Duas Vidas Romance
Daniel de Carvalho
Duas Vidas Romance
S達o Paulo 2009
Copyright Š 2009 by Editora BaraĂşna SE Ltda Capa AF Capas Projeto GrĂĄfico e Diagramação Aline Benitez Parecer LiterĂĄrio Vanise Macedo RevisĂŁo gramatical Edmundo Conde Imagens Corel Gallery CIP-BRASIL. CATALOGAĂ‡ĂƒO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ _______________________________________________________________
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Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIĂ‡ĂƒO Ă€ EDITORA BARAĂšNA www.EditoraBarauna.com.br Rua JoĂŁo Cachoeira, 632, cj.11 CEP 04535-002 Itaim Bibi SĂŁo Paulo SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br
Dedico este romance Duas Vidas Ă minha querida esposa Neusa. Daniel de Carvalho Dezembro de 2008 Piracicaba - SP
EM OUTRA DIMENSÃO do universo, dois seres estão conversando sobre uma tarefa que deverão realizar na Terra. Foram incumbidos para essa missão por seus superiores hierárquicos. Matéria e energia, tempo e espaço não existem na dimensão em que eles se encontram. Nessa dimensão, imperam outros elementos, desconhecidos pelos seres humanos. Assim sendo, os dois seres são desprovidos de corpo material. Consequentemente, a comunicação entre eles não se realiza pela fala ou por outros meios conhecidos na Terra. O pensamento de um é simplesmente percebido pelo outro. Os seres humanos pensam no universo como se ele fosse constituído apenas pelo espaço cósmico com suas galáxias, pelos átomos com suas partículas subatômicas, pela energia em suas diversas formas e, ainda, pelo tempo passado, presente e futuro. Tudo isso faz parte, apenas, da dimensão do universo em que vivem os seres humanos.
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Em outras dimensões, a natureza apresenta outros fenômenos, diferentes daqueles a que o homem está acostumado. Entretanto, as leis da natureza estão presentes em todas as dimensões. O ser humano, com seu cérebro avantajado em relação às outras espécies que vivem na Terra, não conseguiu ainda compreender nem sequer uma pequena parte da natureza atuante na dimensão em que ele vive. Mesmo que o homem chegue, um dia, a utilizar toda a capacidade de seu fabuloso cérebro, ele poderá, quando muito, compreender apenas os fenômenos do espaço-tempo, matéria-energia, existentes em sua dimensão. Isso porque seu cérebro não é dotado de recursos para perceber fenômenos existentes em outras dimensões. Os dois seres incorpóreos, incumbidos da missão na Terra, fazem parte de uma organização universal chamada de Guardiões da Natureza. A natureza criou as leis que regem todas as dimensões do universo e cuida para que sejam cumpridas. Mas ela não é absoluta. A natureza também está subordinada a uma força hierarquicamente superior. Os dois seres prosseguem conversando enquanto aguardam seu instrutor. — Você já sabe qual será nossa nova missão? — Sei apenas que será uma missão na Terra. — Terra??? — É um lugar em uma dimensão pouco conhecida do universo.
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— Como é essa dimensão? Essa Terra?... Você sabe? — Os seres que vivem lá, para existirem, precisam de um corpo material. Eles também precisam de energia, espaço e tempo. — Você já está bem informado sobre nossa missão! — Recebi apenas essas informações iniciais. Nós vamos receber instruções mais detalhadas de nosso instrutor. O instrutor dos dois seres reuniu-se a eles e deulhes uma explicação geral sobre as características da Terra e da dimensão onde ela se encontra. Quando sentiu que seus subordinados tinham assimilado suas explicações, iniciou as instruções para a missão de que estavam incumbidos: — A natureza, ela que contém as regras para todo o universo, permite-se, às vezes, transgredir suas próprias leis. Mas essas anomalias são sempre corrigidas de alguma forma, por ela mesma. E é para isso que existe a nossa organização dos Guardiões da Natureza. Vocês dois, como Guardiões, foram designados para corrigir uma dessas anomalias, que ocorreu na Terra. Devo informá-los de que os entes que habitam a Terra possuem um corpo constituído de matéria e energia, e de uma “essência” que caracteriza cada um deles. O instrutor prosseguiu com suas explicações. — A anomalia a que me referi fez com que duas pessoas, na Terra, nascessem com as essências trocadas. Ou seja, a essência de uma habitou o corpo da outra. Isso fez com que essas duas pessoas não se identificassem com elas próprias e, em consequência, sintam-se insatisfeitas
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com a vida que levam. A culpa dessa insatisfação não é delas, mas da anomalia que as afetou. Vocês deverão assumir formas humanas, se aproximarem dessas pessoas, e ajudá-las. Quando elas encontrarem o prazer de viver, a anomalia estará corrigida. Vocês receberão um treinamento sobre o mundo da Terra e da dimensão a que ela pertence! Depois desse treinamento, vocês estarão aptos a executar vossa missão.
