Seres da margem

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Seres da margem



Júlio César Pereira de Freitas

Seres da margem

São Paulo 2010


Copyright © 2010 by Editora Baraúna SE Ltda Capa e Projeto Gráfico Aline Benitez Revisão Priscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ _______________________________________________________________

F936s

Freitas, Júlio César Pereira de Seres da margem / Júlio César Pereira de Freitas. - São Paulo : Baraúna, 2010. ISBN 978-85-7923-261-9 1. Romance brasileiro. I. Título. 10-6180.

CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

29.11.10 13.12.10

023194

_______________________________________________________________ Impresso no Brasil Printed in Brazil DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br Rua João Cachoeira, 632, cj.11 CEP 04535-002 Itaim Bibi São Paulo SP Tel.: 11 3167.4261 www.editorabarauna.com.br


Línguas

“Contenho vocação para não saber línguas cultas. Sou capaz de entender as abelhas do que alemão. Eu domino os instintos primitivos.

A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente. A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras. (...) Entendo ainda o idioma inconversável das pedras. É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das palavras. Sei também a linguagem dos pássaros — é só cantar.” Manoel de Barros Ensaios Fotográficos — Ed. Record. 1º edição: 2000.


“(...) há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. (... ) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta,sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: - Trouxeste a chave?” Carlos Drummond de Andrade “A Rosa do Povo”

“Oñemomotareté ybá poránga resé ogorýbamo meme opab~i abá mondygi sorý katu jandé ánga”

Poema atribuído a José de Anchieta em tupi-guarani. Houve aqui uma inversão intencional dos versos com a finalidade de ficar com a seguinte versão:


“Cobiças muito a bela fruta, com contínuas folganças abrasa a todos. Alegra nossa alma.”

Weil das kunstwerk nur in seiner kunstwerklichkeit existiert. Weil das kunstwerk als solches nucht existierti.” (1) Torre de Babel, o caos escorrendo, vicejante, por entre palavras. Língua em agonia. Guatós, índios canoeiros, pantaneiros, que foram absorvidos, dizimados ao longo de uma dominação social-cultural. Resistência audaz, absolvido como aquele fiozinho resistente do pavio de um toquinho de vela que insiste em ser luz, aguardando o sopro fatal, ao contrário das teorias de origem. O contato que tenho com essa cultura não passa de referências às lembranças de histórias que minha mãe (Alide) e minha bisavó (Hemetéria), guató autêntica, contavam sobre um barco mercante que subia o rio Paraguai, de tempos em tempos. Chamava-se “Príncipe de Astúrias”, e era chamado de “Prince d’Astura” pelos moradores da Serra do Amolar, e levava medicamentos, roupas e mantimentos até Cáceres (MT). Atracava nas encostas rio acima e, ali, além dos olhos do mundo, prenúncio de um olhar espontâneo-espantado-maravilhado, negociavam, marretavam o alumbramento por desejos facilmente trocados por caças, peixes, frutas por panos, perfumes e bugrinhas que


eram levadas desde os 10 anos para trabalharem em casas de famílias, e/ou serviços no navio em troca de comida, roupas e esperança de uma vida melhor. Os tripulantes colhiam rio acima o que venderiam rota abaixo, mão de obra e mercadoria sexual, e ainda diziam “bugre de estimação”, pois o custo é só alimentação.Antecedentes criminais. Descendo para a inexistência. Esta obra é um relato ficcional que propõe atenção para o lento e agonizante desaparecimento da língua guató; apenas três remanescentes da linhagem original falam a língua, e o que foi absorvido pelo idioma que falamos? E a essência de uma cultura dissipada por outra ?. Estes três indivíduos estão confinados em uma parte da reserva, e a outra parte está povoada por descendentes mestiços que retornaram das mais variadas partes, cada um com um tipo de contaminação cultural. Cultos que se opõem frontalmente à ideia de divindade e formação do homem e mundo guató. A noção de nação foi considerada extinta ao final da década de 70 do século XX, porém, nos anos 80 do século XX, foi reconhecido um grupo não urbanizado, na ilha Bela Vista do Norte e núcleos dispersos no pantanal ao longo dos rios Paraguai, São Lourenço e Capivara, no município de Corumbá, MS. A sobrevivência dos guatós deve-se a vários motivos, um deles pelo fato de não viverem em grandes aldeias, formam famílias nucleares, dispersam-se pelo pantanal dificultando o contato-convívio com doenças, armas de guerra dos conquistadores. Darcy Ribeiro escreveu em “Culturas e Línguas indígenas do Brasil”, 1957, “Guató. Viviam à margem do rio Paraguai.


