Ordem C贸smica Hist贸ria de uma Ideia
Julio Cesar Assis
Ordem C贸smica Hist贸ria de uma Ideia
S茫o Paulo 2011
Copyright © 2011 by Editora Baraúna SE Ltda Capa O Logos ordena o cosmos. Codex Vindobonensis (França, 1250) Biblioteca Nacional da Áustria. Imagens obtidas na Wikimedia Commons http://commons.wikimedia.org. Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Revisão Priscila Loiola
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ ________________________________________________________________
A865o
Assis, Julio Cesar Ordem cósmica : história de uma idéia / Julio Cesar Assis. - São Paulo : Baraúna, 2010. ISBN 978-85-7923-212-1 1. Idéia (Filosofia) - História. I. Título. 10-4481.
CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3
09.09.10 07.10.10
021589
________________________________________________________________
Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua Januário Miraglia, 88 CEP 04507-020 Vila Nova Conceição - São Paulo - SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br www.livrariabarauna.com.br
Ao erudito budista Ricardo Mario Gonçalves (Universidade de São Paulo) pela indicação de clássicos como Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes de É. Benveniste e The Interpretation of the Fourth Gospel de C. H. Dodd.
Ao filósofo e sinólogo Mario Bruno Sproviero (Universidade de São Paulo).
Ao protopresbítero José Valério Lopes dos Santos (Patriarcado de Antioquia), cujo exemplo ensina que as verdades devem ser tanto inteligidas como vividas.
“Este princípio é a crença em uma certa regra, ordem, lei”. T.W. Rhys Davids, Normalism
A criação é “um mistério tão insondável como o Ser divino”. Vladimir Lossky, Orthodox Theology
“A visão do mundo como ordem constitui uma das mensagens mais belas da cultura grega, uma conquista irreversível da história espiritual do Ocidente”. Giovanni Reale, Storia della Filosofia Antica
“Toda Ciência é Cosmologia”. Karl Popper, The Logic of Scientific Discovery
“É o ethos que origina a Ética”. Margaret Barker, Creation
8
Sumário PREMISSA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 COSMOVISÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 Lei Cósmica no Pensamento Antigo. . . . . . . . . . . . . . 17 Normalismo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 Mesoamérica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 Movimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 Oriente. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 Curso. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 Terra Pura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 Indo-Europeus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Norma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 Rito. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 Crescente Fértil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Retitude. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Hino a Amon-Ra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90 Estatuto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 Sabedoria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Aliança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108 Logos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
9
CIÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Ciência e Cosmos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139 Do Arcaico ao Clássico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 Paradigma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 150 Leis da Natureza. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 Relógios e nuvens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Escólio dos Principia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Teologia do Escólio Geral. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166 Subsídios ao Escólio dos Principia . . . . . . . . . . . . . . 170 Passagens escriturais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 SÍNTESE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173 Substrato do Universo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174 Fundamento da Sociedade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Complementaridade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 Naturalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Inefabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186 BIBLIOGRAFIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 193
10
PREMISSA Ética evoca termos como “correto”, “reto”, “direito” e “justo”, empregados no cotidiano compreensivelmente sem a consciência de serem abstrações de realidades de início concretas. “Todo significado abstrato procede de um [significado] concreto”1. “Ideia, de idein, que quer dizer ver, corresponde a forma. Primeiro significa a forma sensível em geral, depois, na linguagem filosófica, assume significado técnico ontológico e metafísico”2. “Reto”, no sentido espacial de plano, produz “correto” e “direito”. “Justo” provém da intelecção do que está concretamente “ajustado”, como uma roda em seu eixo. Não é de imediato evidente que o “r” de “rito” é o mesmo do “aro” e dos “raios” de uma roda de carruagem. “Raio” por sua vez liga-se a “rei”: a autoridade “irradia-se” como uma luz a partir do monarca de direito divino. “Em grego, a proposição ‘Deus é luz’ é uma proposição predicativa, mas em latim, como em francês, ela se torna uma tautologia, porque ‘Deus’ significa precisamente ‘luz’ ou ‘ser luminoso’. Com efeito, as palavras deva, Zeus (Dios 1
OLIVEIRA, J. A. de. Etimologia e lexicografia etimológica hodierna.
2 REALE, G. História da Filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1995, vol. V, p. 131.
11
no genitivo), deus, Júpiter, dies, dieu, dia, em sânscrito, em grego e em latim derivam todas da raiz indo-europeia DEI, que gerou os temas dei-wo (‘céu luminoso considerado como uma divindade’) e dyew, ‘deus luminoso do dia’”3. “Mundo” advém do latim mundus, “puro”; a poluição desta pureza torna-o imundo. Estes termos presentes no dia a dia estão intrinsecamente ligados à ordem cósmica, que longe de ser uma noção abstrata alienada do agir cotidiano, é o que possibilita este agir. A ideia de ordem cósmica não é uma hipótese, teoria ou conteúdo psíquico subjetivo, mas uma realidade paradigmática objetiva, em um nível de ser que transcende qualquer manifestação mental ou corporal4.