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O MODERNO JIPE-LIBERTY branco de quatro portas rodava velozmente pelo caminho de terra ladeado pela extensa plantação de eucaliptos que circundava a usina de ferro da Mineradora Loppez de Albuquerque. A usina ficava próxima da pequena cidade de ArcoÍris, no Noroeste do Estado de São Paulo, quase divisa com Minas Gerais. Há algum tempo, a mineradora tinha abandonado a atividade de extração do minério de ferro e dedicava-se somente à produção do ferro gusa, em seus dois altos fornos, usando minério adquirido de outras mineradoras. O Jipe alcançou a usina e, atravessando suas instalações, estacionou em frente a um galpão que abrigava o laboratório de análises químicas e físicas. Agilmente, a garota de calças jeans saltou da cabina batendo com força a porta do veículo atrás de si e caminhou energicamente em direção à porta do galpão. Leonor de Almeida Loppez de Albuquerque era estagiária na usina. No final do ano terminaria seu curso
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de engenharia com especialização em metalurgia. Isabel, sua chefa e amiga, química responsável da empresa, já se encontrava no laboratório. — Que horas são? — perguntou Leonor ao mesmo tempo em que procurava acertar seu relógio de pulso. — Quatorze horas! Você está chegando cada dia mais cedo! — Sei que meu horário se inicia às quatorze e trinta. Mas quero concluir este relatório com as estatísticas de qualidade das matérias-primas e do ferro produzido antes do final do ano — justificou Leonor enquanto vestia seu avental branco. — Você está certa, Leonor! No final do ano você vai terminar a faculdade e também seu estágio. Vai precisar estar preparada para assumir o cargo de gerente industrial, subordinada ao seu tio. Leonor era sobrinha e única herdeira de seu tio paterno, Amâncio Loppez de Albuquerque. Ele era o presidente da empresa e detinha 40% das ações. Leonor, por sua vez, detinha outros 40% que recebera de seu pai quando este faleceu. Os 20% restantes estavam em poder de acionistas. Leonor sabia que, no futuro, deveria substituir seu tio na presidência, pois ele já se encontrava com idade avançada. E quando viesse a falecer, ela teria 80% das ações da empresa. No final da tarde, quase no fim do expediente, enquanto analisava algumas amostras no microscópio, Leonor conversava com Isabel.
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— Neste final de semana eu vou para São Paulo. Pretendo descansar em casa junto de minha família. — Faz muito bem! — estimulou-a Isabel. — Todos os dias você vai à faculdade pela manhã e vem à tarde para trabalhar. Além disso, faz tempo que você tem trabalhado todos os finais de semana. Sua vida é do hotelzinho em Arco-Íris até aqui, e daqui para o hotelzinho! Isso não é vida... — A partir do ano que vem será vida nova, Isabel! Pretendo me organizar para passar todos os finais de semana em minha casa, em São Paulo. A conversa das duas foi interrompida pelo toque do telefone. Isabel caminhou até sua escrivaninha, sentou-se em sua poltrona e atendeu. — Leonor! — chamou Isabel colocando o fone no gancho. — O doutor Amâncio pediu para você passar na sala dele antes de ir embora. Do laboratório até a diretoria, onde ficava a sala do presidente, era uma distância razoável. Leonor decidiu então atravessar a usina em seu carro. O Jipe passou pelo depósito de lingotes de ferro, pelos dois altos fornos e pelo pré-tratamento de minério, chegando até o prédio da diretoria que ficava próximo à portaria. Na antessala da presidência, Leonor ficou aguardando até que dona Idione, a secretária, convidou-a a entrar. — Leonor!!! Como vai você minha querida sobrinha? — recebeu-a tio Amâncio, deixando sua poltrona e caminhando em direção à moça para abraçá-la. — Oi, tio! — correspondeu Leonor, beijando afetuosamente as faces do tio Amâncio.
