O riacho e a pedra 15

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O riacho e a pedra 2ª edição



O riacho e a pedra 2ª edição

Edson Luiz Dias Cardoso

São Paulo 2017


Copyright © 2017 by Editora Baraúna SE Ltda

Projeto Gráfico Editora Baraúna Revisão

Patrícia Murari

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Àqueles cuja coragem transformou a paixão no coração pantaneiro.



Sumário Chão bruto, terra batida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 O império do vento norte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 O encontro das águas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 A terra das flores e dos frutos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 O mundo das águas e das muralhas . . . . . . . . . . . 110 Na fronteira entre o amor e a dor. . . . . . . . . . . . . . 147



Chão bruto, terra batida

– Ave Maria, gratia plena dominus tecum... – reza a negra Bené, clamando piedade aos céus. A vela em suas mãos trêmulas iluminam os últimos minutos de vida daquela a quem serviu sua vida toda. Solana, nos seus oitenta anos enfrentara a floresta e sua escuridão. Sobrevivera a duas malárias, resultado de suas andanças pelos cerrados e charcos noite e dia, levando e trazendo boiadas de um lado para o outro, e picadas de cascavel, e até mordida de jacaré, naquela baía, próxima à pacata cidade de Vila Maria. A tarde cai lentamente naquela margem do Rio Paraguai. As nuvens escuras ao longe preanunciam uma tempestade com seus raios riscando o céu de alto a baixo. A brisa balança a cortina, que emoldura a janela enorme do casario sobre o penhasco. A casa que fora seu abrigo contra tudo e contra todos, e seu castelo como se fosse uma rainha de além-mar. Solana olha sonolentamente para a janela. Parece que implora uma última olhadela para o mundo que se despede dela. – Como está o tempo lá fora? – num esforço descomunal, entrecortado por tosses secas, sussurra para a criada. 9


– Tá um tempo bom, com o sol quase caindo por detrás do mundo – esticando o pescoço e olhando o céu –, mas parece que mais tarde vai cair um pé d’água, e chuva braba! – responde Bené com a dureza de sempre e sem mesura nenhuma –, mas não pensa nisso, não. Descansa, fique calma. Reza e pede consolo para Nosso Senhor –completa, balbuciando suas orações, que tira de um terço que escorre entre seus dedos, magros e compridos. – É só o que tenho feito nos últimos dias... É o que tenho feito. Não sei se Deus vai querer me perdoar! – lamenta a moribunda. – Não se preocupe. A nós só resta pedir. Se Deus quiser, Ele perdoa. Confia. Só confia – fala a velha negra com sabedoria e simplicidade. A grande e centenária figueira é testemunha de todas as vidas que por aqui passaram. Quantas histórias guardadas em si mesma! Ouvira lamentos e choros, presenciara arroubos de alegria e contentamento. Hoje, forte, permanece ali, suas raízes caminharam por aquele chão, infestando-o com suas pegadas. Talvez ele também já esteja prestes a se despedir. Nascera e crescera à margem daquele rio; acompanhara as enchentes e vazantes de todos os anos, dos mesmos meses; mudanças de estação, frio com ventos que cortam a pele e acinzentam mãos e pernas, chuvas que alagam tudo, tornando-se um grande mar de água doce, berço de muitas vidas, dentro e fora dela. Solana muitas vezes fora comparada à figueira da margem daquele rio: forte, vigorosa, às vezes en10


vergada pelas intempéries, mas jamais caiu por terra. Retiraram, ela e a árvore, a seiva daquele pedaço de chão. “Necessito desta terra para viver. Não me tirem daqui”, dizia sempre. Tudo ali se parece com a dona. A casa, construída à moda barroca, mas de pedras grandes, janelas e portas de madeira maciça, com vidros trabalhados em alto-relevo; móveis e utensílios trazidos do estrangeiro, por barcos que vinham da Argentina e do Uruguai, que, por sua vez, os importavam da Europa, principalmente da França. Por isso os móveis, na sua grande maioria, eram no estilo Luiz XV, rococó; peças de cristal de bacarat e mármores de carrara, o piso em branco e preto; talheres de prata e até de ouro maciço, diziam alguns. Usara muitos vestidos de renda francesa e cetins vindos do Oriente; sapatos fabricados pelos melhores artesãos italianos e germânicos; fazia questão de ostentar jias que realçavam os traços bolivianos e pantaneiros: pulseiras, grandes anéis em prata e ouro e brincos de várias peças, dando-lhe um ar de cigana. Gostava de se sentir diferente das demais mulheres do seu tempo. – Procurei ver e viver a verdade das coisas que entendia e aceitava; outras vezes, inventava uma verdade para sobreviver – justifica-se aquela mulher em seu leito de morte. – Não se atormente, minha filha – Bené afaga seu rosto com um pano molhado, enxugando o suor que escorre lentamente, pesando ainda mais seu semblante, já sofrido. “Salve Regina, Mater Misericordiae, vita, 11


