse Aurora parada na porta do jardim da casa de Mia. — Mas quem é a senhora? — perguntou a empregada. — Diga que é a Aurora. — Tudo bem. Espere um momento. Espere na passarela do jardim. — Aurora? Não pude acreditar que você veio falar comigo. O que quer? – perguntou Mia aproximando-se. — Dizer que estou com Christian. E sejamos honestas, ele está bem melhor comigo. — Aurora, como teve coragem de roubá-lo de mim? 110
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— Porque você já tem tudo. Já tem pais que te amam, dinheiro, profissão. Só peguei o que poderia me deixar mais feliz. — Você nunca será feliz enquanto não enxergar a você mesmo. Enxergar a sua essência e tentar corrigi-la – disse dando passos largos na passarela de vidro do jardim. — O que você quer dizer? — Que o mal nunca ganha. Ele pode ganhar por alguns momentos, mas sempre haverá algo maior para curar a dor que você causa. Eu demorei para acreditar que você era tão ruim assim. Eu acreditei que você fosse uma pessoa boa. — Para com esse drama, Mia. — Não é drama. Olha sua mãe, seu pai. Coitados, eles devem sofrer muito com tudo o que você faz. Por isso eu não consigo sentir ódio de você. — Está dizendo que tem pena de mim? – revirou os olhos. — Não. E sinceramente não entendo por que você entende tudo errado quando as pessoas falam algo para você. — Aham... – concordou aproximando-se de Mia. — Fique com o Christian. Uma hora ou outra ele vai perceber quem você é. Eu percebi quem era você, logo sua máscara cai. — E quem sou eu? – bateu o pé impacientemente naquela passarela, e ninguém percebeu, mas o vidro estava rachado. — Uma pessoa sem coração. Aliás, você só tem o coração físico que bate aí dentro, mas tratando-se de sentimentos, você não ama. Nunca amou. Você não conhece esse sentimento. 111
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— Ah, deixa de ser melodramática – passou por Mia dando pisadas fortes na passarela. Como toque do destino, a passarela de vidro rachou-se levando consigo Mia ao chão. Cortou a pele sensível dela em vários lugares. “Oh, meu Deus! O que eu faço? Vou embora”, pensou quando viu Mia sangrando. “Eu a matei!”. Mia foi socorrida por uma das empregadas da casa. Chegou com vida ao hospital, embora fosse levar as cicatrizes pelo resto da vida. Ela sobreviveu à queda da passarela. Aurora sentiu-se estranha com aquele sentimento novo que a havia invadido. Aliado com a presença de Christian todos os dias na faculdade, ficou difícil para Aurora sobreviver sustentando aquele sentimento estranho o qual estava sentindo. A culpa. A culpa dizia que ela deveria ter tentado ajudar Mia, chamando a ambulância ou algo tipo de socorro. Terminou o relacionamento com Christian no mesmo dia em que ele foi tirar algumas satisfações com ela. — Bom dia, Mia – disse um homem parado na porta do quarto do hospital. — Bom dia, Marcos. Entre. O que faz aqui? – Mia respondeu com voz serena deitada na cama. — Como você está? – aproximou-se dela. — Bem. Meus ferimentos ainda doem, mas eu estou bem. — Preciso falar com você. — Fale. Como pode perceber, não vou a lugar algum por um bom tempo. — Você me odeia? – perguntou ele envergonhado. — Claro que não. Por quê? 112
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— Porque eu soube o que aconteceu com você. Tome, trouxe essas flores para você. — Obrigada. Deixe ali, naquele vaso. – apontou a direção. — Mas me diga, por que me beijou aquele dia? Você sabe que não temos nada. — Aurora me pagou para eu beijar você, para parecer uma traição. Assim o Christian terminaria com você e ela ficaria com ele. — Aconteceu isso mesmo. Bem, eu imaginava isso. Somente Aurora sabia onde eu estava naquela tarde – concordou com a cabeça. — Escuta, Mia, eu só estou contando tudo isso porque eu não sou uma pessoa ruim. Só queria o dinheiro, sabe, mas eu não quero que você me sinta mal. Tive que vir aqui e falar a verdade para você. — E o Christian? — O que tem? – perguntou surpreso. — Sabe disso tudo? — Sabe. Eu o contei antes de vir aqui hoje. E eles terminaram. Mas Christian prometeu fazer algo contra Aurora. — Do tipo? – perguntou Mia curiosa. — Christian vai denunciar Aurora pelo uso de drogas na faculdade. — Preciso falar com ele – disse Mia passando a mão pela cabeça. — Não vá. Espere, acredito que ele virá aqui para vocês conversarem. Bem, já fiz minha parte – olhou as horas no relógio. — Tudo bem, Marcos, eu desculpo você. Todos so113
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mos vítimas de pessoas infelizes. Mas não faça mais essas coisas. Não vale a pena – pegou em sua mão. — É, tem razão. Eu aprendi a lição – agradeceu o apoio e puxou sua mão. — Até mais, Mia. Se cuide. — Até mais, Marcos. — Alô, minha irmã. Como vai? – Isabel ligou sua irmã para saber notícias. — Tudo bem – respondeu com tom de voz triste. — Tudo bem e ou tudo bem mais ou menos? – replicou com ar de preocupação. — Ah, Isabel! Aurora não tem se comportado muito bem. — Me diga o que se passou dessa vez? — Ela tem roubado dinheiro da casa –respondeu friamente. — Como assim? — Ah, minha irmã, deixa para lá. — Não. Por favor, me conte. Quer que eu vá ver você? Assim podemos conversar melhor. — Não precisa. Eu tenho que sair para resolver algumas dependências da casa – Rose não queria compartilhar sua dor, tentando assim evitar os falatórios. — Então me conte. Te sinto muito triste – passou para a outra orelha o telefone prestando mais atenção. — Aurora tem roubado as coisas de dentro de casa. — Você tem certeza? – perguntou Isabel muito preocupada. — Sim, eu mesma a vi pegando 500 dólares de Alexsander. Ele estava guardando para a casa. 114
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— E você contou a ele? — Não, ele já está muito decepcionado com ela. Ela tem tudo do bom e do melhor. Tem nosso amor e compreensão. Não entendo o porquê disso. — Mas ela sabe que você sabe que ela pegou o dinheiro? Olhe, minha irmã, nosso instinto de pais é de proteger nossos filhos da dor e da maldade do mundo mantendo-os em nossos braços, mas isso não é bom, porque o mundo poderá sem muito cruel com eles mais tarde. Temos que ensinar as lições de bom caráter para nossos filhos – Isabel tentou encorajar Rose a não proteger Aurora. — Não. Ela não sabe. Mas eu sei onde ela guarda – deu uma pausa para recuperar o ar. — Rose, conte para seu marido. Ele ficará mais decepcionado se não contar a ele. — Sim. Você tem razão – balançou a cabeça para o invisível. — E como andam os estudos de Aurora? — Está bem... Ela até gosta do curso, sabe? Mas está demorando mais do que o normal para terminá-lo. Não sei o que ela faz na universidade. Mas sinceramente não sei como ela vai ser como professora sendo a filha que é. — Você acha que ela faz isso por quê? — Não sei, Isabel. Acho que ela não nos perdoou por não sabermos nada dos pais biológicos dela ou sente falta de alguma identificação conosco. Ou, ultimamente, tenho pensado que isso foi culpa nossa, sabe? Porque mimamos muito ela. Na verdade, não sei. Não entendo. — Mas isso não é motivo, Rose – exclamou Isabel indignada. 115
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— Eu sei que não. Mas o que podemos fazer? – balançou os ombros. — Será que ela não tem alguns genes ruins da mãe dela ou do pai? — Não quero pensar nisso. Ela deveria ser a nossa filha amada. Mas no final das contas ela nos odeia. — E o pior é que não podem nem devolvê-la... – disse com tom de brincadeira. — Ah, Isabel, não fale desse jeito. Tudo vai ficar bem. Só fico triste por ela roubar nosso dinheiro e sumir com algumas coisas dentro de casa. — Só isso, minha irmã? Será que ela não tem alguma doença? Digo, mental. Bem, talvez não seja tão tarde para tratar, ela está com 20 anos – exclamou Isabel na tentativa de consertar toda a situação. — Não. Deve ser a adoção mesmo – conformou-se com sua dor. — Talvez ela se sentiria melhor conversando e desabafando seus sentimentos em um psicólogo. Como te parece essa ideia? Sinto muito por sua tristeza, minha irmã. Posso imaginar sua dor. Todos queremos filhos vencedores, trabalhadores e honrados. Sentimentos bem quando eles são honrados. Nós amamos o reflexo da glória em nossos filhos. O sucesso deles é o nosso. Passe aqui em casa mais tarde para podemos conversar melhor. — Claro. Um beijo. — Beijo. Aurora escutou parte da conversa de sua mãe e sua tia. Sempre espionava o que sua família fazia longe do 116
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alcance dela. Possuía talvez uma paranoia que eles poderiam fazer algo contra ela. Talvez fosse insegurança. Sentiu ira contra todos por culparem o comportamento dela com alguns fatores genéticos. Sentiu-se vazia por dentro. Não pôde defender-se porque nem ao menos sabia os nomes de seus pais biológicos e se sentiu louca por pensarem que ela precisaria de algum psicólogo. Isso, naquela época, não fazia sentido. —Você acha que eu tenho alguma doença, mãe? – entrou na sala sentando perto de sua mãe. — Aurora! Do que você está falando? — Eu ouvi a conversa com a tia Isabel. — Que bom – Rose respondeu como quem não tivesse força para discussões. — Quer um café? Estou esperando o seu pai – Levantou-se dirigindo-se à cozinha. — Não, obrigada – Aurora levantou-se seguindo sua mãe. — Aurora, minha filha, quer me contar algo? – colocou a água para ferver. — Como o que, por exemplo? — Não sei. Alguma coisa que talvez você precise e não queira pedir – levantou seu olhar fitando-a nos olhos, como se recuperasse a força novamente. — Não. Está tudo bem. — Minha filha, eu sei que você pegou o dinheiro que seu pai estava procurando na semana passada. — Que dinheiro? – perguntou surpresa. — Os 500 dólares. — Não peguei – disse com voz de descarada. — Não minta para mim, você não precisa. Sou aci117
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ma de tudo sua amiga. — Na verdade, é só minha amiga – replicou Aurora pegando uma maçã e a mordendo-a. — Como assim? – perguntou Rose assustada em ouvir o pior. — Não sou sua filha. Não sei por que me adotaram. Por que não deixaram com meus pais? — Por que pensa assim, Aurora? — É a verdade, Rose. Vocês não me amam. Se me amassem, importariam em pegar algumas informações dos meus pais biológicos ou talvez pensassem no vazio que sinto dentro do meu coração. Sinto como se não pertencesse à aqui, entende? – devolveu a maçã à mesa. — Minha filha, um dia você será mãe e entenderá sobre o amor. Como eu falei a você antes, na época não achamos necessário. Na verdade, até esquecemos, porque ficamos muito felizes por você estar conosco – desligou a água que já estava fervendo. — Humm – replicou Aurora. — Eu te amo tanto, minha filha. Não contei ao seu pai do dinheiro que você pegou – saiu da cozinha e dirigiu-se ao quarto de Aurora. — Eu não peguei nada. — Não se faça de vítima, Aurora. Vem, eu sei onde você guarda. Você quer mentir para mim, logo para mim, que sou sua mãe, querendo você ou não. Sabe, Deus vigia nossos passos e tudo o que fazemos nessa vida, e um dia tudo retorna – alterou o tom de voz para mais grave impondo respeito. — Então eu devo favores a você? – gritou Aurora como explosão de seus sentimentos por ouvir aquilo. 118
