O milagre 15

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O Milagre



Marques da Rosa

O Milagre

SĂŁo Paulo 2016


Copyright © 2016 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Felippe Scagion

Diagramação

Editora Baraúna

Revisão

Andrea Bassoto

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ R694m Rosa, José Luiz Vaz Marques da O milagre / José Luiz Vaz Marques da Rosa. - 1. ed. - São Paulo : Baraúna, 2016. ISBN 978-85-437-0724-2 1. Jesus Cristo - Ensinamentos. 2. Fé. 3. Cristianismo. I. Título. 16-37674

CDD: 232.904 CDU: 27-31-475

________________________________________________________________ 09/11/2016 10/11/2016 Impresso no Brasil Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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Jesus abençoa as crianças

“Apresentaram-lhe então crianças para que as tocasse; mas os discípulos repreendiam os que as apresentavam. Vendo-o, Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham. Em verdade vos digo: todo o que não receber o Reino de Deus com a mentalidade de uma criança, não entrará nele”. Em seguida, abraçou-as e abençoou-as, impondo-lhes as mãos”. Evangelho Segundo São Marcos, Cap. 10, Vers. 13,16.



Prefácio O escritor Marques da Rosa acaba de nos presentear com um magnífico livro: “O Milagre”. Trata-se de um precioso catecismo escrito em linguagem erudita e atraente que, com prazer, despertada a curiosidade de saber o desfecho, o leitor o lê quase de um só fôlego. É um livro didático, informativo e de formação teológica exarado numa linguagem, muitas vezes, feita de imagens vivas e poéticas. Como bom didata, ele faz o leitor percorrer a estrada palmilhada por três crianças e seus pais. É a pedagogia de Deus, no maior respeito ao livre-arbítrio do ser humano, é a descoberta paulatina do homem em busca incessante da verdade plena. No quadro das circunstâncias que vão surgindo na vida dessas três crianças, cada qual com sua índole própria e seu caráter diverso, vai gerando e desenvolvendo a semente da Palavra geradora de vida, fruto do inusitado encontro entre o visitante misterioso e as inteligentes e puras crianças, curiosas e sedentas de verdade. Cada personagem, respeitada a sua 7


individualidade, faz sua experiência envolvida no mistério da busca e na ansiedade da descoberta. A confusão, provocada pelo encontro, aos poucos vai se diluindo na medida em que o diálogo avança, mesmo quando há, aparentemente, resistência por parte de uma delas. O autor, com maestria, define cores vivas e imagens elucidativas, o que se entende por mistério da Santíssima Trindade e ainda qual foi a missão de Jesus Cristo sobre a terra, movido todo o tempo pela presença do Espírito Santo na tradicional representação de uma pomba branca. Aos poucos, pacientemente, Marques da Rosa vai conduzindo as três crianças para essa descoberta libertadora. Em nenhum momento a leitura é cansativa ou enfadonha. Na medida em que se avança percorrendo as páginas, aguça-se a vontade de saber mais sobre o enredo do livro. E aí, tudo surpreende e encanta. O autor aproveita para fazer um esclarecimento e educação política para os três amigos. A linguagem é atualizada, é dos nossos dias. Ele conseguiu, dentro de uma linguagem à altura da compreensão dos três garotos, transmitir verdades profundas iluminadas pelo Evangelho. De uma maneira sutil e quase imperceptível, ele vai conduzindo, como bom pedagogo, o leitor, assim como os garotos, a descobrir quem é Jesus e a quem ele revela. Isto é, retira o véu do ceticismo dos pais de um deles. O lugar, o cenário bucólico e a beleza da descrição contribuem para enquadrar a profundidade da mensagem, já 8


que Deus não fala, mas tudo fala de Deus, uma vez que você procura vê-lo com os olhos da fé. No início tratava-se de um sinal esdrúxulo surgido das alturas, envolto por um misterioso barulho que, aos poucos, se tornou uma luz branca e forte envolta por um vento suave tranquilizando os meninos que era amigo e portador de paz. Tratava-se de um homem de aparência dócil, pretendendo deixá-los à vontade e sempre lhes oferecendo um plácido sorriso, muito embora deixando sempre em suas cabeças uma incógnita sobre quem ele era. Quase um enigma a ser decifrado que suscitava curiosidade e interesse. Em contrapartida Jesus responde a eles três transmitindo-lhes a sua identidade e missão neste mundo e falando-lhes do mundo após a morte. Marques da Rosa soube, com muita firmeza e paciência, conduzí-los a esta maravilhosa descoberta, atingindo o ápice da montanha fazendo desaparecer totalmente o ceticismo de um dos personagens. Para a fé, há caminhos diferentes na experiência de cada crente. Por vezes, há atalhos, algumas vezes só caminhamos graças a alguém que nos mostra a estrada. Outras, como que engatinhando sozinhos, percorrendo aqui e acolá atalhos, chegamos à meta; por vezes até desconhecida. O autor foi muito feliz na tarefa a que se propôs. Parabéns! Desejo que este livro faça um bem enorme ao leitor. E o autor se sinta gratificado pela obra que produziu em favor de quantos o lerem. E, finalmente, assim como Juliana e seus pais, todos façamos a descoberta encantadora da pessoa de Jesus Cristo. 9


Tudo isso justifica o mais que adequado título do livro “O Milagre”, porque crer é o milagre por excelência. E Deus se revela de preferência aos humildes e pequeninos. Cônego José Mário de Medeiros Da Academia Norte-Riograndense de Letras Natal, RN, outubro de 2016

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Capítulo Primeiro O dia na escola da pequena cidade do interior do estado havia terminado. Mais um, para enorme alegria dos alunos, que logo procuravam o quanto antes abandonar o prédio com o intuito de rumarem para suas casas. O amontoado e o frenesi de alunos junto ao portão principal da escola eram rotina diária daquelas almas inocentes. O barulho era ensurdecedor, pelas inúmeras vozes masculinas e femininas escutadas de forma rápida, a ponto de misturarem as palavras como reação natural das inocentes crianças extravasando de contentamento por mais um dia vencido de suas atividades escolares. Aos poucos, os alunos foram se dispersando e a cada segundo que passava o lugar foi ficando vazio, calmo e tranquilo. Até que três crianças, duas de um lado e outra na outra extremidade do portão, se deram conta de que eram as únicas que ainda restavam daquele que parecia ser um formigueiro assanhado minutos antes. Naturalmente, as três trocaram simples 11


olhares, para depois, sem esconderem sua apreensão pela demora de seus pais, passarem a trocar olhares com mais frequência. Como qualquer criança da idade daquelas três almas inocentes, a vontade de se dirigirem umas às outras não demorou a se manifestar. O que movia cada uma delas era a natural curiosidade e solidariedade, instinto da própria essência de cada uma delas. Se uma se encontrava disposta a falar, nem que fosse somente para tomar conhecimento do nome da outra, naturalmente que as demais se encontravam igualmente dispostas a escutar, a responder e vice-versa. Coisa mais que natural para o ainda mundo mágico daquelas crianças. Seus olhos esbugalhados almejavam que alguém tivesse coragem de tomar a iniciativa. Não demorou muito — e nem foi preciso alguém tossir ou forçar uma situação — a mais destemida disse: — Papai hoje está demorando — falou mais para si, mas o suficiente para que as demais pudessem escutar. — O meu também — disse a outra, junto da primeira. — A mãeinha também está atrasada — disse a outra do outro lado do portão, enquanto se aproximava das demais. Ao chegar perto, disse-lhes: — Me chamo Flávia. E tu? — Eu sou Juliana. — E tu? – Flávia virou-se para o menino. — Francisco — tímido, respondeu. — Pronto! Já estamos todos apresentados — disse Flávia, com um leve sorriso no rosto. 12


A seguir, Flávia, uma linda menina de oito anos de idade, olhos azuis, cabelos louros, filha de um casal de classe média, o pai, um funcionário bancário, a mãe, uma exímia cozinheira, a mais divertida e excêntrica de todos, puxou conversa. Em pouco tempo, os três já se encontravam em animada conversa, até que dada altura foram interrompidos pela voz grossa e alta do porteiro da escola, que ao vê-los ainda ali estranhou. Preocupado, indagou sem destino certo: — Os meninos ainda por aqui? Cadê seus pais? — Parece que se esqueceram de nós, senhor Carlos — respondeu Flávia, com um sorriso largo no rosto, provocando sorrisos contidos nos demais. — Estou vendo que sim menina — replicou o porteiro — Não fiquem aqui fora que pode ser perigoso. Venham para dentro até que os vossos pais resolvam aparecer — arrematou, sugerindo. Sem titubearem, os três acataram a sugestão do porteiro. Já do lado de dentro das dependências da escola, os três ficaram juntos, numa sala anexa à portaria, em animada conversa, até que o tempo foi passando, foi passando, foi passando… Quando se deram conta, já haviam passado cinquenta minutos. Foi aí que Flávia acabou por fazer uma proposta aos demais, depois de suas tentativas frustradas de contactarem seus respetivos genitores com o único celular disponível, o de Juliana, que logo se ofereceu para ajudá-los. Foi evidente a solidarieda13


de, ato mais que natural para crianças daquela idade. Mesmo sem lograrem êxito, ainda restava uma réstia de esperança visível em seus rostos angelicais. Assim que o porteiro deu o primeiro vacilo, já combinadas, as três crianças vislumbraram a oportunidade de deixarem a escola sem a autorização de quem quer que fosse, em especial do descuidado porteiro. Caminharam pela rua o mais rápido que suas pernas permitiram, até que finalmente diminuíram a intensidade de seus passos, depois que tiveram a certeza de que jamais seriam alcançadas pelos olhares do porteiro que, por certo, ao se aperceber da fuga das crianças, logo enveredaria como primeira medida correr em seu encalço, enquanto seus olhos calejados os ainda avistasse. Na verdade, os pensamentos dos três amigos encontravam-se certos. Assim que o porteiro deu pela falta deles sem que qualquer genitor houvesse comparecido, resolveu procurá-los. Sem perder tempo, tomou as medidas cabíveis no sentido de dar conhecimento à diretoria da escola e só depois aos respectivos genitores. ********** Obviamente, depois que os genitores das três crianças foram avisados, gerou-se um alvoroço, e logo o vulnerável porteiro acabou por ter chamado a sua atenção por seu imperdoável descuido. Ainda assim, a situação foi contornada pela providencial intervenção da diretora da escola, com a promessa de que tal acontecimento jamais seria objeto de nova discussão e 14


chamada seria a atenção fosse de quem fosse dos muitos alunos da instituição. Diante disso, foram mudadas algumas normas internas de procedimento quanto à segurança e à vigilância dos alunos, os quais foram compelidos a obedecer a um conjunto de normas. Enquanto isso, o porteiro foi acusado de leviandade, acabando por responder a uma sindicância. Não obstante os genitores das três crianças haverem ficado preocupados, no fundo eles não estavam nem aí, já que constantemente se atrasavam quando iam buscar seus filhos. Entretanto, justo naquele dia quis o destino que pela primeira vez coincidisse ser justamente com aquelas três crianças, o que foi motivo para que as indefesas, a partir daquele dia, criassem um vínculo e estabelecessem uma amizade para os dias subsequentes e até meses, quando passaram a sair sozinhos da escola logo após terminarem suas atividades curriculares. Os pais foram avisados pela direção da escola, até que acabaram por aceitar aquela situação, que lhes parecia cômoda e confortável, ao assumirem o risco caso algo viesse a suceder com um dos seus filhos, isentando a escola. Em virtude das suas atividades profissionais, os pais não tinham muito tempo disponível para irem buscar os filhos na escola, confiando piamente na sorte e também na astúcia dos mesmos, de que nada lhes aconteceria. E, assim, a situação foi se tornando recorrente, perdurando por algum tempo. Os pais de Flávia confiavam na filha, tal como os pais de Juliana, um engenheiro constantemente em viagem e a mãe, uma médica pediatra. Os pais de 15


Francisco, pessoas humildes, ele pedreiro e ela diarista, lutavam arduamente, do crepúsculo da manhã até ao crepúsculo da tarde, para garantirem o sustento do filho Francisco e de mais um filho, ainda com meses de vida. E, assim, os três casais, um católico fervoroso, um evangélico e outro ateu, levavam a vida confiando nos filhos e na sua sorte, mas simultaneamente, desprezando-os, não lhes dando a devida atenção e deixando-os “ao Deus do ará”. A vida dos três casais rotineiramente era essa. E foi nesse contexto que as três crianças, Flávia, Juliana — uma moça de dez anos de idade, cabelos longos, lisos e castanhos, olhos verdes e pele branca — e Francisco — um moço de nove anos de idade, cabelos pretos e ondulados, pele morena e nariz achatado —, começaram a sair juntos cada vez que suas atividades escolares eram dadas por encerradas no meio da tarde.

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Capítulo Segundo Os dias foram passando e tal como os pais das três crianças, agora amigas, haviam previsto, muito embora contando com a sorte, nada de anormal aconteceu. Cada vez que saíam juntos, os três brincavam, conversavam e, por vezes, solidária, Juliana, a única que possuía um celular, emprestava o aparelho para Flávia e depois a Francisco, não só para o explorarem, mas também para se divertirem nos jogos que eram oferecidos pelo software do equipamento. Tanto Flávia como Francisco chegavam a efetuar ligações para colegas seus somente para conversar besteira, já que quem pagava a conta eram os pais de Juliana, que haviam lhe facultado o aparelho como recompensa pelas boas notas do ano precedente. Em troca, Flávia trazia uns pastéis de sua casa, confecionados por sua mãe. Já Francisco, nada podia oferecer em virtude da sua condição social e econômica, a não ser esporadicamente, uma pequena sacola de 17


feijão-verde e outros produtos, como frutas e legumes, que fazia questão de entregar com enorme alegria às suas amigas, realçando o fato de haverem sido cultivados no quintal de sua casa, pelos próprios genitores. A amizade dos três era tão pura, genuína e sincera que para eles não importava a condição social. Bastava somente o respeito e a confiança, o que desde o primeiro encontro ficou latente, malgrado de ainda serem crianças, pois sabiam muito bem o que queriam e como deveriam respeitar o espaço de cada um. Quanto ao resto, pura conversa, assim pensava cada um deles. ********** Amiúde, logo após concluírem mais um dia de aulas, os três amigos, sem preâmbulos, deixaram a escola sem serem incomodados pelo porteiro. Nesse dia, as aulas terminariam mais cedo do que de costume. A cada dois meses a instituição facultava esse privilégio aos alunos, dispensando-os das atividades curriculares logo após o almoço. Imbuídos desse espírito, Flávia, Juliana e Francisco haviam combinado de que o passeio dessa tarde sofreria uma ligeira alteração. Em vez de se deslocarem até ao jardim onde diariamente brincavam e conversavam, por iniciativa de Juliana, nesse dia resolveram ir até um lugar ermo próximo da cidade, uma pequena montanha, um lugar aprazível, de muitas árvores e cachoeiras, ponto turístico, onde fariam um piquenique e também se deleitariam em uma pequena lagoa, distante pouco mais de oito quilômetros da cidade. 18


Para que tudo fosse possível, Juliana comprometeu-se a ser a responsável pelo pagamento do táxi, tanto na ida como na volta. Já Flávia responsabilizou-se pelo o lanche, enquanto Francisco somente com a sua companhia, já que lhe era praticamente impossível contribuir fosse com o que fosse, a não ser com algum produto cultivado pelos pais. Todavia, nada disso incomodava as duas amigas de Francisco, pois ambas apreciavam a companhia dele e seu conhecimento, apesar de ser um pouco tímido. Mas seu acanhamento, aos poucos foi-se exaurindo. ********** O táxi estaciona bem na frente do acesso principal à montanha. Além de lindo, o lugar era majestoso, repleto de árvores e flores. Num ápice, o ar puro invadiu as narinas dos três amigos, que logo passaram a desfrutar de uma sensação de bem-estar. O barulho ensurdecedor a que estavam habituados na cidade abruptamente deixou de ser escutado. Em seu lugar, o silêncio passou a dominar, sendo quebrado somente pelo cantarolar dos canários, dos pintassilgos e de alguns insetos mais ousados, como também das quedas de água, que podiam ser escutadas a uma curta distância. O sol, apesar das nuvens dispersas aqui e acolá, resplandecia em seus raios oblíquos e dourados, atingindo o chão iluminando-o, quando não eram impedidos pelas copas das árvores. E era justamente nesse 19


lugar encantador e mágico que os três amigos se encontravam, fascinados com sua beleza extrema. Após combinarem com o taxista e pago o transporte, mediante a cumplicidade daquele, os três, de mãos dadas, sem preâmbulos, resolveram dar início à exploração da pequena montanha, penetrando em seu interior. Por comum acordo, o primeiro lugar a ser visitado seria a grande cachoeira. Malgrado de haverem acabado de adentrar na floresta, o som da queda d’água ao atingir o lago que se formava na parte inferior podia ser escutado a curta distância, motivando ainda mais a ânsia de alcançarem o lugar. E à medida que avançavam pela inóspita floresta, o som da água ia ficando mais nítido e estridente. Então, eles resolveram acelerar os passos, movidos pela enorme vontade de se refrescarem e, quem sabe, até se deliciarem em um gostoso e demorado banho. Não demorou muito, eles alcançaram a grande cachoeira. Embebecidos com a beleza daquele lugar, os três amigos ficaram por um momento petrificados, feito estátuas, apreciando a beleza oferecida gratuitamente pela mãe natureza. E por terem se aproximado em demasia da grande cachoeira, sem se darem conta passaram a ser atingidos por diminutas gotículas de água, deixando seus rostos angelicais levemente encharcados, passando a sentir uma frescura insondável. Não foi preciso nenhum deles expressar o que passaram a sentir. Bastava para tal olhar em seus rostos repletos de felicidade. Qualquer palavra expelida apenas serviria para legitimar seus reais sentimentos, adicionados à sensação de puro êxtase que já os havia 20


deixado totalmente fascinados. Pasmos com a beleza incomum e extraordinária do lugar no qual jamais haviam colocados seus pés, somente haviam escutado algumas referências ao mesmo, permaneceram em silêncio. Porém, cada uma à sua maneira, em seu íntimo, por palavras que a si mesmos pronunciavam, manifestavam sua reação natural diante daquele lugar endógeno, de beleza infinita e recôndita. Com uma enorme vontade de se deleitarem nas águas frias do exíguo lago e da cachoeira, nenhum deles se segurou. Todavia, um esperava pela reação do outro como ponto de partida para o que os três mais almejavam fazer: mergulhar. Flávia, a mais excêntrica, logo estimulou os amigos. Disse-lhes: — E que tal tomarmos um banho, meninos? — sua voz saiu ligeiramente excitada. — Eu concordo — Juliana interveio. — Mas como? Não viemos preparados. Nem toalha trouxemos — observou Francisco, preocupado. — E para nos molharmos precisamos de toalha? Nada disso. E também não precisamos estar preparados. Basta termos vontade, que é o que não nos falta agora — respondeu com um largo sorriso Flávia, enquanto aproveitava a oportunidade para retirar os sapatos e jogá-los longe, aproximando-se da lagoa para verificar a temperatura da água. E colocando os pés na água, disse: — Humm... A água está tão boa! Andem, meninos! Vamos logo! — incentivou-os, enquanto se agachava e com as duas mãos juntas retirava uma porção de água com o intuito de borrifar o rosto. 21


— Ah… A água está uma delícia! Andem, meninos! Venham se molhar! Andem! Estão com medo de quê? Perante o duplo convite de Flávia, os dois amigos trocaram um olhar interrogativo para logo darem de ombros. Ambos haviam aprovado o convite da amiga e tal como ela fizera, retiraram os sapatos, jogando-os para bem longe. Em segundos, os três já se encontravam em suas brincadeiras na água semimorna. A brincadeira foi tanta que os três, sem se darem conta, já se encontravam totalmente encharcados, depois que passaram a jogar água uns nos outros em animada brincadeira, entre palavras ditas e várias gargalhadas. Assim permaneceram por um longo período até que, exaustos abandonaram o lago, mas não sem antes deliciarem-se por vários segundos debaixo da queda d’água da cachoeira, enquanto, com alguma intensidade, o líquido lhes trespassava o frágil corpo, a ponto de terem que fazer certo esforço para se equilibrarem em pé, até que a água atingisse o chão. E a água em queda era tão gélida que os três amigos sentiam seus ossos e corpos se contorcerem de frio. Mas nada disso os deixava preocupados. O importante era seu divertimento e isso eles faziam com prazer, alegria e satisfação. ********** Já do lado de fora da lagoa, os três amigos, num gesto natural, deitaram-se de barriga para cima e de mãos dadas, enquanto conversavam sobre a mais recente aventura. 22


Aos poucos foram recuperando. Seu estado de absorto, de desconcentração e relaxamento era tal que não se deram conta de que os raios oblíquos do sol os atingiam. Foi quando observaram que seus corpos e roupas já haviam secado completamente. Juliana ia falar alguma coisa quando foi impedida, ao tomar um susto, tal como Flávia e Francisco, pois um enorme estrondo irrompeu no horizonte. Conforme os segundos foram passando, a intensidade foi diminuindo, no entanto, o barulho não cessou, passando a ser similar a um fio de voz ou de vento que, aos poucos, foi se aproximando. Assustada e com a voz abafada pelo medo, Flávia deixou escapar: — É trovoada que vem aí. Ainda bastantes assustados, os três amigos num átimo de segundos, ergueram-se, passando a olhar por instinto para o céu em toda sua extensão e plenitude. Todavia, para sua enorme surpresa, as poucas nuvens claras existentes, não indicavam tratar-se da aproximação de alguma intempérie ou algo similar. O que seria, então, aquele sinal esdrúxulo, do qual não tinham dúvida ter surgido das alturas? Rápido, os três amigos conjeturaram para si mesmos, conquanto sem vislumbrarem o que quer que fosse. Perante a incerteza e a dúvida do que seria aquele estrondo inédito ficaram preocupados, pois aquele enigmático barulho, na forma de um eco contínuo, continuava cada vez mais intenso, ainda que suave, indicando que se aproximava lentamente. Para si mesma, Flávia chegou a ponderar de que seria uma nave espacial de outro planeta, transportando 23


temíveis extraterrestres. Mas no céu para onde convergiam seus olhos esbugalhados e assustados nada podia ser avistado. Diante disso, preferiu o silêncio, evitando vedados comentários dos demais. Foi melhor assim. Diante do mistério daquele barulho que não cessava nunca, os três amigos passaram a olhar para todos os lugares imagináveis até que, finalmente, chegaram à conclusão de que algo de anormal e estranho estaria para acontecer — ou já estaria acontecendo —, dada a insistência do estranho barulho que, apesar de constante, não os incomodava, tampouco representava perigo. — O barulho vem dali — Francisco sinalizou com o dedo indicador. Num átimo, os três amigos convergiram seus olhares para a direção indicada, de onde seus ouvidos passaram a assimilar aquele barulho. — É mesmo Francisco. O barulho vem dali — Juliana observou ao fim de vários segundos, ainda olhando para o céu. Subitamente, já próximo deles, uma esfera de luz queimou o céu. Uma luz forte e branca vinha na direção dos três. E antes que a esfera luminosa, acompanhada por um vento suave, porém suficiente para fazer as ramadas das árvores se remexerem ligeiramente, tocasse o chão, ela tomou forma humana. Quando, finalmente, tocou no chão, podia-se observar em sua plenitude se tratar de um homem de olhar doce e meigo, de vestes castanhas claras e compridas. Seus olhos eram azuis e de seu rosto pendia uma leve barbicha. E seu cabelo era comprido. 24


Assustados, de boca aberta e trocando olhares interrogativos, como se perguntando a si mesmos e aos outros quem seria aquela figura de aparência retrógrada, cujos pés se encontravam descalços, que os surpreendia ali, naquele lugar recôndito e inóspito? Sem saberem o que fazer, nenhum deles conseguiu expressar qualquer reação, a não ser se limitarem a fitarem deveras espantados aquele homem, cujas vestimentas indicava ser alguém imortal de vários séculos atrás. A mais ousada — no caso, Flávia — chegou a fazer várias conjecturas de que aquele homem fosse alguma criatura de outro planeta, mas logo descartou essa possibilidade, vez que a compleição, por mais ridícula que fosse, pois seus traços indicava ser alguém do mesmo planeta que o dela. Ao vê-los assim, assustados e simultaneamente curiosos, e uma vez que os três amigos não conseguiam esboçar qualquer reação, a não ser olhos esbugalhados e ressabiados a fitá-lo com extrema curiosidade, o homem, de aparência dócil, fazendo uso de um tom de voz suave e bondoso, disse-lhes, para tranquilizá-los. — Não fiquem assustados e com medo. Eu vim em paz e sou vosso amigo. Ainda ressabiados, nenhum deles ousou se manifestar. Somente trocaram olhares enigmáticos e interrogativos, chegando, inclusive, a formular palavras silenciosas, dando a entender que preparavam uma tática defensiva, combinando também quem deles seria o porta-voz. Enquanto o fizeram, em momento algum desviaram os olhos da inusitada visita. 25


O homem sabia que os três amigos não haviam acreditado em suas palavras. Sendo assim, resolveu insistir, para convencê-los de que sua presença encontrava- se munida dos melhores e nobres propósitos. Em um movimento, resolveu adiantar- se um pouco mais na direção deles. E enquanto o fazia, inadvertidamente colocou um de seus pés sobre um pequeno galho de árvore caído no chão misturado às folhas, pisando em cheio em uma extremidade acentuada, mas sem expressar qualquer tipo de dor ou gemido, o que seria mais que natural. Perante ao que presenciaram, os três amigos ficaram mais assustados ainda. Ao mesmo tempo e por instinto, deram-se as mãos e recuaram uns passos, numa atitude defensiva. — Não se assustem, meus filhos. Já vos disse. Eu vim em paz. Não tenham medo — disse o homem, reforçando o teor da sua visita. As palavras do homem continuavam não produzindo efeito nos ainda ressabiados amigos, que discretamente procuravam por indícios em seu rosto, de que realmente suas intenções eram das melhores, conforme suas palavras. Não obstante o clima não ser de aparente crispação, não deixava de ser um tanto apreensivo e esdrúxulo, pois para os três amigos, uma aparição daquelas, inédita, de alguém com aquelas características, só podia significar alguma coisa. Mas o que seria? Era justamente esse o mistério de suas indagações naquele momento. Porém, eles sabiam que aquele homem não representava perigo algum, porque se assim fosse, 26


certamente já teria acontecido algo. E foi justamente a ausência de qualquer ato provocatório, ofensivo e intimidatório que acabou por deixá-los momentaneamente tranquilos, mas com uma “pulga atrás da orelha”. Confiando com desconfiança, era este o lema dos três amigos naquele exato momento. — Olha que ele não se machucou… — segredou Juliana no ouvido de Flávia e depois no de Francisco — Ele pisou no galho e não gritou de dor. Será que ele é mágico?. Ambos não responderam. Somente acenaram com a cabeça levemente, para depois darem de ombros. Temerosos, os três amigos continuavam fitando o homem, até que um deles se encheu de coragem e falou num fio de voz: — Nós não estamos assustados, senhor — Francisco mentiu — E também não somos seus filhos. Nós temos os nossos pais. Como podemos ser seus filhos? Diga- me? — É verdade, senhor — Juliana disse — Cada uma de nós tem os seus Pais. Como o senhor diz ser nosso pai, chamando-nos de filhos? Será que somos irmãos sem o sabermos, hein? — arrematou, com uma leve ironia. Os três deixaram escapar uma gargalhada efusiva. Um sorriso plácido foi a imediata reação do homem, que continuava em pé diante dos amigos, fitando-os com um olhar doce e meigo. — Então, senhor? Não diz nada? — Flávia perguntou ao vê-lo ficar em silêncio e não reagir à gargalhada dos três. Era justamente isso que ele pretendia, deixá-los à vontade, como que criando o clima propício para que 27


depois pudesse falar no sentido de desfazer equívocos. Diante disso, deixou escapar mais um sorriso plácido. Porém, seu silêncio deixou irritados os três amigos. De novo, Flávia manifestou-se: — O senhor perdeu a língua, hein? Por que nós somos seus filhos se cada um de nós conhece bem os nossos pais? – disse. — Simplesmente porque eu sou o vosso Pai, o Pai de todos — fechando os olhos, respondeu num timbre de voz amistoso, ao fim de um curto silêncio opressivo e simultaneamente expectante. — De todos? — ressabiada, Juliana quis saber — Então, quem são esses todos, senhor? — De vocês três, dos vossos pais, dos vossos avós e de todos os habitantes da Terra feitos à minha imagem e semelhança, conforme o meu Pai. Dos que ainda se encontram encarnados e os que já desencarnaram, meus filhos. Em conjunto, os amigos comprimiram o rosto num gesto de extrema desconfiança. Assustados com as palavras do homem, todos ficaram com uma enorme vontade de falar, daí que suas vozes chegaram a se misturar após aquele homem responder, sem que antes cada um fosse invadido por um rápido e cético pensamento: “Tem cada maluco neste lugar. Este aqui aparece sabe-se lá de onde, caído do céu e diz ser nosso pai. Será que estou no lugar errado?”, foi o que ocorreu a Flávia; “Esse deve ter fugido do manicômio. Faltava agora mais esta! Ser o meu pai e pai dos meus pais e avós. Tem cada maluco... Eu, hein?”, foi o pensamento de Juliana. Já Francisco, preferiu ser 28


mais cauteloso a ter que forçar um pensamento errôneo. Em vez disso, decidiu ser mais metódico. Num segundo, todos eles se viram muito interessados naquele homem misterioso que lhes apresentava bem ali na sua frente, de forma inusitada, inédita e, acima de tudo enigmática, sendo esta última a que gerava maior interesse nos amigos. A seguir, a voz de Francisco se sobrepôs às vozes das meninas, que de igual modo demonstraram interesse em falar, no sentido de ser esclarecida a recente afirmação do homem de aparência exótica e de vestimentas arcaicas. Disse-lhe: — O senhor já reparou que eu e minhas amigas estamos confusos e até não estamos acreditando nas suas palavras… Pois bem, se o senhor é o pai dos nossos pais, dos nossos avós, nosso pai também e de todos os que… — Encarnaram e desencarnaram — polido, o homem interrompeu como que lendo os pensamentos de Francisco. — O que é encarnados e desencarnados, senhor? Olhe, para mim encarnado é a mesma coisa que vermelho. Pelo menos foi o que me ensinaram na escola — confusa, Juliana interveio. O misterioso homem ofereceu um sorriso plácido e, a seguir, respondeu: — Não é encarnado de vermelho. Neste caso, encarnado significa dizer que a pessoa está viva e desencarnado significa dizer que a pessoa está morta no seu corpo físico, todavia o seu espírito ou a sua alma continuam vivos. Entenderam? 29


