O pastor e a bruxa de Açores

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Roseane Guedes Herdt

S達o Paulo 2013


Copyright © 2013 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Diagramação Thaís Santos Revisão Priscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ -------------------------------------------------------------------------------H466p Herdt, Roseane Guedes O pastor e a bruxa de Açores/ Roseane Guedes Herdt. — São Paulo: Baraúna, 2012. ISBN 978-85-7923-604-4 1. Romance brasileiro. I. Título. 12-7655.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

19.10.12 26.10.12 040020 -------------------------------------------------------------------------------Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua da Glória, 246 — 3º andar CEP 01510-000 Liberdade — São Paulo — SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br


A Deus por Tudo.

Ao meu esposo, Ant么nio, pelo apoio e incentivo.



In Memoriam À minha avó, Bertina, um ser humano que não saiu do meu coração.



A vocĂŞ, Nicolle, e a todos que vierem de ti.



Parte 1 Ano de mil novecentos e sessenta e cinco, sul do Brasil.

A

tarde caía calma. O sol escondia-se no horizonte, dourando as águas da Lagoa de São Francisco. O vento sul soprava suave embalando, preguiçosamente, os barcos ancorados na beira do cais. Gaivotas sobrevoavam as embarcações, atraídas pelos restos dos pescados recolhidos pela manhã. A paisagem, quase irreal por conta de sua efemeridade, acenava um mergulho transcendente. Por isso, os passageiros que chegavam de barco, vindos dos arredores, não resistiam, sentavam-se nos bancos de madeira à beira da lagoa para apreciarem o belo desempenho da natureza. Na rua estreita que circundava o cais, Augusto dirigia seu automóvel, envolvido naquele cenário admirável. Mais adiante, estacionou e caminhou observando a numeração das casas. As construções eram em estilo açoriano, herança dos antepassados portugueses da Ilha de Açores. Atravessou a calçada de barro e pedras, parando próximo à janela de uma das residências. A cortina de renda

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movimentava-se ao sabor da aragem, revelando o interior daquela casinha de janelas altas. Observou o cômodo: havia um roupeiro e uma cama de verniz coberta com uma colcha de cor azul claro, e acima, na parede, um crucifixo pendurado. Um tapete feito de retalhos cobria parte do assoalho de tábuas largas, caprichosamente enceradas. Conferiu o número, ia bater na porta quando ouviu risos. Olhou pela lateral, que dava para o quintal, e avistou duas jovens que conversavam debaixo de uma figueira. Uma delas chamou sua atenção. “Como é linda”, pensou. E, deslumbrado, continuou fitá-la: tinha os cabelos castanho-claros que lhe caíam sobre os ombros, os olhos verdes exibiam um brilho radiante e a pele levemente morena realçava seu vestido de lese branco. — Tudo nela é um encanto — sussurrou, fascinado com a jovem de rara beleza. — Bom dia, meu rapaz! Deseja algo? Ele virou-se como se acordasse de um sonho. Avistou uma senhora na janela lateral da casa. — Bom dia! Sou Augusto, filho de Cora Cerrado — respondeu disperso. — Ah! Entre, meu filho! Subiu a escadinha de três degraus que dava acesso à porta e entrou na pequena sala. Havia muitos cortes de tecidos em cima de uma mesa, alguns pedaços já cortados em moldes de camisas e calças. Rosa estava sentada diante de uma máquina de costura, ao lado da janela.Tinha uma voz meiga e aparentava ser uma mulher de saúde frágil, mas mantinha os traços da beleza juvenil.