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— Na sua cabeça doente, sim – desafiou Rose parando na porta do quarto de Aurora. — Está vendo? Eu te dei amor, carinho, atenção e tudo mais, e você ainda não entende. Aqui, na nossa casa, nunca te faltou nada e você ainda insiste com essa ideia de pobre vítima sem pais? – no momento de fúria Rose disse algumas verdades que fizeram a dor de Aurora aflorar. — Não perdoo vocês por não terem pegado as informações de meus pais. Não perdoo por esse sentimento de abandono estar instalado em mim. Você já era velha quando resolveu me adotar e meu pai com aquelas ideias e sentimentos de guerra – ela estava parada na porta sentindo seus o sangue ferver com aquela discussão. — Quinhentos dólares – abriu uma gaveta e encontrou o dinheiro. — Achei o que seu pai estava procurando. — Esses 500 dólares são meus! – Aurora tentou justificar o dinheiro. — Como? Se você não trabalha! — Eu ganhei – passou a mão pelo rosto tentando disfarçar o nervosismo. — De quem? Vendendo as coisas que tem sumido aqui de casa? — Rose, Aurora! O que está acontecendo aqui? – Alexsander chegou em casa no meio da discussão. — Alexsander. Está aqui os 500 dólares que você está procurando semana passada – mostrou-lhe o bolo de dinheiro. — Você roubou o nosso dinheiro, que estávamos separando para a casa, Aurora? — Não roubei nada – descaradamente Aurora insistiu na mentira. 119
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— Como vai negar? — Aqui, Alexsander. Tome, é seu – deu em mãos o dinheiro a seu marido. — Estão faltando mais 200 dólares que deixei em cima da mesa ontem. Você pegou? – Alexsander perguntou calmo e respeitou o tempo de Aurora para responder. — Não, pai. — Me dê sua bolsa – pegou-a em cima da cama. — Não. Oras, é minha bolsa – Aurora jogou seu corpo em cima da bolsa para tentar proteger. — Nada aqui é seu. Aqui, Rose – mostrou o dinheiro. — Nossa filha tem nos roubado – exclamou. — Deixei esses 200 dólares em cima da mesa como isca para ver se pegaria. — Oh, meu Deus, Aurora – Rose colocou sua mão em seu rosto e saiu do quarto em prantos. Naquela noite, Rose sentiu o mesmo vento gelado no rosto que a mãe de Alexsander havia sentido na noite do começo da guerra. Rose sentiu o vento gelado passar por suas costas como se tivesse analisando algo na família. Sentiu um anjo do mal passar. Percebeu que algo havia mudado na casa. A sintonia não era mais a mesma. Os anjos do mal haviam chego. Aurora saiu de casa aquela noite. Talvez por vergonha ou talvez por ira, que a cada dia crescia mais em seu coração. Aquele coração revoltado e solitário fez com que Aurora perde-se no remorso anos mais tarde. As palavras de seu pai fizeram seu rosto vermelho e seus olhos que antes possuíam brilho cativante quando pequena enchessem-se de raiva e ódio. Alexsander foi umas das primeiras pessoas que conseguiu cheirar a maldade antes mesmo de ver Au120
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rora agir. Era o único a ver o mundo maligno em que Aurora vivia, desmascarando-a com palavras de realismo. Essas atitudes fizeram com que Aurora criasse ódio em seu coração por não ser capaz de dominar certas pessoas. Aurora só tinha poder com quem não cheirasse sua essência. O ponto fraco de Aurora era a bravura. Pessoas que a enfrentassem conseguiam enxergar os monstros ocultos da essência dela, despertando uma certa raiva, e Alexsander era uma dessas pessoas. Alexsander enfrentaria uma nova guerra, porém, com auxílio de Rose. Havia começado uma guerra entre pais e filha.
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Capítulo 11 me diz o que pensa, te direi com quem anda — Aurora, é o Nick – disse aproximando-se de Aurora no pátio da Universidade. — Quem? – perguntou ela com desprezo. — Nick. Amigo do Marcos. — Ah, sim. Eu sei. Ele me falou de você. O que quer? — Preste atenção em seus passos, gata! Estão dizendo que a diretora, ou sei lá quem cuida desse setor da universidade, está trazendo alguns policiais para revistar as pessoas que são mais populares e que estão nos holofotes – acendeu um cigarro. — Como assim, Nick? — Não sei, alguém denunciou as pessoas mais populares da universidade por uso de drogas no campus. — Denúncia de quê? – perguntou Aurora sem muito dar ouvidos. — Venda de drogas, garota! Acorda, Aurora – deu gritinhos no ouvido de Aurora. — Oh, meu Deus! O que faço agora? Como eu vou me livrar disso tudo? – perguntou a si mesma confusa. — Vem, eu ajudo você, gata – puxou Aurora pelo braço. 122
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— Como? – perguntou confusa. — Confia em mim – puxou Aurora pela mão. — O que estamos fazendo, Nick? Por que está me ajudando? O que quer em troca? — Eu estou te ajudando porque eu te acho a maior gata da universidade. Vamos, coloque aqui esses pacotes. Coloque nesta gaveta – mostrando a direção. — De quem é essa gaveta? – perguntou desconfiada. — Da diretora – respondeu Nick com sorriso largo. — Uau! Você é um gênio. Gostei de você – piscou o olho para ele. Foi amor instantâneo. Aurora tinha o dom de escolher péssimas amizades. Apaixonou-se por Nick perdidamente. Começou assim um relacionamento perigoso. Alguém havia salvo a pele da diretora, mas quem? Alguém havia visto Aurora e Nick colocando os pacotes de drogas na gaveta da diretora e certamente seria a mesma pessoa que os havia tirado de lá. Certamente foi a mesma pessoa que entregou a fita de vídeo da gravação com provas contra Aurora e Nick, sabotando a gaveta da diretora dias depois. Aurora passou muito tempo com Nick. — Nada aqui é seu. Quem ele pensa que é?! Por que me adotou se me odeia? Você acredita que ele me disse isso?! Essa família não é minha, eu não pertenço a eles. Que ódio – gritou ao vento seus pensamentos. — Eu tenho uma coisa que você talvez goste – exclamou Nick com cara de felicidade. — O quê? — Isso – mostrou um revólver carregado. — Mas para que isso? – acendeu um cigarro. 123
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— Revólver. E isso resolve muitos problemas – informou Nick admirando a arma. — Boa ideia. — Você não disse que os odeia? Então, quem odeia mata. — Não. Não posso fazer isso – tragou o cigarro. — E por que não? Eles não te amam, como você mesmo disse – Nick tentava convencer Aurora com beijos. — É, talvez seja o caso de matar meu pai, Nick – devolveu os beijos calorosos. — Isso, meu amor. Bravo! Te amo. — Eu não sou fraca. Eu posso tudo – replicou Aurora com desprezo. — Então pegue logo. No caso que você precise – colocou a arma em sua bolsa. — Você tem razão. Vai andar comigo caso eu precise – fechou a bolsa e voltou aos beijos calorosos de Nick. — Isso, minha garota! – deu batidas em seu bumbum. — Eles não aprovam nosso namoro. Eles não fizeram nem questão de pegar as informações sobre seus pais biológicos. Você deveria dar um susto neles. — Eles não aprovam nosso namoro porque fumamos maconha. Eu conheço bem eles. Eles não gostam de drogas. — Maconha não é droga. É divertimento – deu risada abraçando Aurora. — Ok. Que seja. Eles não gostam de nada relacionado a isso. — Na verdade, eles não te amam – retrucou, envenenando Aurora outra vez. Aurora preocupou-se tanto em destilar o sentimento 124
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de rancor que não percebeu que seria vítima de suas próprias maldades e que Nick seria o protagonista do começo de sua queda de realidade. Nick estudou a fraqueza de Aurora, um rapaz miserável que fez Aurora apaixonar-se perdidamente. Nick estudou também sua vida e sua conta bancária. Aurora vinha de uma família trabalhadora e também com muito dinheiro. Aurora a cada dia que passava afundava-se no rancor e na mentira. Assim como raposa, desenvolveu um faro bastante apurado. Traçou planos malignos para vingança contra seus pais, com todo o tipo de maldade. Mentiras e maldades que custaram caro anos mais tarde. — Alexsander, meu marido. Sinto falta da nossa filha – desabafou Rose sentada no sofá. — Eu sei. Também sinto. Mas tenho que dizer algo. – sentou-se ao seu lado e criou coragem de contar aquele sentimento por Aurora. — Eu também tenho que dizer algo a você. — Primeiro eu – puxou fundo o ar. — Desde a primeira vez que vi Aurora, senti algo estranho. Algo ruim. Entende? — Entendo. Tive essa sensação quando a vimos bebendo seu uísque. Algo negro, não é? — Isso. Não sei explicar bem. Algo maldoso em sua essência. Na época, não quis dizer nada a você, porque você estava tão feliz que não queria ser motivo de preocupação – Alexsander se surpreendeu com a sintonia que tinha com sua esposa. — Tudo bem, meu amor. 125
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— Mas eu temo por algo, Rose. Aquela maldade nos olhos de Aurora foi a mesma que eu presenciei na guerra. Olhos vermelhos e com o misto de vaidade e soberania. — Não vamos pensar no pior. Acho que ela é assim porque não sabemos nada sobre os pais dela ou porque ela pensa que não a amamos. — Não justifica. Demos tudo do bom e do melhor. Eu errei talvez em beber todas as noites dando mau exemplo a ela. Mas nunca a agredi e nunca fiz mal nenhum a ninguém. Pagamos as melhores escolas. Beber é só um alívio da dor – Alexsander levantou-se e serviu um copo de uísque. — Eu sei. Quem sabe não vamos viajar? Passar alguns dias em Los Angeles? Temos amigos queridos que sempre nos convidam para nos hospedar em sua casa – disse levantando-se e abraçando Alexsander como ato de amor. — Quem sabe não faremos uma viagem nós três? – sugeriu Alexsander. — Seria perfeito. Podemos comprar e fazer surpresa para Aurora. Ela sempre quis conhecer Los Angeles. — Acho que deveríamos conversar com ela mais uma vez. Tentar mais uma vez. — Isso. Vamos dar mais uma chance a essa família – Rose concordou com rosto corado de felicidade. Horas mais tarde, Aurora chegou em casa com cara limpa e bem arrumada. Algo estranho tinha mudado ela por dentro. Aurora, como serpente, mudou de pele. Mudou de disfarce. Alexsander nunca deixou enganar-se com esse tipo de pessoa. Ela chegou em casa com segundas, talvez até terceiras intenções. Ela agiu cinicamente. Foi carinhosa. — Olá, mãe! – Aurora abraçou sua mãe como nun126
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ca havia abraçado. — Olá, minha filha – Rose não pensou duas vezes em responder o abraço “sincero” de sua filha. — Tudo bem? — Tudo bem, e você? – respondeu desfazendo o abraço e olhando nos olhos de Aurora. — Como vai tudo? Onde passou a noite? — Tudo bem, mãe. Passei com o Nick. Mas não conta para o pai, por favor. — Aquele rapaz de novo? Já falei que ele não é boa coisa. Mas tudo bem, não falarei nada. — Olha, mãe, me desculpa pelo dinheiro. Prometo que não vai mais acontecer – disse fingindo choro para tentar ganhar o perdão de seus pais. — Mesmo? Por que você mudou tanto nessas últimas 24 horas? Alexsander observava a conversa de longe. — Porque percebi que estou errada – respondeu seriamente. – Tome aqui este dinheiro que eu peguei. — Tudo bem, minha filha. — Tudo bem. Como você devolveu o dinheiro, aceitamos suas desculpas — informou Alexsander a dando um lenço para enxugar as lágrimas. — Tenho uma ótima novidade para nós. Vamos viajar! — informou Rose. — Para onde? – perguntou Aurora com brilhos nos olhos. — Los Angeles – informou Alexsander. — Los Angeles!? Sempre quis conhecer Los Angeles. Quando iremos? – Aurora traçou seu plano rápido em sua mente. 127
