Omisteriodalança 15

Verena Rogowski Becker

S達o Paulo 2014

Copyright © 2014 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa

Jacilene Moraes

Diagramação

Felippe Scagion

Revisão

Priscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________

B356m

Becker, Verena Rogowski O mistério da lança de Sepé Tiaraju : porque esta terra tinha donos / Verena Rogowski Becker. - 1. ed. - São Paulo : Baraúna, 2014.

ISBN 978-85-437-0015-1 1. Romance brasileira. I. Título.

14-11674

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

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28/04/2014

05/05/2014

Impresso no Brasil Printed in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

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Indyara- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 7 Malyque- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 55 O mapa - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 95 Alexey- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 137 ร asy- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 179 A lanรงa- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 215 Final- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 269

Uma brisa balançou a cortina branca, a fita de cetim vermelha que a amarrava escorregou lentamente para o chão. Indyara estava parada olhando para porta que dava para a sacada do quarto do hotel, a impressão que teve foi a de um fio de sangue se esvaindo até o chão de lajotas marmorizadas. Era o reflexo do sol no vidro, era o cheiro daquela manhã de calor que projetaram seus pensamentos para bem longe. Imaginou por um instante estar no meio das guerras sangrentas que aconteceram em nome de conquistas inexplicáveis.

Nessas lembranças do passado, das vidas rasgadas e penetradas com armas de metal, é que ela se confrontava com o passado. Era nesses pequenos momentos que ela vasculhava sua identidade no meio de vencedores e perdedores que construíram o presente em que vivia.

A América, o Brasil, sua terra natal, lembranças nas quais mergulhava permitindo aprofundar-se nas suas raízes e delas retirar a seiva elementar com que nutria os seus sonhos e a marcha de seus passos como uma descendente de índios e colonizadores. Sabia que as lutas de seus antepassados foram o seu incentivo nos estudos e que a curiosidade pela história foi o empurrão que a levou ao jornalismo. Foi com esse mesmo ímpeto que aceitou fazer a reportagem na África, onde pôde ver, compartilhar e descrever a realidade dos africanos tão invadidos pelos povos conquistadores e de forma tão agressiva como ha 7

via acontecido com o seu povo Guarani, lá nos pampas do Rio Grande do Sul. Sentiu um calafrio passar pelo seu corpo. O sofrimento sentido pelos povos conquistados, pelos ditos civilizados em nome do progresso cultural, científico e principalmente religioso parecia-lhe um disparate. Culturas completamente dizimadas, guerras, lutas sangrentas, gritos, espadas, sangue... Muito sangue derramado para a evolução de quem? Essa era a pergunta que Indyara fazia enquanto olhava fixamente para a fita vermelha que agora já estava completamente deitada no chão. Olhava tanto para aquela imagem que não percebeu os leves toques na porta do seu apartamento do hotel The Cllif House.

Novas batidas, agora bem mais fortes, desviaram seus pensamentos e o seu olhar para a porta nas suas costas; ela sabia que era esse o aviso de que a sua estadia estava chegando ao fim.

Nem sempre Indyara se despedia dessa forma das suas viagens de pesquisa como jornalista da revista O Mundo Humano. Era a primeira vez que havia formado laços de amizade mais profundos em pouco tempo de convívio com o povo com quem tivera contato. Pretendia ter ficado no mínimo mais alguns meses, talvez completar um ano, pensava que seu trabalho, então, realmente estaria concluído.

— Essa era digital! — falou enquanto se dirigia para a porta. — O jornalismo é tão rápido e participativo com potenciais de multimídia, que nossos chefes acreditam que não necessitamos mais passar tanto tempo nos lugares para realizarmos as nossas pesquisas.

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Lentamente abriu a porta e deixou que o rapaz pegasse a sua mala, mas voltou a olhar para a fita deitada no chão, não sabia se devia tocar nela. “Poderia ser um mau presságio”, pensou. Então preferiu deixá-la onde estava, prestou atenção no rapaz que novamente se dirigiu a ela perguntando se poderia ir levando a sua bagagem ou se ela precisava de mais alguma coisa. Respondeu de forma afirmativa que ele levasse sua bagagem, embora sua voz soasse indecisa.

Saiu do quarto, o rapaz já ia longe à sua frente arrastando a sua mala e levando embaixo do outro braço um grande pacote de papel pardo todo colado com fita adesiva e diversos avisos de fragilidade. Ela o seguiu pendurando seu laptop no ombro e arrastando a sua malinha de mão. Pensou que estava ficando antiquada e que quando chegasse ao Brasil iria providenciar um tablet, até porque, além do atraso tecnológico em que se encontrava, não aguentava mais o peso do laptop, e já havia visto uma dessas novidades, acreditava que facilitariam muito mais a sua vida, inclusive nas questões de fotografias e filmagens. Sempre fora uma aficionada pela tecnologia, mas sabia a importância do diálogo, do contato direto com as pessoas e suas vivências, tudo aquilo que tornava mais real as suas reportagens.