Subindo às vezes o rio São Lourenço no estado de Mato Grosso.(Extintos).” Estamos em processo de etnogênese, alguns contando histórias e outros reaprendendo a ser índio. Segundo a FUNAI, em 1989 eram 382 remanescentes. Esta história é parte de uma trajetória de famílias que se urbanizaram. Seguindo os preceitos da entropia nas artes, que, segundo Robert Smithson, pode ser entendida como grau de desordem ou incerteza de um sistema, ou ainda como caos, desorganização, acaso, resulta uma narrativa atemporal, onde a personagem estabelece vínculo com a instalação da história, sem marcadores cronológicos explícitos, revelando a deterioração temporal ou “desevolução”, neutralizando o mito do progresso. A noção de obra terminada, completa, total, é substituída pela ideia de arte como prática de uso. (2) Rapsódia sem custódia. Novelo novela sem nós. Prosa em poética espontânea. Não é uma história de heróis, nem heroísmos de resistências, tampouco de revolucionários, mas uma insubmissão (ainda que inconsciente), uma reclusão à quase nulidade, impercepção de não deixar transparecer suas culturas, seus dogmas,com o fim de preservá-los, evitando o confronto, com a aceitação do outro. Clausura de outras crenças, água-se as lembranças evitando, assim, o choque maior deste etnocídio. O contato contamina, o mal é relativo e é analisado de uma forma a construir um avanço para a ruína, para o abismo que é a insignificância de quem é dominado. “Raspas e restos me interessam”, como dizia Cazuza. Não há uma ordem cronológica determinante. O tempo é passional e passível de encontros entre lembranças e presentes para o futuro.


Toda obra é um estudo-estado-elo entre o real e sua representação, signo significa sinais de significados, significâncias são implicâncias. Imagens em palavras em movimentos. Imagens — palavragens. Ímãs de ventos. Sustenidos sustentam histórias trajetórias. “Perché il tempo e lo spazzio sono delle astrazioni relative. Perché l’opera d’arte non existe in quanto tale. Perché tutta representazione è impossible. Perché l’opera d’arte non existe. (. . .) Parce que toute representation est impossible. Parce que le temps e l’espace sont des abstractions relatives, Parce que l’ouvre d’art n’existe pas. Parce que l’artiste n’existe pas non plus.” (3) “Um elemento especial e sumamente importante na visão plástico-pictural do homem é o vivenciamento das fronteiras externas que o abarcam. Esse momento é inseparável da imagem externa e só é separável dela em termos abstratos, traduzindo do homem exterior uma aparência, com o mundo exterior que o abarca, o momento de limitação do homem no mundo”.(4) Mebengokre significa gente do espaço dentro da(s), ou entre a(s) águas.(5).


As personagens são imagens, desenhos de percepção, esboço de personalidades, mecanismos condutores de uma história. Esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com pessoas é mera fantasia. “Toda história que se escreve deve deixar uma porta aberta pra liberdade...”(6) (l)/(3) Fonte: Dora Longo Bahia: “Marcelo do Campo — 1969-1975” “Por que o tempo e o espaço são abstrações relativas. Porque a obra de arte não existe enquanto tal. Porque toda representação é impossível. Porque obra de arte não existe. Porque toda representação é impossível.” (em alemão — italiano — francês) (2): Manifesto FOEHN — Berna, 1969 (Front Ordinaire pour une Esthétique Helvétique Neutre). Dora Longo Bahia. Dissertação-Eca/USP. (4): Mikhail Bakhtin, Estética da Criação Verbal. (5): Terence Turner; trad. Beatriz Perrone-Moisés, “História e Mudança Social, De Comunidades Autônomas para a coexistência interétnica. História dos Índios no Brasil; Palavra Kayapó — tronco Macro-Jê. (6):Sylvia Orthof,(1932-1997),— no livro Rei Preto de Ouro Preto.Ed.Global.


Para Victor Hugo, Julinho e Isadora. Para Eliane Cristina Tavares (viço, vício... por ler e compreender as várias edições de mim.) Para Maria Bergamine, tia Beguinha. Em memória dos índios: + Galdino Jesus dos Santos — pataxó — queimado vivo em Brasília — 20 de abril de 1977, um dia após comemorar— se o Dia do Índio; +Avelino Nunes Macedo — xacriabá — covardemente assassinado por alguns jovens de classe média em Marivânia Minas — 2007; +Juliana Balbino — caiová — 20º índio assassinado na região de Amambai (MS) até outubro de 2007 — neste mesmo período, 15 crianças morreram de subnutrição. Homenagem à: Many Sateré — que enfrentou o batalhão de choque da PM do Amazonas, com sua filha nos braços, em luta contra a reintegração de posse em Lagoa Azul, à beira da rodovia que liga Manaus a Itacoatira. Esta obra foi concebida após visitar uma instalação da artista plástica Dora Longo Bahia “Marcelo do Campo” Itaú Cultural, Av. Paulista, São Paulo, 2006.