— Ah, sim. Entendemos, senhor — responderam os amigos, enquanto acenavam a cabeça. Entretanto, em seus olhos lia-se outra coisa: não haviam entendido nadica de nada. O homem sabia disso, mas não se importou. Francisco prosseguiu: — Nesse caso, os encarnados e os desencarnados são seus filhos também. É isso que nos está dizendo, senhor? — Assim o disseste, Francisco. Os três se admiraram, mas ainda mais Francisco. — Como sabe o meu nome? — quis saber. — Eu sei tudo. — É advinha? — Juliana perguntou. — Não, Juliana. — Não? — ressabiada, comprimiu o rosto — Então como sabe o meu nome também? — Acabei de dizer. Eu sei tudo. — E o meu? Qual é? — Flávia testou-o, movida pela exacerbada curiosidade. — Flávia. — Que legal! O senhor sabe tudo mesmo — disse a menina com vivacidade. — Assim o disseste, Flávia. — Então, se sabe tudo — Juliana provocou — Por que não me dá os números da megasena para eu jogar e dividir o prêmio com os meus amigos? — Isso não é a coisa mais importante deste mundo. Aliás, jogo é coisa do diabo. — Isso, sim, é conversa fiada. Você não quer é dar os números da megasena de egoísta que é — respon30


deu ela, simulando estar emburrada. A seguir, continuou provocando-o, dizendo: — Se você sabe tudo como diz, me diz, então, o que é um verbo irregular? — Verbo irregular? — comprimiu o rosto — Parece-me que a pergunta é mais fácil do que a resposta. Mas para quê saber isso? Juliana forçou um sorriso matreiro e disse: — Verbo irregular é aquele que de vez em quando se mete na conversa dos outros e ninguém dá conta. E você igual ao verbo irregular. Apareceu aqui sabe-se lá de onde e se enfiou na nossa conversa — e desatou a rir. Os demais acompanharam- na. O homem não se importou. Francisco prosseguiu, cortando qualquer possibilidade de suas amigas de intrometerem-se. Disse: — Então, os encarnados e os desencarnados são seus filhos também. É isso, senhor? — Assim o disseste, Francisco. E mais curioso ainda, Francisco prosseguiu: — Então, senhor, se o senhor é o pai de toda essa gente, diga-nos: quem é o senhor? De onde veio e o que vem fazer aqui, neste lugar, para se encontrar conosco, se podia ir até lá embaixo na cidade e falar com outras pessoas? — Vocês foram os escolhidos desde aquele dia em que foram esquecidos propositadamente na portaria da vossa escola, meus filhos — respondeu após um momento de profunda reflexão, enquanto fechava os olhos. — Outra vez essa história de meus filhos? — Flávia protestou, demonstrando claramente sua insatis31


fação — Afinal, porque não responde ao meu amigo? Quem é o senhor? O senhor é algum extraterrestre, hein? O senhor veio de onde? Por acaso caiu de algum paraquedas doutro planeta que nós não conhecemos ou que ainda não aprendemos na escola, hein? O senhor aparece aqui, assustando as pessoas, voando sem asas e sem nada, sem sapatos, com essa roupa esquisita, que mais parece de um doido varrido, dizendo que é o nosso pai e quer que acreditemos no que diz e não nos diz quem é. Olhe que nós não somos trouxas! Está me entendendo, senhor das roupas feias? Por acaso o senhor está perdido? Se está perdido, bateu na porta errada. Procure a delegacia de polícia na cidade e diga que foi assaltado, já que está sem sapatos… Afinal, o senhor é algum doido foragido do manicômio? Fale!- exigiu. Uma simples sacudida de cabeça foi a resposta do misterioso homem, que com seu olhar e rosto serenos, parecia uma pedra estática, ali, na presença dos três amigos. Como não respondeu, Flávia prosseguiu. Indagando-o, observou: — Então, se não é doido ou outra coisa que eu não sei, afinal, quem é o senhor? Diga-nos, por favor. — Eu sou o salvador do mundo — respondeu o homem, num tom de voz eloquente. Pasmos com a revelação, por uns segundos fez-se um silêncio gélido e mortal. Ao fim desse tempo, Juliana decidiu se manifestar. Debochando, disse: — Se o senhor é o salvador do mundo como diz, eu sou a presidente da República. 32


Os amigos caíram na gargalhada. O misterioso homem não se importou. Ao invés disso, ofereceu-lhes mais um sorriso plácido. A seguir, disse-lhes: — Eu sou o salvador do mundo — sua voz desta vez saiu incisiva. O impacto da voz do misterioso homem provocou neles susto e apreensão. — O salvador do mundo? — abismados e em uníssono, os três deixaram escapar, repetindo, enquanto trocavam olhares enigmáticos e interrogativos. Novamente, fez-se um silêncio mortal e gélido de poucos segundos, para depois os três caírem na gargalhada com ar de deboche. Riram tanto, entre palavras ditas uns aos outros, que quase morreram de tanto rir. Nesse contexto, deve-se imaginar o que cada uma das inocentes crianças conjecturaram e até falaram umas às outras. E foram justamente essas palavras e gargalhadas que os instigaram mais ainda. A tudo, de rosto sereno, o misterioso homem assistia, achando graça da reação natural e espontânea das três almas inocentes. Rapidamente, os três amigos sussurraram qualquer coisa nos ouvidos uns dos outros, dando a entender que combinavam alguma coisa, quiçá uma estratégia para aprofundar aquela história, que mais se assemelhava a uma brincadeira de um louco, assim julgavam. — Está bem. Vamos fazer de conta que acreditamos que o senhor é, de fato, o salvador do mundo — disse Juliana, ainda com resquícios de um rosto alegre e olhos levemente umedecidos em virtude das gargalhadas efusivas. E como porta-voz naquele momento, questionou: 33


— Então, se é o salvador do mundo — ironizou —, nesse caso deve ser também uma pessoa muito importante, não é verdade, senhor? — Acabaste de afirmá-lo, minha filha. — Outra vez essa história de minha filha? Olhe que eu não sou sua filha coisa nenhuma, mas dos meus pais, um engenheiro muito importante e uma médica — fez questão de ressaltar — Pelo que eu saiba, eles sim são meus verdadeiros pais. — De fato, eles são os teus verdadeiros Pais de sangue, não há como negar, mas acima deles existe alguém superior, que é o Pai de todos. Aquele que é o autor e o criador de tudo o que existe à vossa volta. Juliana não entendeu nada. Ela estava sendo educada e criada com base nas leis e na teoria de que tudo que seja existencial e material originou da intervenção humana e da própria natureza, no seu trabalho contínuo e evolutivo das espécies, e que nada de sobrenatural proporcionou tudo aquilo de que atualmente desfrutava. Juliana era filha de pais descrentes em algo superior, conhecidos por serem adeptos fervorosos do ateísmo. Já Francisco e Flávia tiveram reação oposta ao escutarem as últimas palavras do misterioso homem e logo chegaram à conclusão de que se encontravam perante alguém superior e divino, que comandava tudo e todos em sua plenitude, até as estrelas de outras galáxias. Rapidamente, um lampejo lhes ocorreu quando se recordaram das palavras de seus genitores, cristãos temerosos, e de representares das igrejas que frequentavam — Francisco, a Igreja Católica e Flávia, a Igreja 34


Evangélica —, de que estaria muito próximo a vinda do Messias, o salvador o mundo. Diante disso, os dois chegaram e estremecer, pois sempre haviam escutado que, com toda a certeza, firmeza e convicção, quando o Messias retornasse haveria um julgamento, o juízo final, do qual poucos conseguiriam seu arrebatamento. A forma como lhes fora revelado a história da vinda, a segunda, havia-lhes causado muito medo e incerteza, como se fosse algo deveras sinistro. Daí o medo em relação a esse assunto, que não era tabu para os dois amigos, e que sempre lhes causava uma angústia sufocante, apesar de totalmente convictos de que tal acontecimento nunca se daria em seu tempo. Como crianças inocentes e sem malícia, qualquer maldade, por mais exígua que fosse, praticada inocentemente, seria considerada como uma falta grave perante a Deus, um pecado, e quem pecava naturalmente teria que enfrentar o julgamento do Messias, do qual haveria dois caminhos como destino: ou se salvariam perante ao perdão amoroso de Deus e, consequentemente, o seu arrebatamento ou enfrentariam as chamas do inferno e o diabo, Lucifer, o Satanás, um anjo de luz que se desvinculou de Deus e passou a provocá-lo e a seguir as pessoas de bem com suas artimanhas, queimando eternamente no seu fogo devorador. Flávia e Francisco, pese embora se sentissem seguros conjeturando de que alguma vez tal viesse a suceder, ou que, se realmente sucedesse que fosse em um período longínquo, ainda assim, com a presença daquele homem que mais não era misterioso, decidi35


ram respeitá-lo e venerá-lo a partir daquele momento como se fossem submissos. Ambos sabiam que Jesus era um personagem surpreendente, maravilhoso, bondoso, misericordioso, amoroso e muito mais, pois sempre lhes foram incutidos esses ensinamentos, em meio ao vasto mundo enigmático de conhecimentos, devendo venerá-lo e respeitá-lo. E agora, já que tinham a oportunidade real de conhecê-lo, não podiam jamais dececioná-lo. Ambos se sentiam privilegiados. E não era para menos. ********** Juliana já ia dizer qualquer coisa quando Flávia antecipou-se, cortando-lhe a fala. — O senhor é o filho de Deus? — sem preâmbulos, perguntou. — Assim o dizes, minha filha. Eu sou, sim, o filho de Deus. Tomando todos de surpresa, Juliana desatou a rir, debochando. Enquanto isso, nem Flávia nem Francisco ousaram manifestar-se. Somente se limitaram a olhar perplexos para a amiga e a seguir para Jesus, que os fitava com serenidade e benignidade. A dada altura, Juliana brincou com a situação, quando disse, ainda debochando: — Olhem... Se papai estivesse aqui ia logo dizer que tem cada maluco neste mundo! Como esse aí, que caiu do céu feito um doido varrido, dizendo que é Jesus. Hihihihi… Olhem, eu não sei como ele não 36


disse ser o homem aranha ou um… — tentou lembrar de alguém que fosse similar à fisionomia de Jesus; como não conseguiu, simplesmente acrescentou —… maltrapilho, que é o que mais está parecendo — e dito isso, desatou a rir novamente. Ninguém se manifestou. Como o silêncio persistiu, ela prosseguiu debochando. — Se você é Jesus, então eu sou a primeira-dama dos Estados Unidos da América. Desta vez, Flávia e Francisco não se aguentaram e já iam revidar, manifestando seu descontentamento, quando foram surpreendidos por um gesto de Jesus, transformando um pedaço diminuto de tronco de madeira caído no chão em uma pomba branca, que logo saiu voando rumo ao horizonte. Todos ficaram impressionados com a cena. Até Juliana, que logo cessou de rir, para se calar abruptamente, num silêncio mortal e assustador, enquanto fitava abismada Jesus, com ar de quem se encontrava diante de um fantasma. — Co…como é que fez isso Jesus? — meio assustado, Francisco quis saber. Um sorriso plácido foi a resposta de Jesus, que falou na sequência: — Eu tenho poderes ilimitados, que me foram concebidos pelo meu Pai — disse. — E bote poderes nisso Jesus — extasiada, Flávia comentou. — Posso me aproximar de vocês, meus filhos? — Jesus pediu. 37


Antes que alguém respondesse, os três trocaram olhares interrogativos. Flávia e Francisco acenaram positivamente a cabeça depois, já a cética Juliana reagiu, sacudindo a cabeça num gesto negativo. Ainda assim, não dando importância à amiga, Flavia autorizou-o, dizendo: — Pode sim, Jesus! — falou com vivacidade — Não, não pode! — Juliana berrou, assustando os amigos, demonstrando não se encontrar totalmente convencida quanto à veracidade das palavras de Jesus. — O que é isso, Juju? — disse Flávia, assustada com a amiga. — O que ele fez, de transformar esse pedaço de pau numa pomba, até o diabo é capaz de fazer. Quem me garante que é Jesus se pode também ser o diabo? Eu ainda não estou convencida. Já dizia papai, só acredito vendo. Os dois amigos já iam se manifestar, quando Jesus interveio, assumindo um tom de voz suave e meigo, uma das suas maravilhosas características, e disse, olhando para Juliana: — Com as tuas palavras, minha filha, dás a entender que acreditas no diabo. — Sim, é verdade. Eu acredito no diabo. E daí? — desafiou-o. — Quem acredita no diabo também acredita no meu Pai e no seu filho, Juliana. — Isso é mentira. Eu não acredito não… bem… O rosto de Jesus iluminou-se, expressando um sorriso suave. Havia conseguido confundir Juliana com sua figura retórica. 38


— Está bem. O senhor me convenceu, mas não na totalidade. Está me ouvindo? Olhe, eu sou uma criança, mas não sou trouxa — admitiu, ainda o desafiando — Olhe, só vou acreditar que o senhor é Jesus se você conseguir fazer com que aquela pomba branca volte aqui e fique bem quietinha na minha mão por uns segundos. Se conseguir fazer isso, aí sim, eu vou acreditar que o senhor é Jesus. Então, o que me diz? Jesus olhou com ternura para Juliana e para os demais que, em silêncio, assistiam à atitude ousada da amiga. Ao fim de alguns segundos, ele diz, enquanto se aproxima. — Mas o Satanás também é capaz de fazer o que me pedes, minha filha. Como ficamos? — É ver para crer — foi taxativa. — Tens certeza, minha filha? — Han, han!... — respondeu a menina, acenando a cabeça. — Tens certeza, minha filha? — insistiu. Desta vez, Juliana ficou ainda mais confusa com a insistência de Jesus. Então, demorou a responder, mergulhando numa profunda reflexão. O que pensava, só ela e Deus sabiam. E ainda assim não se deu por vencida, pois disse, após um vislumbre rápido, que lhe surgiu sem aviso prévio. — Mas o diabo sempre se veste de preto, tem uma lança e chifres. Pelo menos é a imagem que conhecemos dele. É verdade ou mentira o que eu estou falando? — É verdade sim, minha filha. Foi o que Juliana quis escutar. Diante disso, matreira e com um sorriso igual, fez um novo desafio. 39


— Olha, Jesus... Já que consegue fazer mágica, quero que fique igual ao diabo e depois pode voltar a esse estado malvestido. Aceita os meus dois desafios? O que me diz? O pedido de Juliana era absurdo para Francisco, que teve a intenção de protestar, mas Jesus, lendo-lhe os pensamentos, ergueu a mão em sua direção, como que lhe pedindo que ficasse quietinho no lugar. Flávia, que tinha a mesma intenção, logo desistiu de sua ideia. A seguir, Jesus virou-se para Juliana e disse-lhe: — Tu ainda és uma criança inocente, mas já muito sabida. Isso é reflexo da tua educação e dos ensinamentos dos teus pais biológicos que incutiram em ti de que não deverias acreditar na existência do meu Pai e na ordem divina como causadora e criadora de tudo o que existe à tua volta. Não é verdade? Juliana comprimiu o rosto. — Estou vendo que está muito bem informado — disse a seguir com ironia, mas Jesus não se importou. Pelo contrário, nutria por ela o mesmo amor que nutria pelos seus dois amigos e por todas as criaturas desse mundo. — Como vês, até os nomes de vocês eu sabia, não é verdade? Desdenhosa, Juliana sacudiu a cabeça e disse: — Humm... Antes de chegar aqui, você já tinha a lista com os nossos nomes e as nossas fotos. Assim fica fácil de adivinhar. Eu quero saber se é capaz de trazer de volta aquela pomba branca e de se transformar no diabo. — É pena de que a tua mente esteja munida de maldade. Sabes, Juliana, tu estás precisando de muita paz interior e de muito amor. 40


Como aquela conversa parecia não lhe interessar, Juliana cortou-a, dizendo: — Anda lá e deixa de falar besteira. Anda, faz aquilo que eu te pedi. Só assim eu posso acreditar em você. Já te disse, é ver para crer. Jesus refletiu por uns segundos. A seguir, circunspecto, disse: — Como filho de Deus jamais posso me transformar no meu oponente, aquele que desafia constantemente o meu Pai e que tenta, a cada segundo, desvirtuar o caminho daqueles que andam na retidão. Jamais posso fazer isso, Juliana. — Por quê? — Porque se o fizer seria uma incongruência, admitindo que os poderes de Satanás sejam mais amplos do que os do meu Pai e, por inerência, os meus também. O meu Pai jamais pode ser comparado a Satanás. Jamais — enfatizou. — Está bem. Isso faz sentido — disse Juliana após ponderar, pois sabia muito bem, desde o início, que seu pedido não fazia o menor sentido. Daí, prosseguiu: — E a pomba? Consegues trazê-la de volta? Antes mesmo de responder, Jesus já havia ordenado que a ave retornasse e em fração de segundos, o vulto de um pássaro de cor branca vinha em direção aos quatro. Surpresos, Francisco e Flávia ficaram maravilhados. Enquanto isso, Juliana acabou por admitir e aceitar que se encontrava diante de um ser excepcional, o mais excepcional de todos, muito embora não fosse cristalina sua reação. No entanto, Jesus sabia que aca41


bara de convencer Juliana, sobretudo quando a pomba branca esperou junto da cabeça dela, para que ela estendesse a mão e a abrisse, com o intuito de recebê-la, conforme as ordens de Jesus. Um leve sinal com a cabeça e Jesus fez com que Juliana completasse o gesto que estava faltando. Ela assentiu e recebeu a pomba branca nas costas da mão direita, sem conseguir esboçar reação. De boca aberta, limitou-se a olhar para a ave, esperando por alguma iniciativa de Jesus, que esperou mais uns segundos, até que falou. — Sai, Espírito Santo — ordenou. A ave não esperou por um segundo convite. Saiu da mesma forma que chegara ali, para voar rumo ao horizonte. ********** Os três amigos ficaram sem saber como reagir ao ver a ave obedecer a Jesus e, sobretudo, como ela entendia as palavras proferidas por aquele ser excepcional. E Juliana, impressionada definitivamente, acreditou que aquele homem de olhos azuis e cabelos compridos, rosto sereno e amistoso, de roupas retrógradas e arcaicas, era mesmo Jesus, o filho de Deus. Ela, mesmo cética em virtude do que lhe era imposto por seus genitores, pese embora de quando em vez escutasse conversas sobre Jesus, seu pai, e de tudo que se relacionasse com igrejas e seus representantes, incluindo do próprio Satanás, não só na escola como em outros lugares, não entendia porque ela 42


e os dois amigos haviam sido escolhidos para aquela oportunidade rara e única quando, na sua cidade e em outros lugares da Terra, havia outras crianças e até outras pessoas mais necessitadas do que elas, tanto espiritualmente como em qualquer outra coisa. Qual o propósito da mais recente aparição de Jesus naquele lugar ermo? E que o filho de Deus pretendia deles se na sua cidade e em outros lugares podia ir ao encontro de outras pessoas mais importantes e influentes, de conhecimentos mais vastos, como líderes religiosos, pastores, bispos, padres, cardeais e até o próprio Papa. Eram perguntas e mais perguntas que ela fazia a si mesma, sem conseguir vislumbrar algo, por mais ínfimo que fosse. Juliana já ia indagar Jesus quando escutou a voz do filho de Deus fazendo um pedido aos três. — Posso me sentar junto a vocês, meus filhos? — Pode sim, Jesus — alegres, após dissipadas as divergências de Juliana, os três concordaram em uníssono, enquanto acenavam a cabeça. Os três se sentaram acompanhando Jesus, quando, inadvertidamente, Francisco reparou nas cicatrizes de seus pés. Curioso, perguntou-lhe: — Jesus, essas marcas nos seus pés são o quê? — Nos meus pés e nas minhas mãos — exibiu-as. — Até nas suas mãos Jesus? — curiosa, Flávia manifestou-se. — Sim, até nas minhas mãos — suave, observou. — E porque você está com essas marcas? Levou porrada, foi? — Juliana quis saber. 43


Um sorriso leve foi a reação natural de Jesus, que disse, na sequência, com o intuito de esclarecer a exacerbada curiosidade dos três amigos, mais a de Juliana. — Não foi porrada, mas foi quase. Animada, Juliana riu com satisfação. — Eh, Jesus! O senhor já foi danado como nós! Deve ter levado poucas, não foi? — Juliana acrescentou, brincando. Os três amigos riram com gosto. Jesus achou graça do riso genuíno dos amigos, para prosseguir depois. — Estas cicatrizes — exibiu-as novamente — nas minhas mãos e pés são as marcas deixadas quando eu fui cruxificado e morri na cruz do Calvário, há quase dois mil anos. — Vixe, Maria! — Flávia deixou escapar. Os demais comprimiram o rosto e permaneceram em silêncio, corroborando com a pronta reação da amiga. De novo Jesus achou graça e sabia que aquela conversa ia ser animada e que com certeza daria pano para muitas mangas. O rosto interrogativo e curioso dos três amigos era indicativo de que lhe fariam muitas perguntas. Ele não se importou com essa possibilidade, já que adorava conversar com crianças. — Você foi morto há quase dois mil anos e ainda está com essas marcas nos pés e nas mãos? Elas não saem nunca? — Flávia quis saber. — Elas vão perdurar por toda a eternidade. — Por quê, Jesus? — Olha, Flávia, estas cicatrizes ou marcas, como vocês queiram chamar, representam e comprovam que eu morri para vos salvar. 44


— Para nos salvar? – Juliana parecia não entender. — Sim, para vos salvar. — Como assim, Jesus? – confusa, Flávia quis saber — Como é que mesmo morto, podia salvar alguém, como eu e os meus amigos? Jesus deixou escapar um sorriso compreensivo. A seguir, após um curto compasso de espera, falou: — Olhem, meus filhos, eu vim ao mundo para oferecer a minha vida em favor da salvação da humanidade. Ao morrer, eu assumi os problemas para depois conceder as soluções. Eu morri para possibilitar a vida. Por isso fui pregado na cruz, meus filhos. — Ah, sim... — falou Juliana mais para si, sem nada entender. Enquanto isso, os demais nada comentaram, pois aquela narração, por mais cristalina que fosse, ainda assim lhes causava muita confusão, a ponto de se perguntarem como é que alguém como ele teve coragem de aceitar morrer de uma forma tão sinistra, covarde e cruel, para salvar toda a humanidade? Só alguém realmente muito especial, munido de muita misericórdia e amor infinito, podia se sujeitar a uma situação como essa. Era justamente esse o mistério que causava muita confusão neles, todavia, nenhum deles teve coragem para questioná-lo a respeito, por medo de sua reação, sabendo, antecipadamente, caso o indagassem, que a resposta poderia deixá-los ainda mais confusos. Foi melhor assim, cada um se reservar em seu silêncio. Juliana, a menos informada, prosseguiu, indagando-o. 45


— Jesus, e quando você foi pregado na cruz, doeu muito? — Sim, doeu muito, Juliana. Mas foi uma dor que valeu a pena suportar, já que a minha morte tinha um propósito, salvar a humanidade. — Vixe, Maria! Imagino a dor! — Francisco exclamou — Eu mesmo não queria passar por uma morte dessas, sendo pregado com uns pregos daquele tamanho feitos à mão. Olha que aqueles pregos não eram como os pregos de hoje, mais maneiros e fabricados por máquinas modernas. Eu falo assim porque papai é pedreiro e de vez em quando carrega a caixa de ferramentas lá em casa e eu vejo o tamanho dos pregos. — Assim o dizes, Francisco. A época era outra e os pregos também. Acredito que os pregos da atual época realmente sejam, como tu dizes, mais maneiros — arrematou, com um leve sorriso no rosto. Os três amigos deixaram escapar um sorriso, quando resolveram falar simultaneamente. Todavia, astuta, Flávia percebeu e elevou o tom da voz, para se sobressair. Os demais não se importaram, pois sabiam que oportunidades não lhes faltariam, já que Jesus lhes dava mostras de ser detentor de uma paciência ilimitada, demonstrando seu interesse em responder a todas as questões. — Sabe, Jesus, eu sempre ouvi o pastor da minha igreja dizer que nunca existiu neste mundo uma pessoa tão maravilhosa como o senhor. — É verdade, Flávia. O pastor da sua igreja confirmou a mais pura verdade. Eu sou, sim, um ser maravilhoso. E mais! Eu diria um ser extraordinário. 46


Juliana aproveitou para brincar. — Olha, Jesus, não sei como o pastor não disse à minha amiguinha que também era convencido. E bote convencido nisso! — e dito isso, desatou a rir. Os demais acompanharam-na. Até Jesus acabou sendo contagiado pelo sorriso genuíno dos três. Tomando todos de surpresa, Jesus aproximou-se mais e estendeu os braços. Os três amigos não titubearam. Do mesmo modo estenderam os braços, oferecendo- os a Jesus, que logo os abraçou. O calor humano desse abraço foi tão intenso que qualquer um deles jamais haviam experimentado uma sensação tão excepcional e indescritível como essa. Após se desvencilharem, Flávia já ia prosseguir, quando Jesus se antecipou. — Eu sou feito de carne e osso, como vocês podem verificar, mas devido à minha posição sublime e divina, não me é permitido extravasar em algumas situações como essa, de que sou convencido — de igual modo, brincou. Os três riram levemente. A seguir, Flávia prosseguiu: — Jesus, o pastor lá da minha igreja disse também que quem te matou foi o Pilatos, depois que o Judas te entregou. Ele falou a verdade? Jesus achou graça da pergunta. — Digamos que sim — ponderou, após um curto compasso de espera — Repara bem, Flávia, não foi o Pilatos que me matou fisicamente, todavia, ele foi, sim, quem autorizou e deu cumprimento à sentença de me executarem cruxificado na cruz, com aqueles pregos ortodoxos e não maneiros — brincou, provocando um leve 47


sorriso nos três amigos — A minha morte já estava prevista por ordem do meu Pai, segundo as sagradas escrituras. — Não foi o Pilatos, Jesus? – parecia confusa. — Não foi ele, Flávia — meneou a cabeça —, Quem me executou em termos materiais foram os homens do passado, como eu disse, há quase dois mil anos. Mas eles não foram os únicos a fazer isso. — Não? – deveras interessada, Juliana antecipou-se a Flávia. — Infelizmente, não. É difícil explicar, mas eu vou ser o mais breve e conciso possível, para que não fiquem dúvidas nessas vossas cabeças confusas. A minha morte foi causada pelo pecado da humanidade e se assim foi, é de se concluir que todos os seres racionais têm a sua parcela de culpa, no caso, no passado, ou seja, à época, pois se não houvesse pecado e pecadores na face da Terra, eu jamais teria morrido por eles. — E você morreu por essas pessoas que sequer conhecia? É isso que está querendo nos dizer? – Francisco interpelou. — As tuas palavras foram corretas. Todos se impressionaram com a resposta. Juliana resolveu observar: — Minha nossa! Isso é coisa de louco mesmo! Morrer por quem não se conhece e ainda por cima pregado na cruz, com pregos que mais pareciam picaretas. Eu, hein! Eu mesma não seria capaz de fazer uma coisa dessas. Imagino o seu sofrimento, Jesus. Jesus ofereceu um sorriso compreensivo e a seguir, surpreendeu-os ao afirmar. 48


— Eu só não o fiz, como aceitei fazer a vontade do meu Pai. — Bacana, Jesus. Isso é bacana. Agora vejo que você é mesmo uma pessoa extraordinária! — alegre, Flávia acrescentou. Brincando de novo, Juliana deixou escapar. — Cuidado, amiguinha. Não o elogie tanto senão o convencimento dele chega no céu tão rápido tal qual ele apareceu aqui, não se sabe como vindo de lá. Todos riram com gosto. Até Jesus, que não conseguia ter raiva, acompanhou-os, para logo esclarecer, dizendo: — Tal qual como neste tempo, em que o mundo está completamente ausente de valores, naquela época o mesmo se passava, embora sejam épocas distintas. Mas a minha primeira vinda tinha um propósito, conforme as sagradas escrituras… Curiosa, Flávia interrompeu: — Que sagradas escrituras são essas Jesus? É a Bíblia? – quis saber. — Digamos que sim, Flávia. — Como assim, Jesus? – confusa, Flávia quis saber mais. — Aquilo que se chama de sagradas escrituras é o conjunto de escritos inspirados nos sagrados da primeira e nova aliança com o meu Pai e os homens. — E nós, as mulheres? Não? – Juliana antecipou-se a Flávia. — Quando eu falo nos homens, estou generalizando. A humanidade é composta por homens e mulheres, mas como o homem foi o primeiro a ser criado 49


por Deus à Sua imagem e semelhança, o meu Pai, ficou estabelecido por Ele que o homem serviria de referência do ser humano no seu todo. Até porque, naquela época às mulheres eram dadas outras atribuições. Entendeste, Juliana? — Han, han!... — confirmou Juliana com um aceno de cabeça, para acrescentar a seguir: — Estava vendo que tinha que reclamar. Hoje em dia, o preconceito e a discriminação são tão grandes que nós, mulheres, somos muitas vezes deixadas de escanteio. — Escanteio? O que é isso, Juliana? – desta vez foi Jesus quem não entendeu o significado da palavra. Matreira, Juliana riu com gosto. A seguir, disse brincando: — Ah! Afinal, você não sabe tudo! Está vendo, Jesus, como os tempos mudam? — Os tempos mudam e a linguagem também — Jesus alfinetou, com um sorriso aberto. Os três amigos mergulharam numa efusiva risada. A seguir, Juliana disse com vivacidade: — Se você soubesse como nós falamos hoje... É melhor nem saber! Escanteio é a mesma coisa que deixar de lado uma pessoa, deixar de fora. Entendeu? — Olhem aí, como eu já aprendi mais uma coisa. Pelo menos esta minha visita já serviu para alguma coisa. Aprendi o que quer dizer escanteio! — brincou Jesus. De novo, os três riram com bastante efusão. E Juliana decidiu brincar de novo. — E quando voltar aqui, cuidado para não ficar de escanteio por aí, porque com a gente isso não aconteceu. 50


— Não obstante a tua relutância, não é Juliana? — O que é isso, Jesus? — Resistência em acreditares que eu sou o salvador do mundo — disse Jesus, brincando. Os três deram uma leve risada. — Posso agora responder a Francisco? — sem destino certo, Jesus pediu. — Pode sim — quem se adiantou foi Flávia. Os demais ficaram em silêncio, como que ratificando. Diante do aval, Jesus prosseguiu, virando-se para Francisco. — Queres realmente saber o motivo de por que morri por pessoas que não conhecia? – perguntou-lhe. — A minha curiosidade está sem limites, Jesus. — Vixe, Maria! Como você fala bem! — falou Juliana admirada, dirigindo-se ao amigo. Um sorriso contido foi expelido por todos, incluive Jesus, que prosseguiu. — Olha, Francisco, mesmo sem conhecer todos os filhos de Deus, meu Pai, tanto faz serem negros, brancos ou de outra raça qualquer, o meu Pai nunca fez distinção, amando a todos de igual para igual. Ele ama um cego, um pobre, da mesma maneira que ama um rico ou uma criancinha. Qualquer criatura, independentemente do que ela seja, o meu Pai a ama do mesmo modo, porque todos são seus filhos. E isso encerra qualquer discussão a respeito. O amor Dele é infinito… Polida, Flávia interrompeu para observar. — Nesse caso, você, como filho de Deus, também é nosso irmão. É isso, não é? 51