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— Daqui a duas semanas. — Ótimo, mãe. — Vem aqui, minha filha. Venha me dar um abraço – Alexsander fez esforço para pedir aquele abraço, pois percebeu algo diferente em sua bolsa. — Por que sua bolsa está pesada? – perguntou inocentemente Alexsander. — Ah, nada não. Livros da universidade – respondeu Aurora um pouco tensa. — Livros? – interrompeu Rose. – Aurora, minha filha. Deixa-me ver. — Por quê? — Porque queremos confiar em você. Você pediu desculpas e está disposta a mudar como parece. Deixe-me ver sua bolsa e assim começamos tudo de novo nossa relação – Alexsander pegou sua bolsa sem delicadeza. — Uma arma, Rose! – mostrou a Rose o revólver carregado. — Oh, Meu Deus! Uma arma. Por que Aurora? No que você está envolvida? — Nada – respondeu Aurora normalmente. — Então por que carrega consigo uma arma? – perguntou Rose. — Para matar o meu pai – desafiou sua família. — Matar-me? Sempre soube que sua essência não era boa, mas nunca imaginei que poderia conseguir uma arma para isso. — Eu não quero mais viver aqui – disse arrumando suas coisas. — Bem, a porta está ali – Alexsander mostrou a saída. 128
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— Vou morar com Nick – informou Aurora fechando sua mala. — O Nick? Aquele sujeito deplorável que está usando você!? — Ele me ama. Alexsander e Rose se olharam no mesmo momento e entenderam que seria inútil tentar conversar com Aurora. Talvez tentar explicar que ela estava trilhando caminhos muito difíceis e que a dor certamente a viria buscar. Calaram-se e naquela tarde mesmo Aurora abandonou toda a vida que possuía. Escolheu Nick como seu namorado e seu parceiro de vida. Nick despertou o que havia de pior em Aurora. As drogas amenizavam sua dor e aumentaram a perda de algo que talvez pudesse salvá-la no mundo: a realidade. As pessoas não a tratavam bem, pois ela era invisível aos olhos bons. Quem possuía a mesma de sintonia, reconhecia sua personalidade a quilômetros de distância. Aurora passou dias difíceis depois de sua última decisão de se vingar de seus pais. Não importava. Iria colocar seu plano em prática. Deus não era presente na vida de Aurora, aliás, Ele nunca pôde ajudar Aurora a tornar uma pessoa melhor, porque ela não era receptiva ao bem, ficando assim a mercê dos anjos do mal que logo dominaram sua vida. — Vem, meu amor. Essa é a porta principal. Fiz uma cópia da chave – falou abrindo a porta da casa de Alexsander e Rose. — Ótimo, meu amor. Você é a melhor. Meus amigos já estão vindo – Nick puxou do bolso um maço de cigarros. — Temos que ser rápidos, ok?! – Aurora ouviu as 129
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palavras de Nick enquanto fixava seu olhar na foto que havia na primeira estante de casa. Ela quando bebê. — Claro. Não que quero que suspeitem de mim – completou Aurora. — Onde eles guardam o dinheiro? — Qual dinheiro? – perguntou perplexa Aurora. — Os 30 mil dólares que você disse que eles guardam em casa. — Vamos descobrir –respondeu e logo começou a revirar tudo em sua volta. — Quero que peguem tudo, entenderam? – Nick deu ordens a mais duas pessoas que ele havia contratado sem falar com Aurora. — Tudo o que, Nick? Combinamos somente o dinheiro! — Ah, meu amor, as coisas mudaram. Quero tudo de valor dessa casa – disse sacando uma arma e mostrando-a à Aurora. — Tudo bem. Você tem razão. Podemos vender tudo mais tarde – voltou a revirar os móveis com a esperança de encontrar o dinheiro. — E vamos voltar para buscar mais dinheiro aqui. Eu sei que você sabe mais do que está nos contando, Aurora. Quando eles voltam de viagem de Los Angeles? – perguntou Nick abrindo gavetas e as jogando no chão. — Não sei. Acho que daqui a dois dias – suspirou Aurora quando viu seu quarto intacto. — Não teremos tempo de voltar. — Voltar, Nick? Já teremos 30 mil dólares em nossas mãos. Não precisamos de mais. 130
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— Sim. Mas as drogas estão ficando cada dia mais caras, gata. — Tudo bem – respondeu com sorriso malicioso. E assim Aurora pôs em prática seu plano. Em um verão de 1994. Assaltou a casa e roubou aqueles que a amaram desde pequena. Todo o dinheiro que foi juntado para eventuais circunstâncias, Aurora havia roubado. Mas, na realidade, Aurora havia roubado bem mais do que dólares da vida de Alexsander e Rose. Ela havia roubado o brilho do sorriso de Alexsander para sempre. Ela havia roubado o coração de Rose nesse assalto. Aquele coração que ainda possuía algum fio de esperança em Aurora. A esperança de ter uma filha que os amasse tanto quanto era amada. Aquele assalto fez o coração de Rose derreter até o chão e sangrar amor. Aurora havia perdido a única coisa que possuía de verdadeira e concreta em sua vida. O amor de mãe. O amor de família. Aquele amor inabalável agora já possuía rasgos de ferida. O assalto foi um sucesso. Aurora havia achado o dinheiro que seus pais haviam economizado. Os outros comparsas destruíram a casa de Alexsander e Rose. Quebraram móveis e fizeram uma bagunça na casa e na vida do casal. Eles haviam defecado em todos os banheiros não importando com a higiene. Assim que souberam, avisados pela polícia, Alexsander e Rose voltaram de Los Angeles e encontraram a casa, que antes possuía amor, destruída diante de seus olhos. As coisas mudaram naquele exato momento. A polícia havia achado a carteira de identidade de Aurora caída na porta de entrada e deduziu que alguém que possuía a chave da casa poderia ter feito esse assalto. A por131
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ta havia sido aberta com facilidade. Não havia vestígios de arrombamento. Logo os policiais confirmaram as suspeitas com o chaveiro que trabalhava a alguns metros da casa. O chaveiro reconheceu e confirmou que havia feito uma cópia extra da chave para a moça da foto de identidade. Aurora nunca fora amiga da esperteza, sempre no pedestal da soberania, nunca pensou nos detalhes. Nos detalhes é onde mora o diabo. Na manhã seguinte, a polícia foi em busca de Aurora na casa de Nick. Aurora não teve como negar, pois suas digitais estavam por toda a parte e havia testemunha. Quando interrogada pelos policiais na delegacia, o porquê de ter feito aquilo contra seus pais, Aurora, na tentativa de não levar a culpa de sua essência maldosa, tentou acusar Alexsander. — Porque fui estuprada pelo meu pai e quis me vingar – disse ela os policiais. Como profissionais, eles não levaram em conta a denúncia falsa de Aurora, pois perceberam que era uma tentativa de justificar o injustificável.
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Capítulo 12 não mexe-se no estragado — Alô, mãe? – Aurora estava com voz chorosa ao telefone. — Quem está falando? – perguntou Rose surpresa. — Aurora, sua filha. — O que você quer? – perguntou Alexsander na extensão. — Quero pedir perdão — puxou o ar. – O pai está aí? — Está, sim. — Então depois eu ligo para conversar melhor. — Não ligue mais, Aurora. Não podemos ajudar você. Porque eu conheço você muito bem, certamente quer algo em troca do perdão – Rose manteve a voz firme, embora seu coração estivesse apertado. Não poderia ser fraca em frente de Aurora. — Eu não tenho onde morar – informou. — Você tinha uma linda casa – Alexsander interrompeu a conversa na tentativa de afastar as chances de convívio novamente. — Eu sei. Me perdoem. — Aurora. Não ligue para nós. Não podemos confiar em você, aliás, eu não estuprei você? Por que está ligando? – Alexsander sentiu uma faca em seu peito ao lembrar-se da acusação. 133
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— Alexsander... por favor. — Olha, Aurora, não ligue. Fizemos nossa parte como pais. Você não quis saber de nada, não deu valor – essas foram as palavras finais de Rose. — Eu não tenho onde dormir. E tenho fome. E não tomo banho há dias. — Bem, banho nunca foi problema para você – replicou Alexsander. — Mas eu tenho fome. Muita fome. E tenho dormido no banco das praças e rodoviárias – Aurora tentava desesperadamente comover seus pais. — Pede para o Nick comprar algo. Você roubou todo nosso dinheiro. — Ele fugiu com todo o dinheiro. — Desculpa, Aurora, isso não é mais problema nosso – Alexsander desligou o telefone. Alexsander e Rose uniram-se pela dor novamente. A decepção havia roubado muitas coisas boas de seus corações. Aurora deixou um rastro de destruição incomparável na vida do casal. Alexsander, na mesma semana em que recebeu a ligação de sua filha, havia perdido sua mãe. Aquela que sobreviveu à guerra com bravura e com coragem. Aquela que era o laço forte que Alexsander possuía na Terra e a que o fez sobreviver com apenas uma frase: “Você terá que ser forte”. Essa frase soava como uma canção em seus ouvidos. Alexsander nunca mais esqueceu e a levou-a consigo durante toda a vida. Porém, a guerra contra sua própria filha o abalou por inteiro, e essa frase não foi o suficiente para manter seu coração livre de mágoa e preenchido pela dor. Aurora havia desperto a essên134
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cia dolorida de Alexsander, que havia perdido a guerra de pai. Rose se fechou em sua dor. Em sua decepção. Os meses seguintes foram difíceis para Alexsander e Rose. Eles não poderiam ajudar Aurora. Eles temiam por suas vidas ao trazê-la de volta. “Se ela foi capaz de ter uma arma para me matar, Rose, e assaltou nossa casa, imagina o que ela poderia fazer com nós dois já idosos aqui dentro de casa?!”. Pensamentos assim impediam aproximação do casal e Aurora. Eles estavam certos. Não seria viável confiar novamente em Aurora. Ela poderia fazer algo muito pior, mas, como pais, não poderiam deixá-la vagando nas ruas, passando fome e talvez até consumindo drogas. A consciência de Alexsander e Rose começara a pesar. “O que fazer quando não se pode confiar em uma pessoa que você criou?”. Rose questionava a si mesmo. “Mas como mãe eu não posso deixá-la na rua”, desabafava com Alexsander. — Minha irmã Isabel! Como vai tudo? – Rose estava com voz aflita. — Oi, Rose! Que saudade sua! Está tudo bem aqui. E você, como está? – Isabel, percebendo sua voz, logo quis consolá-la. — Estamos sobrevivendo – respondeu Rose muito decepcionada com a vida. — Eu entendo. Sinto muito por tudo o que aconteceu. — Eu também sinto muito. Eu só queria ter tido uma família feliz. — E como vai Alexsander?! – Isabel tentou saber mais informações sobre sua irmã com quem há tempo não conversava. 135