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— Sente-se e fique à vontade. — Mamãe pediu para entregar-lhe este tecido para a confecção de alguns uniformes. São para os novos funcionários do frigorífico. Enquanto ela media o rolo de tecido, Augusto notou que sobre uma cômoda, entre alguns enfeites, estava a fotografia de uma criança nos braços da costureira. Observou os olhos da menina e constatou que era a moça do quintal. “São os mesmos olhos verdes molhados e o sorriso não mudou, continua lindo”, pensou. — O tecido dará trinta uniformes. — Ótimo. — Agora diga-me, seu pai melhorou de saúde? — Sim, mas é necessário cuidado, seu coração está fraco. Está na capital com mamãe, e embora ela não goste de ausentar-se do sítio, aproveitaram para resolver alguns negócios e dar um passeio — disse sem tirar os olhos do retrato. — Dona Cora tem grande apego àquelas terras. Das poucas vezes que conversamos, senti seu entusiasmo — comentou percebendo seu interesse pela fotografia. — É minha filha — respondeu ao seu olhar. E, virando-se para a janela, chamou: — Elisa, venha cá! Ela entrou na sala, e Augusto a contemplou encantado. Sentiu seu coração acelerar, nada em sua vida teria sido mais importante, foi envolvido por um contentamento jamais vivenciado. Elisa teve o poder de aflorar-lhe um sentimento intenso que o envolveu em felicidade. — É a minha filha! — exclamou orgulhosa. — Este é o filho de dona Cora, que estava na capital estudando. — É um prazer conhecê-lo! — estendeu-lhe a mão.

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Ele levantou-se e a cumprimentou, olhando-a nos olhos. — Veio visitar seus pais? — Bem, acabei de me formar em advocacia e resolvi retornar à nossa sossegada Açores. Augusto Cerrado era o primogênito do casal Afonso e Cora Cerrado. Voltara para a cidade natal a pedido dos pais. Estudioso e dedicado, frequentou os melhores colégios da capital, e embora fosse filho de pais ricos, era humilde e de caráter íntegro. Não era provido de grande beleza física, tinha cabelos e olhos negros, seu porte alto e elegante o constituía um homem refinado e charmoso. Seu rosto irradiava serenidade, talvez fosse essa sua maior virtude, pois enfrentou muitas intempéries quando menino, causada pela prepotência e crueldade dos pais. Mas o conflito mais grave era com seu irmão caçula. Jacinto nascera com uma doença desconhecida, não falava e tinha sérios problemas de coordenação motora. Cora não o aceitava, então, cresceu desprezado pelos pais. Pensou, sobretudo, no irmão quando decidiu voltar para Açores. Poderia protegê-lo e dar-lhe o que mais lhe faltava, amor. Apesar de tudo, amava os pais. Seu temperamento era tranquilo e sem revoltas. — Seja bem-vindo à Açores — não escondeu sua alegria. Ela também sentiu-se atraída, viu em seus olhos serenidade e pureza de alma. — Obrigado! Despediu-se deixando claro que aquela não seria sua última visita, garantiu que viria visitá-la em breve, se sua mãe permitir. Olhou para Rosa esperando

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seu consentimento. Ela, notando seus olhares precocemente apaixonados, sentiu certa preocupação. Respondeu balançando a cabeça, sem muita convicção. Logo que ele saiu, falou para filha de sua preocupação. Elisa parecia ouvir a mãe com atenção; entretanto, seu pensamento estava longe. Acabara de conhecer um homem que pensava existir somente em seus sonhos. Augusto, com seu rosto sereno e olhos que expressavam a grandeza de sua alma, conquistou-a no primeiro instante. Tivera antes um namorico com Guilherme, seu vizinho, mas o relacionamento não durou. Sentia por ele apenas admiração e amizade. Embora, ele ainda fosse apaixonado por ela, mantinham uma boa e verdadeira amizade. A voz de Rosa parecia desaparecer, seus conselhos dissipavam-se como fumaça ao vento, todavia, continuava olhando para mãe com o rosto iluminado pelo amor. A noite caíra, no céu a lua cheia tinha um brilho radiante, a brisa fresca vinda do mar trazia o cheiro da maresia. Pardais, em gritaria, aninhavam-se nas árvores da praça. Era hora da missa das dezenove horas. Padre Neco costumava receber seus paroquianos na frente da igreja, assim podia cumprimentá-los ou puxar-lhes as orelhas, se fosse preciso. De repente, ouviu a voz do delegado Alves, pelo tom era coisa grave. Correu até a mercearia, três casas depois da igreja. Encontrou-o berrando: — Bruxa maldita! Vou prendê-la, por desacato à autoridade — estava transtornado.

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