— Maneiro! — antecipando-se, Juliana disse — Ai, como é bom ter um irmão como o Jesus. Pelo menos ele não é malandro e gosta de nós, não acham? Os dois amigos responderam somente com um acenar de cabeça, porém, em seus olhos podia-se ler em como almejavam que assim fosse, tamanha a mensagem cristalina como a água que deixaram escapulir. — Está bem — Jesus prosseguiu com uma enorme vontade de pedir para não ser interrompido, mas perante o olhar doce, meigo e curioso dos três amigos, não foi capaz de prosseguir na sua pretensa intenção. Em vez disso fez uso de um trocadilho, na tentativa de obter êxito: — Agora sim, acho que vou, finalmente, conseguir explicar o que tanto causa curiosidade no Francisco — forçou um sorriso enquanto se virava para o rapaz e continuou: — Pois bem, Francisco. Todos vocês já têm conhecimento de que eu vim ao mundo pela primeira vez para morrer no lugar do ser humano. O meu sacrifício de amor na cruz do Calvário era o único meio de salvação de toda a humanidade, especialmente a pecadora, e toda a salvação é efetuada com base na graça do meu Pai e não nas realizações dos homens. O que eu quero dizer com isso? O meu Pai me concebeu através do Espírito Santo e me atribuiu várias missões, mas a mais importante de todas foi aceitar morrer na cruz para que toda a humanidade se salvasse. Por isso, eu disse há pouco que eu era uma pessoa extraordinária e, acrescento agora, admirável. Digo isso simplesmente porque aceitei morrer por todos sem de fato 52


conhecer individualmente cada um. Fi-lo a pedido do meu Pai, que com isso quis libertar o mundo do pecado. E o mundo quem é? O mundo é o conjunto de todos os seres, em especial os racionais, que foram feitos à imagem e semelhança do meu Pai. Com a minha oferenda de amor na cruz eu venci a morte para sempre e a humanidade foi salva naquela época. — Ah! Agora entendi, Jesus — Francisco disse, após um longo momento de reflexão. Já Juliana e Flávia deram mostras de ainda terem ficado com dúvidas. Diante disso, sem preâmbulos, Flávia resolveu questionar. — E por que as pessoas normalmente usam crucifixos nos funerais, em casa e noutros lugares? Sabe Jesus, eu nunca entendi muito bem isso. Será por que você foi crucificado na cruz e ela representa a sua morte? É isso, é? — Mas que pergunta interessante! — disse Jesus enquanto deixava escapar um sorriso compreensivo — Sabes, tu me surpreendeste com essa pergunta. — Por quê, Jesus? Você não sabes a resposta, hein? — É claro que eu sei, filha de Deus. — E sua irmã também! — brincou. Os demais caíram na gargalhada. Após aquele momento de descontração e de alegria, Jesus observou: — E como tens razão, Flávia! Ela ofereceu um sorriso jovial e, enquanto isso, abismada, Juliana fitava a amiga com extrema curiosidade. Antes de responder, Jesus mergulhou numa profunda reflexão. Chegou a fechar os olhos, dando a entender 53


que coordenava as ideias com o intuito de responder de uma forma clara e precisa para que não restassem dúvidas. A seguir, como amiúde fazia, voz bondosa, sua principal caraterística enquanto exímio palestrante, disse: — A cruz que tanto as pessoas usam nos funerais ou em outros lugares, como disseste e bem, é o reconhecimento de que eu morri por elas para salvá-las. Ela é um símbolo da vida em vez de ser erroneamente comparada à morte. Olha, Flávia, a cruz é o sinal mais clarividente e fantástico do amor vitorioso do meu Pai, evidenciando que a morte foi vencida uma vez por todas pela vida. — Que legal, Jesus! — disse Flávia com vivacidade — Quer dizer então que não devemos ter medo da morte? É isso? — Assim o disseste, Flávia. E mais! Arrisco-me a acrescentar que a morte é a reconciliação de todos nós com o nosso Criador, o meu Pai. — Interessante — observou Francisco — E eu com medo de morrer, como se a morte fosse alguma coisa de muito ruim. Sempre me falaram que a morte faz com o nosso corpo vá para debaixo da terra para os bichinhos o comerem. Ai que nojo, Jesus! — Nunca ouviste dizer: “Do pó virás. Ao pó retornarás!?” — Já sim, Jesus — confirmou Francisco com um aceno de cabeça. — É exatamente o que acontece a todos os seres vivos quando nascem e quando a seguir morrem. Isso no que diz respeito ao corpo físico. Enquanto isso, a nossa alma ou espírito, como alguns chamam, ela sim, permanece viva. 54


— Então, Jesus— Francisco prosseguiu —, se for como você diz, a morte é apenas uma passagem, o princípio de tudo, é a nossa salvação. Por isso você morreu e ressuscitou ao fim de três dias. — A tua afirmação é perfeita, Francisco. A morte é apenas a passagem da vida terrena para a vida celeste e eterna, caso a pessoa esteja reconciliada com Deus. A grande maioria da população admite não ter medo da morte, mas no fundo de sua essência até têm, principalmente por desconhecerem esse grande mistério, que é certo e incerto, quanto ao dia em que vai acontecer. A única pessoa que sabe quando esse evento acontece é o meu Pai. — Verdade? – os três se entreolharam e dizem juntos. E então, Juliana adiantou-se: — Então, nesse caso, eu vou querer falar com o seu Pai para lhe perguntar quando é o dia da minha morte. E olha que eu não aceito que seja tão cedo assim, está me ouvindo? Quanto mais tarde, melhor. Quero que seja quando eu já for muito velhinha, fazendo xixi e cocô na calça, como uma criancinha, e dar muito trabalho aos meus filhos, netos e bisnetos. Sei lá, quando eu tiver uns centos e cinquenta anos — e dito isso, riu com gosto. — Eu também! — Flávia completou brincando e ainda acrescentou, virando-se para a amiga: — Olha, Juju, com essa idade é melhor ir para o museu! E as duas riram com gosto. Como Francisco não se manifestou, dando mostras de que se encontrava ausente, e de fato seus pensamentos 55


convergiam nas duas amigas quando conjecturou que elas, com certeza, com seus comentários, pretendiam virar múmias, Juliana beliscou-lhe o braço para depois o incentivar. — E você, Francisco? Não fala nada? Quer morrer cedo para ser comido pelos bichinhos, hein? — Não importa a data da minha morte. O que importa é o que eu faço hoje em dia para agradar a Deus e que Ele me leve quando tiver que ser. Abismadas, as duas amigas olharam primeiro para Francisco e depois para Jesus, que lhes ofereceu um leve sorriso, dando a entender que havia apreciado a resposta de Francisco. Depois, interrogativas, entreolharem-se e deram de ombros. Perante o semblante inquisitivo das duas, Jesus interveio, dizendo: — A resposta do vosso amigo é sábia e sensata — virou-se para ele — Gostei, Francisco. A tua formação denota preparação espiritual. É surpreendente, filho de Deus. Como reação, Francisco deixou escapar um sorriso de gratidão. Enquanto isso, Flávia brincou. — Ele é filho de Deus e seu irmão também, Jesus. Todos riram e até Jesus acabou por ser contagiado. A seguir, prosseguiu: — Quando vocês morrerem, não tenham medo. O meu Pai está esperando por vocês no paraíso — disse. — Ah, sim! Eu já ouvi falar no paraíso. Lá na minha igreja, o pastor fala muito no paraíso — Flávia disse — É um lugar maravilhoso, onde podemos nos comunicar pessoalmente com Deus. O nosso Pai, e o seu também, não é Jesus? 56


— Assim o disseste, Flávia — Jesus confirmou, com o rosto iluminado. — E lá no paraíso tem carros, casas, smartfhones e computadores? – Juliana quis saber. — Tem muita paz e amor. Melhor do que isso não há, Juliana — Jesus informou. Juliana fez um muxoxo e a seguir, protestou: — Paz e amor não resolvem os nossos problemas e tampouco nos fazem felizes. Eu gosto é de jogar no meu smartfhone e andar no carrão do papai. Se for para lá e ter que andar a pé, não quero esse lugar para mim. O resto não me interessa. — Está bem. Juliana. Quando tu chegares lá verás se gostas ou não. Mas eu acho que vais gostar sim — sutil, Jesus passou por cima do protesto. — Sem essas coisas boas daqui debaixo não vale a pena. E também se não tiver comida boa. Eu não quero passar fome, estás me ouvindo? Francisco beliscou o braço de Juliana, chamando-lhe a atenção. Ela não gostou e manifestou-se imediatamente, fuzilando-o com os olhos. Ele não se importou. Juliana prosseguiu, desviando o assunto. Disse: — Olha, Jesus... Essas cicatrizes ficam tão feias em você. Até parece que levou porrada na escola por não ter decorado a tabuada, nas mãos com uma régua de madeira e nos pés com ortigas. Por instinto, os demais, e igualmente Jesus riram, bem como olharam para as as marcas cruéis e indeléveis, das mãos e dos pés, que representavam sofrimento, morte e, simultaneamente, amor, misericórdia, re57


conciliação e vida. Já ia dizer qualquer coisa, quando teve de suspender sua manifesta vontade. Uma vez mais, Juliana antecipou-se, ao dizer-lhe: — Sabe, Jesus, mamãe é médica e trata de crianças, mas ela conhece um médico plástico. Jesus comprimiu o rosto. — Sim, Juliana. O que queres dizer com isso? – perguntou a seguir. Ela já ia responder, quando a voz de Francisco ecoou: — Médico plástico ou cirurgião plástico? Juliana protestou, fuzilando o amigo com os olhos. — Deixa de falar besteira. Olha que é tudo a mesma coisa. É médico e pronto — disse categórica. — Aonde estás querendo chegar, Juliana? – providencial, Jesus interveio, para evitar uma eventual discussão. — Se eu conseguir que fique bom dessas marcas, o que você me dá em troca? Jesus comprimiu o rosto. A seguir disse: — Agradeço a tua ajuda, mas não carece Juliana. O que tenho para te dar, a ti e a qualquer filho do meu Pai, é amor. — E quem te disse que eu quero namorar com você? Um homem como você, com essas roupas esquisitas? — Não é desse amor terreno que eu falo, mas de amor fraternal. Juliana fez um gesto de enfado. A seguir, disse: — Olha, se quiser eu falo com a mamãe e peço para ela falar com o médico amigo dela para não cobrar nada. Assim você pode fazer uma intervenção plástica nas mãos e pés para esconder essas marcas. O que acha? 58


Achando graça, Jesus já ia responder, quando, uma vez mais, Juliana se antecipou. — O máximo que eu posso fazer por ti é pedir à mamãe que fale com o médico amigo dela para não cobrar nada. É a minha oferta, já que você não tem dinheiro. Ou tem? Um sorriso simpático foi a reação de Jesus. A seguir, brincou. — Lá no paraíso, na casa do meu Pai, não tem nada disso. — Nem caixa eletrônico? — O que é isso, Juliana? Com ar de deboche, Juliana riu da suposta ignorância e falta de conhecimento de Jesus. Foi acompanhada por Flávia. Já Francisco, de rosto endurecido, não expressou qualquer reação. Jesus não se importou, pois sabia que as crianças são assim mesmas, espontâneas e sem malícia. — Um caixa eletrônico é uma máquina da qual as pessoas sacam dinheiro com um cartão — Juliana explicou. — Nunca vi nada disso e também não tenho dinheiro nem aqui e nem lá no céu. — Logo vi — Juliana brincou — Também, com essas roupas esquisitas, que não têm bolso sequer para guardar dinheiro. A não ser que o guarda noutro lugar. Jesus comprimiu o rosto num gesto de desconfiança. Olhar coruscante, indagou-a. — O que está querendo sugerir, Juliana? Por acaso está pensando naquilo que eu estou pensando também? 59


— O que você está pensando, eu não sei, mas já que sabe tudo dos seus irmãos, com certeza deve saber o que eu estou pensando. Ou não? – provocou-o. — É melhor não responder, Juliana. Um sorriso matreiro e efusivo foi dado por Juliana, que disse na sequência: — Eu estava pensando em meias, mas sequer você as tem — mentiu. A seguir, virou-se para Flávia, que lhe fez um sinal com o intuito de segredar qualquer coisa. — O que é isso, Juju? Por acaso estás pensando em cueca, é? – disse-lhe. — Han, han!... Como as dos políticos ladrões que papai tanto fala — confirmou com um aceno de cabeça e olhar expressivo. — Você é louca, Juju? Ele é Jesus e não uma pessoa qualquer com quem se possa fazer troça — reclamou. — O que tem isso? Ele é Jesus e meu irmão também, e eu sou a Juliana, irmã dele. Que mal tem isso, Flávia? Não faltei ao respeito a ninguém tampouco a ele. Falar em cueca não é nada do outro mundo. Do outro mundo é ele, não a cueca. Que mal tem isso? Flávia ponderou por uns segundos. A seguir, corroborou e disse: — É mesmo. Tem razão, Juju. Será que ele usa cuecas? — Ah, não sei... — deu de ombros — Quem não usa meias é bem capaz de não usar cueca. No lugar delas deve usar algum pano, tipo pano de cozinha — as duas riram para dentro— Só sei que aquelas roupas 60


dele são esquisitas e quem se veste assim é bem capaz de não usar cueca e até outras coisas. As duas riram baixo, com exacerbada vontade e malícia. — No tempo dele ainda não existiam essas regalias — Flávia observou, ainda sussurrando. — E você chama cueca de regalia? Que doideira é essa, amiga? Não pode fazer outra comparação? – Juliana admirou-se. — Ah, sei lá, Juju — deu de ombros, num gesto de indiferença. — Lá onde ele mora não tem nada. Não tem carros, celulares, caixas eletrônicos, dinheiro, sapatarias... Ele anda descalço. E nem lojas de roupas tem também. Essas roupas dele são mais antigas que sei lá o quê. Parecem da Idade da Pedra. Ele parece um pré-histórico. — Ô lugar sem nada. Será que passam fome lá em cima, Juju? Juliana já ia responder quando propositadamente, Francisco tossiu como forma de desviar a atenção das duas, já que havia percebido que ambas fofocavam, tramando algo. Mas o quê? Era uma incógnita, porém, só o fez porque havia olhado para o rosto fechado de Jesus, que as fitava também com extrema curiosidade, ávido para saber o que tanto elas conversavam baixinho, como se tivessem segredando algo. Após aquele curto desconforto, Jesus garantiu que não precisava fazer a tal cirurgia e que as marcas indeléveis em seu corpo deveriam perdurar por toda a eternidade a pedido do seu Pai, como prova de que ele 61


fora, sim, o principal responsável pela salvação da humanidade e para que todos tomassem conhecimento. E acrescentou, ainda, que aquele seria o único instrumento vigente e válido como garantia de que qualquer pessoa, na atual e nas épocas vindouras, teriam como paradigma, como forma de garantir a sua salvação, até ao momento em que seu Pai decidisse outro “modus operandi”, o que, na sua perspetiva, não estaria muito longe de acontecer face às constantes mutações da presente época, com a constante perda de valores fundamentais no relacionamento entre as pessoas, em especial destas com seu Pai, deixando-o bastante triste e dececionado. E como a humanidade precisava, afirmou Jesus com ênfase, na atual época, e muito, de uma prova ainda mais cabal e consistente, que lhes causasse receio e temor quanto aos desígnios de seu Pai. O tempo urgia para que a humanidade mudasse seu comportamento e seu relacionamento com o Criador, pois caso não o fizesse, Jesus disse que seu Pai podia se manifestar a qualquer momento, de forma mais severa, e que suas palavras abrangiam todos, sem exceção. Até os três amigos, que logo ficaram temerosos e apreensivos, levando a sério o que haviam acabado de escutar. Em especial, Juliana.

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Capítulo Terceiro Por se encontrarem na presença de um ser tão excepcional como Jesus, os três amigos não deixavam margens para dúvidas. Encontravam-se extasiados e sua imensa alegria, além de indescritível, podia ser considerada indizível na verdadeira acepção da palavra. A dada altura, Flávia comentou: — Olhem, já falamos tanto que ninguém se lembrou de que trouxemos o lanche. Normalmente, depois do banho a gente fica com fome. Quem está com fome? Os dois amigos, alegres, ergueram o dedo em riste, indicando que sim, acompanhados por ela mesma. Nesse ínterim, Jesus já havia mergulhado num silêncio profundo sem que ninguém tivesse dado conta, dando a entender que meditava. Assim, ele não chegou a manifestar-se, tampouco chegou a escutar a pergunta. Diante disso, fez-se um silêncio abrupto e interrogativo, fazendo com que os três amigos se entreolhassem, chegando a falar baixinho, perguntando-se uns aos ou63


tros o que Jesus estaria pensando ou fazendo, dando a entender necessitar daquele momento de concentração e solidão. O que eles não sabiam é que Jesus, naquele momento, dialogava à sua maneira com seu Pai. Sem saberem o que fazer, os três amigos decidiram respeitá-lo, fitando com exacerbado interesse a cena. Enquanto isso, com os lábios faziam movimentos silenciosos, questionando-se o motivo e o significado daquele súbito silêncio de Jesus, que acabou por deixá-los intrigados. O que pensariam, só eles e Deus sabiam, porém, não seria difícil de adivinhar. — Será que ele está com fome e com vergonha de pedir, por isso fechou os olhos para não falar nada? — Juliana perguntou, com um movimento silencioso dos lábios. Antes que alguém respondesse, para surpresa de todos, Jesus abriu os olhos. — Eu estou, sim, com fome, mas da palavra do meu Pai — disse. Mudos de espanto, os três amigos reagiram, primeiro trocando olhares inquisitivos uns com os outros e depois fitando Jesus, com ar de interrogação. Ele percebeu. — Não se assustem — tranquilizou-os — Somente conversava com o meu Pai. — Como Jesus? – confusa, Flávia antecipou-se — Você estava falando com o seu Pai? Como? Se nenhum de nós escutou o som da sua boca. Como consegue falar com alguém que não está aqui? Só se for por telepatia. Olha que você é mesmo um superherói, falando com os outros que sequer estão presentes. Como é que consegue fazer isso, hein? 64


Um sorriso compreensivo foi a reação de Jesus. Matreira, Juliana interveio e disse: — E você consegue matar a fome só falando com… — procurou por uma palavra adequada à situação — … o vazio? E o vazio mata a fome? Humm! Olha que eu nunca ouvi dizer que o vazio mata a fome. O que mata a fome é a vontade de comer. — E comida também, Juju — brincando, Flávia alfinetou. As duas deixaram escapar um sorriso matreiro. Jesus e Francisco não se manifestaram, limitando-se a presenciar aquela cena com seriedade. A seguir, suave, Jesus observou: — O meu Pai está em todo lugar. — Em todo lugar? – Juliana comprimiu o rosto — Como? Eu não estou vendo nada e ninguém aqui a não ser nós, as árvores, a água, as flores e mais algumas plantas, cujos nomes eu não sei — arrematou enquanto fitava ao seu redor. — E a nossa comida também. E as nossas trouxas — alfinetou Flávia, enquanto pegava em algo. — Ah, sim amiga! É verdade. — O meu Pai não está aqui fisicamente, mas está através do seu espírito, com o qual eu consigo me comunicar. — Eu não disse? Ele fala por telepatia — Flávia observou. — Que coisa estranha, Jesus. Às vezes você tem cada maluquice! Primeiro diz que está com fome, mas a fome é do seu Pai… 65


— Eu disse da palavra do meu Pai — Jesus interrompeu para corrigir. — É a mesma coisa. A não ser que você coma as palavras. É isso, hein? — Assim o disseste, Juliana. Ela ficou confusa e Flávia também. Jesus percebeu e já ia falar quando Francisco, circunspecto, disse. — Jesus sempre fala por parábolas e metáforas. Parábola é uma narração alegórica de algo que se quer demonstrar, enquanto metáfora é como se eu substituísse uma palavra por outra, que tenha uma relação semelhante. As duas amigas ficaram deveras impressionadas com a intervenção oportuna do amigo e de seus conhecimentos e passaram a fitá-lo, com ar de interrogação. Todavia, haviam entendido o essencial da explanação. Até Jesus ficou impressionado com a sabedoria de Francisco. Diante disso, observou: — Tu és um sábio, Francisco. O menino ofereceu um sorriso de gratidão. — E bote sábio nisso! — Flávia brincou — Ele está parecendo o atual Papa, por sinal, seu xará. Juliana não quis saber nada daquela conversa e prosseguiu: — Segundo, você diz que o seu Pai está aqui e ninguém o está vendo, a não ser você. — Assim o disseste, Juliana. — Você só sabe falar “Assim o disseste”? Não sabe falar outras coisas, não? – denotando uma tênue irritação, Juliana protestou. 66


— Quando eu faço essas afirmações é a comprovação de que qualquer um de vós falou corretamente. Como posso negar o que foi dito de forma verídica e correta? Olha que eu não os conheço. Subitamente, instalou-se um silêncio gélido, provando de que Jesus havia falado corretamente, tocando no ponto fulcral da questão. Poucos segundos depois, Jesus já ia falar, quando Juliana decidiu interpelá-lo. Disse: — Olha Jesus, eu não vou duvidar da sua sabedoria. Quem sou eu para fazê- lo, já que nos mostrou do que é capaz. Até falar com pessoas que sequer estão aqui, mas olha… Já que fala tanto com o seu Pai e quer matar a saudade dele, não precisa gastar tanta saliva. Existem outras maneiras mais atualizadas para fazer isso, sabia? Jesus mesclou a desconfiança à enorme curiosidade. — E que maneiras mais atualizadas são essas, Juliana? – quis saber. — O celular, por exemplo. — O quê? O que é isso? – ele pareceu não entender. — O CELULAR — deu ênfase Juliana — Isto aqui — e exibiu o seu com eloquência — Toma, pega — ofereceu a seguir. Em um movimento voluntário, Jesus pegou no aparelho, passando a fitá-lo com exacerbada curiosidade. Com interesse, os três amigos acompanharam de olhos coruscantes e curiosos aquela cena, chegando, inclusive e em simultâneo, a trocar olhares inquisitivos e enigmáticos uns com os outros. Com um movimento silencioso nos lábios, Juliana debochou, falando algo para Flávia. Já Francisco 67


deu indicações de que não apreciava as brincadeiras das duas amigas e então elas decidiram não mais contar com ele após perceberem isso. — Ele não sabe o que é aquilo. Nunca viu nada igual — disse Juliana, rindo para dentro, debochando. — Vai ver que pensa que é alguma coisa do outro mundo — Flávia brincou, rindo para dentro também. Para surpresa de todos, Jesus falou, após fazer sua inspeção minuciosa do aparelho de celular: — Quando eu vim até aqui pela primeira vez, há dois mil anos, não existia nada disto — devolveu o aparelho a Juliana — Os tempos mudam. E que mudança, hein? — E como mudaram. E muito! Na sua época era tudo na base da gritaria e dos pregos que mais pareciam picaretas — Juliana debochou. — Também não era bem assim. Naquele tempo já havia grandes mestres e inventores. Como já havia muitos utensílios e ferramentas de grande utilidade. Mas como esse aí, confesso, que não. — Tais como pregos e marretas que te pregaram na cruz, não é Jesus? – ironizou. — Assim o dizes, Flávia. — Outra vez essa história de “Assim o dizes”. Fala outra coisa, Jesus. Olha que está muito repetitivo, sabia? – Juliana sugeriu. Jesus engoliu em seco para desviar a conversa. — Isso serve mesmo para quê, Juliana? — Serve para falar com outras pessoas que não nos veem — ironizou — E que podem estar perto ou mesmo muito longe, como é o caso do seu Pai. Eu tenho 68


por costume falar com os meus pais e alguns coleguinhas meus. Primeiro clicamos um número e depois na tecla de chamada. Do outro lado alguém atende e assim nós falamos até nos fartamos e não podermos mais. — Serve também para falarmos besteira quando não se tem nada para fazer. Quem paga mesmo a conta é, papai — Flávia acrescentou, provocando um sorriso aberto em todos. — Humm... É tudo muito moderno hoje em dia — Jesus observou, sem muito entusiasmo. — E bote moderno nisso, Jesus! Olha, quando voltar para o lugar de onde veio, diz ao seu Pai que pegou num celular pela primeira vez e outras coisas mais. E que aprendeu também o que é um caixa eletrônico, o que é escanteio e… — Está bem, Juliana — sem muito entusiasmo, Jesus cortou. Nesse ínterim, Flávia disse: — Então, meninos? Vamos comer alguma coisa? — Já devíamos era estar com o bucho cheio. A minha barriga já está batendo horas faz tempo — Juliana brincou. — Mas a comida não vai dar para todos — Flávia olhou de soslaio para Jesus — É que agora temos mais um convidado. Gentil, Jesus deixou-os à vontade ao lhes dizer sem destinatário certo. — Não se preocupem comigo. Podem comer à vontade. Eu já estou saciado, meus filhos… — Filhos ou irmãos? Numa hora somos seus ir69


mãos, noutra seus filhos. Afinal, somos o quê seus, Jesus? – ousada, Juliana desafiou, interrompendo. Jesus sorriu plácido, exibindo seus belos dentes alinhados e brancos, da cor da neve. As duas repararam. Admirada, Juliana adiantou-se: — Mas que dentes bonitos que você tem, Jesus! — Achas, Juliana? — Mas é claro, Jesus. Como são lindos! E aproximou-se mais para verificar melhor. Jesus, ao perceber que ela pretendia olhar mais de perto, abriu propositadamente a boca. E a menina falou: — Como são lindos mesmo! E são tão branquinhos! — Ela chegou a encostar dois dedos — Você lava e escova os dentes com que pasta? – curiosa, perguntou-lhe. — O que é pasta, Juliana? As duas amigas riram com gosto. — Pasta é um produto para deixar os dentes limpos com uma escova própria, que usamos depois que comemos. Se eu tivesse aqui uma te mostrava, mas não tenho — Juliana respondeu. — Como escova os seus dentes para serem brancos dessa natureza? – curiosa, Flávia quis saber. — Eu não faço nada. Aliás, eu nunca usei nada disso. Apenas lavo a boca com água. — Oh, dentadura abençoada! – abismada, Juliana exclamou. — A dentadura ou a água que os lava? – Flávia acrescentou. — Devem ser os dois, minhas filhas — Jesus entrou na brincadeira. 70


Todos deram uma risada efusiva. — Já vi que lá no seu lugar a água é de boa qualidade — Juliana comentou a seguir. — Aqui na Terra, na nossa cidade, a água é cheia de cloro. Oh, água ruim! — Flávia acrescentou. — Cloro? — Jesus comprimiu o rosto — O que é cloro? — É um produto que colocam na água para ela ficar boa. — Lá em cima não tem nada disso. A água é o meu Pai. — Oh, água abençoada! Quando voltar na próxima vez, traz um pouco dessa água para nós — Juliana pediu. — Vou pensar nisso. Mas ela já está aqui, junto de vós. — Está bem, Jesus. Olha que aqui embaixo, promessa é dívida — Juliana esclareceu. — E lá em cima o meu Pai não aceita dívidas, só promessas — Jesus brincou. Todos deram uma risada alegre. Até Jesus. Após aquele momento alegre, circunspeto, Jesus observou. — O amor de meu Pai é infinito e para Ele todos são Seus filhos. E eu, aqui, estou representando o meu Pai, como se Ele de fato estivesse aqui, na vossa presença — disse. — Deu para entender, Jesus — erudito, Francisco observou — Como está aqui em representação do seu Pai, que é Deus, nesse caso podemos nos considerar seus filhos e seus irmãos também. É isso, não é? 71


— Assim o disseste, Francisco. Ousada, demonstrando não apreciar a repetição nas palavras de Jesus, Juliana manifestou-se num tom de voz áspero. — Outra vez a mesma repetição, cara? Isso é vira o disco e toca o mesmo, hein? — Toca o mesmo? – Jesus comprimiu o rosto — O que é isso, Juliana? — É que você está muito repetitivo. É como se tivesses engolido um toca CD, ou uma fita-cassete. — Fita? Toca CD? – de novo comprimiu o rosto — O que é isso, Juliana? Juliana pensou rápido: “Este aqui é de compreensão lenta”. A seguir, quase perdendo a paciência, já ia falar, ao que indicava, um palavrão. No entanto, providencial e lendo-lhe os pensamentos, Flávia interveio. Foi quando Jesus piscou o olho, dando a entender que havia provocado aquela situação brincando, só que Juliana não alcançara a brincadeira. Cúmplices de Jesus, Francisco e Flávia riram para dentro. — Vamos é comer. Todos nós estamos com fome. Acompanha-nos, Jesus? – Flávia perguntou. — Já vos disse... Podem comer à vontade. Eu já estou saciado. — Ah, pois é. Ele não está com fome — Juliana interveio, virando-se a seguir para Jesus — Se não está com fome, o que você comeu? Também, com essa barriguinha... — inclinou-se mais uma vez para alcançar Jesus e pressionar a barriga dele, num gesto voluntário 72


— Olha que dá para ver que você come muito bem. Humm... Sim, senhor. Lá em cima não deve te faltar nada. Os cozinheiros devem ser os melhores. Deve ser tanta fartura, não é? – disse a menina, sorrindo. — Lá em cima, na casa celeste do meu Pai… Alegre, Juliana interrompeu. — A sua casa é celeste? Afinal, é um luxo só lá em cima. É como o jardim da Celeste aqui embaixo — disse com vivacidade. — Celeste é outra coisa, Juliana, não uma pessoa. Quando falo em celeste, faço referência ao que está no céu, ao lugar onde mora o meu Pai. — E você também — Juliana completou. — Sim, eu moro lá também, para que não restem dúvidas — fez uma curta pausa para prosseguir — Como estava vos dizendo, lá em cima, na casa celeste — deu ênfase — do meu Pai, tudo é feito e proporcionado com base na dimensão dele. Lá, eu me alimento das suas palavras. Juliana não percebeu nada daquela conversa e Flávia ficou com dúvidas. O único que compreendeu na íntegra foi Francisco. — Olha, Jesus... — Juliana disse — Se você não tivesse esse corpaço, se por acaso fosse magricela e se desse para notar os seus ossos nessa sua pele branca, eu te diria que comida da sua casa, a celeste, não dava nem para encher os espaços dos dentes, mas pelo visto, vejo que essa comida te faz muito bem e te deixa abarrotado. É por isso que os seus dentes são tão brancos e limpinhos. Oh, comida boa essa, hein? – arrematou, demonstrando um desejo de enleante deleite em provar. 73