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— Bebe todos os dias. Talvez para aliviar as decepções da vida. — Soube que mãe dele morreu. Ana era uma mulher forte. Mande minhas condolências para ele – suspirou com compaixão. — Claro. Minha irmã, tenho que pedir uma opinião a você – puxou o ar e tomou coragem para perguntar. — Claro. O que precisa saber? — Aurora tem ligado constantemente. — Para quê? – perguntou assustada. — Pedindo perdão e pedindo para voltar. — Ah, Rose! Você já conhece esse teatro. Não caia na armadilha dela. Ela é como animal que fica observando a presa – Isabel tentava em um ato desesperado abrir os olhos de Rose. — Eu sei. Mas como ser humano e mãe, não posso deixá-la na rua. Tenho coração de mãe. — Eu entendo. Mas ser mãe não significa aceitar tudo o que vem dos filhos. — Eu sei – concordou com Isabel. — Não, Rose. Não sabe. Porque se soubesse, não iria nem cogitar a ideia de ter Aurora perto. Ela só causou dor na vida de vocês, desde pequena você sofre com essas angústias. Ela mentiu, enganou e roubou tudo o que havia de bom em seu coração. — Alexsander cogitou a ideia de ela voltar a morar na casa de baixo. — Bem, se você quer minha opinião, eu não a deixaria entrar em nossas vidas. Ela está mentindo. Ela causou muita dor. Aqueles que não aprendem com o passado ficam presos nele. E você já aprendeu, certo? 136
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— Mas ela tem passado fome. Queria poder enfrentar esse problema “Aurora” em minha vida. — Ser capaz de enfrentar problema não é o mesmo que saber resolvê-lo, minha irmã. Deixa-a passar de sua vida. Deixa-a sair de sua vida que todo problema vai embora. Não tente consertar pessoas que não têm soluções. — Eu a amo. Ela é minha filha. Ela nos disse que não tem onde dormir – Rose tentava convencer a irmã que Aurora estava mal. — E o que mais? Deixe-me adivinhar: que não toma banho há dias e que está sozinha, talvez porque todos já viram que tipo de pessoa ela é. Você não merece esse terror psicológico, minha irmã. Já se passou um ano desde o assalto e você ainda não se recuperou. — Tudo bem. Pensarei no que você disse – despediu-se e desligou o telefone. — Oi, minha irmã! Como vai? – Isabel sorria feliz por ver Rose. — Resolvi passar aqui na sua casa para fazer uma visita. — Minha irmã! Que saudade. Claro, entre – abriu a porta para dar passagem a ela. — Como vai tudo? — Tudo bem. — Mesmo? Seu telefone quebrou, é? Porque você não atende minhas ligações... – questionou tirando o casaco e o pondo no sofá. — Ah, você sabe o porquê, Isabel. Quer tomar um café? Vou fazer um para mim – convidou-a para ir à cozinha. — Aceito. Ah, trouxe um bolo que você gosta. — Obrigada. Sempre muito querida. 137
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— E Alexsander, como está? – colocou o bolo em cima da mesa e puxou uma cadeira. — Está bem. Ele está no quarto fazendo algumas cruzadas no jornal. — Chame-o. Vamos tomar um café todos juntos – disse Isabel. — Acho que ele está bem triste com tudo o que tem acontecido. — Imagino. Bem, mas eu não vim trazer coisas ruins! — cortou o bolo e colocou no prato. — Vim passar uma tarde boa com vocês. Depois que meu marido faleceu, me sinto muito só. — Eu entendo. E como vai o meu sobrinho? – perguntou Rose preparando o café. — Está bem. Está trabalhando agora. — Alexsander! Venha! – chamou Rose com um grito e atendendo o telefone que havia começado a tocar. – Alô? — Senhora Rose? – perguntou no outro lado da linha. — Sim, é ela. Quem está falando? — Aqui é do hospital Divino Amor de Jesus. — Hospital? No que posso ajudar? — A senhora é a mãe da Aurora? — Sim. Sou eu. O que aconteceu? – perguntou com voz apreensiva. — A senhora poderia vir até ao hospital? — Sim. Por favor, me passe o endereço? – pegou caneta e papel. — Sim... Ok. Entendi. — O que está acontecendo, Isabel?? – Alexsander perguntou confuso com a cena. 138
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— Parece que é do hospital onde meu filho trabalha... Algo com Aurora. Não sei, meu cunhado, eu não consegui ouvir muito bem. Ando meio surda. — Alexsander. Temos que ir ao hospital – desligando o telefone, Rose o informou. — O que aconteceu? — Vamos. No caminho te explico. — Então é isso, senhores. A aurora cortou as veias e perdeu muito sangue. Torcemos para que ela melhore – informou o médico. — Ela estava sob efeito de drogas? – perguntou Alexsander. — Não. Ela ingeriu alguns medicamentos com bebida alcoólica. O que nesse caso não contribui com a recuperação dela. — Podemos ver nossa filha? – perguntou Rose apreensiva. — Claro, mas dentro de uma hora o horário de visitas encerra, ok? — Tudo bem. — Quarto 201. Primeira porta à esquerda – o médico mostrou o caminho. — Obrigada. — Só quero ver o teatro dela. Vou esperar você na porta – informou Alexsander. — Ah, Alexsander, deixa de ser duro – pegando em sua mão. — Não sou duro, Rose, sou realista. Para mim, isso não passa de uma maneira de sentirmos pena dela e perdoamos o que ela nos fez. 139
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— Será? – perguntou curiosa. — Não. Não acredito nisso. — Que dificuldade em enxergar o óbvio. — Me deixa falar com ela. Me espera do lado de fora, se você não quiser me acompanhar, meu amor. — Dez minutos, ok? – replicou Alexsander. — Vinte, e fim de conversa. — Tudo bem – revirou os olhos. — Mãe! Sabia que viria – Aurora não conseguiu disfarçar a empolgação. — Claro que eu viria. Você deu nosso telefone. — Como você está, mãe? – perguntou Aurora com olhar tristonho. — Não sou que estou numa cama de hospital. Como você está? – comentou Rose. — Levando a vida. — Por que você fez isso? — Não sei. Na verdade, eu não tenho motivos para viver. Quero morrer – tentou puxar o fio do soro na veia. — Sei... — passou a mão no rosto. — O que te falta, hein? — Vocês – respondeu piedosamente. — Bem, isso é difícil, Aurora. — Eu sei. — Por que você fez todas aquelas maldades? — Não sei – respondeu balançando os ombros. — Agora você está colhendo o que você plantou. — Me deixa voltar para sua casa? Por favor. — Não sei. Terei que consultar seu pai. Sabe que não faço nada sem ele. 140
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— Ele não vai me aceitar – virou o rosto. — E ele está certo. Muitas coisas acontecem perto de você, ao seu redor. Mas por alguma razão você não consegue percebê-las. Então você só consegue lidar com as coisas que você pode aguentar. Suas maldades. Por que você tinha uma arma para matá-lo? — Não sei. Existe algo nele que me incomoda. Não sei. Sensação estranha. — Olha, eu posso tentar o perdão do seu pai. Veremos no que dá. Mas você terá que ser mais humana com todos nós... — Prometo – interrompeu Aurora sem ao menos saber qual promessa era. No ano de 2000, Aurora voltou à vida de Alexsander e Rose. Ela havia conseguido o perdão. O casal morava em uma casa de dois pisos. O primeiro piso não havia nenhuma ligação com o segundo, sendo assim, era uma casa independente. O casal estava a salvo da companhia de Aurora. Alexsander já estava com idade avançada, 73 anos, e Rose, com 80. Não possuíam mais psicológico para suportar as maldades de Aurora. Não havia mais força interna para sustentar a dor que os consumia toda que vez que ela se aproximava. Roubava sorrisos e alegria das pessoas que eram boas, as que não enxergavam sua essência maldosa. Aurora era como uma ladra de sonhos. Trabalhava em segredo, analisava onde poderia roubar tanto quanto coisas materiais como sentimentos. Dessa forma, Alexsander e Rose aprenderam a deixar a guarda levantada 24 horas por dia. Era necessário, ela já havia mentido, roubado e acusado seu pai de estu141
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pro. O problema surgiu quando a guarda foi levantada como um muro, talvez comparável com o muro de Berlim. Nada passava por eles, o muro era de difícil acesso para todos, até mesmo para a família. Deus, o maior ídolo de Rose, também teve dificuldades em chegar até ela. O casal vestiu como segunda pele as cicatrizes que Aurora havia deixado. Como raposa, Aurora percebeu esse muro e decidiu ficar observando a primeira chance. Essa a chance chegou num domingo de inverno. Aurora, com a desculpa de que havia perdido a chave de casa e não poderia permanecer na chuva até o chaveiro chegar, Rose a deixou entrar em sua casa. Infelizmente, ela foi roubada, entre casacos de pele e algum dinheiro que estava em cima da mesa. Aurora ainda plantou novas ideias na cabeça de Rose, que deveria separar-se de Alexsander, coisas que nunca Rose pensou em fazer. Alexsander era o seu grande amor, viver sem Alexsander era como não poder respirar. Seu coração sangrou amor mais uma vez pelas palavras agressivas de Aurora. No pensamento de Aurora, seria mais fácil controlar Rose sem a presença de Alexsander. Novamente a essência de Rose foi preenchida de dor e a levando a perder sua personalidade. Rose adquiriu Alzheimer. Talvez tenha sido o seu psicológico desabando por aguentar tanta decepção em sua vida. Ou talvez fosse Deus quebrando o muro e abreviando o seu sofrimento. Tempo difíceis aguardavam Alexsander. Os primeiros sinais de Alzheimer aparecem. Esquecimentos bobos que foram ignorados. Oportunidade perfeita. Aurora esperava Alexsander sair para fazer compras no mercado e agarrava chance de pedir dinheiro a Rose. Rose 142
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já não possuía a consciência limpa do que estava fazendo. Aurora não importou-se. O dinheiro era mais importante. Coisas simples do dia a dia já não eram mais possíveis para Rose, tomar banho, cozinhar, limpar a casa, tudo ficou muito difícil. Alexsander sentiu no peito o aperto da perda. Ele teve que ser mais do que forte dessa vez, ele teve que pedir ajuda a Deus para poder continuar. Não podia contar com Aurora. Aliás, Aurora naqueles tempos havia conhecido Paul, homem casado e pai de um menino. Aurora não pensou duas vezes ao se jogar de cabeça nessa relação. Fugiu da casa que seus pais haviam consentido a ela para viver, apesar de toda maldade feita no passado. Fugiu com Paul. Fugiu com a ilusão de ser feliz, não percebendo que sua mãe estava falecendo dia após dia e que seu pai precisaria dela. Não teve bom senso. Não teve compaixão. Não foi humana. Alexsander percebeu que ela os havia abandonado. Não ficou surpreso, porém ficou magoado mais uma vez. Guardou aquela mágoa em seu coração para poder destilar mais tarde. Alexsander tinha que cuidar de Rose primeiro. Rose era tudo o que ele possuía na vida. Era a sua única joia, era seu ar, seu amor e acima de tudo era sua alma gêmea. Não poderia perdê-la. Tentou de todas as maneiras salvar e dar um pouco de conforto e paz à alma de Rose que já estava atormentada. Alexsander não imaginou viver sem Rose, sentiu uma faca entrando em seu coração e estraçalhando todos os últimos pedaços de esperança que possuía na cura de Rose. Rose havia sido internada numa casa geriátrica. A casa era linda, bem organizada e possuía enfermeiros 24 horas por dia. Era um lugar seguro. Alexsander não teve forças para cuidar de Rose sozinho. Precisava de assis143