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— Você tem um tempo para a gente conversar? — perguntou tio Amâncio apontando para um conjunto de sofás com uma mesa de centro, localizado em um dos cantos da grande sala da presidência. Tio Amâncio esfregava as mãos não escondendo que tinha algo muito importante para dizer. — Xiii! Será que o senhor desistiu de me dar o cargo de gerente industrial? — comentou Leonor, sorridente. — Não, não, não! Não é isso não! — assegurou tio Amâncio, enquanto eles se acomodavam nos sofás. Antes que começassem a conversar, a porta da diretoria abriu-se e entrou a secretária. — Doutor Amâncio! O senhor e sua sobrinha desejam algo para beber? Água, chá, café... Tio Amâncio olhou para a sobrinha para que ela se manifestasse. — Um copo de água sem gás e um chá, por favor! — pediu Leonor. — O mesmo para mim, dona Idione! Tio e sobrinha tomavam chá com bolachas enquanto conversavam coisas corriqueiras sobre a família. Era uma forma de preparo para o assunto que estava por vir. Leonor adorava seu tio, irmão de seu falecido pai. Admirava a elegância e os modos refinados daquele senhor de 70 anos que, desde que o irmão falecera, a protegia como se fosse sua própria filha. Os cuidados de tio Amâncio tinham aumentado ainda mais depois que a mãe de Leonor também viera a falecer.
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Embora tio Amâncio morasse sozinho em uma luxuosa mansão em Arco-Íris, e Leonor morasse em São Paulo com sua tia materna Jolly, e com duas irmãs mais novas por parte materna, ela considerava o tio um segundo pai. Dona Idione voltou para pegar a bandeja e depois se retirou, deixando tio e sobrinha sozinhos na grande sala. Finalmente, os dois estavam prontos para iniciar a conversa. Leonor olhava curiosa para o tio, esperando para saber de que se tratava. Tio Amâncio percebia a curiosidade da moça, mas não sabia como dar início ao assunto. — Querida! Você sabe que eu a amo muito... Você é a única pessoa que restou de minha família. Olho para você e lembro com enorme saudade de seu pai... Meu irmão! Tudo que eu desejo na vida é a sua felicidade... Tio Amâncio, confortavelmente recostado no sofá, de pernas cruzadas, esfregava as mãos enquanto olhava para o ar procurando as melhores palavras para entrar efetivamente no assunto. Leonor, graciosa com sua calça jeans e blusa branca, sapatos tipo plataforma, grandes brincos de argola e braceletes dourados, ouvia com atenção. Começou a estranhar aquele rodeio de seu tio para entrar no assunto. Não era o estilo dele! Tio Amâncio era um homem extremamente prático e objetivo. — Pois então! — continuou ele. — Quando seu pai estava nas últimas, você tinha apenas cinco anos... Aí, eu jurei a ele que cuidaria de você enquanto fosse vivo. Leonor franziu a testa tentando adivinhar onde ele queria chegar.
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— Depois, quando sua mãe faleceu, e aí você já estava com dezoito anos, prometi também a ela que cuidaria de você e das duas filhas do segundo casamento dela, pois ela tinha ficado viúva pela segunda vez, dois anos antes. Leonor continuava séria, com as sobrancelhas arqueadas, estranhando toda aquela formalidade e o cuidado com as palavras que seu tio usava. — Tio! O senhor já me falou que não mudou de opinião quanto ao meu cargo de gerente industrial. Até onde sei, sua saúde está ótima. A empresa vai muito bem. Também não há nada de errado comigo, com minhas irmãs e com a tia Jolly... Portanto, não posso imaginar o que o senhor está tentando me dizer com toda essa diplomacia! Tio Amâncio sorriu. Levantou-se do sofá e foi até o aparelho de ar condicionado e pôs-se a regulá-lo. — Não acha que está muito gelado? Vou regular para diminuir o frio! Leonor não respondeu. Olhava intrigada para cada movimento dele. Tio Amâncio voltou a sentar-se, desta vez bem na extremidade do assento, longe do encosto. Ficou em silêncio por alguns segundos, com as palmas das mãos juntas e o queixo apoiado nos polegares. — Estou preocupado com seu futuro, Leonor! — Com o meu futuro??? Por quê??? Tio Amâncio não se sentia confortável para explicar a razão de sua preocupação. — Tio! Eu estou terminando a faculdade! Adoro meu trabalho! Estou entusiasmadíssima com meu novo cargo no início do ano. Estou ótima de saúde. Todos em casa estão bem, não temos nenhum problema financeiro...