Jesus riu, plácido. A seguir, disse-lhe: — No dia em que provares a comida do meu Pai, vais ver como ela é boa e faz muito bem. — Um bem danado, pelo que estou vendo — alfinetou com um largo sorriso. De rosto alegre, os demais acompanharam-na. — Danado? – Jesus parecia não entender — O que queres dizer com isso? Providencial, Flávia tossiu para dizer depois: — Olhem aqui, palavras não matam a fome. O que mata a fome é comida e vontade de comer. Andem, vamos comer, meninos. — Vamos sim, Flávia — Francisco aquiesceu. — Esperem meus… — Filhos ou irmãos? – rápida, Juliana interrompeu Jesus, desafiando-o. — O que vocês quiserem. Qualquer uma das vossas escolhas é do agrado do meu Pai. — E seu também. Ou não me diga que não, hein? — Juliana observou. — Assim o disseste, Juliana. Ela fez um gesto de indiferença. — Está bem. Os dois. Eu escolho os dois — disse Jesus, virando-se para os amigos e dizendo: — Está bem assim? Um acenar de cabeça foi a resposta dos dois amigos. A seguir, Jesus sugeriu. — E que tal agradecermos ao meu Pai antes de vocês degustarem a vossa refeição? – disse. — Que porra é isso? Degustarem? – confusa, Ju74


liana perguntou. — Afinal, não sou só eu que não sei as coisas — brincou — Tem mais alguém aqui. — Anda, deixa de falar besteira e diz lá o que é essa coisa — Juliana protestou. — Degustar é a mesma coisa que saborear — Jesus confirmou, de rosto iluminado. — Ah, sim! É comer. Afinal, já sabia — admitiu Juliana. Jesus comprimiu o rosto. — Se já sabia, por que me perguntaste? – quis saber Jesus. — Só para te testar, Jesus — disse Juliana, com malícia. — Eu não consigo ter raiva de ti, Juliana — disse Jesus, segurando um sorriso. — Eu também não — e dito isso, desatou a rir. Os demais riram com gosto. Contagiado, Jesus acompanhou-os. Após aquele momento de alegria, Jesus prosseguiu. — Como estava vos sugerindo, que tal agradecermos ao meu Pai antes de vocês… — parou um pouco para trocar um olhar profundo e cúmplice com Juliana — saborearem a vossa refeição? — Eu concordo! — alegre, Francisco manifestou-se favoravelmente. — Eu também! — Flávia acompanhou. A seguir, os olhares de todos se viraram para Juliana. Na espectativa, ficaram aguardando por uma manifestação, o que não se sucedeu de imediato. Como 75


ela ficou em súbito silêncio, atípico ao que era seu apanágio, dando a entender que não havia assimilado o motivo do pedido feito por Jesus e a consequente concordância de seus amigos, Flávia resolveu indagá-la: — O que foi, Juju? De repente fiocu calada. Não gostou da ideia de Jesus? — Não é que eu não tenha gostado da ideia dele, mas não consigo entender porque devemos agradecer, ainda que seja uma sugestão, ao Pai dele, que não conhecemos, se fomos nós quem trouxe a comida. Essa comida é nossa e não dele — ousada, Juliana respondeu, após um curto momento de introspeção. Subitamente, fez-se um silêncio gélido. Os dois amigos trocaram olhares enigmáticos com Juliana e depois com Jesus, que lhes ofereceu um sorriso bondoso. A seguir, erudito, Jesus disse-lhes: — A Juliana está confusa. É normal, pois ela foi criada e educada pelos pais dela, que sempre lhe negaram a existência de um ser superior e sublime, que comanda tudo aqui na Terra e no universo. Um ser que nos fez à Sua imagem e semelhança e que nos proporcionou — e ainda proporciona — tudo o que acontece à nossa volta, desde o ar que respiramos, o sol que nos fornece energia e ilumina os nossos dias, a lua, a água, as árvores, os animais e tantas outras coisas infinitas, como a alimentação — deu ênfase — e, acima de tudo, o Seu imenso amor, a Sua misericórdia e a Sua bondade. Como é maravilhoso o meu Pai, que somente nos pede em troca aquilo que Ele nos dá, o Seu amor e a nossa vida e tudo o que depende dela 76


para nos mantermos. Como à Juliana foi negado tudo sobre a existência do meu Pai e Sua imensa bondade desde a primeira hora, não por culpa dela, mas por imposição de seus pais descrentes, é lógico e muito natural, estando ela na minha presença pela primeira vez e talvez a última, ter deixado escapar essa sua confusão e ceticismo — Virou-se a seguir para Juliana e disse: — Olha, minha filha, o meu Pai só quer o teu melhor, por isso Ele te proporcionou e ainda proporciona tudo o que falei agora mesmo, até esses singelos alimentos, que em termos conotativos é realmente teu, mas, no sentido figurado, foi fruto da criação dele. Fiz-me entender? Tanto Francisco como Flávia permaneceram num silêncio absoluto, fitando abismados Jesus. Simultaneamente, Juliana em silêncio, com ar de interrogação, e todos aguardando ansiosos por uma reação sua. Ao fim de algum tempo, Juliana teve uma reação surpreendente. Disse: — Olha, Jesus, é tudo muito lindo o que você falou. Pelo que fala, até que daria um ótimo ator de novelas… “Meu Deus! A Juju ficou maluca! Ela passou dos limites. Não respeita nem Jesus!”, pensou Flávia, chocada. Já Francisco teve similar pensamento, todavia, com outras palavras, mas que no fundo convergiam para uma opinião única. — …Mas me diz uma coisa — Juliana prosseguia — Como é que eu posso acreditar em alguém que eu nunca vi e nem sei como ele é? Como é que eu posso 77


acreditar em alguém que você diz ser o seu Pai e ser o Criador de tudo isto, quando na televisão e na net nos é ensinado e informado, e até na escola, por grandes cientistas, que não é bem assim? Que o universo e o planeta Terra dependem de outros fatores de ordem natural e que são frutos de uma explosão sideral e planetária, tipo Big Ban. Será que a ciência está errada? A mim me dizem uma coisa e agora você vem e diz outra? Não é fácil para mim, entende? — Juliana, Juliana... — a voz de Jesus saiu forçadamente fraternal — Eu vejo que você realmente está... — Por favor, me deixa terminar — polida, Juliana interrompeu. — Desculpa — e dito isso, com um sorriso contido no rosto, Jesus ergueu as mãos ao alto, num gesto de rendição. Pasmos, os dois amigos assistiam impávidos e serenos ao diálogo, sem esboçarem reação alguma. Ainda assim, Francisco foi compelido a conjecturar para si mesmo: “Ainda agora ela passou a acreditar nele e de repente voltou atrás. O que lhe mordeu?”. Juliana prosseguiu: — Olha, Jesus... Está comprovado cientificamente e existem provas evidentes de que os dinossauros habitaram a face da Terra há milhões e milhões de anos. E se assim é, a Terra já existe desde aquela época e sofreu algumas alterações até a época atual. Eu falo da disposição dos continentes, por exemplo. Então, se o seu Pai foi o responsável pela criação da Terra e se Ele nos fez à Sua imagem e semelhança como você 78


diz, daí se pode concluir que ele é uma pessoa como nós, de carne e osso — disse. — É verdade. O meu Pai é uma pessoa como vocês, de carne e osso, e também um ser pensante, um ser racional. — Ótimo! Era o que precisava de ouvir…. Então, porque é que os cientistas afirmam e está também comprovado que nós, os seres humanos, como somos hoje, nesta forma de corpo, somos originários dos macacos e que a nossa espécie foi evoluindo ao longo de muitos anos, dando origem ao homem-sapiens? E se o seu Pai é o criador da Terra, por que quando a fez não a povoou com pessoas como nós, mas sim com criaturas cruéis e estranhas, como era o caso dos dinossauros, e até outras mais cruéis e esquisitas? Por que demorou tanto tempo para criar o homem no seu estado atual, se podia fazê-lo antes? Olha, Jesus, isso é só uma ínfima parte das muitas dúvidas que ninguém consegue me explicar com fatos e certezas, a não ser os cientistas. Então? O que você tem a me dizer? – desafiou-o, conjuntamente com um olhar penetrante. Cabeças viraram em direção a Jesus. Ansiosos e deveras curiosos, todos aguardavam por uma resposta, mais Juliana do que propriamente os dois amigos. Ainda assim, Flávia e Francisco subitamente se viram muito interessados, em especial Francisco, o mais coerente em discernimento e temente a Deus. Será que ficara confuso com as indagações da amiga? Nem ele mesmo sabia. Como sempre, sereno, Jesus fechou os olhos e quando os abriu, sua voz suave disse: 79


— Nada que seja proveniente do meu Pai poderá ser questionado seja por quem for. Nem por ti, Juliana. — Por quê, Jesus? – ela quis saber. — Simplesmente porque o meu Pai é a gênese de tudo e Seus poderes são ilimitados, assim como o amor aos seus filhos é igualmente ilimitado. — Mas que poderes, Jesus? O de transformar um pedaço de pau numa pomba branca e pedir a ela que voe e retorne ao mesmo lugar de onde partiu? Isso até um mágico dos bons sabe fazer, sem a menor dificuldade — Juliana contestou. Um sorriso plácido foi a reação de Jesus, que disse na sequência: — Como tu és uma criança vulnerável, mudando a tua opinião em pouco tempo. Ainda há pouco passaste a acreditar em mim e no meu Pai, mas não demorou muito tempo para revelares o teu ceticismo. Porém, continuas me chamando de Jesus. — Foi o nome que você nos deu quando chegou aqui, caído do céu. Se tivesse me dado outro nome, por certo seria por ele que eu te chamaria. Não tenho por hábito desconfiar dos nomes que as pessoas dão. Se tivesse me dito que se chamava… sei lá… Maria ou Manuela, aí sim, eu desconfiaria. Está vendo, não está? — respondeu Julinana, rindo para dentro. — O seu ceticismo está mantido. O que eu fiz há pouco não foi magia, mas um milagre com os poderes que me foram concedidos pelo meu Pai. Juliana deixou escapar uma risada desdenhosa. Jesus não se importou e lhe disse: 80


— Tu és uma pessoa cética. Tão cética que ainda não te consegui convencer. — Assim o disseste, Jesus — ironizou ao se lembrar das repetições — Na verdade, eu ainda não estou totalmente convencida. — Tudo bem, Juliana. Vamos fazer o seguinte. Vocês estão com fome, não é verdade? — E bote fome nisso, Jesus! — Flávia adiantou-se aos demais. — Então — Jesus prosseguiu, depois de que uma ideia se formou em sua mente —, antes mesmo de comerem, só mais um pedido. — Faça, Jesus — desta vez foi Francisco quem se adiantou. — Quero saber quem me pode emprestar um livro escolar. Estou vendo aí vossas mochilas e como também estão com a farda da escola, deduzo que antes de virem para cá, tenham estado na escola, não é verdade? — Han, han!... — em uníssono, os três acenaram a cabeça, todavia, Juliana continuava cética e simultaneamente ressabiada. — Eu nem precisava de vos perguntar se estiveram na escola, pois meu Pai já sabia. Tanto Francisco como Flávia ficaram pasmos com a revelação, já Juliana a escutou com desdém, rindo para dentro, debochando. Pensou: “Se sabia, porque perguntou? É doido mesmo o Jesus. Só Jesus na vida dele e não sei se lhe valerá”. Jesus reparou na reação de todos eles e ficou em silêncio por vários segundos, para prosseguir depois. 81


— Pois bem, quem me pode emprestar um livro, por favor? – pediu. — Para quê, Jesus? Você quer o livro para quê? – confuso e simultaneamente ressabiado, Francisco quis saber como se fosse o porta-voz dos três amigos. — Calma, meus filhos. Já vão saber para o que é. Alguém pode me emprestar? — Eu empresto — solícita e alegre, Flávia disse, enquanto retirava um livro qualquer de sua mochila. Quando ia entregá-lo a Jesus, este, com um sinal disse que não, e se virou para Juliana: — Eu prefiro que seja a Juliana a me emprestar. É claro, se ela quiser. Ninguém aqui é obrigado a nada. Podes me emprestar um livro teu? Antes de consentir, Juliana fitou Jesus com extrema desconfiança, procurando por indícios em seu rosto que a levassem a acreditar no pedido inusitado, porém, ao verificar em seus olhos o quanto ele falava sério e em certa medida a convidava para um desafio, acabou por lhe emprestar um livro pego aleatoriamente. — Toma — ainda ressabiada, entregou-lhe o livro — Aqui está. Quero ver o que você quer com o meu livro. Por favor, não o estragues senão eu levo porrada de mamãe, está me ouvindo? — Não te preocupes. Nada de ruim vou fazer com o teu livro. Inteiro me emprestaste, inteiro receberás. — Humm... Quero ver — disse com desdém. — Pois bem, chegou a hora de vocês comerem. — E já não era sem tempo — Flávia brincou — Estou com uma fome daquelas, que só eu e Deus sabemos. 82


— E nós também! — Juliana acrescentou. — Então, meus filhos — Jesus prosseguiu, propondo — Vamos fazer o seguinte. Podemo-nos juntar em volta desta pequena mesa e vamos dar as mãos. A contragosto, Juliana aceitou. Já Francisco e Flávia não ousaram questionar como também estimularam Juliana a fazê-lo sem rodeios, e assim os três amigos deram as mãos, acompanhados por Jesus, que propositadamente ficou junto de Juliana, a quem ofereceu uma das mãos, e a Flávia a outra. — A partir de agora — prosseguiu Jesus — Podemos fechar os olhos e ficarmos em silêncio absoluto por uns instantes. Foi o que fizeram os três amigos, muito embora cada um deles ávido para quebrar o acordo, com o intuito de espionar uns aos outros. Mas, temerosos, nenhum deles ousou abrir um olho. O silêncio foi tal que até um zumbido de um besouro podia ser escutado passando junto a seus ouvidos. Eles passaram a desfrutar de uma agradável sensação de bem-estar, como que atingidos por uma leve brisa, que lhes passou junto de seus rostos. Assim permaneceram até que foram atrapalhados, pois o celular de Juliana anunciou uma chamada externa. Num segundo, todos abriram os olhos, até Jesus, convergindo seus olhares para o aparelho deixado em cima da toalha, junto ao livro, que fora de igual modo deixado propositadamente por Jesus junto aos alimentos. — É o meu celular que está tocando — disse Juliana, encabulada e enrubescida. 83


— Mas é claro que é o seu, Juju. Mais ninguém aqui tem celular — Flávia brincou. — Muito menos eu — Francisco entrou na brincadeira. — E eu então, que não disponho dessas modernices! — Jesus entrou na brincadeira também — Isso para mim é luxo e lá em cima, na casa do meu Pai, luxo é coisa que não existe nem que a… — ... porca torça o rabo — sorridente, Juliana brincou, interrompendo-o. A gargalhada foi unânime. Até Jesus acabou por ser contagiado, a ponto de quase chorar de tanto rir. Riram tanto que acabaram por se esquecer do solitário aparelho ali, tocando, até que ficou mudo. Como medida de precaução, com o intuito de não serem novamente interrompidos, Francisco sugeriu que o aparelho fosse desligado ou então ficasse no modo silencioso. Todos aquiesceram, até a cética Juliana, que ainda deixava escapulir os últimos resquícios de sua boa disposição. Não obstante o pequeno contratempo, Jesus apreciou e até considerou oportuno aquele inesperado acontecimento, porém, acabou por afastá-lo momentaneamente de seus profundos pensamentos, reflexão e meditação. Ele foi obrigado a fazer um esforço suplementar para recomeçar, mas não se sentiu incomodado com tal situação, aliás, fazia-o novamente, munido da maior e espontânea vontade e alegria, acompanhado pelo amor e carinho dos três amigos, em especial a Juliana, por quem lhe fora investida a missão, nessa mais recente aparição naquele inóspito lugar. 84


*********** Ao fim daquele momento de boa disposição, Jesus disse: — Então, meus filhos, vamos continuar o que estávamos fazendo. Todos acenaram a cabeça num gesto positivo. Ainda assim, Francisco brincou: — Da primeira vez foi o celular que atrapalhou a nossa concentração. Só espero que não apareça mais alguma alma penada por aí para nos atrapalhar — disse. — Vira essa boca para lá! — Juliana respondeu — Cuidado com as palavras. Olha que elas têm muita força. Assim diz papai — e dito isso, cerrou o punho para bater três vezes na sua mochila. Jesus expressou uma exacerbada admiração. A seguir, observou: — Falaste muito bem, Juliana. É verdade sim, as palavras influenciam muito as nossas atitudes, a nossa vida. No caso, as vossas vidas e também o vosso relacionamento com o meu Pai. Olha que isso pode ser comprovado pelo que é dito pelo apóstolo Mateus, na Bíblia, no capítulo doze, versículos trinta e quatro a trinta e sete — fez uma curtíssima pausa para prosseguir citando o apóstolo Mateus: “...Raça de víboras! Como podeis vós dizer coisas boas, sendo maus? Porque, do que há em abundância no coração, fala a boca. O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do coração; e o homem mau tira coisas más do mau tesouro. Mas eu vos digo que, de toda a palavra ociosa 85


que os homens disserem, darão conta no dia do juízo. Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás condenado”. Subitamente se fez silêncio e Juliana somente ofereceu um sorriso analítico, dando a entender que havia apreciado. Jesus agradeceu com um olhar singelo, para logo prosseguir: — Vamos dar continuidade ao nosso… como posso chamar mesmo… — procurou pelas palavras adequadas — …ao nosso momento de profunda meditação e interiorização com o meu Pai. Subitamente, os olhos dos três amigos passaram a expressar alegria: os de Flávia e Francisco indizível, já os de Juliana destacavam-se, mesclando a aparente alegria com curiosidade e um moderado ceticismo. Diante disso, repetiram o gesto e em poucos segundos de mãos dadas, os quatro mergulharam num silêncio profundo e absoluto. Aos poucos, uma energia positiva e revigorante foi invadindo um a um, uma sensação de bem-estar se apoderou em definitivo e nenhum deles queria se desvincular daquele prazeroso e insondável momento, tampouco pretendiam que terminasse, ao contrário. Os três amigos não sabiam explicar, mas ali, naquele estado, pareciam que haviam mergulhado em uma outra dimensão, algo de místico, como se fosse uma espécie de cura espiritual, não só do corpo, mas da alma. Pelo menos foi essa a percepção com que ficaram daquela curta situação de deleite. E como se sentiam bem, os três amigos, desfrutando de um calor humano e de uma energia indescri86


tível que invadiu por completo seus corpos, suas mãos foram sendo apertadas com mais intensidade, como se nunca mais quisessem se desprender umas das outras. Enquanto permaneceram naquele estado, inadvertidamente escutaram Jesus falar com alguém em uma linguagem estranha e desconhecia. Era hebraico. Extremamente curiosos, decidiram abrir os olhos, cada um ao seu jeito para, “in loco”, porém, de soslaio, fitar Jesus falar e ver com quem ele falava. Julgavam ser Deus ali presente, numa aparição rápida. Todavia, algo os impelia a não obterem êxito. Eles não especulavam o que era, mas ser uma força estranha, que os obrigava a não quebrar o vínculo entre eles, a pedido de Jesus. Frustrados, limitaram-se a aceitar e a ficar em silêncio, de olhos fechados, até que Jesus autorizasse sua abertura. Jesus sabia do manifesto interesse dos três amigos em abrir os olhos sem sua autorização, movidos pela exacerbada curiosidade. Ainda assim, decidiu nada comentar até que, finalmente, fez-se um silêncio ainda mais profundo e a voz de Jesus foi escutada. Foi a autorização para que, finalmente, pudessem abrir os olhos e desprendessem as mãos. Foi o que fizeram. Ao abrirem os olhos, depararam-se com uma surpresa. Boquiabertos, não conseguiram esboçar reação por alguns segundos, ao repararem no que Jesus lhes preparara durante aquele momento de reflexão e silêncio profundo. Confusos e incrédulos, chegaram a trocar olhares interrogativos uns com os outros e depois com Jesus, que lhes sorria plácido, até que Francisco, o primeiro a recuperar, disse: 87


— Jesus, o que significa isto? — O que vocês estão vendo, meus filhos — disse-lhe com naturalidade — Uma mesa farta. Assim, já podem comer com mais entusiasmo. — Mas isto é… Juliana cortou pela metade a vontade de Francisco em continuar. — Espera aí! O meu livro não era assim! — disse, enquanto se agachava para segurar o livro, passando-lhe rapidamente os olhos — Mas o que é isto Jesus? O que significa isto? – irritada, alterou a voz. De novo, Jesus riu plácido. A seguir, com ar de serenidade, disse-lhe: — Isso é uma Bíblia Sagrada. — Você fez uma mágica e transformou o meu livro numa Bíblia? Com que autorização, hein? Para que eu quero isto? – desdenhosa, arrematou. — A Bíblia Sagrada serve para tu encontrares a palavra do meu Pai. É aí, nesse livro magnífico em tuas mãos, que se encontram as primícias de toda a obra do meu Pai, a maravilhosa obra, desde a criação do universo, dos seres vivos, da minha primeira passagem por aqui, até ao apocalipse ou, como muitos chamam, “O fim dos tempos”, o que ainda está para acontecer. — Humm... — Juliana deixou escapar uma risada desdenhosa — Isso mais parece uma história de cinema — ela continuava cética. — Não é cinema não. Cuidado com as tuas palavras. Olha que em pouco tempo vai virar realidade, quer acredites ou não. O meu Pai observa tudo e Ele 88


não está nada satisfeito com o que nos últimos tempos se tem passado aqui embaixo. — Ah, tá bom... — deu de ombros Juliana, dando a entender que não estava nem aí. O que a preocupava era o seu livro e como o iria recuperá-lo e isso encerrava qualquer discussão a respeito. Jesus percebeu, mas também não se importou. O seu infinito amor suportava qualquer provocação, desprezo, afronta e qualquer outra manifestação contrária, desprovida de zelo e falaciosa. E prosseguiu: — Quanto ao teu livro, tu vais tê-lo de volta. Podes ficar tranquila — disse. — Assim espero. Olha que ele custou uma nota. Estás me ouvindo, hein? — Olha, Juliana — Jesus prosseguiu, engolindo — Eu não sou mágico, nunca fui e nunca serei. Mágico é Lucifer, o Satanás, aquele que vive desafiando o meu Pai com suas artimanhas, desvirtuando Seus filhos do caminho da retidão e da glória. Magia é uma coisa e milagre é outra completamente distinta. Como eu disse, Satanás é o legítimo proprietário da magia, enquanto isso, o legítimo e único proprietário das obras boas e dos milagres é o meu Pai ou alguém a quem Ele usar em seus infinitos poderes, como foi o caso agora. Ou, então, em outras situações, de vários filhos dele aqui embaixo, que intercedem junto dele. Pessoas providas de uma fé inabalável. Tanto faz serem vivas ou já perecidas. Isso é extraordinário, Juliana, não é verdade? Confusa, Juliana murmurou mais para si: — Você está me deixando mais confusa do que já 89


estou. Papai me diz uma coisa, você aparece aqui caído de céu e me diz outra. Em quem devo confiar Jesus, hein? Apesar de Juliana falar baixo, Jesus conseguiu escutar e não perdeu tempo em responder: — Tu deves confiar e seguir o teu coração — disse-lhe. — O meu coração? – parecia não entender. — Sim, o teu coração. O amor de Deus está no interior do coração das pessoas. Eu sei que é difícil de explicar, mas um dia entenderás o que eu afirmo agora. Coloca Deus no teu coração e verás como mudarás e te sentirás outra pessoa. — No caso, o teu Pai. — Assim o disseste, Juliana. Ela segurou uma risada. Jesus percebeu, mas se manteve em silêncio. Juliana prosseguiu: — Então, pode me explicar qual a diferença de magia e milagre. Se você não faz magia, como é que eu posso saber se é uma coisa ou outra? — Olha Juliana, enquanto magia é oriunda do próprio Satanás, é lógico que só pode estar ligado a bruxaria ou a forças impessoais de um ser, seja ele quem for, que afronta os poderes do meu Pai. Já milagre é outra coisa completamente oposta. Milagre é um fato inexplicável e contrário às leis da natureza, as leis que o meu próprio Pai instituiu e que só ele mesmo pode alterar ou até derrubar, em virtude de ser o responsável pela criação de tudo, o universo e todos os seres vivos. Todos, sem exclusão. Só o meu Pai pode ressuscitar um morto, como fez com Lázaro e comigo mesmo; só o meu Pai pode curar alguém en90


fermo sem precisar recorrer a um médico. Isso e muito mais. Seria preciso um dia inteiro para enumerar todas as situações em que meu Pai pode intervir com os seus infinitos poderes… Já Satanás não consegue fazer nada disso, apenas consegue plagiar e… Confusa, Juliana interrompeu: — O que é plagiar, Jesus? – quis saber, sendo esse o motivo da interrupção. — Imitar, copiar. No caso, tentar imitar, sempre se dando mal quando o faz. — Ah, sim! Entendi! Um vira casaca, não é? — Um vira casaca? O que é isso, Juliana? — perguntou Jesus. — É um cara que está com uma pessoa, aprende com ela e depois a deixa só, para fazer as mesmas coisas que lhe foram ensinadas. Entendeu? — Entendi. Colocam cada nome às situações... — Jesus observou, para prosseguir — Como estava falando, o Satanás apenas consegue plagiar o meu Pai, deixando suas vítimas momentaneamente felizes, mas depois, o que vem a seguir vira um autêntico inferno, tanto no sentido literal da palavra quanto no sentido metafórico. Só o meu Pai pode contrariar aquilo que ele mesmo fez e criou e mais ninguém, a não ser naquela situação que te expliquei há pouco, dando poderes a outras pessoas. Olha, Juliana, o próprio Satanás constantemente testa e tenta derrubar essas barreiras e como não o consegue, e nunca o conseguirá, como alternativa para ludibriar as pessoas, suas vítimas, os filhos do meu Pai, que têm o livre-arbítrio para esco91


lherem, mais uma generosa atribuição de meu Pai, inventou essa maldição da magia e do jogo. As leis feitas pelo meu Pai jamais podem ser violadas seja por quem for, a não ser por ele mesmo. E só ele consegue fazer com que o teu livro seja transformado noutro livro. Juliana mergulhou numa profunda reflexão. Foi acompanhada pelos seus amigos e até por Jesus. A seguir, interpelou-o, ao dizer: — E então, por que transformou o meu livro da escola numa Bíblia? — Pura e simplesmente porque eu pedi ao meu Pai para que tu possas ler um pequeno trecho da Bíblia e consigas entender um fato que irá se suceder em breve, na tua vida e no seio da tua família. Ressabiada, Juliana comprimiu o rosto. A seguir, disse, como se perguntasse a si mesma. — Um fato? Vai acontecer um fato em breve na minha vida e com a minha família também? Mas o quê, Jesus? Sutilmente, Jesus desviou o assunto, fazendo com que Juliana logo deixasse para lá seu próprio questionamento. — Tal como eu transformei o teu livro numa Bíblia, não sei se reparaste, além de multiplicar os alimentos, transformei a água mineral em suco de laranja. — Sim, eu reparei. Por enquanto ainda não sou cega — ironizou, enquanto olhava de soslaio para os amigos que, maravilhados e extasiados, numa alegria indizível, subitamente ficaram sem vontade para comer ao verem tanta fartura. 92


Os amigos nada comentaram. Unicamente, permaneceram ali, petrificados, feito estátuas, olhando para a mesa farta, acompanhando com interesse o diálogo da amiga com Jesus. Todavia, um pensamento havia desviado a atenção de Francisco por uns breves segundos: “Ele multiplicou o nosso lanche como fez na multiplicação dos pães e dos peixes e, ainda por cima, transformou a água em suco de laranja, como fez também ao transformar a água em vinho. Vixe! Como ele é espetacular e extraordinário”. — Parece que os teus amigos perderam a fome — Jesus brincou, dirigindo-se a Juliana. — Tomara! Com tanta fartura, os olhos deles já comeram só de olharem, até não poderem mais. Uma risada alegre foi expelida por todos, até por Jesus, como que contagiado. — Já que não temos mais fome, podemos juntar tudo e doar a alguém que esteja realmente precisando. O que acham, amigos? – Flávia sugeriu. — Muito bem observado. Decisão sábia— Jesus comentou, virando-se depois para Juliana. — E então? Ainda não te convenci, minha filha? — Na verdade, ainda estou confusa, não tanto como antes, mas ainda estou. E também não entendi porque você fez tudo isso. Olha, se era para mostrar que consegue multiplicar a comida, acabou por tirar a vontade de todos de comer. Jesus ofereceu um leve sorriso e disse: — Era justamente esse o meu objetivo. Eu sabia que depois alguém faria uma sugestão em fazer uma do93


ação. Foi o que realmente aconteceu quando a Flávia falou. Portanto, quando vocês retornarem a vossas casas, façam isso. Distribuam antes estes alimentos a quem realmente está necessitando, aos mais carentes. Além de ser um gesto nobre e magistral, é também um ato de amor, de misericórdia e de bondade, e lá em cima o meu Pai observa. Podem acreditar nas minhas palavras. Eu sei do que estou falando. Façam o bem e não olhem a quem. — Tudo bem. Faremos sim e com muita satisfação, não é meninos? – Juliana prosseguiu, lançando um olhar para os amigos que, com um leve sinal de cabeça, disseram sim — E que fato é esse que não me pode contar? Olha, se você me disser o que é, aí sim eu vou começar a acreditar em você. Jesus se surpreendeu, forçando um sorriso. A seguir, dando um leve toque de ironia na voz, indagou: — Isso por acaso é alguma chantagem? Juliana riu e refutou: — Desculpa, Jesus. Olha, não é chantagem coisa nenhuma. Desculpa também se eu estou te decepcionando, mas a verdade é que eu sou assim mesmo. Sempre confio com um pé atrás, pra não dizer com os dois — forçou um sorriso e continuou — É como papai costuma dizer: “Minha filha, confia desconfiando”. — E partindo desse pressuposto, também só acreditas vendo, não é? — É justo que assim seja, Jesus — confirmou, com ar superior. — Mas o que eu fiz até agora ainda não é o suficiente? — Assim o disseste, Jesus. Assim o disseste. 94