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tência médica. A casa geriátrica era cômoda e era perto da casa de Alexsander. Havia sala de estar grande para comportar uma festa, que eventualmente ocorria ali. O primeiro quarto de Rose tinha uma vista linda para ao jardim do primeiro piso. Ela poderia ver as flores e os beija-flores sempre que quisesse. Rose não entendeu aquele lugar, não entendeu por que Alexsander a havia deixado com pessoas estranhas. O segundo quarto para o qual foi transferida era para casos mais graves, dali ela saiu para conhecer Deus. Um misto de medo de perder sua amada e ter que viver sozinho invadiu seu coração. Depois de cinquenta anos de casados, Alexsander voltou para casa sozinho. Sozinho em sua dor. Não havia quem o confortasse. Havia visto muitas mortes ao longo de sua vida, mas ver Rose morrer de algo que não pudera lutar contra era incomparável a qualquer dor humana. Todos os dias Alexsander visitava Rose na casa geriátrica. Levava flores como na primeira vez que saíram juntos, no cinema. Levava comida, cuidava dela. Até uma festa de aniversário ele preparou para Rose, com direito a bolo e doces de merengues que tanto Rose gostava e soubera fazer. Mas Rose não podia corresponder à expectativa de Alexsander. Alzheimer é uma doença traiçoeira e nos prega peças, mas Deus achou essa maneira de livrar Rose do mal pelo qual passava e das angústias intermináveis. — Rose, meu amor, trouxe flores – chegou perto de Rose e se sentou ao seu lado. — Obrigada. Mas quem é você? – perguntou desconfiada. — Eu sou seu amor. O Alexsander. 144
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— Não. Moço, eu já sou casada – deu sorriso largo de orgulho sobre seu casamento. — E você ama seu marido? – perguntou Alexsander feliz por ouvir aquela resposta. — Muito. Ele é o amor da minha vida. Por isso não posso conversar com você. — Tudo bem, Rose. — Sabe, moço, nós estamos juntos quase uma vida inteira – comentou olhando para o horizonte. — É mesmo? Fico muito feliz por ouvir isso. — Sim. Sempre dizíamos que nos amaríamos para sempre – voltou seu olhar para Alexsander desconhecendo-lhe. — Até a lua de bicicleta? — perguntou pegando sua mão. — Sim. Eu o amo daqui até a lua de bicicleta. — Ele é um homem de sorte, não acha? — Sim. Mas quem é você? – puxou de volta sua mão desconfiada. — Eu sou seu amigo. Trouxe flores para você e um sanduíche que tanto gosta. — Mas e meu marido? — Seu marido mandou dizer que a ama você daqui até o sistema solar de bicicleta... – sorriu e lhe deu um beijo na boca. — Alexsander! É você?! Que saudade! – Rose fez expressão de felicidade suprema quando reconheceu Alexsander. — Sim, Rose, meu amor, sou eu. — Desculpe, não reconheci você – tentou lhe dar um abraço, mas seu corpo a impedia de levantar-se da cadeira. — Não se preocupe. Gostou das rosas? 145
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— Claro. Lembro como se fosse ontem as rosas que me levou quando fomos ao cinema. — Como tem passado? — Bem. Aqui eles me tratam bem. Me dão banho, me colocam para dormir e há médicos sempre me cuidando. Mas não entendo por que você me deixou aqui – fechou seu sorriso. — Por isso mesmo. Para cuidarem de você. Eu sou homem e não posso fazer tudo sozinho – Alexsander sentiu seu peito doer ao ouvir as palavras de Rose. — Tudo bem, meu amor. E Aurora? — Está bem. Está em casa – tossiu tentando disfarçar a voz de tristeza ao ouvir o nome de Aurora. — Deixei a roupa dela em cima da cama. Pegue e a faça vestir. — Tudo bem, amor. — Alexsander, sempre falei que esse dia iria chegar – pegou em sua mão. — Qual dia? — Eu sou mais velha do que você. —Não vamos falar disso. — Vamos, sim. Quero que cuide bem de você se eu não conseguir sair daqui. — Não diga isso, meu amor. Tudo ficará bem – Alexsander abraçou sua esposa desesperadamente ao lembrar do que ela disse no dia do pedido de casamento. — Perdoe Aurora. Perdoe, porque não somos nada sem o perdão. — Tudo bem. Vamos morrer velhinhos em uma cama, lembra que combinamos isso? – disse com olhos 146
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brilhantes de lágrimas. Alexsander sentiu-se triste. — Eu acho que isso não vai acontecer – respondeu Rose seriamente. Diálogos assim eram rotinas entre o casal. Alexsander estava arrasado por ver Rose em um estado tão triste, logo ela, que era cheia de vida e segura de si. Todo sofrimento é suportável quando temos alguém para dividir, e Alexsander não tinha ninguém, exceto Isabel. Porém, Isabel estava muito fragilizada com a morte de seu marido. Todos os dias Alexsander ia à clínica. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Não importava quando pagasse por mês, Rose tinha tudo como merecia. Tudo da melhor qualidade. Quando o término do horário de visita chegava, Alexsander deixava clínica com coração angustiado porque ele não sabia se quando chegasse em casa receberia uma ligação o avisando do falecimento. Em certos dias, Rose comia, em outros, não. Em alguns dias, Rose falava bem, e em outros, não. Mesmo dias passando e a situação de Rose piorando, Alexsander ficou até o fim com sua amada. Cada minuto, cada segundo.
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Capítulo 13 a dor do adeus — Oi, Rose, meu amor. Eu voltei. Falei que voltaria para ver você – chegou perto de Rose e puxou uma cadeira. — Quem é você? – perguntou desconfiada. — Eu sou o seu marido. — Mesmo? Não me lembro– Rose fez expressão de confusa. — Daqui a pouco as memórias voltam. — Mas você não é bonito como o meu marido – fixou seu olhar em Alexsander. — Sempre gostei desse seu senso de amor, Rose. Olhe o que eu trouxe para você. Sanduíche que tanto gosta – Alexsander disfarçou sua tristeza com um sorriso. — Não – respondeu ela seriamente. — Senhor Alexsander, eu sou a médica da casa. Podemos conversar um minuto? — Claro – respondeu preocupado. — Meu amor, eu vou conversar por um minuto com a médica. Você me espera aqui. Tudo bem? – Rose não respondeu nada, e logo Alexsander retirou-se da presença dela. — Senhor Alexsander, obrigada por atender meu requisito de conversar – disse dando-lhe batidas em suas costas como consolo. 148
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— Como ela está? – quis saber angustiado. — Bem, teremos que ser fortes – respondeu a médica séria. — O que há? — Ela tem se negado a comer e passa a maior parte do tempo dormindo. Ela precisa muito comer. Mesmo quando o senhor traz a comida, percebo que ela não quer, certo? — Certo. Mas isso começou ontem – tentou achar alguma justificativa. — Entendo. Mas mesmo quando o senhor vai embora, ela se nega a comer. — E o que podemos fazer? Me diga. Não importa quanto terei que pagar. —Acalma-se, senhor Alexsander, Alzheimer é uma doença muito dolorosa para a família. Entendo seu ponto. Mas com o avanço do quadro da senhora Rose, teremos que colocar uma sonda para que ela possa se alimentar e obviamente passar ela para o outro quarto, onde ficam os quadros mais avançados – explicou a médica calmamente. — Tudo bem. Quando podem colocar essa sonda? — Imediatamente – mostrando um papel —, perante sua autorização. — Já está autorizado – assinou a permissão. — Mas, doutora, me diga a verdade. Ela poderá se recuperar? – com olhos esperançosos Alexsander criou coragem para perguntar. — Senhor Alexsander, essa doença não tem cura, pelo menos por enquanto. Mas faremos de tudo para que possa aproveitar ao máximo nossa casa e ficar na companhia da senhora Rose. Ela é um amor de pessoa, por falar 149
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nisso, às vezes ela me conta coisas da vida dela. Sempre sorri para os enfermeiros. Todos aqui gostam dela – sorriu falando agora como amiga e não como médica. — O que ela te falou? – perguntou curioso. — Ela me contou que tem um marido que lutou na Segunda Guerra e que o ama muito. Daqui até a lua, algo assim. — Essa Rose... sempre adorei o senso de humor dela. Cuide bem dela, doutora, enquanto eu não estiver aqui, por favor. — Com certeza. Posso contar um segredo? – aproximou-se de Alexsander. — Claro! — Ela é uma das minhas favoritas – piscou o olho como um sinal de amizade. No outro dia de visita, Alexsander levou um ramo de flores. Colocou no quarto de Rose na tentativa de que ela se lembrasse do significado das rosas. Seu nome. Rose, com o estado avançado da doença, passou os últimos dias, na maior parte, dormindo, o que dificultava a comunicação entre eles. Nos poucos momentos lúcidos, ela fazia carinho no rosto de Alexsander. Seria uma cena bonita se não fosse muito triste de assistir. Como despedida, Rose pegava a mão de Alexsander sem poder dizer nada. Apenas um olhar com olhos pesados de angústia e com sono, e se houvesse alguma linguagem visual que pudesse descrever a conversa entre esse casal, seria uma conversa de começo de despedida. Rose estava com a sonda para poder se alimentar, mas seu organismo não respondia como deveria. Sua mente perdida em algum lugar a impedia de prenun150
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ciar algumas palavras. Seu estado físico a impediu de dar abraços calorosos que gostava de dar em Alexsander. Usava fraldas adultas e não podia mexer-se na cama. Alexsander não quis acreditar na cena triste que seus olhos mais uma vez presenciavam. Alexsander sabia no fundo do meu âmago que talvez fosse melhor Rose descansar nos braços de Deus, seu ídolo. Alexsander segurou as lágrimas da forma que pôde, mas infelizmente um aperto em seu coração o invadiu completamente. — Rose, meu amor – Alexsander estava sentado ao seu lado na cama fazendo carinho naqueles cabelos que antes eram ruivos e com vida. — Foi um prazer tê-la conhecido. Ter vivido cinquenta anos com você não foi o suficiente para dizer o quanto eu a amo. Você foi, é e sempre será o meu grande amor. Eu te amo daqui até o infinito e você não sabe o quanto eu sofrerei quando você partir. Eu prometo que sempre manterei você em meu pensamento e em minhas lembranças. Eu te amo para sempre – deu-lhe um beijo na testa. – Eu volto amanhã. Rose não podia responder a Alexsander. Entretanto, no momento das últimas palavras de seu marido, fez esforço para mover-se da cama e gemeu. Alexsander voltou em frente à sua amada que Rose segurou sua mão com muito esforço e lhe disse as últimas palavras de sua vida. — Eu te amo até o infinito. Vá com Deus, querido – sorriu e fechou seus olhos. Alexsander não sabia que Rose entrou no sono do qual não acordaria mais. Chegando em casa, o telefone tocou, e Alexsander vivenciou o que mais temia. O telefonema de aviso da morte de Rose. 151
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Rose morreu no dia aniversário de Alexsander e aquela notícia fez o coração de Alexsander sangrar por anos. Nunca mais comemorou seu o aniversário. Não havia mais razões. Alexsander havia perdido tudo o que a vida lhe havia dado. O amor de uma mulher. Ele não precisou de palavras para expressar o que estava sentindo. Seus olhos azuis já denunciavam sua dor, e sua solidão pesou em seus ombros. No dia seguinte ao enterro de Rose, Aurora chegou em casa. Em um dia nublado de inverno. Chorosa por mais uma vez ser abandonada por homens. Afinal, o último homem com quem ela tentou a felicidade era casado. Era pai de um filho e possuía mulher. Aurora não havia percebido que ela era passageira na vida desse homem. Sim, ela teve coragem de voltar depois tudo o que havia deixado para trás. Entretanto, não contava com as portas de sua casa trancadas e com aviso em um papel. Aquele papel lhe trouxe a notícia que não imaginaria. Aquelas portas nunca mais abriram-se, e Aurora nunca mais havia colocado os pés perto de Alexsander. Aurora gelou quando pegou o aviso. Sua mãe morreu na tarde de ontem. Encontra-se no cemitério Jardim da Paz no centro da cidade.