Enquanto caminhava em direção da recepção, ficou fazendo uma breve revisão dos oito meses que passara na África do Sul. O hotel em que se hospedara situava-se na Rivonia Road N2, o lugar tinha as acomodações de tal forma que pudera se sentir como se estivesse na sua casa. O hotel também possuía uma equipe excelente, pois

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não importava a hora que chegasse de uma viagem ou do seu trabalho, sempre havia alguém que de alguma forma especial lhe oferecia uma refeição no salão de jantar ou no quarto. O café da manhã era para todos os gostos e com certeza o que chamavam de breakfast servia como um excelente almoço, principalmente para quem tinha pouco tempo.

Como jornalista, gostava muito desses detalhes nos lugares onde se hospedava, os ambientes não deixavam nada a desejar, eram agradáveis e aconchegantes. O hotel tinha um jardim que era o mimo dos proprietários, um espaço rodeado por muros que fazia parecer que não estivessem numa metrópole ou numa das cidades mais movimentadas do mundo como Johanesburgo.

Fizera amizades especiais com algumas pessoas do serviço do hotel, Fillitah e Zanni foram suas amigas nas horas de folga para bons papos sobre muitas realidades africanas, comuns do dia a dia de uma mulher, experiências que a ajudavam em muitas matérias que escrevera para a revista. Gostara muito dos jardins e das aves que eram muito bem-tratadas, conviviam e percorriam de forma tranquila em meio aos hóspedes do hotel, no jardim. Tinham um cachorro labrador chamado Rex que se dava muito bem com todos os hóspedes, que, em sua maioria, tinham imenso carinho por ele. O serviço de transporte era muito eficiente, o hotel oferecia esse serviço a qualquer hóspede independentemente para onde ele quisesse ir. Indyara, porém, escolhera um motorista fixo chamado Keba, uma pessoa que depois de oito meses se tornara muito especial para ela.

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Na sua bagagem levava várias lembranças e no laptop, muitas fotos de suas reportagens, dos parques que visitara, do hotel, do apartamento em que vivera durante sua estadia, do jardim e dos animais. No seu coração levava muito mais que lembrança, levava também emoções e principalmente o seu último trabalho. Pretendia voltar novamente um dia, para ficar outra boa temporada, talvez com novas pesquisas e novas fotografias, escolhendo e aprofundando-se um pouco mais por outros países africanos.

Aqueles meses tiveram um sabor especial, sentia que estava sendo difícil partir. Aprendera tanto e principalmente queria mostrar ao mundo que a África do Sul, como outros tantos países africanos, ainda tinha muito para mudar e melhorar, como nos bairros Soweto e outros de periferia onde ela fotografou e registrou muitas de suas pesquisas e reportagens. Onde se confrontou com muitos fatos bons e ruins. Feiras ambulantes, má higiene, homens com microfones defronte as lojas tal como na Rua Voluntários da Pátria em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ou mesmo na grande São Paulo. Homens, mulheres e crianças correndo da polícia nas horas em que vinham fazer inspeções, alguns arrastando suas panelas e fogareiros quentes, queimando as mãos para não serem presos ou multados.

Desviou seus pensamentos e olhou para Rex, que veio ao seu encontro sacudindo o rabo alegremente. Largou suas coisas no chão e ajoelhou-se na grama dando-lhe um grande abraço. Adorava cachorros, tinha saudades do seu Bobi que já estava ficando velho e que provavelmente iria morrer em dois ou três anos, isso a deixava muito

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triste, porque vivia longe dele e sabia que ele a esperava na fazenda de sua avó, não importando o tempo, sempre ficava alerta esperando a sua chegada.

Enquanto acertava as suas contas, sentiu ao seu lado, como uma sombra, pegando a sua bagagem, seu amigo Keba, que havia forçado que ela dispensasse o transporte do hotel. Indyara aceitou com carinho a sua oferta, afinal ela sabia que sentiria saudade dos momentos que juntos tinham passado em suas boas e más incursões em territórios muitas vezes hostis, nas favelas e nas regiões do interior, onde o branco é recebido de forma muito agressiva.

Por mais que a mídia sul-africana negue, isso ainda acontece nos dias de hoje, e apesar dos seus cabelos escuros, encaracolados e da pele bronzeada pelo sol africano e os olhos verdes, as suas máquinas fotográficas acusavam-na como intrusa.

Durante o trajeto até ao aeroporto, que não era longo, conversaram e brincaram sobre a possibilidade de uma viagem de Keba para o Brasil. Na realidade, tanto ela como ele disfarçavam os seus sentimentos nessa hora de despedida. Keba parou a sua caminhonete em frente ao bar Bell Pepper. Enquanto lia o nome do bar, lembrou que era comum em Jo’burg os lugares e as pessoas terem nomes de qualquer coisa ou atos em inglês como resquícios da sua colonização. Keba desceu e entrou no bar, demorou um pouco e quando voltou com uma garrafa de Amarula, com a voz um pouco nervosa, ofereceu o presente dizendo que nos momentos em que ela o apreciaria no seu país sempre se lembraria dele e dos momentos que tinham passado juntos, falou que era um licor produzido

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a partir da fruta marula, uma variedade de noz comum na região das savanas.