— Oh. meu Pai! O que mais devo fazer? — Jesus falou mais para si, mas ainda assim todos escutaram, deixando escapar um sorriso contido. Tal como Jesus, eles também se surpreenderam com a resposta da amiga, todavia, ninguém ousou se manifestar. Tal como eles, Jesus também se espantou com a ousadia de Juliana, não a levando a mal. Não obstante tratar-se de uma criança cética e detentora de uma personalidade própria e peculiar, convergindo para uma moderada prepotência, avessa a qualquer crença, seja ela de qualquer natureza, em especial a que se relacionasse a misticismo, consequência natural de sua rígida educação e orientação da parte de seus genitores, jamais chegaria a uma situação extrema, pois seu rosto angelical indicava também se tratar de uma criança dócil, contrapondo com o seu aparente coração duro como o gelo, mas, ao mesmo tempo, mole e fragilizado em função da sua vulnerabilidade como criança, na quase fase de transição para a adolescência. Seu temperamento indicava tratar-se de uma criança imune a qualquer tipo de sentimento, nada que não se resolvesse com uma boa conversa. Jesus sabia disso. Juliana agia por impulso e não pela razão, sendo esse justamente o motivo para que Jesus não a levasse mal e ficasse com raiva ou outro tipo de querela. Jesus também sabia como mitigar Juliana sem que lhe infringisse algum golpe mais profundo que, de algum modo, viesse a deixá-la ainda mais irredutível e até ofendida. Era o que ele menos queria que viesse a suceder. Imbuído desse espírito, disse-lhe: 95


— Juliana, Juliana... — sua voz saiu forçadamente fraternal — É melhor não nos aprofundarmos mais nessa nossa pequena discussão. O tempo urge e daqui a pouco começa a ficar tarde. E mais, os teus amigos, eu vejo nos olhos deles — fitou-os de relance — encontram-se desejosos de me questionarem e tirarem suas dúvidas. É injusto que eu venha até eles e não lhes dirija a palavra e tampouco lhes satisfaça suas dúvidas. Concordas comigo? — Han, han!...— aquiesceu com um aceno de cabeça. — Eu sabia que tu entenderias, Juliana — observou com um leve sorriso de gratidão, para prosseguir — Sabes, eu pretendo incutir em ti que a minha vinda até este lugar tem um propósito. Por isso te peço que pegues nessa Bíblia e me leias um trecho. Podes fazer isso? — Han, han!... — confirmou com aceno de cabeça, embora seu rosto não escondesse o quanto se encontrava ressabiada. Jesus percebeu, mas ainda assim preferiu ignorar, ao lhe dizer. — Aí na Bíblia, o livro mais importante existente na face da Terra, mas também para muitos o mais controverso de todos... mas isso agora não é o que nos deve reter como assunto… Como estava dizendo, aí na Bíblia são relatados dois períodos distintos. O período do Antigo Testamento, aquele que precede à minha vinda, e o período do Novo Testamento, aquele que procede à minha vinda, à minha curta passagem de trinta e três anos na face da Terra. O Antigo Testamento faz referência a todo o período desde a criação de 96


tudo até a minha primeira vinda, que é relatada como eu acabei de afirmar. Já no Novo Testamento são relados os acontecimentos desde o meu nascimento até ao fim dos tempos. E no Novo Testamento existe um livro, o Evangelho Segundo Marcos — fez uma curta pausa, fechou os olhos e quando os abriu prosseguiu — Marcos foi um apóstolo que me acompanhou, juntamente com mais onze, desde a primeira hora em que o meu Pai o chamou para me seguir, até à minha morte, quando eu tinha trinta e três anos… Basicamente foi isso. E Marcos também é responsável por relatar muitos fatos e acontecimentos presenciados por ele enquanto meu fiel seguidor. E um desses acontecimentos vai ser pertinente para a tua vida e a da tua família também, Juliana. Confusa, Juliana comprimiu o rosto. Ao fim de vários segundos, o timbre de sua voz passou a denunciar apreensão quando disse: — Mas que fato é esse, Jesus? Olha que esse seu mistério está me deixando com medo e apreensiva… E nervosa também — enfatizou, depois de fazer um curtíssimo silêncio. — Olha que não é motivo para ficares preocupada — Jesus tranquilizou-a, forçando, inclusive, um sorriso — Eu e o meu Pai só queremos o teu bem. O teu e o da tua família. Confia em mim e nele, por favor. Antes de falar qualquer coisa, Juliana trocou um olhar profundo e enigmático com Jesus. A seguir, observou: — Está bem, eu confio — embora o afirmasse, em seus olhos lia-se outra coisa. 97


Malgrado haver ficado confusa e também não pudesse explicar, Juliana tinha uma certeza, uma sensação quase palpável de que Jesus jamais lhe causaria dano algum, ao contrário, pois só isso justificava sua presença enigmática, fazendo uso de sua voz doce e meiga, acompanhada por seu semelhante semblante, insistindo para que ela levasse em conta suas palavras, atribuindo-lhe um crédito absoluto. Em seu intímo, Jesus percebeu, rindo para dentro. A seguir, fez um pedido. — Juliana, por favor, pega na Bíblia e procura nela o evangelho segundo Marcos, no seu capítulo dois, versículos do primeiro ao décimo segundo. — É pra já, Jesus! — alegre, concordou sem preâmbulos. Sem perder tempo, passou a folhear a Bíblia, ora para a frente, ora para trás, passando a sentir dificuldades em localizar o referido evangelho naquele enorme calhamaço, segundo seus pensamentos, e emaranhado de títulos. Era uma dupla situação, inédita, na qual Juliana se encontrava, pois nunca antes estivera na presença de uma Bíblia e tampouco havia pegado e explorado uma obra tão primorosa e valiosa, repleta de ensinamentos, de valores morais e espirituais. Jesus percebeu a dificuldade de Juliana, tal como Francisco que, solícito, prontificou-se para ajudar. Sem preâmbulos e como corolário da situação, Juliana acabou por aceitar, agradecendo em seu íntimo por se encontrar na presença de alguém como o amigo, que denotava conhecimentos basilares em manusear a Bíblia, 98


como se aquela lhe fosse familiar. E, de fato, era-o. Em poucos segundos, alegre, Francisco anunciou que havia localizado — com relativa facilidade — o evangelho solicitado por Jesus. — Francisco, devolve a Bíblia a Juliana, por favor — Jesus pediu, enquanto lhe lançava um olhar de gratidão. Foi o que Francisco fez. — Muito bem, Juliana. Antes de começares a ler, queria te deixar só uma nota que, de alguma forma, leve-te a entender qual o significado do meu pedido — fez uma curta pausa, para logo prosseguir, empostando a voz — Olha, Juliana. Ninguém neste mundo, seja quem for, crentes ou descrentes, ou quem acredita em outras crenças que não sejam as provenientes do meu Pai, seja lá o que for, ninguém escolhe sofrer. O sofrimento se impõe nas pessoas de várias maneiras e formas. Entendeste? Confusa, Juliana titubeou. Jesus percebeu e ofereceu-lhe um sorriso analítico e disse-lhe: — Eu sei que não entendeste nada, mas quando leres a Bíblia vais acabar por entender. Assim espero. E se, mesmo assim, ainda tiveres dificuldades em entenderes, quando chegares na tua casa, aí sim, não te restará alternativa, O fato se consumirá e tu ficarás definitivamente conhecedora. De novo, Juliana ficou sem nada entender, fitando Jesus com exacerbado interesse, como se ele fosse algum fantasma. E de novo Jesus percebeu e lhe fez um pedido. Disse-lhe: 99


— Podes ler para mim e para os teus amigos o trecho que eu te pedi. Marcos, capítulo dois, versículos primeiro ao décimo segundo. Sem delongas, voz pausada, Juliana passou a ler. — “Cura do paralítico. Depois de alguns dias, tendo entrado de novo em Cafarnaum, espalhou-se a notícia de que Jesus estava em casa. E juntaram-se tantas pessoas, que não havia espaço nem na frente da porta. E Jesus lhes anunciava a Palavra. Levaram então um paralítico, carregado por quatro homens. Como não conseguiram aproximar-se de Jesus por causa da multidão, descobriram o telhado em cima do lugar onde ele estava. Fizeram um buraco e por ele baixaram a maca em que o paralítico estava deitado. Vendo a fé que eles tinham, Jesus disse ao paralítico: ‘Filho, seus pecados estão perdoados’. Mas estavam aí sentados alguns doutores da lei. Eles pensavam em seus corações: ‘Porque esse homem fala assim? Está blasfemando! Quem pode perdoar pecados senão Deus?’. Jesus percebendo logo em seu espirito que eles assim refletiam entre si, disse-lhes: ‘Por que vocês pensam essas coisas em seus corações? O que é mais fácil? Dizer ao paralítico: ‘Seus pecados estão perdoados’ ou dizer: ‘Levanta-te, pegue sua maca e ande?’. Ora, para que vocês saibam que o filho do Homem tem autoridade para perdoar sobre a terra, eu lhe digo: — falou ao paralítico — levanta-te, pegue sua maca e vá para casa’. Ele se levantou, imediatamente pegou o leito e saiu diante de todos. E ficaram todos admirados e glorificando a Deus, dizendo: ‘Nunca vimos nada assim!’”.

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Capítulo Quarto Imediatamente, fez-se um silêncio absoluto e expectante. Francisco e Flávia passaram a olhar com ar de interrogação ora para Juliana, ora para Jesus, que recebia igualmente os olhares inquisitivos de Juliana, cujo semblante denunciava que não havia alcançado qual o objetivo daquela leitura referente à citada passagem bíblica e o que ela tinha a ver ou em que medida tal passagem influenciava sua vida e a da sua família. Qual a relação do fato histórico descrito na Bíblia com sua vida e família? Foram esses os pensamentos que rapidamente invadiram a mente ainda mais confusa de Juliana. Perspicaz, Jesus percebeu o quanto ela ficara ainda mais confusa. Diante disso e como ela não se manifestou de imediato, cauteloso, adiantou-se ao dizer-lhe: — Estou vendo que não entendeste nada do que acabaste de ler. — Nada disso, Jesus! — protestou, fazendo um 101


sinal negativo com o dedo indicador direito — Olha que eu entendi muito bem a história da Bíblia de que Jesus… no caso você... que está aqui, em carne e osso... mais osso do que carne — brincou, provocando um sorriso contido nos amigos e até em Jesus — que curou um paralítico. E que os homens importantes da época reclamaram que você era um louco fazendo aquilo que só pertencia a Deus. — O meu Pai! — brincando, Jesus alfinetou. — Justo, Jesus. Quem mais poderia ser? Eu é que não, que sou uma criancinha e mulher. — Só ele, Juliana. Só ele, o meu Pai. — É verdade. É verdade. Olha, a história é tão cristalina como a água dessa lagoa. O que eu não entendi ainda é o que é que tudo isso tem a ver de tão importante assim que possa… Juliana parou para procurar por uma palavra que tivesse relação com o fato. Como não conseguiu, sutil, Jesus percebeu a dificuldade e a socorreu, acrescentando: — Relacionar ou associar a ti e à tua família. — Bingo, Jesus! — e dito isso, ofereceu a palma da mão, esperando que Jesus lhe retribuísse encostando sua mão na mão dela. Ele desconhecia aquele gesto, daí que hesitou. Num movimento rápido, Juliana, tomando-o de surpresa, pressionou a mão dele contra a sua, para lhe dizer depois. — Valeu ,Jesus! Você é o máximo! Sem nada entender, interrogativo, Jesus olhou para Francisco e Flávia, apelando por ajuda. Os dois amigos 102


somente deixaram escapar um riso de satisfação, porém, contido e levemente analítico. A seguir, deram de ombros. — Eu sou o máximo só porque consegui enquadrar a palavra certa? – Jesus perguntou. Um leve sorriso de Juliana provou o quanto ele havia falado corretamente. Jesus prosseguiu: — Tu não entendeste qual a relação do fato bíblico com a tua família e contigo também, não é verdade? — Assim o disseste, Jesus. Escutaram-se sorrisos contidos. — Nesse caso, só irás entender quando chegares em casa. — Como assim, Jesus? Concludente, Jesus a fitou olhos nos olhos e só depois lhe respondeu: — É para tu verificares o quão é grande e magnífico o amor do meu Pai convertendo almas perdidas, aqueles que se encontram desprovidos de fé em toda sua plenitude, como é o caso dos teus pais. O meu Pai ama a todos, os que creem e os que não creem. Isso é maravilhoso, Juliana. Porque todos eles são fruto da sua criação. — Como você fala bem, Jesus. Ainda assim eu continuo sem nada entender. Aonde está querendo chegar? – ainda confusa, ela quis saber. Jesus ficou em silêncio por uns segundos, dando mostras de que refletia, chegando, inclusive, a fechar os olhos. E quando os abriu, falou mais para si, mas, ainda assim, todos o escutaram. — A riqueza do pobre é muito melhor do que a miséria do rico — e dito isso, de novo fechou os olhos 103


para dar início a uma profunda reflexão. Os três amigos ficaram sem entender nada, chegando a trocar olhares interrogativos, para logo darem de ombros. Principalmente Juliana, que para si mesma considerou que Jesus estaria atoleimado. A seguir, todos aguardaram por uma reação de Jesus. Como ele demorou a se manifestar, Juliana decidiu intervir, acabando por desviar sua atenção. — Ah, Jesus! — fez um muxoxo — Você faz cada comparação! Francamente, aonde está querendo chegar? Jesus abriu os olhos, lançando um olhar profundo para Juliana. A seguir, disse-lhe: — O meu Pai nos ensina que devemos amar uns aos outros como a nós mesmos. Também nos ensina que o que existe no interior de uma pessoa vale muito mais do que o que está fora dela. De que vale ser rico se não se é feliz? E tampouco a gênese da ausência dessa felicidade é justamente a falta de amor, amor próprio e amor do meu Pai? Juliana lançou um olhar sério para Jesus e depois, disse-lhe: — Olha, Jesus, você, de fato, fala muito bem, mas eu continuo sem nada entender — sua voz saiu desafiadora — Essa coisa de amor é tudo muito lindo, mas o que isso tem a ver comigo e com a minha família? — Olha, Juliana, eu estou te dando algumas indicações, mas tu não consegues decifrar. Nesse caso, é melhor esperar até chegares em casa. — Você podia ser mais prático Jesus, sabia? – ela pediu. — Mais do que eu já fui é impossível minha filha. 104


— Tudo bem. Eu não vou discutir com você, senão ainda me transforma em alguma coisa. Sei lá… num sapo — forçou um sorriso — Vou esperar, sim, para quando chegar em casa. A partir de agora estou louca para chegar em casa. Só espero que papai acredite em mim de que eu estive com você, pois se ele não acreditar, ainda vou tomar um castigo e levar porrada. E se ele me machucar vou te responsabilizar. Está me ouvindo? — Ele vai acreditar sim Juliana, e será o princípio. — O princípio de quê, Jesus? — A tua pergunta parece ser mais fácil do que a resposta tamanho o teu ceticismo. Eu sei que ficaste deveras ansiosa, mas terás de aguardar até encontrares os teus pais em casa, combinado? – Jesus lançou-lhe o desafio. — Combinado, Jesus — respondeu Juliana, sem muito entusiasmo, dando de ombros num gesto de inconformismo. *********** Como Jesus havia dedicado a grande maioria de seu tempo a Juliana, resolveu então galardoar Flávia e Francisco como forma de não cometer alguma injustiça. Assim, após concluir com Juliana, resolveu interpelar sem destinatário certo. — Pronto, meus filhos. Estou à vossa disposição — disse-lhes com vivacidade — E até tu, Juliana, caso queiras perguntar algo relacionado às questões dos teus amigos, a aula é aberta a todos — arrematou brin105


cando, provocando um sorriso aberto em todos eles. Quem se adiantou foi Flávia, que comentou, brincando: — Com um professor como você, olha que até dá gosto de participar da aula onde tem de tudo. Milagres, muita comida, gargalhadas, palavras desconhecidas, Satanás, dinheiro, celular e sabe-se lá mais o quê? — Incredulidade também — Jesus alfinetou com uma leve ironia, fazendo referência a Juliana, mas ela não percebeu o trocadilho. Francisco, o mais reservado, somente se manifestava quando considerava oportuno. Todavia, desta vez foi o primeiro a indagar Jesus quando uma dúvida lhe surgiu, não naquele exato momento, mas alguns minutos antes. Diante disso, quis saber: — Jesus, há pouco fiquei com uma dúvida. — Estou aqui para esclarecer o que vos ainda suscita dúvidas. Pergunta Francisco — pediu no seu habitual tom de voz suave e meigo. — Há pouco, quando fez com que aquela pomba branca retornasse e depois pediu para que ela fosse embora, você disse: “Sai, Espírito Santo”. — É verdade. Eu afirmei isso. Tanto é que o Espírito Santo me obedeceu. Qual é a tua dúvida, Francisco? — Por que chamou a pomba branca de Espírito Santo? — Porque ela representa efetivamente o Espírito Santo. — Sim…. Afinal, o que é o Espírito Santo? Sabe Jesus, eu sempre ouvi falar no Espírito Santo, mas 106


nunca escutei alguém dizer o que é. Eu imagino o que seja, mas ao mesmo tempo posso estar errado quanto aquilo que eu julgo ser o Espírito Santo. Jesus refletiu por uns breves segundos. A seguir, curioso, perguntou: — E o que achas que seja, na tua concepção, o Espírito Santo, Francisco? — Ah Jesus! Eu acho que o Espírito Santo seja alguma coisa ligada a Deus. Será Deus transformado numa pomba? É isso? – expetante, arrematou. — Vamos por partes, Francisco — disse Jesus, ao fim de uma curtíssima reflexão — O Divino Espírito Santo ou simplesmente “O Divino”, é a terceira pessoa da Santíssima Trindade. É, sim, Deus, o meu Pai. É o amor entre o Pai e o filho, eu. É um amor vivo e atuante. É ele quem passa a habitar nos vossos corações, no teu, no da Flávia, no da Juliana também, pelo batismo. E é ele quem guia os que acreditam em mim e no meu Pai como caminho para a salvação. O batismo é a expressão da misericórdia do meu Pai para que não vivamos no pecado original. Resumindo, o Divino Espírito Santo é o meu Pai no coração das pessoas através do batismo. — Entendi, Jesus — observou Francisco ao fim de alguns segundos, enquanto esfregava o queixo para acrescentar — E a pomba? Ela é também Deus, o seu Pai? — Digamos que sim, Francisco, mas não deixa de ser somente um símbolo. — Mas por que se usa a pomba como símbolo do Espírito Santo? – em dúvida, quis saber Francisco. 107


— Tu conheces a história do meu batismo, Francisco? — Mais ou menos. — E desse teu mais ou menos, o que realmente tens de conhecimento? — De que foste batizado no Rio Jordão, por João Batista. É só o que eu sei, Jesus. — E já é o suficiente. Muito mais do que a grande maioria — com uma espécie de sorriso de gratidão, Jesus observou. Desconcertado e simultaneamente orgulhoso na verdadeira acepção da palavra, Francisco riu alvar. — Partindo disso — Jesus prosseguiu —, justamente quando da ocasião do meu batismo, o Divino Espírito Santo desceu numa forma corpórea através de uma pomba branca. E enquanto esse fato ocorria, uma voz vinda do céu disse: “ Tu és o meu filho muito amado. Em ti, eu me agrado”. — Então, quem falou lá do céu foi o seu Pai, Jesus? – Flávia perguntou. — Assim o disseste, Flávia. — Fiquei esclarecido, Jesus — disse Francisco deveras alegre e convicto. Subitamente e sem aviso prévio, um vislumbre. Excitada, Flávia perguntou: — Se assim é, então o seu Pai esteve aqui quando a pomba retornou e você lhe deu a ordem para ela ir embora? — Digamos que sim, Flávia. Mas nunca se esqueça de que a pomba é somente um símbolo. 108


— Que bacana, Jesus — alegre, Flávia observou. — Agora, cuidado, meus filhos para quando encontrarem uma pomba branca e acharem que ela é o meu Pai. O Divino Espírito Santo é representado por uma pomba, mas não é qualquer uma que ande por aí voando. O meu Pai é quem determina e escolhe quando o Divino Espírito Santo se deve manifestar. Entenderam? Um acenar de cabeça foi a resposta de todos, até de Juliana, que acrescentou, brincando: — Realmente, não é uma pomba qualquer. Pelo menos ela é branca e não de outra cor qualquer, que vive deixando cair bosta em cima das nossas cabeças, nos carros e até nas roupas estendidas nos varais. Mamãe reclama demais da bosta na roupa dos pardais e das pombas. Oh, bicharada miserável! Assim fica mais fácil de distinguir. — Mesmo branca, a pomba não deixa de ser somente um símbolo, Juliana. — Assim o disseste, Jesus — brincou. Os demais deram uma gargalhada contida. Até Jesus acompanhou-os, contagiado. ********** Não demorou muito para que os três amigos indagassem Jesus sobre mais uma das várias dúvidas que ainda persistiam nas suas mentes confusas. E ali era o lugar indicado para o fazer. Desta vez, Flávia já ia questionar Jesus quando escutou a voz de Juliana se sobrepondo à sua. Como falou mais alto, prevaleceu a sua manifesta vontade. 109


Flávia também não se importou de ser passada para trás. A amizade pura e sincera das duas fazia com que situações como essa pudessem ser permitidas sem que qualquer uma delas se incomodasse, em especial a pessoa passada para trás, como foi o caso de Flávia, que somente lançou um olhar para a amiga, como lhe dando permissão para falar. O espírito de amizade encontrava-se latente e enraizado na verdadeira acepção das palavras, não só em relação às duas amigas, como em relação a Francisco. Voz persuasiva e suave, Juliana dirigiu-se a Jesus. Disse-lhe: — Pode me esclarecer uma coisa, filho de Deus? — Pois não, minha filha e minha irmã também — igualmente brincou, provocando sorrisos em todos. — Se Deus é o seu Pai, quem é a sua mãe? — Oxe! Quem é que haveria de ser, Juju? É Maria — convicta, Flávia antecipou-se a Jesus, que não se importou. — É verdade, Juliana. Maria foi a mulher escolhida por meu Pai para ser a minha mãe. A Flávia falou corretamente. Juliana expressou um rosto cético. Jesus percebeu, mas nada disse. Como ficou em silêncio, Juliana prosseguiu. — Mas se o seu Pai mora lá no céu e ninguém o consegue ver a não ser você, como é que ele conseguiu engravidar a sua mãe, que morava aqui na Terra? Eles fizeram aquela coisa? – disse. Desconcertado, Jesus disfarçou, mas não levando a mal a confusão da inocente criança, perguntou a Juliana, embora soubesse a resposta. 110


— Que coisa, Juliana? — Aquela coisa... pum, pum, pum… aquela coisa que se faz entre um homem e uma mulher… sabe… Eu nasci disso. Papai e mamãe namoraram e me fizeram. E ao meu irmão também…. Está me entendendo, não é? Jesus achou graça, oferecendo um sorriso analítico à forma e à sutileza de como Juliana expôs sua dúvida, a ponto de enrubescer ligeiramente. Os demais também, chegando a rir para dentro. Assumindo o mesmo tom de voz de Juliana, Jesus disse-lhe: — Repara bem, Juliana... Não foi dessa forma tradicional de que se tem conhecimento e instituída por meu Pai quando da criação do mundo e de suas criaturas, no caso o homem e a mulher. Nada disso, Juliana. A minha concepção foi diferente do que é a prática recorrente. Ela é exclusiva e única até hoje. Na verdade, eu fui gerado pelo Espírito Santo. Maria, a minha mãe, ou mamãe, como tu dizes, foi a escolhida por meu Pai, que lhe enviou um anjo que lhe comunicou que não tivesse medo porque havia encontrado graça junto dele. Então, através do Espírito Santo eu fui gerado, ou encarnado, como queiram chamar, em seu ventre. E o resto aconteceu normalmente quando uma mulher fica gestante. O resto da história é sobejamente conhecida. — A pomba branca veio lá do céu, chegou junto da sua mãe e disse a ela que ela não tivesse medo, que a partir daquele dia a barriga dela ia inchar, sem aquela coisa de pum, pum, pum… É isso que está querendo dizer, Jesus? 111


— Tu és muito engraçada e inocente, Juliana. Não foi bem assim, mas posso aceitar essa tua teoria — circunspecto, Jesus respondeu segurando um sorriso, para acrescentar depois — O resto da história é sobejamente conhecida, como estava dizendo. Entretanto, se tu pretendes encontrar mais alguma referência em relação a esse acontecimento maravilhoso, é só procurar na Bíblia, no livro de Lucas, no capítulo primeiro, versículos vinte e seis ao trinta oito. Lá está explanada toda a história de como eu vim a este mundo. — Não precisa, Jesus. Deu para entender perfeitamente — Juliana observou para arrematar num leve tom de ironia — De novo o Espírito Santo funcionando como se ele estivesse em todo o lugar e comandasse a tudo e a todos. — Assim o disseste, Juliana — Jesus observou, não dando importância, para logo se virar para Flávia com o intuito de evitar qualquer comentário da amiga, como que encerrando qualquer tipo de discussão — Então, Flávia. Qual é a tua dúvida? Se é que o que tens para me perguntar é alguma dúvida ou algum esclarecimento. Um leve sorriso de Flávia provou que Jesus havia tocado no ponto certo. A seguir, disse-lhe: — Sabe Jesus, hoje em dia existe muita discriminação e preconceito em relação a muitas coisas e pessoas, em especial aos negros e aos deficientes. Mas também em relação aos homossexuais e gays. — Pois não. O que queres saber? — Você sabe o que são homossexuais e gays, não sabe? 112


— Sei sim, Flávia — confirmou com um aceno de cabeça, todavia, sua voz denunciou em seu timbre uma profunda tristeza. Os três amigos repararam, mas decidiram nada comentar. Flávia prosseguiu: — A nossa sociedade hoje em dia é muito preconceituosa e não esconde que o é. Sabes, também existe muita hipocrisia, dizendo que são contra o preconceito e na prática fazem outra coisa. Mas isso é outra história. O que eu quero saber é outra coisa… Perante o seu Pai e até com você mesmo, vocês têm o mesmo pensamento em relação a essa gente, os homossexuais e os gays? A escolha deles é pecado? Lá na minha igreja o pastor afirma de pés juntos que a escolha deles é pecado perante a lei do seu Pai. Já dos homens, é o contrário. O que você tem a dizer? A indagação não pegou propriamente de surpresa Jesus, no entanto, a forma de como foi feita, por se tratar de uma criança, que deixou bem nítido o seu lado erudito, isso sim, deixou-o deveras surpreso. Ainda assim, não titubeou ao dizer: — Interessante a tua pergunta. Muito interessante, Flávia. Mas antes de te responder quero esclarecer uma coisa: homossexual e gay é a mesma coisa. Trata-se de uma pessoa que tem atração sexual por pessoa do mesmo sexo, tanto faz ser homem com homem ou mulher com mulher. Entendeste? — Sim, Jesus — confirmou Flávia com um aceno de cabeça. — Pois bem, Flávia. O amor do meu Pai e meu 113


também, é infinito. Por isso não fazemos distinção de pessoas quanto à raça, ao sexo, às orientações sexuais e outras condicionantes. E todas elas têm um lugar lá no céu, junto ao meu Pai, desde que se reconciliem consigo mesmo e com o meu Pai, e mais, que se arrependam dos seus pecados. O que eu quero dizer com isso? Muito simplesmente de que para o meu Pai, toda criatura, seja ela racional ou irracional, é fruto da Sua magnífica obra de criação e, como tal, Ele ama a todos de igual para igual, independentemente das suas escolhas, fruto do seu livre-arbítrio, como é o caso das suas opções sexuais. Entendeste? — Muito bem, Jesus — confirmou, mas em seus olhos lia-se outra coisa. Jesus percebeu e continuou: — Quando o meu Pai criou tudo, em especial o homem e a mulher, deu-lhes, ou atribuiu-lhes, uma função — virou-se para Francisco, fazendo-lhe um pedido — Meu filho, tu podes pegar a Bíblia e ler um trecho do Antigo Testamento, no Livro de Gênesis, capítulo primeiro? — É para já, Jesus — disse enquanto pegava a Bíblia, que estava com Juliana. Ao pegá-la, passou a ler. Sua voz saiu pausada. — Capítulo primeiro do Gênesis; “Toda a pessoa é imagem e semelhança de Deus. No princípio Deus criou o céu e a terra…”. Com um sinal de mão, polido, Jesus interrompeu. — Por favor, Francisco, avança um pouco e procura aquela parte em que o meu Pai diz: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. É lá pelo versículo vinte cinco ou vinte e seis. 114