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— Pois é. Você está com 23 anos... — Sim! E daí??? — Estou preocupado com seu casamento! Leonor parou de falar e olhou fixamente nos olhos do tio. Sua fisionomia demonstrava que ela ficara ainda mais confusa. — Casamento??? Mas eu nem estou noiva... Nem tenho um namorado firme! — É exatamente por isso que estou preocupado. — O senhor acha que estou ficando velha? É isso? — Nããõ! Imagine! — Mas então... — Estou preocupado com seu futuro marido... Ou melhor! Com quem vier a ser seu marido! Leonor abandonou sua postura sorridente e descontraída franzindo fortemente a testa. Percebeu que, fosse o que fosse que seu tio estivesse querendo dizer, deveria ser algo muito importante. Passou a olhá-lo com ar de indagação e certa preocupação. Tio Amâncio sorriu bondosamente procurando descontrair a sobrinha. Pigarreou, respirou profundamente e começou a falar num tom de voz mais grave. — Nossa empresa está passando pela melhor fase desde sua fundação. Pena que seu pai e seu avô não estejam aqui para desfrutar dessa realidade. Eles ficariam tão orgulhosos!!! — Ahhh! Sei!!! — balbuciou Leonor. — A qualidade de nosso produto, o ferro gusa, está esplêndida. Nunca nossas vendas locais e as exportações alcançaram índices tão altos. Nossa situação econômica e financeira é invejável.
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— Eu estou a par de tudo isso, tio!!! E sei que essa situação deve-se, principalmente, à sua competente administração... Mas... O que isso tem a ver com meu futuro casamento? Tio Amâncio levantou-se novamente do sofá e dirigiuse a um pequeno barzinho. Retirou uma garrafa de uísque e um copo. Mostrou a garrafa para Leonor e perguntou: — Aceita? Leonor recusou balançando a cabeça. Raramente ela vira seu tio tomando alguma bebida. Aquele barzinho era usado apenas quando algum cliente ou fornecedor muito importante era recebido na empresa. Tio Amâncio sentou-se no braço do sofá segurando seu copo de uísque. Tomou um gole, pigarreou novamente e continuou a falar. — Eu estou com setenta anos, Leonor! Embora eu esteja bem de saúde, não viverei para sempre! Na verdade, penso em ficar no comando da empresa por mais cinco anos. Cinco anos serão suficientes para você adquirir os conhecimentos mínimos necessários para me substituir na presidência da Loppez de Albuquerque. Leonor levantou-se do sofá. Foi até o barzinho onde seu tio deixara a bandeja com a garrafa de uísque. Pegou um copo e serviu-se. Tio Amâncio sorriu sem sair do braço do sofá onde estava sentado. Não imaginara que sua sobrinha iria servir-se da bebida. Leonor voltou em direção ao tio e, de pé, brindou erguendo o copo. Tomou um gole, fez uma careta, e disse: — Muito bem tio Amâncio! Diga de uma vez o que o senhor tem para dizer.
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— Leonor! Você pode avaliar perfeitamente a responsabilidade que você vai ter quando eu faltar. Dirigir uma empresa deste porte não é para qualquer pessoa! — Sei disso! — Você também vai herdar todos meus bens e imóveis, os quais têm de ser administrados corretamente! — Sei disso também, tio. Mas não vejo por que o senhor, ou eu, devamos nos preocupar com isso agora! — A pessoa que vier a desposá-la terá uma forte influência, positiva ou negativa sobre tudo isso. Dependendo de como será essa pessoa... — É verdade, tio. Mas só me casarei com uma pessoa que eu ame e confie. O resto pertence ao destino! — comentou Leonor voltando a sentar-se no sofá. Por alguns minutos, Amâncio e Leonor permaneceram em silêncio, perdidos em seus próprios pensamentos. Repentinamente, Amâncio levantou-se, deixou seu copo vazio na bandeja e encarou Leonor no fundo de seus olhos. — Conheço alguém que poderia ser um marido ideal para você! Leonor levantou-se num salto do sofá e encarou o tio com olhar de indignação e censura ao mesmo tempo. — Tio!!! — Desculpe intrometer-me em sua vida desta forma, minha sobrinha. Mas creio que estou agindo em seu benefício. Leonor, sem disfarçar a contrariedade, deixou seu copo na bandeja e, ainda de pé, olhou novamente para o tio que a fitava seriamente.
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