dulcedo...”, reza comigo. Acalme-se – pede a criada, visivelmente sofrendo a dor da patroa. – Eu estou bem, minha cara Bené. Não me arrependo do que fiz. Tentei viver dentro do paraíso, mas às vezes tive que enfrentar o inferno e passar por cima dele. A vida é isso: para chegar ao paraíso que Deus criou, é preciso, antes, superar o inferno que criamos e todos os seus demônios. Não tenho medo da mão pesada de Deus. O que terá que ser meu, será. Mesmo que seja o castigo – fala solenemente, em tom confessional. – Não faça isso, senhora. Não se atormente!!! Entregue-se nas mãos de Nosso Senhor... “Pelas suas santas chagas!...” – resmunga a velha. “Pela sua pesada cruz...” – continua sua longa ladainha. Solana fecha os olhos. O cansaço toma conta do seu corpo, fragilizado pelos anos e pela doença. A fraqueza está levando sua vida para longe. A corajosa Solana nunca pensou como se comportaria quando chegasse a sua vez de partir. Dizia que na hora certa saberia o que fazer. Abre lentamente os olhos. – Água. Quero água..., te-tenho sede... por favor! – sussurra. Bené lhe serve na colher o precioso líquido. Até que percebe os dentes cerrados, e a água escorrendo pelos cantos da boca. Abaixa a cabeça, faz suas últimas orações. Talvez chora. – Dona Solana morreu. Chama o povo para o velório – fala aos demais criados da casa. Um silêncio muito grande paira sobre o casarão e o vento balança os galhos da velha figueira. Será cumprido o último pedido da dona da casa: seu túmulo ficará debaixo daquela árvo12


re, às margens daquele rio, que a conhece melhor que todos. Assim serão seus outros tempos, seus novos dias...

TRINIDAD – Bolívia, março de 1885. Numa de suas longas viagens pelas florestas brasileiras e bolivianas, passando por charcos e pantanais, Ernesto Ferrero vinha vivendo sua vida. Homem de poucos conhecimentos, ‘mas de muita raça’, diz ele, está sempre andando em comitivas ou de barco em busca de algo que produza dinheiro. Segundo diz, precisa fazer dinheiro para poder sossegar num canto. Pelas cidades por onde passam, vive o mais intensamente possível. Bebe cachaça até ficar bêbado, dorme com as mulheres que aparecem nesses botecos e se diverte dançando cúmbia até altas horas da madrugada. Numa dessas noitadas, Ernesto conhece Adélia, mulher fogosa, corpo escultural, sorriso maroto em lábios carnudos... Dança se contorcendo num êxtase, que chama a atenção de todos. Ele a observa atentamente, os pensamentos revoltos em sua mente. Acredita ter encontrado a mulher que poderia fazê-lo criar raízes naquele lugar. Aproxima dela, quando a música acaba. Oferece-lhe um copo de cachaça. Sorridente ela aceita e gentilmente agradece. – Usted vem siempre acá? – fala com a língua enrolada, tentando caprichar no espanhol. – Si, siempre. Muchisimas veces – responde, balançando o corpo, ao ritmo da música. 13


– Cómo se llama? Cómo es su nombre? – Adélia González – fala, estendendo a mão languidamente. A conversa, atrapalhada, se prolonga por poucos minutos, até que ambos já são quase íntimos. A mão dele já toca seus cabelos negros como a noite, seus ombros morenos de pele macia. Dançam algumas vezes ao som de uma velha harpa dedilhada por um jovem aimará. Alguns dias, ele sai com seus companheiros em busca de trabalho – fazem qualquer um! Desde amansar cavalo bravo, até catar ouro nos rios lamacentos. Foi à Bolívia mesmo em busca das minas de prata de Potosi. Em suas andanças, já esteve em Pilar, San Pedro, Concepción e Asunción, no Paraguai, assim como já visitou várias cidades bolivianas: Santa Cruz de la Sierra, San Ignácio, San José de Chiquitos e tantas outras nesta fronteira, subindo e descendo várias vezes o Rio Paraguai, Taquari, Mamoré e Grande. Na época das secas viajavam em comitivas de carros de bois e cavalos, que iam conseguindo com os novos companheiros, que buscavam o mesmo para suas vidas. – Ernesto, estoy embarazada – Adélia comunica ao marido que está grávida. Ele fica feliz e ela também. Até que enfim ele terá um filho, que vai aprender a montar e domar cavalos, andar por esses pantanais afora, enfrentar onça e sucuri... Faz mil projetos para esse filho tão esperado. Aos quarenta anos, acha que está maduro suficientemente para ser pai. Passam-se os meses. Alguns problemas surgem: trabalho escasso, sua permanência em território boli14


viano como clandestino, tudo isso dificulta um pouco. O que o anima, é a chegada do bebê, que o ajudará também, a ser cidadão boliviano. Volta tarde para casa, olha a mulher e o bebê; bêbado, mas suficientemente sóbrio para se comportar e não acordá-los. Deita numa beirada da cama e dorme. O bar está cheio de homens que trabalham nos garimpos de ouro e de prata. Bebem e gastam seu dinheiro com as mulheres que ficam por ali, em busca de amores escusos. Bebem, brigam, se apaixonam e amores são desfeitos nestes lugares. – Quero mais que esses estrangeiros sejam mandados de volta para sua terra – esbraveja o bêbado, com uma peixeira enfiada no cinturão de couro. – O ouro e a prata da Bolívia, são para os bolivianos! – conclui. – É isso mesmo. Que sumam da nossa terra. São invasores e ladrões!!! – grita um outro rapaz, totalmente alcoolizado. – Quem é ladrão, heim, rapaz? Somos homens honestos, e só queremos trabalhar. Além do quê, tem ouro e prata pra todo mundo! – reclama João, amigo e companheiro de velha data do Ernesto. Um dos rapazes investe contra João, gritando: – Cala a boca. Não falei com você! – Cala a boca você, cretino safado! – vocifera João, se defendendo do murro desferido pelo agressor. Ernesto entra no meio. Vê que o cara não está com vontade de parar a briga. Se defende como pode. Até que toma a peixeira e defere um golpe certeiro. O rapaz cai e, esvaindo-se em sangue, morre diante de todos. 15


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