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Instauração — As coisas não tão lá essas coisas — falava para si e para o vento, embora estivesse olhando para mim. O que aquele velho índio falava soava como se fosse partícula solta, um fragmento, uma dessas coisas indecifráveis que voam desordenadas ao vento, como o lento e desengonçado levantar voo de um tuiuiu. Vislumbrava ali a possibilidade de descobrir, literalmente, um universo, assim como um átomo é capaz de construir uma história; uma ilha é o que sobrou de um dilúvio? Será que parte de “Babel” teria cumprido sua missão ? Vadiava-me por segundos eternos nessas divagações, quando do êxtase estático em que nos encontrávamos, disse: — Não sobrou ninguém; ninguém vai nem ver o que sobrou de tudo. — Como assim? — perguntei provocando uma possível reação, porém, permanecia sereno e indecifrável como os ruídos do mato e o rumorejar lento constante e intenso que vinha matadentro. Ainda não havia acostumado com essa estranha órbita abissal de seu olhar e, submerso, sei que entoava falares e dizeres quânticos, quase quasares.

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— A água é tudo. A água desenha a terra... Sem que percebesse, liguei o gravador, e arrastando as sílabas, entoando rumores, quase prece, continuou a falar: — ... a água sabe o contorno, os desvios, não se prende a nada, é livre.Um dia, há muito tempo, me disseram que tudo é pó, feito barro nascemos e ao pó voltaremos... — um olhar para um ruído que vinha da mata, estranho com o chacoalhar do vento. Nesse momento, veio-me Zeus e Prometeus modelando humanos do barro, lembro-me bem desta aula de mitos, e o sopro de vida ventando naquele instante, uma brisa calma ateando labaredas no fogo de chão e bailando o pavio da lamparina. — ... a grande verdade, mas a verdade é que tudo é água, o grande dilúvio ainda não veio, veja tudo à sua volta, quando a gente nasce, saímos de uma bolha d’água. Iluminava-me com aqueles encantos decifrados, dogmas genéticos de uma cultura cúmplice das águas, do mato, do ar, ecos de um sistema pulsante; num instante, vi seus olhos projetarem águas, respirou profundamente e perguntou se havia bocaiúva na latinha que estava perto de mim. Que sim, disse, levantando-me levando a latinha, escolhi duas ou três e entreguei-lhe o resto. Descascou uma das grandes, colocou-a na boca formando aquela bola do lado esquerdo do rosto e sereno completou: — Dizem que o final de tudo é o fogo, já vi muitos dos nossos “se acabá” no fogo de “bebedera”, outros acham que tudo vai arder que nem fogueira, mas a verdadeira história é que o sol vai “quentá” muito, muitas 14


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águas “vai” defender a terra indo pro céu e voltando como chuva pra “brandá” aqui, mas dos cantos do fim do mundo muita água vai “vim” derretida e vai criar um novo desvio, um novo desenho pro mundo. Imaginei de imediato as geleiras se descompondo, uma tragédia catártica, visão de João, fome de apocalipse. Tentei falar das coisas que já havia aprendido na universidade, porém, nada era tão grandioso quanto àquelas histórias, eu e minhas raízes varando, arando a terra, sim, eu vinha, eu pertencia a uma história que se perdeu no contato, ou melhor, recolheu-se em sua grandiosidade para preservar, cultivar suas verdades, aceitando a verdade dos outros sem impor a sua. Perguntei-lhe sobre o que havia dito sobre nascermos do pó. Disse-me sem pressa sobre uma missionária de fala engraçada, chamada Irmã Jalda. — Irmanjada? — indaguei, e acho que aquilo era soletrar para ele, então, depois de um suspiro, disse mais pausado: — Ir-mã Jal-da. — Jalda! E o que ela falou? — ansioso que estava. — Nada — ele disse —, de nada mais falou. Pausa. Intermináveis segundos perpetuavam um olhar sobre o fogo. — Falou sobre uma outra verdade que ninguém conhecia, além das duas que existiam. Susto no vento que passa. Quietude povoada por assombros e a respiração da mata. 15


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