O remorso e a dor da perda de quem tanto a amou havia chegado para buscá-la. O remorso arrancou seu coração, esmagou-o com força no chão e a consumiu por longos anos. Aquele que corrói por dentro, que consome os dias tentando imaginar aquilo que poderia ter sido se tivesse agido diferente. O remorso foi o preço que Aurora pagou por suas maldades e ações sem causas. Aurora 152
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sempre foi a vítima, nunca havia parado para pensar e controlar seus impulsos de sua essência maldosa. Agora sim ela era a verdadeira vítima do remorso. O tempo demorou para passar. Ela havia perdido sua mãe. Aquela que a amou incondicionalmente e que não importou-se em fechar-se em muros para poder dar uma vida melhor a Aurora. Naquele instante em que o remorso veio buscá-la para passar férias com ele, Aurora caiu no chão em lágrimas. Não quis acreditar no que havia lido. — Feliz, Aurora? – Alexsander apareceu na sacada da casa, dizendo palavras com sabor de mágoa. — Pai! — exclamou assustada. — Pai? Agora sou seu pai? Você passou a sua vida inteira nos culpando por ser adotada. Passou sua vida inteira fazendo com que nos pagássemos por algo que era bom. Você transformou nossa vida em um inferno. Por que Aurora? Por quê? — Me perdoe! — Não. E nessa casa você nunca mais colocará os pés. Nunca mais. — Como ela morreu? — Da doença que você plantou na cabeça dela. Ela morreu de decepção. Ela morreu porque você a enganou e a feriu toda vez que chegava perto. Por que, Aurora? Por que tanto ódio? Por que tanta mentira? Ela morreu e você nem esteve presente para dizer o último adeus. Eu carreguei o caixão dela. Não venha mais aqui, você não é bem-vinda. Eu e a sua tia, bem como seu primo, não queremos você por perto – pegou um papel escrito que continha um nome e jogou até ela. — Você sempre quis saber sobre seus pais. Eu pesquisei muito. Procure esse nome. 153
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— Como vou viver agora? – pegou o papel e aguardando no bolso. – Eu não tenho para onde ir. — Como você sempre viveu! Na mentira. Na vida de raposa. Não veste a roupa de quem não sabe o que fez. A inocência não combina com você, Aurora – disse desaparecendo da sacada e fechando a janela. — Você também pagará por isso. Aurora retirou-se do local. O remorso e o ódio agora faziam parte da vida de Aurora. A essência dela tornou-se cada dia mais escura, negra, era pesado respirar perto dela. Sua mente confusa e desorientada dava lugar à insanidade. Aurora nunca foi fácil no convívio. Sempre achava alguma desculpa para suas maldades e, pior de tudo, sempre queria convencer a outra parte de que estava errada. Essa insanidade custou caro e ainda a faz crer que era boa pessoa. Infelizmente não existe parte alguma boa em Aurora. Dizem por aí que as pessoas possuem um lado bom, talvez esse lado não se desenvolveu nela. Essa parte boa não nasceu com ela. Agora, o remorso, o ódio e a insanidade mental iriam acompanhá-la até o fim de sua vida. Uma vida miserável que teimou em permanecer. Aurora fechou sua visão para evolução da espécie. Ficou difícil olhar-se no espelho. Sua essência a odiava mesmo. O remorso a corroía por dentro, talvez por todas as vezes que disse palavras profundas, fazendo com que Rose morresse dia após dia por dentro, com um coração ferido e dolorido. O ódio pelas pessoas fazia com que invejasse a felicidade alheia que sempre buscou, e por falar nela, a felicidade nunca quis andar ao lado de Aurora, a felicidade não quis fazer parte de sua essência com tama154
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nha maldade. A felicidade não poderia ser amiga do mal. Talvez por isso Aurora nunca a encontrou. A insanidade mais uma vez levou-a a acreditar na realidade em que ela não vivia. Pensou no dinheiro de seu pai. Lembrou que poderia ter direito a alguma parte da herança. Mas uma vez, Aurora não foi humana. Resolveu processar Alexsander. Pediu dinheiro, pediu muito mais do que Alexsander poderia dar. Ela pediu o ódio. Aurora nunca havia escutado o poder de uma palavra que talvez pudesse fazê-la uma pessoa melhor. Deus. Nunca havia dado ouvido e importância. Na verdade, Aurora, sempre culpou Deus pelos problemas em sua vida. Era uma mulher sem fé, sem carisma e acima de tudo uma ladra de sonhos. Ela havia feito muito mal a diversas pessoas que haviam passado em sua vida. Vagou alguns anos entre a pobreza de espírito e a pobreza material. Dormiu na rua, comeu comida da lixeira e mendigou solidariedade. — Uma esmola! Pelo amor de Deus. Eu tenho fome – mendigando alguma comida, Aurora permanecia sentada no banco da praça. — Aurora? — Quem é você, moça? Tem algo para comer? — Eu não acredito no que meus olhos estão vendo – sussurrou a mulher. — Espera. Eu a conheço – Aurora levantou os olhos. — Eu sou a Mia. — Mia? Aquela da universidade, certo? — Certo. Como você está, Aurora? – perguntou com compaixão. 155
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— Com fome. Tem algo para comer? — Não. Espere, eu compro um lanche para você Voltou minutos depois com um copo de café e um sanduíche. — O que aconteceu com você? — A vida. O tempo. Minha mãe morreu. — Sinto muito, Aurora. Eu tinha dito isso a você naquela época. Lembra? — O quê? O que você disse? – fez pouco caso enquanto devorava o sanduíche. — Que tudo na vida volta na mesma proporção que fizemos. — É, lembro algo do tipo. E como vai Christian? — Ótimo! Nós casamos e temos dois filhos. — Hum – balançou os ombros. — Tenho que ir. Se cuida. — Saia daqui, coisa ruim! – Aurora expulsou Mia aos gritos. — Minha irmã, venha conhecer Deus – disse um senhor de meia-idade sentando ao lado de Aurora. — Deus? Deus me pôs aqui. Deus não em ama – dizia Aurora procurando com o olhar alguma coisa de valor naquele senhor. — Engano seu. Deus te ama e manifesta-se em nossas vidas através da ajuda das pessoas. Talvez esteja Deus manifestando-se através de mim. — Ah, quanta besteira – revirou os olhos. — Vem. Eu pago um lanche para você. Aposto que está com fome. 156
A Essência da Dor
— Tenho fome, mas não vou lugar nenhum com você. Não conheço suas intenções. Na última vez em que confiei em alguém me bateram e me roubaram as últimas roupas que tinha – disse cruzando os braços. — Tudo bem. Vou comprar um lanche e trago para você. O que você acha? — O que você quer em troca? — Quero que escute a palavra do senhor. Esse livro talvez seja sua salvação. — E fala sobre esse tal de Deus? O qual me pôs aqui? – pegou o livro. — Não, irmã, Deus veio ajudar você a sair dessa vida – disse sentando a seu lado novamente e tentando explicar sobre Deus. — Então, diz para o seu Deus que levou minha mãe que ela morreu e eu nem tive chance de me despedir dela. Diz para o seu Deus que amoleça o coração do meu pai, porque ele me estuprou e mantém um ódio terrível de mim – enxugando as lágrimas, Aurora percebeu que poderia tirar vantagem daquele senhor. — Irmã, que história triste – espantado, o senhor pôs a mão na boca. — Viu só?! Aposto que Deus não tinha esses planos para mim. Eu não tenho casa, emprego, roupas limpas e nem família. Tudo o que eu sempre quis na minha vida foi ser amada por meus pais. Eu sou adotada e nunca soube sobre meus pais verdadeiros. — Que pena, moça. Aliás, como você se chama? – o senhor tentou desviar do drama de Aurora. — Aurora. 157
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— Que nome bonito. — Obrigada. — Bem, eu posso ajudar você. Eu posso levar você para a nossa igreja. O que acha? — Igreja? Eu? Não, senhor. Eu prefiro ficar aqui – disse entregando o livro. — Tem certeza, irmã? Nós temos cultos quase todos os dias. Você pode ficar em nossa casa até arrumar um emprego. O que te parece? — Ótimo! Digo, não vou atrapalhar vocês e sua família? – Aurora rapidamente mudou de ideia em ouvir que poderia ficar na casa daquele senhor. — Não. Minha esposa vai adorar conhecer você e talvez você possa ser amiga de meus filhos. — Ah, crianças... — São muito queridos. Você irá gostar da nossa casa, ela não é chique, é simples. E nossa igreja sempre ajuda pessoas – disse levantando-se do banco e oferecendo ajuda. — Tudo bem. Então vamos. Eu tenho fome. Aurora havia conhecido Sebastião. Um pastor evangélico que se tocou com sua versão da história. Aurora possuía um dom. Ela convencia as outras pessoas com suas mentiras, mentiras que para ela eram reais e justificáveis, por possuir essência maldosa. Porém, a esposa do pastor percebeu logo à primeira vista a essência de Aurora. Sentiu o odor de sua alma fétida e aquele rastro de enxofre que poucos eram capazes de perceber. — Me chamo Aurora – apresentou-se à mulher a sua frente. — Prazer, sou a mulher do pastor – ofereceu-lhe a mão. 158
A Essência da Dor
— Desculpe, não quero a incomodar. Assim que tiver dinheiro, eu irei embora – Aurora correspondeu o comprimento, porém sentiu que não havia agradado a mulher. — Tudo bem. — Você não gostou muito da ideia de ter outra mulher na casa com seu marido, não é mesmo? — Como você chegou no estado em que chegou? – perguntou a mulher do pastor sentando-se a seu lado. — Ah, eu tenho uma história muito triste, sabe. Fui estuprada pelo meu pai e sou adotada. — Adotada? – com cara de espanto a mulher perguntou. — Triste, não é mesmo? — Não. Isso é lindo. Isso é um ato de amor. Por que não procura seus pais biológicos? – deu algumas indiretas a Aurora. — Ah é? Por que seria lindo ser adotada? – Aurora sentiu-se incomodada com aquelas palavras. Pela primeira vez havia escutado de alguém que não sentia-se triste por ela ser adotada. — Porque isso é amor. Nem todo mundo pegaria um filho de outra pessoa para adotar. Muitas pessoas têm preconceito e eu acho que seus pais enfrentaram muito deles para ficar com você. — Ele me estuprou! – exclamou irritada com a reação de normalidade da mulher. — Mesmo? Não me parece. — Como, se você não conhece meu pai? – Aurora sentiu-se desconsertada em sua mentira. — Eu sinto o cheiro de muitas coisas, Aurora. E posso dizer que ele não fez isso. 159