Para ela, mesmo que aquela garrafa contivesse somente uma forma artesanal do licor, sabia que superava o gosto do licor conhecido internacionalmente e ficou muito feliz aceitando a explicação dele como se nunca houvesse ouvido falar sobre como era produzida.

Chegando ao aeroporto, descobriu imediatamente o motivo do tom nervoso de Keba ao insistir em levá-la na sua caminhonete, também entendeu por que havia demorado tanto ao descer para comprar a garrafa de Amarula: ele tinha atrasado a sua chegada para que os outros pudessem preparar-lhe uma surpresa como despedida.

Já se sentia chateada e emocionada com a sua brusca partida, pois era esse o seu pensamento sobre o e-mail que recebera da sua redatora: parar o seu trabalho e voltar imediatamente. Seus olhos encheram-se de lágrimas no momento em que Keba estacionava, porque um grupo de jovens e crianças cantavam uma linda canção africana. Era suave como eram frágeis seus pequenos corpos machucados pelo que a vida lhes oferecia. Essa melodia ela já escutara muitas vezes durante a sua estadia na África, ensaiadas pela irmã católica Beatriz no orfanato que frequentava.

A emoção tomou conta porque aquela linda canção reforçou a tristeza de ter que partir, então chorou. Suas lágrimas tinham além de salgadas o gosto amargo de ir embora sem estar preparada, sem querer ir e por obrigação do seu trabalho.

Pensou como sua avó era sábia. Sempre lhe falara que na vida existem momentos que nosso coração se di-

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vide em dois, a vontade de ficar e a vontade de ir embora, e esse era um dos momentos em que ela sabia que era necessário partir apesar de querer ficar. Sabia que era chegada a hora, respirou fundo abraçando a todos e recebendo de cada um uma pequena lembrança.

Colares de sementes, pulseiras de cordões coloridos, anéis feitos de sucata de latas de refrigerante e cerveja, uma tiara de flores secas silvestres, um chapéu e um xale colorido. Suas mãos ficaram cheias, juntou tudo e amarrou dentro do xale, colocou o chapéu na cabeça, apertou tudo aquilo entre seus braços como se fossem os presentes mais preciosos que recebera em toda a sua vida.

Keba ajudou-a com a bagagem e com a coragem de virar as costas e seguir para dentro do aeroporto. Chegando ao saguão principal, Indyara procurou um canto ao lado de algumas poltronas onde abriu a sua mala, a que seria despachada, e acomodou a garrafa de Amarula que Keba havia lhe dado, ajeitou-a com todo o cuidado para que não corresse o perigo de quebrar na movimentação da mala durante o embarque e desembarque; em outro cantinho da mala arrumou os presentes que recebera há pouco. O chapéu deixou na cabeça. Era lindo, feito de couro cru, costurado a mão, e sentava muito bem na sua cabeça por cima da vasta cabeleira cheia de cachos que não prendera. Em seguida, foram para o balcão de recepção da companhia aérea que viajaria fazer o chek-in do embarque.

Em todas, quase todas, as suas viagens era comum voltar ao Brasil sempre com mais bagagem e dessa vez não era uma mala a mais, e sim uma máscara africana

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de tamanho um pouco exagerado. O gosto por máscaras típicas dos lugares para onde viajava sempre a deixavam com problemas, era um volume a mais que estava levando, e a reclamação de quem estava no balcão da companhia aérea não foi pelo peso do pacote, mas sim pelo tamanho e fragilidade. Algumas palavras de Keba em africâner conseguiram diminuir a resistência da moça de porte forte e beleza negra incrível a aceitar diminuir um pouco do valor que ela teria de pagar pelo incômodo e cuidado que o pacote exigia. Terminaram falando do belo sorriso da moça e de sua simpatia em atender as pessoas, ela ficou surpresa em ver que Indyara falava com Keba o mesmo dialeto.

Indyara aprendera com Keba um pouco do vocabulário africâner que é muito parecido com o neerlandês, de certa forma saber um pouco do dialeto sempre foi muito útil para ela. Foi fácil aprender um vocabulário básico para se defender nas conversas do dia a dia, pois falar português, italiano, alemão e inglês facilitou para ela entender as posições intervocálicas e a ortografia simplificada daquela língua. Ela sempre gostara de aprender línguas diferentes e essa era uma vantagem que tinha sobre muitos outros profissionais da sua área.

Não poderia ser uma despedida sem lágrimas, tanto da parte dela como por parte de Keba. A amizade entre pessoas com culturas tão diferentes normalmente se torna muito forte, e esse negro de meia idade, com sorriso fácil presenteado com dentes brancos perfeitos, de estatura média que deixava transparecer uma musculatura forte formada na sua juventude, trabalhando em minas

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