— Está bem, Jesus — concordou. Quando encontrou, passou a ler, de forma pausada — “E Deus disse: “Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança. Que eles dominem os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos e toda a terra e também os bichinhos que se remexem sobre a terra’. E Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, macho e fêmea os criou. E Deus os abençoou e disse: ‘Sejam fecundos, multipliquem-se, encham a terra e a submetam…’”. Com um sinal, Jesus pediu para que Francisco parasse. A seguir falou, dirigindo-se a Flávia: — Estás vendo, Flávia? O homem e a mulher foram feitos à imagem e semelhança do meu Pai e a eles foi dado uma atribuição, que fecundassem e multiplicassem a raça humana. Ou seja, daí se conclui, com toda a certeza, e esse é o principal fundamento para tirar a tua dúvida, que a união de pessoas só é permitida entre um homem e uma mulher. Tudo o que esteja afastado desses paradigmas é, sim, considerado pecado perante ao meu Pai. Ao homem e à mulher cabe a tarefa de gerar filhos e povoar a Terra fruto do sua união como marido e esposa. É tão cristalina como a água dessa lagoa diante de nossos olhos, fazendo uso das palavras da tua amiga Juliana. Entendeste? — Entendi sim, Jesus. Então, os homossexuais, ou os gays, estão praticando o pecado? — Deliberadamente, sim Flávia. Mas isso, quero deixar bem claro para que não restem dúvidas, mas isso não faz com que o meu Pai não os ame de igual modo 115


como ama um casal perfeito, segundo idealizado por Ele. Apesar dos homossexuais se encontrarem desvirtuados das primícias do meu Pai, jamais, ouçam bem, JAMAIS – deu ênfase — Ele os abandonará, como jamais irá desistir deles, porque ainda tem a esperança de salvá-los, como outra pessoa, em outras circunstâncias, cometendo outros pecados. O amor de meu Pai é infinito e as pessoas devem respeitar as escolhas deles, não os maltratando e debochando deles. Eles também são gente, são filhos de Deus. — Então, o pastor lá da minha igreja não estava exagerando? — Jamais, Flávia. Perante o meu Pai, a união entre dois homens ou entre duas mulheres é, sim, pecado, mas nunca se deve hostilizar e muito menos desprezá-los. Apesar das suas escolhas, eles são úteis à sociedade. Eles são nossos irmãos. É o Satanás, com suas artimanhas, desvirtuando os filhos de meu Pai. Por vezes, o danado consegue obter êxito. — É verdade, Jesus — Francisco corroborou. — E a felicidade dos homossexuais não conta não, hein? O que conta é só a felicidade sua e do seu Pai, hein? – desafiando, Juliana perguntou. Os demais ficaram mudos de espanto com a ousadia da amiga. Até Jesus se surpreendeu. Ele, que a achava meio ausente daquele diálogo. Ainda assim, não se intimidou. Incisivo, respondeu sem titubear: — Mas é claro que conta, Juliana. A felicidade deles é a consequência natural de suas escolhas, dadas pelo livre-arbítrio que o meu Pai lhes concedeu, em um ato 116


de amor. Apesar de considerares o meu Pai egocêntrico, ou seja, individualista, e até eu, o meu Pai lhes deu o livre-arbítrio para que eles pudessem escolher. Foi o que eles fizeram, excluindo de suas decisões e pensamentos a magnífica obra de meu Pai. Essa felicidade deles é passageira, quimérica e terrena. A felicidade plena é a celeste, a união celeste com o meu Pai — disse. Um gesto de enfado foi a pronta reação de Juliana, que disse na sequência, com desdém. — Ah, isso é balela! É conversa pra boi dormir! Jesus já ia responder, quando Francisco sentiu necessidade de se solidarizar. Voz grave, dirigiu-se à amiga. — Olha, Juju... se Deus quisesse que o homem casasse com homem, ou mulher casasse com mulher, não teria feito Adão e Eva e, sim, Adão e Ivo, ou então Eva e Adália. Eu concordo com ele. O homem só é feliz do lado da mulher. Que coisa feia, homem com outro homem e mulher com outra mulher, no meio da rua, beijando-se na boca, de mãos dadas, por vezes até na frente de crianças. Isso é coisa de animal irracional. Nojentos! — Está bem, Francisco — Juliana cortou, dando de ombros e dando a entender de que não pretendia alongar aquela conversa, já que percebeu que se encontrava em desvantagem, depois de trocar um olhar com Flávia, que lhe deu indicação de não apreciar seus comentários. — Adão e Ivo? Eva e Adália? – estranhando a comparação, Jesus comprimiu o rosto num gesto de espanto. — É gíria, Jesus. É claro que tudo não passa de uma falsa ilusão comparativa. Esquece — Francisco pediu. 117


— É melhor mesmo — observou, para logo mergulhar num rápido pensamento — “O que eles pensam e falam hoje em dia naquelas mentes destruídas. Como os tempos mudaram mesmo”. ********** Os quatro continuavam dialogando, quando Flávia sentiu necessidade de fazer uma observação, acompanhada pela respectiva indagação: — Jesus, todos nós sabemos o que você sofreu quando passou pela primeira vez aqui na Terra, sendo muito humilhado. É claro que eu estou me referindo à sua morte na cruz, depois de ser injustamente acusado. É verdade, não é? — Assim o disseste,Flávia. — E com tudo isso, ainda assim, você não revidou. Por quê? Jesus deixou escapar um leve sorriso compreensivo e disse: — Isso é amor e compaixão. O meu Pai me ensinou que nunca devemos revidar, pelo contrário, devemos sempre perdoar e que o façamos de coração e de alma aberta. E mais, que esse perdão, quando dado, não seja somente da boca para fora. Que seja colocado em prática posteriormente. Eu sei que não é fácil perdoar, mas quem quiser se sentir bem consigo mesmo, fazendo a sua parte, deve, sim, perdoar. O meu Pai aprecia e muito esse gesto nobre. — Mas que lindo, Jesus. Você é mesmo maravilhoso. 118


— Somente faço o que o meu Pai me ensinou, Flávia. Sabes, quando eu já estava crucificado na cruz do Calvário, eu falei ao meu Pai que perdoasse aqueles homens porque eles não sabiam o que estavam fazendo. E logo, Ele os perdoou. Para que guardar rancor de alguém se isso não leva a lugar algum? Ao contrário, só aumenta o nosso sofrimento e angústia. Cada um de vós deve fazer o vosso papel. O resto é complementado por meu Pai. Podem ter certeza quanto a isso. Flávia já ia falar, quando a voz alta de Juliana foi escutada. — Como é que eu posso perdoar a alguém se essa pessoa vive constantemente me fazendo mal? Isso não faz sentido Jesus. Só uma trouxa ou um trouxa cairia numa armadilha como essa. — Antes mais, o que é trouxa? — Um palerma, um idiota — Juliana respondeu na hora. — Ah, sim... É cada nome hoje em dia que colocam às coisas e às pessoas. Mas tudo bem, vamos ao que interessa…. Pois bem, depois do que acabaste de falar, Juliana, isso é justamente um motivo a mais para perdoar. Ao perdoar o teu eventual agressor, estás fazendo o teu papel de conciliar o diferendo existente. E se ele persistir, inclusive bofeteando a tua face esquerda, tu deves oferecer a face direita. — Você é maluco, Jesus? – Juliana revidou — O cara me bate e eu ainda lhe peço para me bater mais, quando deveria ser o contrário? Eu, hein? É isso que está querendo me dizer, é? Olha que isso é coisa de doido! Como 119


papai costuma dizer: “Um cara apanha e ainda agradece por ter apanhado”. Humm! Aonde eu vim parar! — O que Jesus quis dizer, como escutamos hoje, Juju: “Quanto mais te bato, mais eu gosto de ti” — brincando, Flávia alfinetou. — Digamos que sim, Flávia. — Eu hein! – Juliana deixou escapar — Isto mais parece um angu dos diabos. Todos escutaram, no entanto, ninguém ousou se manifestar.

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Capítulo Quinto À medida que os minutos iam passando, o final do dia se aproximava. O celular de Juliana voltou a tocar. Num rápido movimento, cabeças viraram em sua direção. E Jesus manifestou-se: — Não temas, Juliana. Podes atender. É o teu pai, que está preocupado com a tua demora — disse. — Como sabes que é papai, Jesus? – indagou-o, enquanto contorcia o rosto num gesto simultâneo de espanto e de desconfiança. — Para que fiques conhecedora, eu detenho o domínio absoluto sobre todos os seres vivos do planeta. Ela comprimiu o rosto e indagou: — Jesus, por acaso tu és advinha, hein? — O meu Pai me concedeu poderes, os quais ninguém consegue plagiar. Os poderes que me foram concebidos são exclusivos meus. Quem ousar desafiar o meu Pai está transgredindo o preceito religioso insti121


tuído por Ele. Quem o fizer, está cometendo falta. O lugar do transgressor é o fogo do inferno — propositadamente, provocou temor. “É preciso saber se o diabo aceita o transgressor lá no inferno. Vai ver que ele não quer um troço daqueles na casa dele. Tem transgressor e transgressor”, rápido, Flávia pensou. Em vez de ficar temerosa, farejando perigo e apreensiva, Juliana brincou com a situação, dando-lhe um toque de ironia. Disse: — É como meu pai diz: “Está procurando lenha para se queimar na fogueira”. A risada foi geral. Até Jesus, mesmo comedido foi contagiado, deixando escapar uma risada contida. A seguir, Juliana atendeu o celular, demorando pouco mais de um minuto falando com seu pai, que logo a incumbiu de retornar imediatamente a casa. Ao desligar, reclamou da excessiva impetuosidade do genitor, referindo-se a ele com desdém. — Porque fazes referência ao teu pai com essa exagerada falta de apreço? – Jesus perguntou-lhe, após escutá-la reclamar pelo fato do pai haver exigido sua imediata chegada em casa. — Ele é um chato. Só vive me enchendo o saco. A mim e ao meu irmão, como se ainda vivêssemos numa ditadura. — Ainda assim, ele é o teu pai, Juliana. Por mais que consideres extrapolada a conduta dele sendo exigente. Nunca te esqueças, por mais que não gostes da forma de como ele age, com tudo isso, ele não deixa de ser o teu pai. 122


— E eu a filha dele, infelizmente — falou de novo com desdém. — Ainda assim, mesmo que não gostes dele, no mínimo lhe deves respeito e obediência. Afinal, se tu estás aqui na minha presença, deves isso a ele. Deixa de ser birrenta e passa a amá-lo como amas a ti mesma. Olha que não é nada difícil fazer isso, entendes? — Está bom, Jesus. Já não chega as lições de moral lá em casa e na escola, ainda tenho que escutar o que eu não quero? Era o que me faltava! — O teu pai te ama, mesmo ele sendo exigente como tu acabaste de afirmar. Ele somente está te protegendo porque te ama. Se ele não te amasse, com certeza nem te ligaria, como muitos fazem por aí hoje em dia. — Está bom, Jesus. Eu já sei de tudo isso. É a mesma lenga, lenga de sempre. Não estás me ensinando nada novo — falou Juliana, cortando qualquer possibilidade de estender a conversa, para ela incômoda. Providencial, Francisco interveio como forma de atenuar a aparente tensão e desconforto provocados pela amiga. Pedindo, disse: — Jesus, eu estou com uma dúvida. Podes me esclarecer, por favor. — Com todo o gosto. O que queres saber? — Sabe, Jesus, isso ainda me faz muita confusão. — O quê? — Essa coisa de dízimo. — Sim, Francisco. O dízimo propriamente dito? Ou tudo o que esteja relacionado à sua função, criação e instituição? 123


— Tudo Jesus. A única coisa que eu sei é que dízimo é a décima parte, ou seja, em cem por cento, o dízimo corresponde a dez por cento. — E está correto o teu raciocínio, Francisco — observou com um leve sorriso, para prosseguir — Pois bem, o dízimo é exatamente o que tu afirmaste corretamente agora mesmo, mas para o meu Pai, o dízimo é muito mais do que o real significado matemático e linguístico na sua verdadeira acepção das palavras. Quando um cristão, um verdadeiro cristão, devolve o dízimo, que corresponde a dez por cento daquilo que recebe como força motriz de seu trabalho, tanto faz ser intelectual, físico ou outro de qualquer forma, à obra do meu Pai. E o que é a obra do meu Pai? É a sua Igreja, nas suas mais variadas vertentes, desde a católica, a evangélica, a ortodoxa, a anglicana e qualquer outra. Como estava dizendo, o verdadeiro cristão deve devolver o dízimo, não como uma obrigação - isso é importante elucidar-, mas sim como um reconhecimento de que tudo do que atualmente dispõe, é proveniente do meu Pai. Tudo o que suplante esta máxima é demagogia e tentativa de ludibriar, que é o que hoje, infelizmente, mais existe, com alguns falsos profetas dizendo por aí que só os dizimistas fiéis ficam livres dos sofrimentos, com o meu Pai ao lado deles, abençoando-os em todas as situações. A palavra do meu Pai é dada de graça. O dízimo é para a Sua obra. São coisas completamente distintas. Quem diz que só os dizimistas fiéis serão abençoados está blasfemando, está caluniando. O 124


meu Pai abençoa a todos e ama a todos independentemente de serem dizimistas fiéis, até porque muitos deles não podem contribuir por várias situações, nomeadamente a questão financeira e sua dificuldade em satisfazer. Por exemplo, lembro aqui um desempregado. A atenção dada pelo meu Pai é similar para os dizimistas fiéis como para aqueles que não podem contribuir e às vezes não dispõem de recursos para adquirir um simples pão. O meu Pai abençoa e salva os filhos Dele pela fé e não pelo dinheiro. Olha, Francisco, o dízimo é fruto de quem tem um coração sensível aos gestos do meu Pai e um coração que ama de verdade saberá dar valor e reconhecer tudo quanto recebe gratuitamente Dele. Essa é a essência do dízimo e a sua finalidade — parou um pouco, pedindo a Francisco que lesse um trecho da Bíblia — Podes pegar novamente na Bíblia e ler para todos nós, no livro de Mateus, capítulo dez, versículos oitavo ao décimo. — É para já, Jesus! — Francisco aceitou sem titubear, pegando a Bíblia e passando a ler, fazendo uso de um tom de voz suave e pausado — “Curem enfermos, ressuscitem mortos, purifiquem leprosos, expulsem demônios. Vocês receberam de graça; de graça deem. Não levem ouro, nem prata, nem cobre em seus bolsos, nem bolsa para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão. Porque o trabalhador tem direito a seu sustento”. — Muito bem, Francisco. O que acabaste de ler é a mesma coisa que dizer: “Se é de graça que recebemos, é de graça que devemos dar”. 125


— Mas, Jesus... — Francisco prosseguiu — Hoje em dia muitas pessoas criticam o fato dos padres e pastores cobrarem o dízimo. — Criticam porque desconhecem a palavra do meu Pai. E muitos falam só porque têm boca. — Também por isso, mas também porque acham que o dízimo não é aplicado nas obras do seu Pai. Às vezes, é gasto em outras coisas que nada têm a haver com a Igreja que eles representam. Por exemplo, comprando mansões luxuosas, fazendas, belos apartamentos, carros de luxo, depositando grandes quantias em bancos no estrangeiro e outas coisas mais. — Infelizmente, tu falas uma grande verdade, Francisco. Tem pessoas sem consciência. Os falsos profetas que utilizam o nome do meu Pai em vão, utilizam-se de artimanhas e subterfúgios, tal como o Satanás, fazendo uso da boa-fé das pessoas para as ludibriarem, respaldando-se na eventual inércia ou na impunidade do divino. Engano deles. Lá em cima, o meu Pai está vendo tudo. Não só os que aplicam mal o dízimo que pertence à sua Obra, como também aqueles que deliberadamente fazem uma interpretação errônea de Sua palavra, banalizando-a, sobretudo pregando uma insistente prosperidade, como se isso fosse a coisa mais importante. Ao contrário, para o meu Pai, o mais importante é a salvação de Seus filhos mediante a fé, obediência e arrependimento. Todo o resto ele acrescenta, “Esforçai-vos, que eu vos ajudarei”, já assim falava ele. Lá de cima o meu Pai vê tudo, por isso esses falsos profetas um dia prestarão contas. E quando 126


esse dia chegar, seus dentes vão ranger. Cuidar do dízimo é como cuidar da casa do meu Pai. É como administrar criteriosamente os recursos em vossas casas. Francisco já ia falar alguma coisa e Flávia também, mas, mais rápida, Juliana, ao perceber a manifesta intenção dos dois amigos, logo se antecipou, cortando-os. Outra vez, fazendo uso de ironia, citou o pai. — Olha, Jesus, é verdade sim — disse. — O que é verdade Juliana? — Esses falsos profetas. Sabe, papai de quando em vez os assiste na televisão, só para mostrar essas pessoas enganando os pobres coitados que vão na igreja com dor de cabeça, de ossos, de barriga e outras doenças corriqueiras do dia a dia e lá são curadas de uma hora para a outra, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Olha Jesus, muitas dessas pessoas vão até à igreja pela primeira vez, escutam o cara falar qualquer coisa e logo ficam boas, num passe de mágica. Muitas delas não têm nem fé alguma. Vão lá só porque alguém lhes falou que naquela igreja serão curadas. Elas vão lá e são curadas. Bem... Elas acham que são curadas. Os caras conseguem trabalhar bem a mente das pobres coitadas, muitas delas analfabetas e de baixa renda, e depois lhes é cobrado o dízimo e outras coisas mais. Eu mesma tenho conhecimento de um caso lamentável de uma vizinha minha, uma velhinha, uma pobre coitada, que foi na igreja, obteve a graça — é o que eles dizem para os pobres coitados —, e na hora de ir embora o pastor disse que ela tinha que entregar na igreja a única coisa que tinha naquela ocasião. Sabe o que era? 127


— Se eu fosse advinha como tu disseste há pouco, até que saberia a resposta, mas como não sou, a resposta fica por dar. — Tudo bem, eu digo — disse ela, segurando um sorriso — A única coisa que ela tinha era o vale transporte. A pobre coitada foi a pé para casa. Uma mulher velhinha, de quase oitenta anos de idade. Isso é sacanagem, coisa de chico esperto, como papai diz. Isso é estelionato. Sabe, Jesus, papai costuma dizer também que tudo é combinado. Ou então, se for verdade, porque os políticos não aproveitam a ideia e chamam esses caras para trabalharem nos hospitais? Assim eles ajudavam a resolver o problema e a superlotação dos hospitais. Papai diz que tudo isso é armação, porque se fosse verdade, os hospitais não continuavam abarrotados de doentes reclamando. — É como eu disse a Francisco. Lá de cima o meu Pai observa tudo. Nada fica impune. Pode ter certeza disso, Juliana — sutil, Jesus observou. — É bom mesmo, Jesus, porque o que tem de picaretagem por aí! Até parece uma infestação. É pior do que o mosquito da dengue e do Zika Virus — disse a menina, rindo com ironia. Os demais preferiram não se manifestar. Em vez disso, Flávia quis esclarecer uma dúvida. — Jesus, me diz uma coisa. — Pergunta, Flávia. — Qual é a diferença entre rezar e orar? — Olha, Flávia, as duas palavras têm o mesmo significado. — Ah é? Confesso que não sabia. 128


— Mas são a mesma coisa, sim. Quando uma pessoa reza ou ora está entrando em comunhão com o meu Pai rogando-lhe, conversando com ele. Muito embora o meu Pai não responda abertamente, ainda assim ele escuta e age quando considerar oportuno e justo. Basicamente, orar e rezar é a mesma coisa que dizer “suplicando religiosamente”. Fiz-me entender, Flávia? — É que tem pessoas que dizem que orar é uma coisa e rezar é outra. — Quem o diz apenas quer confundir as pessoas. Coloca na tua cabeça que orar e rezar é a mesma coisa. Quem faz essa distinção são os membros e seguidores das várias Igrejas, os homens, por questões de conveniência, mas para o meu Pai podes ter a certeza de que Ele escuta quem ora ou quem reza. — Obrigada, Jesus! — Flávia agradeceu com jovialidade. ********** O diálogo entre Jesus e os três amigos prosseguia, não obstante o sol começar a dar sinais que dali a pouco iniciaria a sua descida, para desaparecer no horizonte, mergulhando mais uma vez em seu refúgio, seu apanágio diário. Flávia e Francisco já iam falar simultaneamente, quando hesitaram e pararam. Rápido trocaram olhares. Gentil, Francisco brincou. — Em primeiro lugar as mulheres — e dito isso, virou-se para Flávia, para lhe dar a vez. Ela agradeceu com um leve sorriso. 129


Jesus apreciou a gentileza de Francisco, ainda assim se refugiou em seu silêncio. — Sabe, Jesus — Flávia iniciou — Lá na minha igreja o pastor disse que não devemos adorar imagens e nos prostrar diante delas. E mais, se o fizermos, isso é considerado idolatria. Isso é assim mesmo? — Depende do ponto de vista de como o pastor abordou o assunto e o contexto em que ele foi falado. — Como assim, Jesus? – deixou implícito sua dificuldade. — Quando o pastor da tua igreja falou em imagens, ele fez referência aos santos ou aos deuses? Confusa, Flávia demorou alguns segundos para responder e, quando o fez, ainda titubeou. — Olha, Jesus, eu não estou lembrada — disse. Francisco subitamente se viu muito interessado no assunto, já que na sua igreja sempre lhe fora ensinado e incutido que os santos católicos podiam ser venerados como integrantes da fé católica. Diante disso, em silêncio passou a escutar, com exacerbada atenção, já que ninguém lhe dissera ou explanara o real motivo de porque deveria seguir os dogmas de sua igreja sem uma explicação plausível e convincente, malgrado se sentir bem quando frequentava os cultos. Mais interessado ficou, pois era justamente esse o assunto que pretendia abordar com Jesus quando gentilmente cedeu sua vez. Diante da coincidência deixou escapar um sorriso interno. Jesus prosseguiu: — Por certo, o teu pastor deve ter feito referência 130


às duas situações, porque se o fez, a resposta não será convergente. — Entendo, Jesus — observou Flávia, mais para si, para acrescentar depois — Eu sei que os católicos adoram os seus santos. Por exemplo, a vovó é louca por Nossa Senhora Aparecida. Já mamãe e papai não podem nem ouvir falar. E eu fico no meio dessa briga, fazendo de conta que acredito, umas vezes sim, outras não — arrematou com alguma tristeza. — Ainda assim o essencial está contigo, Flávia. — O quê, Jesus? — A tua fé. — Ah, lá isso é verdade. Eu tenho, sim, muita fé —disse com vivacidade, para acrescentar — Os católicos, no caso, também a minha avó, estão errados, conforme o pastor da minha igreja afirma? — Não necessariamente, Flávia. — Por quê, Jesus? Pode explicar melhor? – insistiu, perante a resposta ambígua. Jesus mergulhou numa profunda reflexão, chegando a fechar os olhos, e quando os abriu, voz pausada e suave, disse: — Eu sei que hoje em dia se faz diversas interpretações sobre esse assunto, algumas deliberadamente erradas, conforme os interesses de algumas pessoas, outras nem tanto. Daí que, mais do que as minhas palavras, que podem ser suspeitas, a palavra do meu Pai prevalece sobre todas deste mundo. E onde é que podemos encontrar a palavra do meu Pai? Na Bíblia. É lá, na Bíblia, onde esse assunto pode ser esclarecido 131


para as pessoas munidas de dúvidas, como tu Flávia, e as menos esclarecidas. A seguir, Jesus virou-se para Francisco, fazendo-lhe um pedido. — Francisco, podes uma vez mais ler para todos nós uns trechos da Bíblia? — Mas é claro que posso, Jesus — alegre, confirmou. — Abre a Bíblia no livro de Êxodo, capítulo vinte, primeiro, o versículo terceiro, e depois, dos versículos vinte e dois, ao vinte e seis — pediu. Em poucos segundos, Francisco encontrava-se diante do citado capítulo do livro do Êxodo. — Está aqui, Jesus — anunciou. — Por favor, leia para todos nós — pediu. Voz eloquente, Francisco deu início à leitura. — Vou ler primeiro o que diz o versículo terceiro: “Não terás outros deuses diante da minha face” — fez uma curtíssima pausa para prosseguir: “Leis acerca dos altares — Javé disse a Moisés: ‘Diga aos filhos de Israel: ‘Não façam junto de mim deuses de prata, nem façam para vocês deuses de ouro. Construam para mim um altar de terra a fim de oferecerem sobre ele seus holocaustos ou sacrifícios de comunhão, suas ovelhas e seus bois. Em todo o lugar onde eu fizer lembrar meu nome, virei a você e o abençoarei. Se você construir um altar de pedra para mim, não o faça com pedras lavradas, pois assim você estaria profanando a pedra com a ferramenta. Não suba por escadas até meu altar, para que sua nudez não apareça’”. — Muito bem, Francisco. Agora abre a Bíblia no 132


livro de Deuteronômio, capítulo cinco, versículos sexto ao décimo. — É para já Jesus — disse Francisco, para prosseguir assim que localizou o referido livro e respetivos versículos. Assumindo o mesmo tom de voz, passou a ler: “Eu sou o senhor, o seu Deus. Eu tirei você do Egito, onde você foi um povo escravo. Não adore outros deuses, além de mim…” — com um sinal, Jesus interrompeu Francisco, para reforçar: — Entenderam bem estas últimas palavras? “Não adore outros deuses, além de mim…” — deu ênfase — Aí na Bíblia está bem explícito. Não restam dúvidas. Um acenar de cabeça foi a resposta de todos. Jesus prosseguiu, colocando acentuada ênfase uma vez mais: — “Não adore outros deuses, além de mim”, mais explícito do que isto não podia ser. OUTROS DEUSES ALÉM DE MIM. Por quê? Pura e simplesmente porque o meu Pai é o único e não há outros deuses além dele. Se houver, é na imaginação e invenção dos homens, os mesmos homens que o meu Pai, criou à Sua imagem e semelhança, aos quais lhe deu o livre-arbítrio. É incrível como o ser humano tem uma capacidade abismal de mudar uma realidade conforme suas conveniências e caprichos. Nenhum dos três ousou se manifestar. Francisco prosseguiu na leitura dos versículos da Bíblia, após um sinal de autorização de Jesus com a cabeça. — “…Não faça ídolos. Não preste culto a imagens de qualquer coisa em cima do céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não adore nem se prostre dian133


te de nenhuma imagem, pois eu sou o senhor, o seu Deus. Sou zeloso e faço o castigo do pecado dos pais alcançar seus filhos até à terceira geração daqueles que odeiam, mas mostrarei bondade até mil gerações àqueles que me amam e guardam os meus mandamentos”. Ao terminar, fez-se um silêncio absoluto. Jesus pediu a Francisco que lesse no mesmo capítulo o versículo seguinte ao precedente acabado de ser objeto de sua mais recente leitura. Sem preâmbulos, Francisco passou a ler, assumindo o mesmo tom de voz: — “…Não usem sem o devido respeito o nome do senhor, seu Deus, pois não deixarei de punir qualquer abuso neste sentido”. De novo fez-se um silêncio absoluto, mas curto. A seguir, circunspeto, Jesus falou: — Eu pedi ao Francisco que lesse mais um versículo do capítulo quinto porque pretendia ir ao encontro daquilo de que havíamos falado há pouco sobre os falsos profetas, quando foi abordado o assunto “dízimo”. Pois bem, o meu Pai foi taxativo em suas palavras. Quem usar o nome dele em vão jamais ficará esquecido, pelo contrário, será severamente punido. Estás vendo, Juliana, como o meu Pai jamais deixará de castigar quem não cumprir com as as primícias Dele – disse. — Está bem. Jesus — respondeu a menina, sem muita vontade. Jesus não deu importância à falta de interesse de Juliana e prosseguiu: — Mas vamos voltar ao assunto que deu origem a esta discussão… Pois bem, tanto no livro do Êxo134


do, como no livro de Deuteronômio, o meu Pai fala claramente em deuses e não em outras figuras, sejam elas santos ou de qualquer natureza relacionado ao místico. É evidente que as pessoas interpretam a Bíblia conforme as suas conveniências e a religião que professam, mas não restam dúvidas: o meu Pai faz referência a outros deuses, e mais, Ele acrescenta para que não se façam ídolos e não se preste culto a essas imagens de qualquer coisa em cima do céu, na Terra, ou nas águas debaixo da Terra, de quem? Deuses, sob as mais diversas representações, humana e/ou animal. Essa discussão está em voga hoje em dia, pois algumas igrejas criticam outras igrejas por adorarem imagens, mas que imagens não podem ser veneradas, segundo o meu Pai? As imagens de outros deuses. E qual o motivo de tanta discussão e alarido acerca de um assunto sobejamente esclarecido pela autoridade do divino? É como eu disse, puro interesse das pessoas quando, na realidade, deveriam se unir umas às outras e abraçarem a causa do Criador e deixarem cada uma das Igrejas seguir seus dogmas. E virando-se exclusivamente para Flávia, disse: — Pois bem, o que é que se pode concluir das palavras do meu Pai, Flávia? Quem construir para si imagens de outros — deu saliência — DEUSES, está praticando idolatria e idolatria, para o meu Pai, é considerado pecado. Desse ponto de vista, o pastor da tua igreja está totalmente correto. Isso quanto aos deuses. É sobejamente conhecido que muitas nações adoram outros deuses, sob a forma de pessoas e até de animais. 135


Volto a afirmar: isso, sim, é considerado idolatria e idolatria aos olhos do meu Pai é profano, ou seja, pecado. — Se assim é — Francisco interveio — E quanto aos santos católicos, Jesus? Pelas suas palavras, eu concordo com você. Os santos não são deuses. Sabe, nós, os católicos, construímos e adoramos imagens de santos. Por vezes, a esses santos são atribuídos milagres e graças, tal como são atribuídos aos pastores das igrejas evangélicas, e nem por isso deixam de ser pessoas a quem Deus lhes concedeu o dom de fazer o bem aos outros. Eu mesmo conheço uma pessoa que foi curada com a intervenção de São Francisco, o meu xará — arrematou, com um leve sorriso. — Xará? O que é isso Francisco? – curioso, Jesus quis saber. Escutaram-se uns sorrisos contidos. Jesus percebeu. — Estão rindo da minha ignorância, não é, seus marotos? – brincou com eles. — Desculpa, Jesus. É que nós achamos graça — foi Flávia quem se justificou. — Está bem. Afinal, quem esclarece a minha dúvida? – sem destinatário certo, quis saber. — Eu! — Juliana ergueu a mão para prosseguir —Xará é uma pessoa que tem um nome igual a outra. — Entendi, Juliana. Na minha primeira vez aqui com certeza a isso se dava outro nome, mas também não me perguntem que eu não me lembro mais. — E não é você que sabe tudo? – Juliana provocou-o. — Sei, sim, de tudo o que tem a ver com o meu Pai e com a criação Dele. Tudo o que seja além disso pertence ao livre-arbítrio dos filhos dele. 136


