DOM RAFAEL - CHACAL

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DOM RAFAEL O CHACAL



Ivo Antonio Martins

DOM RAFAEL O CHACAL

S達o Paulo 2011


Copyright © 2011 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Ilustração Andre Caliman Revisão Priscila Loiola

Priscila Loiola CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________

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Martins, Ivo Antonio Dom Rafael, Chacal / Ivo Antonio Martins. - São Paulo: Baraúna, 2011. Inclui índice ISBN 978-85-7923-420-0 1. Ficção brasileira. I. Título. 11-5689.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

05.09.11 09.09.11

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Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua Januário Miraglia, 88 CEP 04507-020 Vila Nova Conceição - São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br www.livrariabarauna.com.br


Dom Rafael em Chacal Do alto do Bronze, próximo à parte central de Porto Alegre, descendo pela Rua do Arroio sentido à praia de Belas, vai um menino que, pelo correr em largas passadas, denota-se estar apressado. Seu nome é Antônio, aparenta ter entre dez e doze anos e carrega na mão direita um pacote de açúcar que sua avó lhe pediu para comprar na venda mais próxima. É costume de alguns moradores da cidade se reunirem no pátio de suas casas ao anoitecer nos sábados, domingos e às vezes em outros dias, para conversarem sobre as últimas novidades, falarem da vida ou contarem histórias. Quando acontece de encontrar-se na comunidade uma pessoa com vasta experiência, normalmente o patriarca de alguma família nos arredores, cuja idade lhe tenha proporcionado um cabedal de conhecimentos, e se este cidadão possuir algum gosto pela prosa, será amiúde solicitado pelos parentes e vizinhos a contar passagens de sua existência para distração das crianças, mas que na maioria das vezes entretêm também os adultos. 5


Esse é o caso de um preto velho que participou de muitas aventuras na província desde o tempo da Guerra dos Farrapos. Do alto dos seus oitenta e poucos anos, porém possuidor de uma memória prodigiosa, é capaz de discorrer sobre fatos e sucessos com tal riqueza de detalhes, que na imaginação dos ouvintes causa sensação de estarem vivenciando os acontecimentos narrados. O menino Antônio é um dos apreciadores mais chegados das histórias do preto velho, que por sinal é seu avô, ao qual ele chama carinhosamente de vovô Tião. Ele não gostou quando a família e alguns convidados se reuniram no espaçoso pátio na frente da casa e justo nessa hora sua avó lembrou-se que estava sem açúcar para fazer os deliciosos bolinhos de trigo, fritos e servidos ainda quentinhos com café preto ou com leite, conforme o gosto dos ouvintes, o que tornava a “hora dos causos” ainda mais encantadora. Como entendia que os bolinhos da vovó eram indispensáveis nos sábados à tarde, conformado, foi correndo buscar o açúcar. Talvez conseguisse chegar a tempo de alcançar pelo início o causo que vovô Tião iria contar naquele dia, pois não gostava de perder nada. Para ele, ao menos, mais que brincar com os amigos no jogo de bola, armar arapucas para os vários bichos que vagavam nas matas próximas, perambular pela cidade fazendo peraltices, alçar pandorgas coloridas, nada se comparava nem sobrepujava o prazer de entretimento que sentia nas tardes de sábado, que às vezes adentravam a noite, ouvindo as histórias e aventuras contadas pelo avô. Foi assim que Antônio, ao regressar, quase sem fôlego, observou que a maioria dos convivas encontravam-se

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espalhados no pátio, disputando os melhores lugares para ouvir. Os adultos sentados em cadeiras e banquinhos, os meninos e meninas no chão e vovô Tião em sua cadeira de balanço, de costas para a parede, e à sua frente, próximo a seus pés, dois meninos abanavam o fogo de chão recém-aceso. O fogo, assim como os bolinhos, era também indispensável na hora dos causos. Se era frio, aquecia e clareava o ambiente ao escurecer; se era quente, a fumaça ajudava a espantar os mosquitos. Antônio percebeu quando o avô olhou-o significativamente com um sorriso paternal, pois sabia do seu apreço pelas histórias. Perguntou: — O senhor já começou, vovô? — Estou bem no comecinho, filho. Bem no comecinho. Sente-se e escute. O preto velho deu uma tragada no seu cachimbo e continuou.

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A fazenda (...) Eu, naquele tempo, não tinha nenhum conhecimento! Não sabia ler nem escrever, nem fazer contas. E pelo que posso lembrar da vida e da minha condição de escravo que era, devia andar pelos meus quinze ou dezesseis anos. Isso calculo porque já adquirira tamanho de moço, e havia uns cinco anos que estava nos tratos das lavouras, dos cuidados com os animais da fazenda e de todo o trabalho árduo destinado aos escravos adultos. Costumeiramente, os senhores das fazendas determinavam que os meninos filhos de escravos com mais ou menos dez anos já acompanhassem os adultos nos trabalhos braçais. Até então eu não conhecia da vida, senão trabalho e trabalho, do amanhecer ao pôr-do-sol, maus tratos dos capatazes, chibatas e castigos nos troncos e ferrolhos nas senzalas, com os diversos apetrechos ideados pela criatividade maldosa dos senhores proprietários das fazendas.

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Mas para o causo da vez, esses detalhes vos conto tão somente para entenderdes como se deu, para minha felicidade, o encontro e a amizade com aquele que viria a ser meu protetor, mestre e no mais um grande companheiro de inúmeras aventuras por este Brasil de Deus, e a maioria delas aqui! Nesta Província de São Pedro!... A Fazenda do meu senhor Jerônimo de Albuquerque distava umas nove léguas da cidade do Rio de Janeiro. Foi o que ouvi dizer, porque eu nunca tinha ido da fazenda até a referida cidade, a qual ficava no sentido leste da propriedade. Mas como se diz: Deus escreve reto por tortas linhas, então foi bem o causo. Naquele dia, tudo ou quase tudo saíra às avessas do que era costume. Pois quem sempre acompanhava o senhor Jerônimo até a cidade era o escravo Bento, que era mais chegado à casa grande e acostumado com as manhas dos senhorios, e que por ser também ladino o preferiam para essa tarefa. E o senhor Jerônimo, naquele dia, desde cedo estava de maus bofes!* Os preparativos da partida foram demorados. A tudo o patrão resmungava e reclamava. E eu fui requisitado de improviso para a tarefa de acompanhar e conduzir a carroça no lugar de Bento que, por algum motivo, não estava disponível para o mister.

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Um Incidente na Cidade Para mim, que nunca saía da fazenda, foi uma nova tarefa. Tudo era novidade, e no caminho observava cada detalhe com encantamento: a estrada, a paisagem, os pássaros e as moradias que aumentavam à medida que nos aproximávamos da cidade... Eu me distraía com a vida em cor e movimento. No entanto, sem perceber, o meu comportamento não contribuía para melhorar o azedume do meu patrão. Parecia-me cada vez mais contrariado com meu alheamento às obrigações. Quando chegamos à cidade, mesmo me empenhando para atender os interesses do patrão, muitas coisas me desviavam a atenção. O sol já estava alto, e pessoas, carroças, objetos, estabelecimentos e até a variedade de animais me colocavam em abstração. Eu estava ao mesmo tempo maravilhado com as novidades e assustado com a ira do patrão a qual eu mais sentia no seu olhar zangado do que compreendia... Na medida em que avançava o dia, o clima esquentava. Carregando as compras, já estava sentindo muita fome, pois só comera uma espiga de milho quando era ainda 15


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