Urdidura adornada; tecelagem ikat em seda. Uzbequistão, meados do século XIX 3
CHENIQUE, F. Sagesse chétienne & mystique orientale, p. 458.
4 COOMARASWAMY, A. K. Vedic exemplarism. Metaphysics, p. 177-197.
12
“Ordem” provém do latim ordo, urdidura dos fios de um tear. “Cósmica” é a adjetivação do grego kosmos, “adorno”. Ordem cósmica é urdidura adornada. “Adorno” não trazia em si a conotação ulterior de um valor estético não essencial ou desnecessário. Nas sociedades arcaicas e tradicionais não havia distinção entre artista e artesão, belas artes e artes aplicadas. “Artimanha” ou “artifício” significam “ardil”, mas na origem artificium denotava “objeto de arte”. Adornar um artefato implica completá-lo visando seu significado e função. O cósmico é cosmético: os adornos da mulher são funcionais. Ela não agiria socialmente sem eles; sua decoração é questão de decoro. A ordem cósmica é um entrelaçamento adornado funcionalmente com estrelas, cristais, flores, flocos de neve e seres humanos. A palavra kosmos aplica-se plenamente ao universo somente enquanto este é adornado pela presença da humanidade. “O Criador não fez o mundo todo com as mãos, mas pelo Logos. Deus, tendo feito o mundo, desejou adorná-lo e então enviou o ser humano como ornamento do corpo divino”5. O ser humano é o adorno por excelência do mundo, o qual por sua vez é uma epifania baseada na ordem cósmica. “Uma única harmonia, por meio da mistura de princípios contrários, organizou a constituição da totalidade 5 Krater (A Taça). DODD, C.H. The interpretation of the fourth gospel, p. 27
13
das coisas, a saber, do céu, da terra e do cosmos inteiro. Misturando o seco ao úmido, o leve ao pesado, o reto ao curvo, uma única força, penetrando através de todas as coisas, ordenou toda a terra e o mar, o éter, o Sol, a Lua e todo o céu, construindo todo o cosmos partindo de elementos não misturados e diferentes, isto é, do ar, da terra, do fogo e da água, envolvendo-os em uma única superfície esférica, obrigando as naturezas mais opostas nele contidas a concordar entre si e obtendo de todas elas a conservação do universo. A causa dessa conservação é o acordo dos elementos e a causa do acordo é o equilíbrio e o fato de que nenhum supera o outro em potência; com efeito, o pesado e o leve, o frio e o quente se equilibram reciprocamente e a Natureza nos ensina, com respeito às coisas maiores, que a igualdade é o que mantém a concórdia e a concórdia é o que mantém o cosmos, que é pai de todas as coisas e superlativamente belo”6. O prisma da História das Ideias, iluminado pelas contribuições de eruditos como historiadores, filósofos e demais estudiosos permite a visualização da relevância do conceito de ordem cósmica no desenvolvimento histórico, tanto mitológico e religioso, quanto filosófico e científico. Arnold Toynbee, Mircea Eliade, Jaroslav Pelikan, George Dumézíl, C. H. Dodd e outros se dedicaram a largos campos do acontecer histórico. Este não é o caso aqui e não se trata de um trabalho exaustivo em qualquer sentido, pretendendo apenas demonstrar que a ideia de ordem cósmica não é um traço limitado a alguma cultura específica. 6
Pseudo-Aristóteles, De Mundo. 14
São perpassadas de modo panorâmico incidências da ideia de ordem cósmica em alguns centros culturais do mundo pré-moderno, cuja influência foi decisiva para outros povos vizinhos e ulteriores: o México préhispânico, a China clássica, o Japão medieval, as sociedades indo-europeias, o Egito faraônico, a Suméria e o antigo Israel. Especial atenção merece o Crescente Fértil de ideias como a escrita, o alfabeto e a concepção de Leis da Natureza, que informa o tema da ordem cósmica na História da Ciência moderna. A lógica interna do tema requer o estudo linguístico da ideia de ordem cósmica em cada tradição: a Gramatologia dos pictógrafos, hieróglifos, ideogramas e a Etimologia das palavras que a exprimem em cada cultura. O estudo do significado destas noções e seu desenvolvimento histórico; a mitologia e a ritualística pertinentes. A argumentação é apoiada em eruditos respeitados de cada área específica, que não escreveram apenas para si mesmos e seus pares, mas sim na expectativa de que suas obras fossem cultivadas e frutificassem. O estudo da ideia exemplar de ordem cósmica nas primeiras civilizações estabelece um substrato sólido a partir do qual a função exercida por este motivo condutor no desenvolvimento de cada tradição pode então ser compreendida. Historiadores e filósofos da Ciência têm demonstrado a relevância de mitos e dogmas para a compreensão do que precedeu a Ciência moderna, agindo como auxílio ou obstáculo ao desenvolvimento científico como se verificou historicamente.
15