— É a forma mais simpática de desviar o assunto, não é? — Juliana ironizou. Engolindo em seco, Jesus percebeu, mas também não se importou. Em vez disso, passou por cima e prosseguiu na sua explanação, no sentido de satisfazer a dúvida de Francisco. Diante disso, no seu habitual tom de voz, prosseguiu. — A vida continua após a morte. Quanto a isso eu já havia explicado. Eu morri e ressuscitei. Com isso, a vida venceu a morte. É lógico que a vida continua após a morte, mas a vida terrena, essa, sim, termina com a morte física. No entanto, a nossa alma, ou espírito, como alguns preferem chamar, eles sim, continuam vivos e bem vivos, e quando eles se desprendem do nosso corpo só têm um caminho, o julgamento final dado pelo meu Pai. Consoante o julgamento, ora vão para o inferno, para junto de Satanás, ora vão para junto do meu Pai, no paraíso, e lá permanecerão eternamente. Entenderam? — Sim, Jesus — em uníssono, os três acenaram a cabeça. Todavia, ainda cética, Juliana confirmou consentindo somente com o intuito de não ficar deslocada, porém sem especular que Jesus sabia antecipadamente que não se expressara com sinceridade. Diante disso, Jesus prosseguiu: — Pois bem, enquanto vivas, muitas dessas pessoas, tal como hoje os pastores, os padres, os bispos e outros membros do clérigo das Igrejas e até pessoas anônimas, são utilizadas pelo meu Pai com a finalidade de fazer com que os cristãos em sofrimento se 137


aproximem mais dele e professem sua fé. Muitas dessas pessoas, ainda vivas, por vezes conseguem realizar milagres, isto porque o meu Pai lhes dá essa permissão ao usá-las em Sua infinita bondade, compaixão e amor. E, assim, muitas graças, bênçãos e milagres são alcançados através dessas pessoas, que fazem sua intercessão junto dele. Ontem e hoje sempre foi assim, e assim será doravante, enquanto existirem pessoas que gratuitamente aceitam ao meu Pai como único salvador, sendo abençoados com poderes que só a Ele são possíveis. Alguma dúvida? — Não — de novo, em uníssono confirmaram, à exceção de Juliana, que desta vez ignorou. Jesus percebeu, mas de novo não se importou, pois já havia alcançado seu objetivo quanto ao ceticismo dela. Circunspecto, Jesus continuou: — Tal como hoje é possível aos vivos efetuarem milagres por suposto intermédio, também aos que já partiram desta vida e se encontram junto ao meu Pai e enquanto vivos deixaram provas de sua fidelidade, bondade, fé e amor ao próximo fazendo obras admiráveis aos olhos Dele. Também a esses, mesmo afastados da vida terrena, é-lhes concedida essa permissão. Por isso muitas pessoas acreditam que através deles consigam alcançar graças e até milagres. A essas pessoas a quem são atribuídos milagres, graças e bênçãos, e que continuam perpetuamente junto do meu Pai, a eles, as pessoas chamam simplesmente de santos. Mas santo não é de hoje, vem de muito longe. Deuses são deuses e santos são santos. São coisas completamente 138


diferentes. Os santos são pessoas comuns e não seres divinos, como é o caso do meu Pai, o único. E deuses são outras figuras, fruto da criação dos homens, a quem lhes é atribuído erroneamente um poder divino sem o terem. Vejam o caso da antiga Grécia, em que existiam deuses para todas as situações. Não só na Grécia, como em outros lugares, como no Egito, por exemplo. Pura idolatria... Na Igreja Católica, a Igreja instituída pelo meu Pai, após a minha morte, deixando no meu lugar o Apóstolo Pedro, adotou-se o costume de dedicarem imagens aos santos, as quais são veneradas à maneira de cada um. Sinceramente, não vejo que essa metodologia, nem eu e nem o meu Pai, senão Ele não receberia essas pessoas junto Dele, esteja errada, pelo contrário. Ao fazê-lo, as pessoas que neles creem apenas pedem sua intercessão junto ao meu Pai, para depois lhes agradecerem e prestarem a devida homenagem como reconhecimento, respeitando-as. É lógico que se uma pessoa procurar diretamente ao meu Pai em sua oração está indo diretamente à fonte, mas isso não obsta de que o possa fazê-lo através dos seus santos prediletos, nem que para isso o façam diante de suas imagens, e tampouco isso pode ser considerado idolatria. Idolatria é outra coisa. É quando uma pessoa se prostra diante de uma imagem de um Deus imaginário que não seja o meu Pai, pois ele é o único Deus. Isso, sim, é idolatria. É por isso que muitas pessoas fazem questão de confundirem os cristãos, dizendo-lhe que adorar imagens de santos é errado. Mas também se entende por qual motivo o invocam: 139


pura conveniência religiosa, nada mais do que isso... Então, Francisco, consegui convencer-te? — Perfeitamente, Jesus — confirmou o menino, com um aceno de cabeça. — E a ti, Flávia? Resta mais alguma dúvida? — Nenhuma. Fiquei totalmente esclarecida e, acima de tudo, convencida — confirmou com vivacidade. — Tens certeza? — Absoluta — confirmou, mas em seus olhos lia-se outra coisa. Jesus sabia, mas uma vez mais preferiu ignorar. — E tu, Juliana? — Humm... — fez um gesto de enfado, para prosseguir — Para mim vai dar tudo no mesmo. Estando feliz comigo mesma, estou bem. — Resposta no mínimo sensata, mas egoísta também – Jesus observou. Ela deu de ombros, num gesto de indiferença. *********** O diálogo dos três foi transcorrendo quando Jesus, preocupado como o início da noite que cada vez mais se aproximava, sem destinatário certo, indagou: — Algum de vocês quer perguntar algo mais? Com um sinal de mão Francisco demonstrou interesse em questioná-lo. — O que queres saber, Francisco? — A sua mãe também está lá em cima junto ao seu Pai? 140


Sem preâmbulos, Jesus respondeu: — Está sim, bem do lado do trono Dele — disse, confirmando. — Mas por quê, Jesus? – curiosa, Flávia quis saber — Ela também é santa ou simplesmente está lá só porque é a sua mãe e a família tem de estar junta como as famílias daqui? Um sorriso plácido saiu do rosto iluminado de Jesus, que respondeu: — Repara bem, Flávia, a Maria, minha mãe, não lhe são conhecidos em vida qualquer tipo de milagres, mas ela foi escolhida pelo meu Pai para ser a minha mãe, conforme o que eu vos disse há pouco. Ela foi coroada rainha pelo meu Pai e por isso ele a elevou até ao céu para ficar ao seu lado. Se quiseres chamar de família, não vejo problema algum. No fundo, até somos mesmo uma família… — E bote família nisso! — brincando, Juliana interrompeu — Papai, mamãe e filho. Só falta o outro. — Que outro, Juju? – mais rápido, Francisco adiantou-se a Jesus. — Oras... — deu de ombros, num gesto de inconformismo — O que era marido de Maria, que não fez aquela coisa com ela e Jesus nasceu mesmo assim— e dito isso, desatou a rir desalmadamente. Os demais não acharam graça. Enquanto ria, Juliana ainda acrescentou — Ai se papai soubesse dessa história, ia chamar o marido de Maria de chif… — Mas o que é isso, Juju?!! – chocada, Flávia cortou Juliana, lendo os pensamentos da amiga. Foi mais rápi141


da que Francisco que, do mesmo modo, chocado, teve intenção de se manifestar, demonstrando seu desagrado. — Ah, está bem. Desculpa, Jesus. Fui infeliz — arrependida, Juliana admitiu. Como sempre, no seu infinito amor, Jesus não se importou. Ofereceu mais um sorriso plácido para prosseguir, passando por cima. — Até hoje, Maria, a minha mãe, permanece junto ao meu Pai. Se vocês lerem a Bíblia verão que no livro de Lucas, no capítulo primeiro, versículo vinte e oito, o anjo, ao se aproximar da minha mãe, disse-lhe; “Alegra-te, muito favorecida! O senhor é contigo”. E no mesmo capítulo, nos versículos quarenta e seis ao quarenta e nove, a minha mãe diz: “Então disse Maria: A minha alma engrandece ao senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu salvador porque contemplou na humildade sua serva. Pois desde agora, todas as gerações me considerarão bem-aventurada, porque o Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o seu nome” … Pois bem, com as palavras de Maria, minha mãe, está confirmado que o meu Pai a consagrou junto ao seu reinado. Maria está junto ao meu Pai como recompensa de sem hesitar, aceitar, apesar do seu ceticismo inicial, ser minha mãe sem ter relação, “aquela coisa”, como a Juliana ainda agora afirmou — brincou — com homem algum. Como é que alguém como ela aceita ser mãe do filho de Deus se não expressar sua verdadeira fé? O meu Pai confiou-lhe uma missão, a qual ela desempenhou com exemplaridade e bravura, apesar de todas as dificuldades até o meu nascimento 142


e posteriores também. É lógico que o lugar dela só podia ser junto ao meu Pai, sentada no trono dela. — E faz sentido — Francisco, observou. — E quando você está lá em cima, vê a sua mãe? – Flávia quis saber. — Sempre. — E o que vocês tanto conversam quando estão juntos? — De tudo um pouco — foi evasivo. — Conversam sobre futebol? – Juliana brincou. — Também — Jesus entrou na brincadeira. Compreensiva, Juliana riu para dentro. Nesse curto espaço de tempo, Francisco quis tirar uma dúvida. — Olha, Jesus, a sua mãe está lá no céu, não é verdade? — Assim o disseste, Francisco. — Então, nesse caso, quem é a Nossa Senhora? — É Maria, a minha mãe — respondeu Jesus na hora. Francisco mergulhou numa profunda reflexão. A seguir, indagou: — Nesse caso, por que é que os católicos atribuem os mais variados nomes a Maria, a sua mãe? É Nossa Senhora para lá, é Nossa Senhora para cá. É tanta nossa senhora que faz muita confusão. Por que tudo isso, se é a mesma pessoa? — quis saber. Um sorriso plácido, mais um de Jesus, foi a reação dele. Erudito, disse: — De fato, para quem não conhece pode até gerar muita confusão. A Maria, que é Nossa Senhora, no caso, a Vossa Senhora, são geralmente atribuídas ou143


tras denominações, mas ainda assim não deixa de ser a mesma pessoa, só que com outras personificações. — Mas por quê, Jesus? – curiosa, Flávia perguntou. — Os nomes atribuídos a Maria referem-se ao fato de a minha mãe, por diversas vezes, ter feito aparições em lugares diferentes, com a finalidade de anunciar a palavra e a obra do meu Pai, reforçando que a salvação de cada um provém somente dele. Tudo que esteja além disso é demagogia e mera especulação. Minha mãe tinha um propósito ao fazer aparições em diversos lugares, como estabelecer no mundo a devoção ao Imaculado Coração, segundo o desejo de meu Pai. — Então foi o seu Pai que a mandou aparecer nesses lugares que você não disse até agora onde? – curiosa, Juliana quis saber. — Digamos que sim, Juliana — de novo, Jesus foi evasivo na resposta, mas Juliana se deu por satisfeita. Jesus prosseguiu na sua explanação: — A minha mãe fez diversas aparições, como em Portugal, no lugar de Fátima, onde pediu aos três meninos, por sinal um xará teu — brincou, ao se lembrar de Francisco — que rezassem o terço todos os dias: como em Lurdes, na França; em Guadalupe, no México; em Aparecida, aqui no Brasil, assim como em outros tantos lugares espalhados por este mundo afora. Os diversos nomes atribuídos à minha mãe têm a ver com o lugar de sua aparição. Ao invocarem o nome de Maria, ou Vossa Senhora, isso vos ajuda a aproximar ainda mais do meu Pai, desfrutando do seu amor infinito. O amor dela é amor de mãe, igual ao amor de 144


vossas mães, mas o amor do meu Pai, esse sim, suplanta a todos — disse. — Até o da sua mãe? – confusa, Flávia questionou. — O meu Pai é a raíz de tudo. Eu e a minha mãe somos como se fôssemos seus discípulos. Somos corolários de Sua admirável obra. — Se assim é, quem sou eu para questionar! — disse Flávia satisfeita, deixando implícito o quanto havia entendido. ********** Após mergulhar numa profunda reflexão, Jesus abriu os olhos para anunciar: — Pronto, meus filhos. A minha missão aqui junto de vocês terminou. — Já, Jesus! – denunciando tristeza, os três amigos exclamaram em uníssono. — Ai, como eu gostaria de ficar mais tempo, mas, na verdade, não posso. Aliás, não devo. — Por quê, Jesus? Tem hora marcada para entrar no céu, é? As portas lá também se fecham depois das dezenove horas, como nas lojas aqui na Terra, hein? – Juliana brincou. — Nada disso, minha filha — entrou na brincadeira, deixando escapar um sorriso contido — As portas da casa do meu Pai estão sempre abertas. Aliás, lá na casa celeste do meu Pai não existem portas. Quando falamos em portas é pura simbologia, como a pomba do Espírito Santo, meus filhos. Meu Pai me chama, E 145


também o teu celular, está uma vez mais tocando. O teu Pai já deve estar mais do que preocupado com a tua demora — arrematou, virando-se para Juliana. — Ah, pois é... — foi quando se deu conta. Verificou na tela quem era, para dizer na sequência: — É papai de novo. Mas que chato! – e dito isso, atendeu rápido para lhe dizer que logo estaria em casa. Sem dar chance de resposta ao genitor, desligou-lhe o celular na cara. Como o pai insistia para que ela retornasse para casa o quanto antes e como já estava ficando tarde, Jesus anunciou mais uma vez a sua hora de partir. — Já, Jesus? Por favor, fica aqui mais um pouquinho. Está tão boa essa nossa conversa — dengosa, Flávia suplicou. — Se eu pudesse ficar mais tempo até ficaria. Não tenham dúvidas quanto a isso. Mas a mim não me é permitido. Eu gosto de crianças, como o apóstolo Marcos escreveu na Bíblia, no capítulo dez, versículos treze ao dezesseis. Depois leiam — sugeriu — Meu Pai aguarda-me lá em cima, junto do Seu trono. Eu tenho mesmo de ir. — Eh... Fazer o quê? – conformados, os três deram de ombros — Quem somos nós para te obrigar a ficar aqui. Se pudéssemos te prender até que o faríamos. Mas logo você! Num instante sumiria, num passe de mágica — Juliana brincou. — Quem sabe noutro dia voltarei. Quiçá? — O que é quiçá? – Francisco perguntou. — Quem sabe. — Ah, sim! Inventam cada palavra! E quando volta, Jesus? – animado com a possibilidade das pala146


vras de Jesus, Francisco quis saber. — Quando meu Pai o permitir. — Vem logo, Jesus. Mas por favor, avise-nos antes e quando vier, vem cedo para passarmos mais tempo juntos e também para fazermos um lanche melhor. O que acha? – disse Flávia, manifestando-se primeiro. Com um sorriso plácido — mais um — Jesus deixou implícito que havia apreciado a sugestão de Flávia. A seguir, dirigindo-se aos três, disse-lhes: — Meus filhos, nunca se esqueçam daquilo que vos falei nesta tarde maravilhosa. Cuidado com as vossas palavras. Antes de as pronunciarem meditem e façam a escolha certa das mesmas. Amem uns aos outros como a vós mesmos, façam o bem sem olhar a quem, perdoem até aos vossos inimigos, acreditem no amor do meu Pai e nele também, pois Ele é único, Ele é o Deus, o único que salva. Pratiquem a vossa fé com determinação, pois através dela a vossa salvação chegará. Façam a vossa parte e pratiquem boas ações, para que meu Pai tenha um carinho especial por vocês. Entenderam as minhas palavras? — Nós vamos sim, fazer isso, Jesus — Francisco adiantou-se em relação às amigas, respondendo com alegria. — Todos, não é? – Jesus deixou a pergunta no ar. — Eu vou sim, fazer tudo isso — Flávia prometeu. — Eu também — Francisco reforçou. Perante o silêncio que se instalou, cabeças viraram em direção a Juliana. — E tu, Juliana? – Jesus quis saber — Vais também fazer tudo isso que eu recomendei a vocês? 147


— Vou tentar, Jesus. Não prometo nada, pois não posso garantir. Mas vou tentar. Está bem assim? — Já é um princípio — jovial, observou para logo ser invadido por uma reminiscência — Ah, sim! Já que eu vou embora, por favor, não se esqueçam dos alimentos. Distribuam-nos pelos mais necessitados. — Assim o faremos, Jesus — Francisco prometeu. — E o meu livro da escola? – Juliana quis saber. — Está aí na tua bolsa escolar. Procura — apontou. — Mas isto é uma Bíblia e não o meu livro, que me vai fazer muita falta na escola — reclamou. — Eu disse na tua bolsa escolar, Juliana. Sem rodeios, Juliana deu início à procura do livro no interior de sua mochila e foi surpreendida, encontrando-o. Abismada e simultaneamente surpresa, disse: — Mas como é que você fez isso? O meu livro apareceu de novo e ainda ganhei uma Bíblia. — Milagre, minha filha. Milagre — jovial, Jesus disse. Ela ofereceu um sorriso de gratidão. — Pronto, meus filhos. Está mesmo na hora de eu partir. Vou me despedir de vocês. Posso? – e dito isso, ofereceu os braços, estendendo-os em direção dos três. — Mas é claro que pode. Nem precisava fazer esse pedido — Flávia observou. Os quatro se abraçaram efusivamente, parecendo que já se conheciam há bastante tempo. Jesus desvencilhou-se, afastando-se ligeiramente. Quando se preparava para subir ao céu da mesma forma como chegara, escutou, para sua surpresa, a voz humilde de 148


Juliana, que lhe disse: — Espera, Jesus. Eu quero te dizer uma coisa — e dito isso, aproximou-se para abraçá-lo com muita força. Ainda recostada em seu corpo, disse-lhe — Olha, Jesus, eu gostei muito de te conhecer. Desculpa aí qualquer coisa, está bem? – suas palavras foram mais sinceras do que ela mesma podia imaginar e Jesus sabia-o. — Juliana, Juliana... — sua voz saiu forçadamente fraternal em meio a um sorriso singelo — Estás, sim, desculpada. Quando chegares em casa, vais entender o motivo da minha visita. Acredite em mim. Eu vim até aqui por tua causa. Vá em paz — e a beijou com deferência nos cabelos castanhos. Ela apreciou o gesto, para depois se desvencilhar. — Quando chegar lá em cima, manda lembranças ao seu papai e à sua mamãe e, por favor, não lhes diga nada sobre o que eu te falei. Eles podem não gostar e me castigar. Eu tenho muito medo. Estás me ouvindo, hein? – disse-lhe. — E o que foi o que tu me falaste, Juliana? – Jesus simulou desconhecer. — É que muitas vezes zombei de você e do seu Pai. E até da sua mãe. Cheguei até a desconfiar de você. Olha como eu fui burra! Desculpa aí. — Acreditas que eu já me tinha esquecido? — disse, enquanto deixava escapar mais um leve sorriso. Os demais, contagiados, repetiram o gesto. — Olha, Jesus, como é que fazemos para nos comunicarmos daqui para a frente? – Juliana quis saber— Olha, eu tenho Facebook. Você podia me dar 149


o seu Facebook ou o seu Zap. Prometo não mandar mensagens desaforentas e maldosas. Não é amiguinhos? – virou-se para os amigos. Jesus comprimiu o rosto e perguntou: — O que é Facebook e Zap? Juliana riu matreira. Os dois amigos dela também. De novo, Jesus comprimiu o rosto. — Eu estava brincando, Jesus — Juliana prosseguiu — Anda lá! Vá embora senão ainda fica na rua por chegar atrasado na sua casa. O seu Pai daqui a pouco começa a resmungar pela sua demora. Do meu não me livro de um bom puxão de orelhas! Mas isso não me importa. Só em saber que estive aqui com você, ao seu lado, só isso já vale qualquer puxão de orelhas. Grande ou pequeno — brincou. Todos riram com gosto. Juliana foi para junto dos amigos. — Estou indo, meus filhos — disse-lhes Jesus — Que o meu Pai vos abençoe hoje e sempre, em especial a ti, Juliana. — Por que só eu? Os outros também são meus irmãos. — Porque eles já se encontram abençoados há muito mais tempo. Quem está carecendo agora das bênçãos Dele és tu. — Está bem. Vá lá embora, senão sou considerada culpada pelo seu atraso e depois o seu Pai não me abençoa é nunca mais. Jesus ofereceu um sorriso de gratidão. Da mesma forma como havia chegado até ali, Je150


sus foi elevado ao céu num lindo clarão. Os três amigos, extasiados e simultaneamente alegres, maravilhados, acompanharam com muito interesse o vulto de Jesus transformar-se numa pomba branca e se dissipar no meio das nuvens brancas, que do mesmo modo, aos poucos, foram se dissipando. Sem se darem conta, os amigos passaram a avistar uma enorme esfera branca. Era a lua, em toda sua plenitude. E as estrelas também já marcavam sua presença no céu. Permaneceram ali por mais algum tempo, em silêncio, olhando o céu, quem sabe na esperança de ainda alcançarem vestígios daquele ser simplesmente maravilhoso que é Jesus. O sentimento de nostalgia rapidamente os absorveu. Em poucos minutos, os três arrumaram tudo e correram em direção à entrada principal, onde o taxista impaciente e preocupado, aguardava-os com bastante apreensão. Durante todo o percurso, o taxista não perguntou nada e também eles nada comentaram, foi quando se deram conta de que aquele fenômeno sobrenatural sequer fora avistado por outras pessoas a não ser eles. Como se sentiam em seu íntimo imensamente felizes e privilegiados de haverem sido contemplados com a visita e a presença de um ser tão extraordinário como Jesus! Em conversas reservadas, os três decidiram de que aquele segredo ficaria guardado entre eles, pois se, por ventura, revelassem-no a alguém, por certo a primeira reação das pessoas seria de apelidá-los de loucos e sabe-se lá mais o quê. Era melhor assim. Até quando conseguiriam segurar seu segredo? Nem eles sabiam. 151



Epílogo O dia amanheceu nublado. O sol tentava forçar a passagem por entre as nuvens que manchavam o céu em sua procissão solene. Aos poucos, Juliana começava a se remexer na cama. Ora se virava para um lado, ora para o outro, dando a entender que dali a pouco acordaria em definitivo. Angustiada, ergueu-se rápido para permanecer sentada na cama. Assombrada, esfregou os olhos e beliscou os braços para verificar se não estava sonhando. — Não é possível. Será que aquilo foi realmente um sonho? – confusa, a si mesma perguntou. A seguir, num gesto involuntário, virou o rosto para a janela e ficou observando as nuvens no céu se movimentando, acabando por se distrair com alguns desenhos que elas formavam. Várias figuras se formaram, até de alguns animais, porém, um rosto também surgiu, o qual lhe pareceu familiar. Subitamente, aquele rosto sumiu, todavia, ela fi153


cou com a nítida sensação de que de algum lugar, lá do alto, Jesus estaria olhando para ela. Foi quando teve um déjà vu do sonho que tivera nessa mesma noite. Extasiada e profundamente alegre, falou para si mesma: — Eu estive com Jesus e ele está olhando para mim! — disse. Logo, levou um susto quando passou a escutar uma voz nítida em seu ouvido, a qual lhe sussurrava de forma clara e audível: — Sou eu sim, Juliana. Sou Jesus. Anda! Levanta-te e vai ter com os teus pais. Uma surpresa está preparada para ti e para eles também. Ela ainda tentou falar com Jesus, mas fez-se um silêncio profundo, a ponto de ser escutado o barulho de um besouro passando junto de seus ouvidos. Inebriante, Juliana saltou da cama, preparou-se e correu, procurando pelos pais, para lhes relatar a experiência que tivera. ********** Os pais de Juliana já se encontravam sentados na mesa da grande sala de jantar, degustando o café da manhã, quando passaram a escutar os passos abafados de alguém se aproximando. À medida que se aproximava, os passos foram ficando mais nítidos e eles se deram conta tratar-se da filha. Ao adentrar na sala, alegre, Juliana primeiro beijou com deferência o pai, no rosto, e só depois a mãe, abraçando-a com a mesma intensidade do beijo. Já 154


sentada e enquanto pegava um pão, muito alegre, Juliana resolveu dar conhecimento da experiência que tivera, o sonho daquela noite. — Sabe, mamãe — disse, depois de uma mordida no pão — Esta noite tive um sonho muito lindo. — Ai sim, filha. E o que você sonhou. Posso saber? — Sim, mamãe — disse com vivacidade — Sonhei que andava com dois amigos meus da escola. Nós estávamos tomando banho numa lagoa quando Jesus apareceu e ficou lá, conversando conosco. Preocupada, a mãe olhou discreta para o marido, que logo endureceu o rosto, indicando de que não havia gostado nada. Ela percebeu, mas logo lhe enviou uma mensagem com os olhos, como que lhe dizendo de que não havia mal algum, afinal, não passava de um simples sonho. Assim ela o conjecturou erradamente. A contragosto, o pai acabou por aceitar, com uma enorme vontade de dizer à filha se Jesus também havia tomado banho com eles e de sunga, obviamente ironizando. — Foi filha? – a mãe prosseguiu, demonstrando sua surpresa. — Sim, mamãe — confirmou com vivacidade. — E o que Jesus falou com você e com seus amiguinhos? Posso saber filha? – curiosa, a mãe quis saber. — Ah, mamãe... Jesus falou tantas coisas... — Sim, filha. Mas o quê? Não se lembra de pelo menos alguma coisa? Sei lá… Alguma palavra interessante, alguma coisa… Qualquer coisa filha. Juliana fez um esforço para relembrar. Ao fim de um tempo, no qual o pai e a mãe trocaram olhares 155


interrogativos, ela falou: — Olha, mamãe, Jesus falou dos santos, falou que devemos fazer o bem sem olhar a quem, falou dos dízimos, falou da mãe dele, falou dos homossexuais… Ah, mamãe, ele falou de tantas coisas! — disse. — Só isso, filha? – curiosa, a mãe insistiu, ela que vaticinou algo nas palavras sinceras da filha. — Sabe, mamãe, Jesus falou também que alguma coisa importante aconteceria comigo e com a nossa familia, só não sei o quê. Ele não me chegou a dizer o que era. — Estranho... — a mãe comprimiu o rosto, falando mais para si, para acrescentar a seguir — Foi só isso, filha? — De fato, eu não lembro de mais nada, mamãe. O Pai resolveu intervir. Ele, que assistira àquele curto diálogo de rosto duro, com voz suave, disse, querendo colocar um ponto final no incômodo assunto: — Olha, minha filha, também, era só um sonho. Deixa para lá mesmo. Sonhos são sonhos e eles não representam o cotidiano de nossas vidas. É utopia e fantasia que invadem as nossas mentes fantasiosas enquanto não temos o controle total do nosso cérebro por conta do nosso sono. Eu também já sonhei com as coisas mais absurdas que se possa imaginar. Deixa para lá mesmo. Perante o olhar da filha, a mãe sabia que algo havia realmente acontecido, ou então, no mínimo, estaria para acontecer. Mas não se preocupou com os comentários do marido, um ateu fervoroso. Porém, seu sexto sentido dizia que aquele sonho não fora somente um sonho. Existia algo de misterioso e até de místico nas palavras da filha e que tudo que escutara tinha um fundamento e 156


um propósito, mas o que seria? Era justamente isso que naquele exato momento, especulava para si mesma, sem descortinar algo, por mais ínfimo que fosse. Diante disso, virou-se para Juliana e perguntou-lhe: — Filha, você tem certeza de que foi só isso mesmo que Jesus falou com você e com seus amiguinhos? Por acaso não está escondendo algo? A filha já ia responder quando, abrupto, o pai a cortou. Voz grave, manifestou- se: — Já chega! Eu já disse mais do que uma vez que não quero escutar o nome dessa pessoa ou de alguém relacionado a ela aqui nesta casa. Essa pessoa não existe e nunca existiu. Se existe, só se for na mente fantasiosa dos desocupados, que não têm nada para fazer. Isso é tudo fantochada. Coisa de ignorantes que querem impor à força suas ideias absurdas e desprovidas de confirmação científica. Já chega! — arrematou com um olhar desafiador. — Está bom, Filipe — a mãe disse, como forma de apaziguar — Já que não tem interesse nessa história, fica na sua. Eu tenho interesse e muito interesse. Algo me diz que a nossa filha tem alguma coisa para nos revelar. Eu sinto isso. O marido riu sarcástico e disse, no mesmo tom de voz: — Também você, Marta? Olha que só pode estar maluca. Você, que não acredita nessas coisas, de repente foi invadida por algum sentimento de compaixão, foi? Não me diga que também sonhou com Jesus. E ele por acaso estava de sunga ou vestido com aquelas roupas da pré-história? – e dito isso, desatou a rir, debochando. 157


Marta não se importou com o deboche, tampouco rebateu. — Deixa de falar besteira, Filipe. Apenas estou dando atenção à nossa filha, coisa que você raramente faz — respondeu a mãe. — Como queira, Marta — o marido disse sem muita vontade — Nesse caso, já que a conversa não me interessa, eu vou sair daqui e vou até ao escritório. Quando terminarem a conversa eu retorno — e, mal-humorado, abandonou a sala de refeições. Mãe e filha não se importaram. — Deixa o teu pai para lá filha. Ele que fique com o mau-humor dele lá no escritório. Ele hoje acordou de bunda pró ar. Algum mosquito o mordeu, com certeza — disse ela, rindo de leve. — Só espero que não tenha sido o mosquito da dengue ou do Zika, mamãe — brincou Juliana. As duas deixaram escapar um sorriso de cumplicidade. — Então, filha — a mãe prosseguiu — Por favor, tenta se lembrar de mais alguma coisa. — Mas por que esse interesse todo no meu sonho mamãe? – Juliana quis saber, considerando estranho o súbito interesse da mãe em seu sonho, como a sua súbita mudança. — Anda, filha, conta, por favor — a mãe quase suplicou. Juliana, que não conseguia dizer um não à mãe, convenceu-a a subir até ao seu aposento. Ao chegarem lá ficaram abismadas, mais Juliana, ao verificar sua mo158


chila escolar. Em seu interior encontrava-se uma Bíblia. Ela foi para seu quarto com a intenção de mostrar justamente o conteúdo da mochila, na esperança de encontrar a Bíblia, mas sem a certeza de que a encontraria. No seu subconsciente, ainda reinava a cena de seu sonho, em que Jesus transformara seu livro escolar na referida Bíblia. Ela ficou mais impressionada do que a própria mãe, que parecia nada entender, confusa com tudo aquilo. Seus olhares interrogativos escondiam mil e uma indagações. Mudas de espanto, não sabiam o que dizer uma a outra, já que, na véspera, havia sido a mãe e não o pai, como era costume, a ir buscar a filha na escola, e quando chegaram em casa, verificara sua mochila. Como elas não haviam saído de casa no restante do dia até a hora de se recolherem em seus respetivos aposentos, como é que a Bíblia havia surgido na mochila da filha? Confusa, a mãe questionou a si mesma. Diante disso, a mãe de Juliana teve a certeza de que a filha falava a verdade e que tudo não fora somente um sonho, mas algo mais. Diante dessa possibilidade, segurou um sorriso e um leve choro, denunciando descontrole emocional ou outra coisa mais forte que ela mesma não sabia explicar. Subitamente, o timbre da voz de Juliana passou para excitado, quando se lembrou das palavras de Jesus em seu sonho, que lhe dissera que algo aconteceria em sua família, mudando para sempre suas vidas. — Olha, mamãe, Jesus me disse que algo aconteceria com a nossa família também e não só comigo, como eu te disse. O quê, eu não sei, mas deve ser alguma coisa boa. 159


— Como sabe que pode ser alguma coisa boa, filha? Ele não te disse o que era? – mesclando a esperança à moderada incredulidade, a mãe quis saber, sem que antes fosse impelida a um pensamento: “Será que devo acreditar mesmo na minha filha? Será que é aquilo que mais quero que aconteça? Será que não foi só mesmo um sonho, como falou o Filipe?”. — A forma como ele insistiu comigo, falando suave – respondeu a filha. Subitamente e sem aviso prévio, uma lembrança, e então acrescentou: — Mandou até que eu lesse um trecho da Bíblia. — Um trecho da Bíblia, filha? — Sim, mamãe. Jesus pediu e eu li o que ele pediu. — E que trecho foi esse, filha? — Ah, mamãe, não lembro mais. Só sei que tem a haver com… com… — Com o quê, filha? – muito ansiosa, a mãe insistiu — Conta filha, por favor? — Ah, mamãe, acho que tem a ver com um milagre, mas não sei que milagre é. Assustada e ansiosa, a mãe de Juliana mergulhou numa profunda reflexão, fitando um ponto qualquer. Ao vê-la assim, meio ausente por tempo excessivo, Juliana indagou-a, fazendo-lhe um carinho no rosto, gesto que agradou-a e a fez sorrir: — O que foi, mamãe? De repente ficou calada. Está olhando para onde? O que a preocupa? Cautelosa, antes de responder, a mãe olhou para a filha e disse-lhe: 160