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— Eu não sou mentirosa. Por que iria inventar isso? – tentou achar alguma saída. — Não sei. Diga você. Você conhece Deus? Você sabe que tudo o que fazemos nessa vida mais cedo ou mais tarde voltará para nós, talvez em forma de cobrança, talvez como remorso, ou talvez até como ódio de nós mesmos? — Ah, então quer dizer que esse tal de Deus cobra? – perguntou ironicamente. — Não. Leia a bíblia. Iremos ao culto à noite e se você não sentir nada, quer dizer que você não tem alma. Talvez o espírito santo toque sua alma. Nossa igreja não faz cegos enxergarem e nem surdos ouvirem – disse a mulher retirando-se da sala. Aurora não teve escolha. Teria que conhecer esse Deus se quisesse algum teto para dormir. Teve que ir aquela noite à igreja. Aurora não foi visível aos olhos de ninguém nessa igreja. Ninguém cheirou a alma de Aurora, somente a mulher do pastor, que pouco tempo depois afastou-se totalmente dela. Vestida com a roupa da inocência, Aurora encontrou-se na religião. Algum tempo depois, foi banhada nas águas como renascimento, admitindo sua fé em Deus e deixando naquelas águas suas maldades. Bem, era o que todos acreditavam, e ela tentou, mas sua essência havia nascido com ela. Água nenhuma de igreja de nenhum lugar poderia curar a sua essência maldosa. Pouco tempo depois daquele banho, ela colocou Alexsander na justiça pedindo sua herança da fortuna de Rose. Certas coisas nunca mudam. Certas pessoas possuem almas maldosas e usam a máscara de Deus para escondê-las. 160
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Depois que recebeu sua parte na herança, Alexsander nunca mais voltou a falar com Aurora. Havia há tempos perdido o amor, confiança e acima de tudo respeito. Perdão não era a palavra certa para esse problema, o problema era a essência de Aurora. Alexsander, como Rose, fechou-se em sua dor e levantou todos os muros para a proteção de si mesmo contra Aurora. Perdeu a fé na humanidade. Aurora tornou-se uma pastora de uma igreja evangélica. Pregando amor em seus cultos, não importou-se com seu passado e seu presente. Ignorou, porque, no fundo, ela continuava a mesma pessoa, porém agora usava a roupa de pastora. — Irmã Aurora, tenho uma boa notícia para você – disse um outro pastor de outra igreja. — É mesmo? Qual, pastor? Conte-me – respondeu Aurora feliz sentando-se ao seu lado no banco da igreja. — Eu achei alguns documentos! — Sobre o quê? — Sobre aquela mulher que você pediu para verificar o nome. Você me deu em um papel dizendo que seu pai pediu para verificar. Lembra? — Sim, claro que lembro – coçou a cabeça, não tendo mais certeza do que queria saber. — Então, conte-me, estou muito curiosa. — Bem, o meu sobrinho me passou esse endereço. Ele investigou. Ela está viva ainda. Está em uma casa de idosos, me parece, mas não tenho certeza. Tome, está aqui o endereço. — Obrigada, pastor! Irei certamente entre hoje e amanhã. 161
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— Interessante sua história. Conte-me tudo depois – exclamou o pastor muito feliz por Aurora. — Tome cuidado e, claro, prepare o coração. — Muito obrigada – deu um sorriso. — Imagina. Lembre-se, Deus manifesta sua bondade através das pessoas. Sempre que precisar, me chame. E, mais uma vez, prepare seu coração – despediu-se de Aurora e levantou-se do banco. — Claro. Devo ter irmãos, um pai maravilhoso, sobrinhos... Não vejo a hora – disfarçou a insegurança. — Tomara que dê tudo certo, irmã Aurora. Que a paz do senhor esteja convosco. — Obrigada, pastor, mais uma vez. Aquela noite custou a passar para Aurora. Ela revirou-se na cama de um lado para outro. “E se ela tem outros filhos? E se quiser que eu vá morar com ela?”, pensou. Não conseguiu dormir. Lembrou-se de sua mãe e sentiu um aperto no coração. Sonhou com ela naquela noite. Finalmente iria descobrir sua história, sua origem. Mas, por incrível que pareça, isso não deixou Aurora feliz como ela passou a vida imaginando que seria. Ela sentiu como se não tivesse mais importância tudo aquilo depois de quarenta anos. Mas não desistiu, iria tirar essa história a limpo. No dia seguinte, acordou cedo, arrumou-se e partiu em direção ao endereço que tinha no papel que o pastor havia entregado a ela. O lugar era uma casa para idosos, muito bem pintada e possuía jardins lindos. Perguntou pelo nome de sua mãe biológica e logo a informaram o número do quarto onde ela estaria. 162
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— Senhora, com licença. Posso entrar? – perguntou parada na porta do quarto. — Claro. Mas quem é você? Sente aqui – apontou uma cadeira vazia perto dela. — Aurora. Sua filha – respondeu sorridente. — Como? Minha filha? – indagou com surpresa, mas com expressão de nojo. — Eu sei que a senhora doou sua filha, não é verdade? — Sim. Mas isso faz muito tempo. — Sim. Muito tempo atrás. Quase 45 anos – Aurora sentou-se na cadeira, mesmo não sentindo-se bem com a expressão da senhora. — Como sabe disso? – aproximou-se de Aurora em sua cadeira de rodas. — Você tem marido? Tenho irmãos? — Marido? Outros filhos? – perguntou gargalhando. — Sim. Eu devo ter uma família linda, não? – disse olhando para o horizonte da janela perto dela. — Menina, o que você bebeu? — Não entendo – exclamou Aurora confusa com aquela expressão de desprezo de sua mãe biológica. — Eu tive uma filha. Aurora é o nome dela, e provavelmente deve ser você – agora a gargalhada deu lugar à seriedade e à verdade. — Sim. Sou eu. Não sabe o quanto eu esperei por esse momento. — Que momento? — Conhecer você. — Para quê? – perguntou ela com expressão de desprezo novamente. 163
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— Como para quê? Para saber como você está, quem é você... — Hum – resmungou movendo a cadeira de rodas para trás. — Bem, eu tive uma criança, mas doei para um casal que com certeza a amou muito. Acredito que eles não estejam mais vivos. Era um casal tão querido. Esperançoso, na verdade. Lembro bem que não podiam ter filhos. — Isso mesmo. Posso te dar um abraço? – perguntou Aurora desviando do assunto de seus pais adotivos. — Que abraço, menina? Está fora do juízo? — Mas você é minha mãe... Sofri tanto por não saber de você. — E deveria continuar sem saber de mim. Eu não nasci para ser mãe. Por que veio atrás do seu passado? — Para poder entender por que eu sou assim. — Assim... ruim, você quer dizer? — Um pouco atrapalhada, digamos assim – tentou não transparecer decepção. — Não, moça. Como você se chama mesmo? Aurora... Nome bonito, fui eu mesma que escolhi, inclusive. Você não é atrapalhada. Você é ruim mesmo – encarou Aurora nos olhos. — O que você quer dizer? – perguntou perplexa. — Tenho um anel de rubi na minha estante. Se for embora e não roubá-lo, você não é a Aurora que eu doei. Se roubar, você entenderá sua essência e seu caráter. — Por que me abandonou? – ignorou o que acabara de escutar. — Porque fui uma garota de programa e engravidei de um dos homens com que sempre me deitava. Éramos 164
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jovens, estávamos apaixonados. Mas ele não era grande coisa, não tinha trabalho nem educação. Ele era alcoólico e às vezes roubava diversas coisas da casa onde eu trabalhava. Paranoico. Uma confusão pura, esse homem. Mesmo assim eu gostei dele. Eu engravidei – baixou os olhos de tristeza lembrando desses tempos. — Não... – desabafou Aurora como quem despencava do céu e entrava na dura realidade. — Sim. Não poderia ter você no meio de um bordel. E quando o homem ficou sabendo que eu teria um filho dele, quis matar-me, mandou diversas pessoas atrás de mim. Não abortei você porque não tive dinheiro para pagar. Logo que você nasceu, eu senti nojo profundo de mim e de você. Senti que não poderia ser mãe. Algo em seus olhos não era normal, algo em seu espírito não me deixou amar você. Senti uma sensação de mal-estar misturada com um sentimento ruim, você não seria boa coisa. Mas não tive coragem de jogar você fora, em um lixo qualquer. Eu segurei o máximo que pude você comigo. Você vivia num pequeno bordel comigo, escondida, claro. Ninguém poderia saber que você vivia ali. Achei um casal amável e doce que logo apaixonou-se por você. De fato, você era bem bonita, mas eu sabia que não tornaria boa coisa. Enfim. Ponto final. Essa é a sua história – cortou o assunto tentando livrar-se das lembranças. — Não acredito que passei a minha vida inteira pensando que meus pais adotivos eram os maus dessa história – segurou as lágrimas. — Acredito que ganhou muito amor. Aquele casal transmitia paz e amor. Nunca havia conhecido uma mu165
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lher tão doce quanto aquela. Eles cuidaram bem de você? Você gostou deles? Eu sabia que eles seriam ótimos pais – virou sua cadeira de rodas para a janela. — Claro – pegou o anel de rubi sem pensar no que a sua mãe biológica havia explicado minutos antes. – Então eu não tenho irmãos? — Claro que não, menina. Nunca mais quis ter filhos. Morei sozinha até semana passada, quando vim parar nesse lugar. Aliás, como me achou? — Pedi para o pastor de uma igreja verificar seu nome. — Bem, agora já sabe o seu passado – mostrou com a mão a porta de saída. — Feio. — O quê? — O meu passado. — É. As coisas só são feias quando você pinta em sua mente coisas bonitas e cor de rosa. Tem coisa que é melhor deixar no passado, Aurora. Se está bom o presente, melhor esquecer o que já passou. Agora, moça, me dá licença que tenho coisas a fazer. — Bem, obrigada por me contar. Com licença – Aurora saiu com o coração despedaçado. — Ah, Aurora – exclamou a senhora. — Sim – respondeu sem virar-se. — Cuide bem daquele casal. Principalmente de sua mãe. Ela amou você mais do que eu. Ela quis você. E não volte mais aqui, por favor. Fechando aquela porta, a mãe biológica de Aurora fechou, também, o passado. 166
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Aurora começara a entender o que havia perdido. Talvez algum anjo a ajudasse a consertar os danos que havia causado. Talvez em outra vida, em outra época. Talvez Aurora poderia fazer diferente. Ela se lembrou da frase do pastor: “Deus manifesta-se através das pessoas”. E Deus havia manifestado-se através do amor de sua mãe Rose, do carinho e amizade de Mia, através do seu pai, que poderia ensiná-la a como sair vencedora de qualquer batalha. Ela percebeu que havia perdido uma vida para entender que o que importa são as pessoas do presente. O passado serve para saber mais das coisas que poderiam ter sido, porém Aurora compreendeu que ela ficou presa a ele por mais de quarenta anos, sem ao menos ter dado chance para o presente, e talvez pensado no futuro. Talvez... O talvez era tudo o que Aurora agora possuía.