— Filha, você sabe muito bem que eu não acredito nessas coisas do divino. — Eu sei disso, mamãe. E daí? — Daí, filha, que esta noite eu também tive um sonho, mas não falei nada para o seu pai. Sabe o motivo de por que nada comentei com ele, não sabe? — Han, han!... — confirmou, com um aceno de cabeça. A mãe prosseguiu. — O sonho que tive esta noite se relacionava com o seu irmão. — Com o mano? – comprimiu o rosto num gesto de espanto e desconfiança — Você sonhou com o mano? — Sim, filha, eu sonhei com o seu irmão — sua compleição passou a ser lenitiva cada vez que falava no irmão de Juliana. De novo, Juliana comprimiu o rosto. — E o que você sonhou com o mano, mamãe? – indagou. — Promete não comentar com o seu pai? – cautelosa, perguntou antes de responder. — Han, han!... — confirmou Juliana, com um aceno de cabeça. A mãe sentiu firmeza no gesto da filha. Sua cumplicidade ficou mais uma vez demonstrada. Diante disso, a mãe prosseguiu: — Sabe filha, no meu sonho, o seu irmão aparece na minha frente, andando de novo. No sonho ele voltava a andar depois daquele acidente infernal. Você sabe, filha, que a coisa que eu mais quero é que seu 161


irmão volte a andar. E já que a medicina não traz de volta a sua locomoção, só me resta acreditar em outras formas. Até em sonhos, filha. Eu, que sou uma pessoa forte, cheguei ao ponto de acreditar até em sonhos, só para ver o seu irmão saudável, sem precisar mais de cadeira de rodas — arrematou com alguma tristeza, mas munida de muita esperança. — O quê ,mamãe? – Juliana parecia confusa — Como é que isso pode acontecer? A senhora, acreditando em sonhos? A senhora não acabou de escutar o papai dizer que sonho é sonho? — É verdade, filha — colocou-lhe delicadamente as mãos nos ombros — Mas desta vez, tal como o seu sonho, eu também acredito no meu sonho. E algo me diz que tudo isso tem um fundo de verdade. Eu sinto filha, aqui no meu coração de mãe — e pela primeira deixou escapar uma lágrima, que ficou suspensa na pestana clara. — Não, mamãe — cética, Juliana ofereceu um sorriso analítico — Eu sei que tudo o que mais quer é ver o mano bom. Eu também quero. Todos nós aqui em casa queremos, até o papai, com aquele jeito dele. Ele gosta do Juliano à maneira dele. A situação do mano não muda mais mamãe. É como o papai diz, temos de nos conformar com a fatalidade dele e da nossa família. — Eu sei disso, filha. Mas é… — Sabe, mamãe, às vezes nós sonhamos cada coisa sem jeito. — Mas desta vez filha, por mais que nos custe a acreditar, eu sinto que algo vai acontecer com o seu irmão. Eu não sei explicar, mas é o que… 162


Ela não conseguiu terminar, pois passaram a escutar vozes exaltadas, perturbando a calma do ambiente. Assustadas, as duas convergiram seus olhares para a porta do aposento. Então, depararam-se com a aparição insólita da assustada e aflita empregada, cruzando a porta de semblante assombrado. Parecia que havia avistado um fantasma, falando tão rápido a ponto de misturar as palavras. O rosto assombrado da empregada exibia um olhar esbugalhado. Mas, ainda assim, seu semblante deixava escapar uma alegria exacerbada, mesclada com uma ligeira confusão e apreensão. Seu estado de alegria se misturava ao desespero e à enorme vontade falar o que acabara de presenciar. — Minha… minha sen… minha senhora… corra rápido até… até o quarto do seu filho… Venha, venha… venha… — a empregada falava rápido demais, que tanto a mãe quanto a filha acabaram por nada entender. Assustadas, as duas permaneceram por uns segundos num silêncio opressivo. A primeira a recuperar foi a mãe, que disse: — O que foi Flaviana? O que aconteceu que a fez surgir nesse estado de quase desespero? Aconteceu alguma coisa com o Juliano? Você o deixou cair da cadeira de rodas, foi Flaviana? – temendo o pior, sua voz aos poucos se tornou embargada. A empregada já ia responder quando o pai de Juliana, preocupado e assustado com a gritaria da empregada, apareceu no aposento. Sem perder tempo, indagou, sem destinatário certo: 163


— O que está se passando aqui? Que gritaria é essa? — Foi a Flaviana que apareceu aqui aos gritos, mas ninguém está entendendo nada do que ela está falando — disse a mãe de Juliana. Os olhos esbugalhados e assustados da empregada indicavam de que ela pretendia falar, mas sua voz custava a sair. Então, passou a olhar com frequência para a porta, como que querendo chamar a atenção para aquele lado. Foi aí que o pai de Juliana resolveu agir, por instinto de genitor. — Vamos até ao quarto do Juliano — disse, num impulso — Algo deve ter acontecido com ele. Todos correram até ao aposento de Juliano. Ainda assustada, Flaviana seguiu atrás deles. ********** Ao entrarem no aposento de Juliano, levaram um susto quando avistaram a cadeira de rodas, junto da cama, vazia, o que não era normal há cinco anos, desde que ocorrera uma fatalidade. Juliano, o irmão mais velho de Juliana, um jovem rapaz, robusto, de vinte e cinco anos de idade, havia sofrido um acidente de quadriciclo e, como consequência, sofreu uma fratura cervical e torácica, ficando paraplégico para sempre. A cena da cadeira de rodas vazia deixou-os sem voz, mas também alegres, pois logo começaram a escutar a voz, também alegre, de Juliano, no interior do banheiro, enquanto se banhava. 164


“Como o Juliano pode estar tomando banho sozinho e sem a cadeira de rodas?”, foi o que todos perguntaram a si mesmos, enquanto trocavam olhares interrogativos uns com os outros. Sem nada entenderem, ficaram ali, petrificados, olhando uns para os outros quando, sem aviso prévio, um vislumbre ocorreu a Juliana. Falando mais para si, murmurou: — Não pode ser. Jesus me pediu no sonho que eu lesse um trecho da Bíblia e o texto falava justamente sobre a cura de um paralítico. Como eu não me lembrei do meu mano? Todo o tempo Jesus me dava indicações! Como eu não percebi? Só pode ser um milagre. Só pode. Sem perceber, Juliana havia falado o suficiente, despertando interesse tanto do pai quanto da mãe que, sem querer, escutaram o que Juliana havia falado. Diante disso, o pai, confuso e orgulhoso que era, ainda assim não deu a mão à palmatória, decidindo protestar. Só que desta vez foi mais comedido na voz. — Minha filha, eu já te disse que esse senhor não existe. Isso é fantochada. Esse senhor só existe… — Cala a boca, Filipe! — enérgica, ordenou a mãe, para surpresa de todos — Eu também sonhei com o Juliano. E se quer saber o que eu sonhei com ele, fique sabendo no meu sonho ele surgiu andando normalmente, totalmente recuperado. Isso não é demagogia. Eu sinto que o nosso filho se curou e só isso justifica o que estamos vendo. O pai de Juliana ficou sem reação, passando a fitar a esposa abismado. Primeiro, porque esta nunca 165


havia lhe levantado a voz, e segundo, ainda que se mostrasse cético, a situação convergia tanto nas suas palavras como nas da filha, cuja totalidade ele ainda não tinha conhecimento. Como para o pai Juliano sempre fora o filho predileto, desde que chegou no quarto dele, passou a torcer para que tudo aquilo fosse verdade, a mais pura realidade e não um projeto irrealizável, uma frustração que o deixasse ainda mais triste. Porém, por conta de seu orgulho excessivo, não demonstrava a sua esperança. A esposa sabia dessa peculiaridade do marido, então, encheu-se de coragem para, num fato inédito, levantar-lhe a voz, exigindo que se calasse. Desde o primeiro dia em que tomou conhecimento do acidente do filho, o pai almejava uma recuperação rápida, fazendo de tudo para que isso viesse a acontecer. Mas perante a triste e irreversível notícia dada pelos especialistas de que o filho jamais recuperaria a locomoção dos membros inferiores, para sua enorme tristeza, acabou por se conformar e se habituar à nova condição, porém, sem nunca perder a esperança de que um dia Juliano voltasse a andar. Só que ali a situação mudara da noite para o dia. Encontravam-se, ele e demais familiares, diante de uma nova possibilidade, a única que surgira nos últimos cinco anos, e qualquer coisa lhe atenuaria seu amiúde sofrimento, inclusive acreditar em figuras místicas. A seguir fez-se um silêncio profundo e opressivo. Apenas a voz de Juliano continuava sendo escutada no interior do banheiro, em meio à água que atingia seu corpo. 166


Arrependida, a mãe de Juliana falou para o marido: — Desculpa, Filipe. Eu nunca falei assim com você. Nós estamos todos muito nervosos com o que estamos presenciando. Sabe, existe a possibilidade… Polido, o marido interrompeu. Disse, depois que finalmente conseguiu incutir em si de que o filho se encontrava curado — só isso justificava a alegria com que Juliano cantarolava no interior do banheiro —, dando largas à sua enorme satisfação, inclusive agradecendo a Deus: — A possibilidade não. A forte possibilidade de que o nosso Juliano esteja totalmente recuperado. — Isso é um milagre, papai — Juliana interveio. — Eu também acho, senhor doutor — a empregada ousou e arriscou corroborar com Juliana. — Vocês têm razão. O Juliano está curado. Se os médicos não conseguiram curá-lo, só alguém podia fazer com que o nosso filho e seu irmão, minha filha, voltasse a andar — observou o pai, deixando escapar a forte empatia, para mudar o tom de sua voz, passando a ser suave e persuasiva — O responsável por tudo isso é alguém cujo rosto não conhecemos. Foi essa pessoa que nunca vimos que curou o nosso filho. Admito e penitencio-me — arrematou, profundamente emocionado. — Admito também, Filipe, que o nosso filho tenha se curado por intervenção de forças externas. Só pode ser Deus e mais ninguém. Por mais que nos custe a acreditar, Deus curou o nosso filho. A Juliana está coberta de razão. Isto sim é um milagre — disse Marta emocionada, deixando escapar várias lágrimas. 167


A seguir, não conseguindo conter a emoção, Marta fechou suas mãos sobre as mãos do marido e da filha, passando a sentir uma energia positiva, diferente e, acima de tudo, revigorante. Sem se darem conta, veio-lhes naturalmente uma vontade incontida de chorar. Suas lágrimas eram de agradecimento e reconhecimento. Até a empregada, esquecida, comoveu-se com a cena. *********** Subitamente, e enquanto se encontravam ali de mãos dadas, Juliano deu sinal de vida no quarto, de tolha enrolada ao corpo. Sorridente, passou a fitar os pais e a irmã, exibindo uma alegria indizível. Todos se surpreenderam com a aparição do jovem rapaz. Pareciam não acreditar no que seus olhos viam. Juliano, de toalha enrolada ao corpo, em pé, como se fosse a coisa menos natural do mundo, depois de haver passado os últimos cinco anos em uma cadeira de rodas, como seu refém. Seus olhares atordoados, fizeram com que Juliano os indagasse. — Por que me olham assim? Até você, Flaviana? — virou-se para a empregada, a que mais lhe dedicara tempo nos últimos anos. — Você está curado, meu filho — ainda confuso, mas com a certeza de que o filho se encontrava realmente curado, o pai respondeu. — Estou sim, meu pai. Estou curado, sim — Juliano observou para logo fazer um movimento com as 168


pernas — Agora sim, sinto as minhas pernas. Não sou mais um deficiente físico. — Mas como meu filho? Como é que isso foi possível? — Esta manhã, quando acordei, reparei algo estranho no meu corpo. Não sabia o que era, Aí eu passei as mãos nas minhas pernas. Foi aí que passei a senti-las e não tive mais dúvidas. Estava curado, minha mãe e meu pai. E minha mana também — e dito isso, estendeu os braços para Juliana, que não esperou por um segundo convite, correndo ao seu encontro e abraçando-o efusivamente. Enquanto se abraçavam, Juliano sussurrou no ouvido da irmã — Obrigado, minha mana. — Obrigado por quê, mano? – ela parecia não entender o gesto de agradecimento. — Eu sei que você teve intervenção nisto. Eu sinto. — Ah... Está bem, mano. Eu aceito o seu agradecimento, mas não precisava de tanto — observou Juliana, com vivacidade. — Mas… mas, meu filho… Isso é… — deveras emocionada, a mãe não conseguiu terminar, ao ver o rosto de felicidade da filha e do filho, que lhes estendia as mãos, convidando-os para um abraço também. Pai e mãe, tal como a filha, não esperaram por um segundo convite. Rápido se aproximaram de Juliano e de Juliana, para os abraçarem com muita efusão e amor. O abraço foi tão forte que acabaram deixando Juliano com o aspecto de um frango depenado, de cuecas e de pantufas, toalha caída no chão, mas isso não deixou ninguém incomodado. A eles, Flaviana juntou-se a seguir. — Após se desvencilharem, o pai quis saber. 169


— Como é que isso foi possível, meu filho? — Eu não sei lhe dizer meu pai, mas também nunca vos disse — dirigiu-se aos pais e à irmã — Desde o dia em que sofri o acidente e quando tomei conhecimento de que ficaria inválido, a minha namorada conseguiu me convencer a aceitar Jesus como meu único salvador. Então… — A Flávia? — surpresa com a revelação, a mãe interrompeu. — Sim, minha mãe, a Flávia. Ela é também uma das pessoas responsáveis por isto — confirmou, trocando um olhar enigmático e de cumplicidade com Juliana, que sorriu discretamente, enquanto um déjà vu a absorveu sobre a coincidência do nome da namorada do irmão com a amiga que lhe fazia companhia em seu sonho — A Flávia me falou de Deus e o resto já devem imaginar. Usei a minha fé e a agora estou aqui, na nova fase da minha vida. Uma porta nova se abriu e eu vou aproveitar. — E você passou a acreditar em Deus, meu filho? — admirado, o pai indagou. — Sim, meu pai — confirmou com um sinal de cabeça. — E você nunca nos disse nada? Como eu e a sua mãe nunca desconfiamos? Juliano ofereceu um sorriso plácido e, a seguir, observou. — Não valeria a pena, meu pai, perante o seu posicionamento irredutível. Resisti todo esse tempo no silêncio, mas com Deus sempre no meu coração, e até pedindo por vocês. Ele é o meu baluarte e bálsamo, 170


criando as condições para que finalmente pudesse falar dele aqui nesta casa. O tabu, finalmente foi quebrado. — Meu Deus! — abismada, a mãe exclamou — Engraçado, a Flávia também nunca nos disse nada. — E nem podia. Era o nosso acordo, minha mãe. Ela sempre me disse que um dia isto podia acontecer. Bastava, para isso, fazer prova da minha fé. Foi o que eu fiz durante esses anos todos. Quando eu saía com ela para jantar ou irmos ao cinema, era tudo mentira minha mãe. Nós íamos sim à igreja. Muitas vezes aqui, neste quarto, eu procurava entrar em comunhão com Deus e por incrível que pareça, consegui diversas vezes. Desculpem, meus queridos pais, se lhes desapontei. Desculpem. — Que é isso, meu filho! Não nos desapontou coisa nenhuma. Quem te pede desculpa somos nósemocionado, a mãe observou. — Deus escutou as minhas preces e eu sabia de que Ele me devolveria a minha saúde. Agora eu tenho um compromisso de gratidão com Ele e jamais desviar-me-ei de seus preceitos. Jamais, meus queridos pais. Uma vez mais me desculpem. Banhado em lágrimas, orgulhoso do filho, o pai adiantou-se à mãe e lhe disse: — Oh, meu filho... Quem te pede desculpa somos nós. Jamais imaginávamos que você tivesse um relacionamento tão forte e profundo com… — Podes falar sem medo de afirmá-lo, meu pai — o filho estimulou-o perante sua hesitação. — Com Deus, meu filho. Desculpa o nosso insistente ceticismo. 171


— Há muito que estão desculpados e perdoados por Deus, meus queridos pais. — A partir de agora eu tive a prova cabal. Pode ter certeza, meu filho, de que não tenho mais dúvidas — virou-se para a esposa — Não temos mais dúvidas de que Deus realmente existe, contrariando o que sempre afirmamos com convicção. Sempre estivemos enganados, meu filho. — Mas é claro que Deus existe, meu pai. Ele sempre existiu. Não só em sonhos, mas bem perto de nós. Até neste momento de felicidade. Podem ter certeza. — Será que ainda temos tempo de nos reconciliar com ele, meu filho? – preocupada, a mãe quis saber. — Nunca é tarde para Deus receber mais um filho. No caso, três. Eu e a Flávia os ajudaremos a chegar até ele. Aceitam o convite? — Mas é claro que aceitamos, meu filho — o pai confirmou enquanto o abraçava uma vez mais. Contagiada, a mãe o fez também, e Juliana, ali esquecida, resmungou cortando, pela metade o abraço dos três. — E eu? Não mereço atenção? – disse-lhes — Olha que esta noite eu sonhei com o Jesus conversando comigo e ele me disse que uma coisa boa ia acontecer na minha família. Estou vendo que ele falava a verdade. — E eu não te disse agora mesmo quando te agradeci? A coisa boa é esta. Eu fiquei curado, minha pirralha — Juliano brincou, enquanto lhe afagava os cabelos castanhos. — E nós vamos conhecer esse personagem maravilhoso que ao longo dos anos recusamos impetu172


osamente — acrescentou o pai, dando um toque de bálsamo em suas palavras, que foram mais sinceras do que podia imaginar. — Olhem que eu também estou aqui, ouviram? — a empregada falou. Todos acharam graça à cena de ciúmes de Flaviana. — Chega para cá, mulher! — Juliana convidou, fazendo com que ela se juntasse a eles. Após aquele abraço dos cinco, Juliano convidou-os para se ajoelharem e fazerem uma prece sob sua orientação. Em silêncio e de olhos fechados, todos escutaram o jovem, já vestido, falar com Deus, agradecendo por seu nobre gesto. Ao final, em sinal de respeito, Juliano proclamou o Pai Nosso sob o silêncio dos genitores e Juliana, acompanhado pela empregada. Enquanto o faziam, uma leve brisa passou junto do rosto de Juliana, fazendo com que ela se distanciasse sem ser notada, indo até à janela do aposento, sendo conduzida pela aragem que a envolvera. Ao chegar lá, conseguiu avistar uma pomba branca vindo em sua direção. Ela estendeu a mão para recebê-la. Juliana sabia que aquela pomba tinha um significado. Era o Espírito Santo na presença de Jesus, assistindo e proporcionado aquela cena de conversão, de reconciliação e de gratidão. A seguir, a pomba branca saiu voando em direção ao céu, para logo seu vulto se dissipar. Juliana também tinha certeza de que Deus estivera ali o tempo todo. Intrinsecamente e num gesto humilde de gratidão, ofereceu-lhe um leve sorriso. FIM 173



“Quem acolhe em meu nome uma destas crianças, a mim me acolhe. E quem me acolhe, acolhe não a mim, mas aquele que me enviou”. Evangelho Segundo São Marcos Cap. 9, Vers. 37.

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Marques da Rosa

O Milagre

SĂŁo Paulo 2016


Copyright © 2016 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Felippe Scagion

Diagramação

Editora Baraúna

Revisão

Andrea Bassoto

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________ ________________________________________________________________

Impresso no Brasil Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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Jesus abençoa as crianças

“Apresentaram-lhe então crianças para que as tocasse; mas os discípulos repreendiam os que as apresentavam. Vendo-o, Jesus indignou-se e disse-lhes: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque o Reino de Deus é daqueles que se lhes assemelham. Em verdade vos digo: todo o que não receber o Reino de Deus com a mentalidade de uma criança, não entrará nele”. Em seguida, abraçou-as e abençoou-as, impondo-lhes as mãos”. Evangelho Segundo São Marcos, Cap. 10, Vers. 13,16.



Prefácio O escritor Marques da Rosa acaba de nos presentear com um magnífico livro: “O Milagre”. Trata-se de um precioso catecismo escrito em linguagem erudita e atraente que, com prazer, despertada a curiosidade de saber o desfecho, o leitor o lê quase de um só fôlego. É um livro didático, informativo e de formação teológica exarado numa linguagem, muitas vezes, feita de imagens vivas e poéticas. Como bom didata, ele faz o leitor percorrer a estrada palmilhada por três crianças e seus pais. É a pedagogia de Deus, no maior respeito ao livre-arbítrio do ser humano, é a descoberta paulatina do homem em busca incessante da verdade plena. No quadro das circunstâncias que vão surgindo na vida dessas três crianças, cada qual com sua índole própria e seu caráter diverso, vai gerando e desenvolvendo a semente da Palavra geradora de vida, fruto do inusitado encontro entre o visitante misterioso e as inteligentes e puras crianças, curiosas e sedentas de verdade. Cada personagem, respeitada a sua 7


individualidade, faz sua experiência envolvida no mistério da busca e na ansiedade da descoberta. A confusão, provocada pelo encontro, aos poucos vai se diluindo na medida em que o diálogo avança, mesmo quando há, aparentemente, resistência por parte de uma delas. O autor, com maestria, define cores vivas e imagens elucidativas, o que se entende por mistério da Santíssima Trindade e ainda qual foi a missão de Jesus Cristo sobre a terra, movido todo o tempo pela presença do Espírito Santo na tradicional representação de uma pomba branca. Aos poucos, pacientemente, Marques da Rosa vai conduzindo as três crianças para essa descoberta libertadora. Em nenhum momento a leitura é cansativa ou enfadonha. Na medida em que se avança percorrendo as páginas, aguça-se a vontade de saber mais sobre o enredo do livro. E aí, tudo surpreende e encanta. O autor aproveita para fazer um esclarecimento e educação política para os três amigos. A linguagem é atualizada, é dos nossos dias. Ele conseguiu, dentro de uma linguagem à altura da compreensão dos três garotos, transmitir verdades profundas iluminadas pelo Evangelho. De uma maneira sutil e quase imperceptível, ele vai conduzindo, como bom pedagogo, o leitor, assim como os garotos, a descobrir quem é Jesus e a quem ele revela. Isto é, retira o véu do ceticismo dos pais de um deles. O lugar, o cenário bucólico e a beleza da descrição contribuem para enquadrar a profundidade da mensagem, já 8


que Deus não fala, mas tudo fala de Deus, uma vez que você procura vê-lo com os olhos da fé. No início tratava-se de um sinal esdrúxulo surgido das alturas, envolto por um misterioso barulho que, aos poucos, se tornou uma luz branca e forte envolta por um vento suave tranquilizando os meninos que era amigo e portador de paz. Tratava-se de um homem de aparência dócil, pretendendo deixá-los à vontade e sempre lhes oferecendo um plácido sorriso, muito embora deixando sempre em suas cabeças uma incógnita sobre quem ele era. Quase um enigma a ser decifrado que suscitava curiosidade e interesse. Em contrapartida Jesus responde a eles três transmitindo-lhes a sua identidade e missão neste mundo e falando-lhes do mundo após a morte. Marques da Rosa soube, com muita firmeza e paciência, conduzí-los a esta maravilhosa descoberta, atingindo o ápice da montanha fazendo desaparecer totalmente o ceticismo de um dos personagens. Para a fé, há caminhos diferentes na experiência de cada crente. Por vezes, há atalhos, algumas vezes só caminhamos graças a alguém que nos mostra a estrada. Outras, como que engatinhando sozinhos, percorrendo aqui e acolá atalhos, chegamos à meta; por vezes até desconhecida. O autor foi muito feliz na tarefa a que se propôs. Parabéns! Desejo que este livro faça um bem enorme ao leitor. E o autor se sinta gratificado pela obra que produziu em favor de quantos o lerem. E, finalmente, assim como Juliana e seus pais, todos façamos a descoberta encantadora da pessoa de Jesus Cristo. 9


Tudo isso justifica o mais que adequado título do livro “O Milagre”, porque crer é o milagre por excelência. E Deus se revela de preferência aos humildes e pequeninos. Cônego José Mário de Medeiros Da Academia Norte-Riograndense de Letras Natal, RN, outubro de 2016

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Capítulo Primeiro O dia na escola da pequena cidade do interior do estado havia terminado. Mais um, para enorme alegria dos alunos, que logo procuravam o quanto antes abandonar o prédio com o intuito de rumarem para suas casas. O amontoado e o frenesi de alunos junto ao portão principal da escola eram rotina diária daquelas almas inocentes. O barulho era ensurdecedor, pelas inúmeras vozes masculinas e femininas escutadas de forma rápida, a ponto de misturarem as palavras como reação natural das inocentes crianças extravasando de contentamento por mais um dia vencido de suas atividades escolares. Aos poucos, os alunos foram se dispersando e a cada segundo que passava o lugar foi ficando vazio, calmo e tranquilo. Até que três crianças, duas de um lado e outra na outra extremidade do portão, se deram conta de que eram as únicas que ainda restavam daquele que parecia ser um formigueiro assanhado minutos antes. Naturalmente, as três trocaram simples 11


olhares, para depois, sem esconderem sua apreensão pela demora de seus pais, passarem a trocar olhares com mais frequência. Como qualquer criança da idade daquelas três almas inocentes, a vontade de se dirigirem umas às outras não demorou a se manifestar. O que movia cada uma delas era a natural curiosidade e solidariedade, instinto da própria essência de cada uma delas. Se uma se encontrava disposta a falar, nem que fosse somente para tomar conhecimento do nome da outra, naturalmente que as demais se encontravam igualmente dispostas a escutar, a responder e vice-versa. Coisa mais que natural para o ainda mundo mágico daquelas crianças. Seus olhos esbugalhados almejavam que alguém tivesse coragem de tomar a iniciativa. Não demorou muito — e nem foi preciso alguém tossir ou forçar uma situação — a mais destemida disse: — Papai hoje está demorando — falou mais para si, mas o suficiente para que as demais pudessem escutar. — O meu também — disse a outra, junto da primeira. — A mãeinha também está atrasada — disse a outra do outro lado do portão, enquanto se aproximava das demais. Ao chegar perto, disse-lhes: — Me chamo Flávia. E tu? — Eu sou Juliana. — E tu? – Flávia virou-se para o menino. — Francisco — tímido, respondeu. — Pronto! Já estamos todos apresentados — disse Flávia, com um leve sorriso no rosto. 12


A seguir, Flávia, uma linda menina de oito anos de idade, olhos azuis, cabelos louros, filha de um casal de classe média, o pai, um funcionário bancário, a mãe, uma exímia cozinheira, a mais divertida e excêntrica de todos, puxou conversa. Em pouco tempo, os três já se encontravam em animada conversa, até que dada altura foram interrompidos pela voz grossa e alta do porteiro da escola, que ao vê-los ainda ali estranhou. Preocupado, indagou sem destino certo: — Os meninos ainda por aqui? Cadê seus pais? — Parece que se esqueceram de nós, senhor Carlos — respondeu Flávia, com um sorriso largo no rosto, provocando sorrisos contidos nos demais. — Estou vendo que sim menina — replicou o porteiro — Não fiquem aqui fora que pode ser perigoso. Venham para dentro até que os vossos pais resolvam aparecer — arrematou, sugerindo. Sem titubearem, os três acataram a sugestão do porteiro. Já do lado de dentro das dependências da escola, os três ficaram juntos, numa sala anexa à portaria, em animada conversa, até que o tempo foi passando, foi passando, foi passando… Quando se deram conta, já haviam passado cinquenta minutos. Foi aí que Flávia acabou por fazer uma proposta aos demais, depois de suas tentativas frustradas de contactarem seus respetivos genitores com o único celular disponível, o de Juliana, que logo se ofereceu para ajudá-los. Foi evidente a solidarieda13


de, ato mais que natural para crianças daquela idade. Mesmo sem lograrem êxito, ainda restava uma réstia de esperança visível em seus rostos angelicais. Assim que o porteiro deu o primeiro vacilo, já combinadas, as três crianças vislumbraram a oportunidade de deixarem a escola sem a autorização de quem quer que fosse, em especial do descuidado porteiro. Caminharam pela rua o mais rápido que suas pernas permitiram, até que finalmente diminuíram a intensidade de seus passos, depois que tiveram a certeza de que jamais seriam alcançadas pelos olhares do porteiro que, por certo, ao se aperceber da fuga das crianças, logo enveredaria como primeira medida correr em seu encalço, enquanto seus olhos calejados os ainda avistasse. Na verdade, os pensamentos dos três amigos encontravam-se certos. Assim que o porteiro deu pela falta deles sem que qualquer genitor houvesse comparecido, resolveu procurá-los. Sem perder tempo, tomou as medidas cabíveis no sentido de dar conhecimento à diretoria da escola e só depois aos respectivos genitores. ********** Obviamente, depois que os genitores das três crianças foram avisados, gerou-se um alvoroço, e logo o vulnerável porteiro acabou por ter chamado a sua atenção por seu imperdoável descuido. Ainda assim, a situação foi contornada pela providencial intervenção da diretora da escola, com a promessa de que tal acontecimento jamais seria objeto de nova discussão e 14


chamada seria a atenção fosse de quem fosse dos muitos alunos da instituição. Diante disso, foram mudadas algumas normas internas de procedimento quanto à segurança e à vigilância dos alunos, os quais foram compelidos a obedecer a um conjunto de normas. Enquanto isso, o porteiro foi acusado de leviandade, acabando por responder a uma sindicância. Não obstante os genitores das três crianças haverem ficado preocupados, no fundo eles não estavam nem aí, já que constantemente se atrasavam quando iam buscar seus filhos. Entretanto, justo naquele dia quis o destino que pela primeira vez coincidisse ser justamente com aquelas três crianças, o que foi motivo para que as indefesas, a partir daquele dia, criassem um vínculo e estabelecessem uma amizade para os dias subsequentes e até meses, quando passaram a sair sozinhos da escola logo após terminarem suas atividades curriculares. Os pais foram avisados pela direção da escola, até que acabaram por aceitar aquela situação, que lhes parecia cômoda e confortável, ao assumirem o risco caso algo viesse a suceder com um dos seus filhos, isentando a escola. Em virtude das suas atividades profissionais, os pais não tinham muito tempo disponível para irem buscar os filhos na escola, confiando piamente na sorte e também na astúcia dos mesmos, de que nada lhes aconteceria. E, assim, a situação foi se tornando recorrente, perdurando por algum tempo. Os pais de Flávia confiavam na filha, tal como os pais de Juliana, um engenheiro constantemente em viagem e a mãe, uma médica pediatra. Os pais de 15


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