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Sumário Introdução...................................................................6 Nota.............................................................................8 Capítulo 1..................................................................10 Capítulo 2..................................................................23 Capítulo 3 .................................................................35 Capítulo 4 .................................................................45 Capítulo 5..................................................................55 Capítulo 6 .................................................................65 Capítulo 7..................................................................76 Capítulo 8..................................................................88 Capítulo 9..................................................................98 Capítulo 10..............................................................110 Capítulo 11..............................................................122 Capítulo 12..............................................................133 Capítulo 13..............................................................148
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Introdução Dor. Três letras que juntas possuem significado forte. Aquela sensação de algo pontiagudo entrando e machucando o coração. Aquele aperto que arranca lágrimas dos olhos ocasionando muitas vezes até a falta de ar. Mudanças geram dores. As dores necessárias para a evolução do ser humano. Algumas experiências causam dores que impregnam na personalidade do ser. Viver torna-se mais difícil e pesado. A vida não seria vida se não houvesse a esperança que chega trazendo conforto no peito, acalmando ansiedades e dores. A esperança é filha da fé, e a fé é a mãe de muitas virtudes. A essência da dor é baseada em fatos reais de um casal que adotou Aurora sem conhecer a sua essência. A essência, aquela que nasce conosco, essa nunca muda. Ela revela quem realmente somos e qual é a origem de nossos pensamentos. Gostaria de apresentar-lhes a história de Alexsander. Polonês e sobrevivente da Segunda Guerra Mundial. Vinte e cinco anos de idade, ele é bonito, alto, elegante e possui olhos azuis cristalinos. Seus olhos, embora jovens, já presenciaram toda a dor que o ser humano é capaz de praticar com o seu próximo. Conheceu a maldade vestida de vaidade e orgulho. Reconstruiu sua vida na cidade de Nova York. Apaixonou-se por Rose. Rose é mulher independente. Possui costas largas de cobranças de sua família e da sociedade por ainda não ter 6
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se casado no auge de seus 32 anos. Vive sufocada. Rose nunca havia namorado alguém e tão pouco se apaixonado. Era exigente com homens. Dona de beleza incontestável, apaixonou-se por Alexsander, não importando-se com sua essência atormentada pela dor. Casaram-se no inverno de 1952. Numa igreja simples, juraram amor para toda aquela vida e talvez até para as próximas. Juraram amor eterno. Talvez o tempo fosse certo inimigo, mas o amor não precisava de tempo, o amor entre eles precisava de corações sinceros. O amor uniu-os de forma indiscutível. Entretanto, não contaram com o desafio que a vida havia preparado para o casal. A infertilidade. Decidem deixar as mágoas da vida saírem e adotam Aurora. Aquela que trouxe a luz novamente e tornou-se a razão de respirar do casal. Aquela que encheu o peito de Alexsander e Rose de felicidade. Fez com que seus corações batessem fortes mais uma vez. Embora Aurora fosse o motivo do casal serem completos agora como pai e mãe, Aurora também foi a razão do maior pesadelo e dor daquele casal. Aurora possuía algo negro em seus olhos e alma perturbadora. Nunca soube-se certamente qual tipo de anjo havia feito aquele ser. Eu gostaria de levar vocês nessa viagem de algumas décadas atrás e atravessar o tempo com Alexsander e Rose. Um casal que vivenciou dores comuns, embora suas essências fossem diferentes. Cujas dificuldades eram dominadas à noite e ressurgidas a cada amanhecer. Venha comigo. Tenho uma história para contar. Aline Basztabin
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Nota Dedico essa obra ao casal Alexsander e Rose. Ao Alexsander, porque serviu e ainda serve como modelo de vida. Uma enciclopédia móvel. Eu tenho profundo respeito por sua história e compreendi melhor os desígnios de Deus e da dor. Sim. A dor é uma semente que se não for trabalhada, cresce e torna-se maior que nós. Algo que consume com nossa identidade e põe fim em sonhos que poderiam ser realizados. Toda vez que vejo os olhos azuis de Alexsander, eu posso sentir sua tristeza, decepção por Aurora e a saudade de Rose. Seu braço direto. Seu pilar para continuar vivo. O seu grande amor. Como com todo casal, houve brigas e histórias para serem contadas. Infelizmente Rose nos deixou em novembro de 2002. Até hoje eu sinto a presença dela em minha memória e lembro bem dos merengues que ela cozinhava como ninguém. Sinto falta dela e de seu humor. Certa vez, me lembro, estávamos na praia e havia faltado luz na madrugada. Rose acordou assustada, tudo estava escuro. Ela acordou Alexsander e a mim, pronunciando o fim do mundo. Alexsander riu e disse a ela que só havia faltado luz. Todos rimos. Rose foi uma pessoa especial em minha vida e a saudade talvez não seja a palavra que possa descrever esse sentimento. 8
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Lembro bem dos domingos ensolarados que passávamos juntos. Alexsander cozinhava massa de máquina. Aquelas máquinas que fazem a pasta da massa. Quando eu fico perto de Alexsander, minha alma se esbanja de compaixão, porque eu ainda não vivi o bastante para poder entender as diferenças formas de dores que ele vivenciou. Eu aprendi a amá-lo acima de tudo como ser humano e entender sua forma de ser. Entender seus pensamentos. Não tenho a intenção de expor a história desse casal de uma maneira negativa, muito menos de desprezar a adoção. Eu particularmente acredito que o ato de adotar alguém é um ato de muito amor. Mas, infelizmente, esta história não teve esse final feliz. Coisas ruins acontecem o tempo todo, as coisas dão erradas. O segredo é juntar os cacos e seguir adiante. Minha ideia é compartilhar os sofrimentos e ensinamentos que a vida nos proporciona. Talvez alguém possa entender esses sentimentos descritos a seguir. Todos temos alguma bagagem que, se compartilhada, talvez poderá ajudar a amenizar a dor de outras pessoas. Para concluir, eu escrevi esta obra com muito amor pois nós três passamos momentos bons. Obviamente, nomes foram trocados para preservar a identidade dos personagens. As cidades, eu mantive a originalidade.
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Capítulo 1 “Você terá que ser forte” Polônia — 1939 Noite de fim de verão típico na Europa e com uma brisa fria pronunciando o outono. Assim, a Polônia estava sufocada com inseguranças. O sol já havia se posto, dando lugar à uma noite com futuros pesadelos imagináveis e insustentáveis à dor do ser humano. As folhas das árvores começavam a cair e suas cores já desbotadas permaneciam no chão, chão o qual mais tarde em uma madrugada qualquer seria invadido por diversos soldados nazistas. Naquele ano, o verão não havia dado grandes felicidades aos habitantes da cidade. Ele não quis aquecer, talvez com medo do outono que logo chegaria acompanhado de homens altos e uniformizados. Naquele ano, as pessoas estavam com o sentimento de medo. Havia rumores. Sentiam o cheiro da insegurança pairando nas ruas. A chuva típica do clima do país limpava ou talvez amenizava as inseguranças dos habitantes da cidade, que era muito bem arborizada e com cores opacas pintadas nos prédios. Alexsander morava em um vilarejo em Bilka Szlacheca. Em uma casa velha e com decorações limitadas a
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A Essência da Dor
móveis de madeira de cores marrom e branca. Os abajures em forma arredondada e com capa de tecido desfavorecia a iluminação da casa. As cortinas com tons mornos combinavam com as cores dos móveis. Alexsander era um garoto pré-adolescente de 12 anos. Como todo pré-adolescente, não gostava de reuniões de família e muito menos do dever de cuidar do seu irmão mais novo, de 6 anos, Zigmundo, o caçula da família. Devido à sua pouca idade, não entendia o que acontecia a sua volta. Porém, entendia de seus medos. Alexsander frequentava a escola da cidade, estudava apenas com meninos. A escola naquela época era uma tortura, professores com didáticas extremamente antigas e muito exigentes. Não havia uma postura correta tratando-se de aluno. O professor sempre seria o mestre e o aluno, o comandado. Não era permitido o aluno questionar. Essa postura de hierarquia fazia com que Alexsander odiasse cada dia mais a vida escolar. Não gostava de estudar e muito menos de fazer a lição de casa. Alexsander, mesmo com pouca idade, já se destacava com seu temperamento agressivo e explosivo. Diversas vezes batia em seus colegas por discussões triviais fora da escola. Não era amigável. Sua personalidade já era classificada como difícil. Ele não era do tipo que levava desaforo para casa. A raiva fazia com que seu sangue fervesse. Sua mãe talvez fosse a culpada pelo comportamento do seu filho mais velho. Naquele tempo, o amor era quase que uma palavra esquecida os lábios das pessoas. Sua mãe, Anna, era uma mulher tradicional, sempre com o mesmo estilo de roupa. Naquele tempo, toda mulher possuía seu estilo 11
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de roupa igual ao de sua mãe: vestido preto na altura do joelho e cabelo com duas presilhas de cada lado. Anna era mulher de vida muito sofrida, não possuía compaixão nem mesmo pelos seus filhos, mas isso não significava que não os amassem, pelo contrário, Anna somente possuía seus filhos como a felicidade. Seu casamento era fracassado. Cansada da vida e das traições do marido, havia tentando diversas vezes fugir de casa com outros homens, que logo a abandonavam quando tomavam o conhecimento de que já era mãe de dois filhos. O preconceito era o sobrenome daqueles cidadãos. O pai de Alexsander era o homem que trabalhava na família. Ele era o chefe da casa. Josef não era homem de duas palavras, era severo na educação de seus filhos. Talvez havia aprendido aquele comportamento na Primeira Guerra Mundial. Seu coração não possuía amor. Possuía coração embriagado pelo álcool e perdia-se em cada esquina, em bares da cidade. Toda noite era um tormento na vida da família de Alexsander, seu pai chegava bêbado, causando brigas e desentendimentos entre todos. Era difícil de respirar o ar pesado que ele deixava por onde passasse. Isso explicava o comportamento de Alexsander. Quando a noite caía, chegava com ela os batimentos rápidos nos corações daquela família. Naquele tempo, o amor não era desse mundo, e Deus não reinava na Terra. — Nosso pai está chegando, Alexsander. Desliga o rádio – disse Zigmundo olhando pela janela com olhos fixos na imagem do pai, mesmo à distância. — Eu sei, sinto o pavor chegar em casa – respondeu Alexsander levantando-se do sofá. 12
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— Será que vamos brigar hoje? — Espero que não – Alexsander colocou sua mão no ombro de seu irmão, como consolo. — Não chora. Não fica nervoso. Sabe que nosso pai não gosta quando choramos. — Tudo bem – Zigmundo fechou a cortina. — Vem, vamos para mesa. A janta está quase pronta e você sabe que nosso pai não gosta de não estarmos na mesa quando ele chega em casa. — Lavem as mãos. Voltem para a mesa com postura. Sentem como homens que um dia serão – ordenou sua mãe. — Sim, mãe. A porta abriu-se e surgiu a imagem de um homem embriagado pelo álcool. Coração severo, judiado por aquela vida miserável que viviam. Cantando uma canção indecifrável na linguagem alcoolizada, Josef entrou em casa fechando a porta com força, porém, a cantoria parou no momento que Josef não avistou os meninos à mesa. A regra era clara. Quando ele chegasse, todos já deveriam estar esperando por ele em suas devidas posições na mesa. A mesa era de forma oval, típico de decorações na época, a toalha de mesa era simples, entretanto, Anna cuidara da decoração. Dos pratos e talheres. Aqueles pratos de porcelana que Anna havia herdado de sua mãe eram convidativos para a refeição. Logo estariam todos perdidos e quebrados entre paredes desmoronadas. — Onde estão os meninos, Anna? — Calma. Pedi que fossem lavar as mãos. Já devem estar voltando – deu um passo para trás. — Sabe que não gosto que não estejam na mesa. 13
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— Alexsander! Zigmundo! Venham para mesa. Vamos comer. Não me façam esperar – Josef começara a gritar em casa, e seu eco fazia com que os batimentos cardíacos de Alexsander e Zigmundo quase saíssem de suas bocas. — Meninos! Venham rápido – Anna chamou. — Sente-se, Josef, meu marido. A mesa já está pronta – puxou uma cadeira para ele. — Quero saber dos meus filhos. O que fez com eles? Tentou fugir com outro homem e largou os meninos em algum canto qualquer? — Não, Josef. Acalma-se. — Pai, estamos aqui. Não vamos brigar por isso – disse Alexander sentando-se à mesa. — Muito bem, assim que deve ser – Josef caminhou em direção à mesa, desorientado pelo efeito do álcool. — Sente-se, Josef. Hoje temos sopa de beterraba – serviu o prato do marido. — Somente eu trabalho. Eu trago a comida para essa casa. Vocês deveriam ter mais consideração por mim. Trabalho duro. — Sim. Nós sabemos disso – todos concordaram para não haver mais discussões. — E além do mais, já está na hora do Alexsander sair da escola e ajudar em casa – tentou achar a melhor forma entre a colher de sopa e sua boca com odor forte. — Não, pai! – exclamou Alexsander. — Como é? Está me questionando? Sabe que os livros são caros e não podemos pagar, além do mais, escola nos tempos em que vivemos é somente para a elite – devolveu a colher ao prato. 14
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— Sim, eu sei, pai – concordou. — Josef, meu marido. Acalme-se. Por favor. Vamos comer. — Não tenho fome. Essa conversa terminou com meu apetite. Quero uma bebida. Amanhã será seu último dia na escola, Alexsander. Não tenho dinheiro para comprar seus livros e não quero mais falar sobre isso. Você irá trabalhar comigo. — Tudo bem, pai – Alexsander começou a agradecer a Deus ou qualquer outro tipo de divindade por ter terminado aquele assunto. Aquela noite seria a última em que todos estariam reunidos. A noite terminou com o ar pesado na família de Alexsander. Depois daquele “tudo bem, pai”, a família resolveu não pronunciar nenhuma palavra a mais. As coisas já estavam muito difíceis nas ruas, o clima já estava pesado demais para manter dentro de suas casas a insegurança. Brigas só iriam piorar a convivência entre eles. Zigmundo, o caçula da família, permaneceu em silêncio absoluto até o dia seguinte. Assistir a seu pai e o trato dele com os demais, sem respeito ou qualquer outro sentimento bom, fez com que medo e fragilidade de criança pequena o consumissem. Trancou-se no silêncio. Não precisaria ser inteligente em nível máximo para sentir que algo iria acontecer, algo grande iria mudar a vida da família. Talvez mudar a história daquele país e outras coisas mais que a guerra traz consigo. Anna retirou os pratos da mesa e apagou a luz. Carregando seu marido até o quarto, deitou-o na cama, mas ele, por já estar totalmente alcoolizado, não pôde 15